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FILIAÇÃO
SENTENÇA
TRÂNSITO EM JULGADO
IMPUGNAÇÃO
Sumário
O vínculo da filiação, constituído por sentença já transitada em julgado, não pode ser destruído através de uma acção de impugnação.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B................., residente no ................, .............., ..............,
veio intentar acção de impugnação de paternidade, sob a forma ordinária, contra
C.............. e sua mãe D.............., ambas com residência no .............., .............,
pretendendo fosse declarado que ele (autor) não era o pai da Ré C..........., devendo, em consequência, ser ordenado o cancelamento no assento de nascimento daquela da menção de paternidade que no mesmo lhe vinha atribuída.
Para tanto e em síntese, alegou o Autor que, muito embora tivesse corrido acção de investigação de paternidade contra si intentada pelo M.º P.º em que ficou reconhecido e declarado que aquela C..............., nascida a 3.5.1982, era sua filha, certo era que, como já havia defendido na oposição apresentada naquela, no período legal da concepção não havia mantido relações sexuais exclusivas com a Ré D.............., mãe da C.............., pelo que não lhe podia ser atribuída a paternidade relativamente a esta última, o que poderia agora ser demonstrado através de exames “biológicos” e “hematológicos”, não disponíveis na altura em que correu a mencionada acção de investigação, assim se legitimando deitar mão da presente lide, tanto mais que, tendo casado em 1 de Outubro de 1978, desse casamento nasceram duas filhas, incumbindo-lhe acautelar para futuro os interesses patrimoniais dessa sua família.
As Rés, citadas para os termos da acção, vieram apresentar contestação, defendendo-se por excepção e impugnação, aduzindo, entre o mais e no que aqui interessa reter no âmbito daquela primeira defesa, que o Autor carecia de legitimidade para intentar a presente acção, para além do que se havia formado caso julgado, por força do que ficara decidido na referida acção de investigação, constituindo a presente lide a repetição da causa anteriormente intentada.
O Autor replicou, refutando a procedência das excepções deduzidas na contestação e concluindo nos precisos termos do peticionado.
Seguiu-se despacho saneador em que se decidiu ser o Autor parte ilegítima para intentar a presente acção, por a lei não admitir a impugnação de paternidade que esteja já reconhecida por decisão judicial, para além de se verificar a excepção de caso julgado, atenta a decisão já tomada e transitada na acção de investigação de paternidade que declarou ser o Autor pai da Ré C.............., nessa medida se tendo absolvido as Rés da instância.
Do assim decidido interpôs o Autor recurso, que já neste tribunal foi determinado seguisse como agravo, tendo concluído as suas alegações pela revogação daquela decisão, devendo os autos seguir os seus termos para conhecimento do mérito da acção, sendo que não se verificavam no caso as excepções de ilegitimidade activa e caso julgado.
As Rés contra-alegaram, pugnando pela manutenção do decidido.
Corridos os vistos legais, cumpre tomar conhecimento do mérito da acção, sendo que a instância mantém a sua validade.
A materialidade a reter para o conhecimento do objecto do agravo vem já enunciada supra em relatório, tendo a ver com o alegado no articulado inicial, mas podendo resumir-se, no essencial, ao seguinte:
. A Ré C.............., filha de D................ (aqui 2.ª Ré), nasceu a 2 de Maio de 1982, de cujo assento de nascimento consta como pai o aqui Autor, na sequência de decisão definitiva, de 21 de Junho de 1985, tomada em acção de investigação intentada pelo M.º P.º contra aquele;
. O Autor contraiu casamento, a 1 de Outubro de 1978, com E............, em primeiras núpcias de ambos, existindo deste casamento duas filhas, F............ e G.............;
. O Autor naquela acção de investigação de paternidade contra si intentada apresentou contestação, defendendo a improcedência da mesma;
. Na presente acção, o Autor, entre o mais, veio alegar não ter mantido relações sexuais exclusivas com a Ré D.............., mãe da Ré C.............., no período legal de concepção que precedeu o nascimento da referida C..............., não podendo ser considerado o seu pai “biológico”, o que era demonstrável através da realização de exames “biológicos” e “hematológicos”, não realizáveis à data da instauração da aludida acção de investigação de paternidade.
Decorre do alegado inicialmente pelo Autor e acabado de resumir em linhas mestras que o mesmo pretende impugnar a decisão judicial que o reconheceu como pai da Ré C............. .
Já vimos que o tribunal “a quo” concluiu pela absolvição das Rés da instância, por considerar que o Autor era parte ilegítima para intentar a presente acção, bem assim por se verificar a excepção de caso julgado, defendendo aquele no seu recurso a inexistência das aludidas excepções.
Cumpre, assim, avaliar se motivos existem para revogar o decidido na parte apontada, o que constitui o objecto do presente agravo.
Em causa está, desde já, avaliar se ao Autor é possível reconhecer legitimidade para deduzir o pedido formulado na acção, sendo que o tribunal recorrido assim não o entendeu com o fundamento de que, estando já reconhecida a paternidade por decisão judicial, não era possível intentar acção de impugnação de paternidade.
Vejamos.
Cremos que a fundamentação assim gizada na decisão recorrida não é suficiente para cairmos na verificação de ilegitimidade processual activa.
Com efeito, a argumentação em referência serviria antes para concluir pela manifesta inviabilidade da acção intentada, o que tem a ver com o mérito da mesma, mas já não com a legitimidade da parte para deduzir o pedido em causa, naquele caso se nos colocando uma situação de legitimidade no campo do direito material (substantivo), enquanto no último se alude à legitimidade no campo processual, aquela que interessa apreciar.
E, conforme resulta da norma geral constante do art. 26 do CPC, acolhendo um critério assumidamente objectivista, o autor é parte legítima para a acção na medida em que tem interesse em deduzir em juízo determinada pretensão, analisada esta, se necessário, em função dos ternos que é por si configurada a relação jurídica controvertida – v., neste aspecto, Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1.º, em anotação ao citado art.
Ora, tendo presente o pedido formulado – impugnação da paternidade já fixada por decisão judicial – e a causa que o sustenta (acima já foi discriminada a respectiva factualidade), para o caso de restarem dúvidas quanto à avaliação do pressuposto em referência, cremos, ao contrário do ponderado na decisão impugnada, que ao Autor deve ser reconhecida legitimidade activa para instaurar a acção em presença, atento o manifesto interesse em ver afastada a paternidade que lhe vem atribuída.
É questionável que à presente acção negatória possa ser atribuída viabilidade ou relevância jurídica, existindo já vínculo de filiação estabelecido por decisão judicial transitada – em causa está também a força de caso julgado nas acções de estado, assunto a tratar no âmbito daquela outra questão suscitada no recurso, que mais à frente analisaremos – mas tal, como atrás reflectimos, é atinente ao próprio mérito da causa, ou seja, tem a ver com a legitimidade no campo do direito material, enquanto o que aqui importa solucionar diz respeito à legitimidade no campo processual – v., ainda que no confronto das figuras de interesse e legitimidade processuais, Maria José Capelo, in BFDC, “Studia Iuridica”-15, sob o tema “Interesse Processual e Legitimidade Singular nas Acções de Filiação”, págs. 121 a 126.
Na base deste raciocínio e na ausência de norma específica que estabeleça quem, na situação em presença, detém legitimidade para intentar a presente acção, cremos dever reconhecer-se ao agravante-autor legitimidade para a desencadear, como sucedeu.
Não se reconhece, pois, a verificação da mencionada excepção, tal como decidido foi pelo tribunal “a quo”.
Importa agora entrar na apreciação da segunda questão suscitada, relativa à verificação ou não da excepção de caso julgado, o que foi acolhido na decisão impugnada. Vejamos.
O conceito e requisitos de tal excepção vêm definidos nos arts. 497 e 498, ambos do CPC, de onde resulta que existe caso julgado quando se repete uma causa em que há identidade quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, relativamente a outra, anteriormente instaurada, e já decidida por sentença que não admite recurso ordinário.
A finalidade de tal imperativo legal tem a ver com o evitar que o tribunal seja colocado na alternativa ou de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.
Porém, para que exista identidade de acções, necessário se torna que tal identidade diga respeito aos sujeitos, ao objecto e à causa de pedir.
No caso de que nos ocupamos, defrontamo-nos perante um acção de investigação de paternidade instaurada pelo M.º P.º contra o Autor da presente, enquanto a actual foi instaurada por este último contra as identificadas Rés, mãe e filha, não intervenientes naquela, consistindo o pedido da primeira na declaração de paternidade relativamente à Ré C................ ao aqui Autor e a causa de pedir no trato sexual estabelecido entre o mesmo Autor e a mãe daquela, também aqui Ré, no período legal da concepção; sendo que na presente lide o pedido e a causa de pedir consistem precisamente na negação daquela paternidade e do aludido trato sexual, respectivamente.
Numa análise à triplicidade dos requisitos que justificam a verificação da excepção de caso julgado, seríamos levados a concluir pela não existência, no confronto das acções em referência, de identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, quanto é certo que relativamente a estes últimos, no que respeito diz à presente acção, estamos precisamente diante da negação dos factos e do pedido de declaração que fazem parte da mencionada acção de investigação.
Assim sendo, a conclusão a retirar seria a de dar como não verificada a excepção de caso julgado na situação que vimos analisando.
Cremos, contudo, que esta asserção só aparentemente poderá ser retirada, pois que não poderá olvidar-se o que decorre do disposto no art. 674, do CPC, onde vem estatuído que
“nas questões relativas ao estado das pessoas o caso julgado produz efeitos mesmo em relação a terceiros quando, proposta a acção contra todos os interessados directos, tenha havido oposição, sem prejuízo do disposto, quanto a certas acções, na lei civil”.
Ora, interessados directos de que fala o normativo transcrito são, nas palavras de Manuel de Andrade “os portadores do principal interesse oposto ao do autor; o sujeito, os sujeitos ou outro sujeito (ou respectivos sucessores) do estado jurídico controvertido”,
mais acrescentando que “na acção de investigação de paternidade ilegítima os interessados directos são o pretenso pai ou, na falta dele, todos os seu herdeiros” – in “Noções Elementares de Processo Civil”, 1963, pág. 291, sendo coincidentes, a este propósito, as posições de Alberto dos Reis, in “Código de Possesso Civil Anotado”, vol. V, págs. 182 a 184; Antunes Varela, in RLJ, Ano 102, pág. 330 e Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. III, 3.ª ed., págs. 205 a 207.
Tendo na aludida acção de investigação de paternidade instaurada contra o aqui agravante-autor ficado decidido, com trânsito em julgado, o vínculo de filiação relativamente à Ré C..............., atribuindo-se a paternidade ao recorrente – devendo ele ser considerado o interessado directo contra quem a dita acção devia ser instaurada – assim a sentença em referência dispondo também de eficácia “erga omnes”, mal se compreenderia que tal decisão pudesse vir a ser posta em causa através da presente acção pelo próprio Autor, réu naquela, quando na mesma declarado ficou o assinalado vínculo de filiação, apesar de não se verificar a tríplice identidade que é pressuposto da verificação do caso julgado.
Doutra forma, poder-se-ia colocar o tribunal na situação de eventualmente contradizer decisão anterior, podendo vir a negar-se o vínculo de filiação ou paternidade já declarados.
É, a nosso ver, a força de caso julgado previsto no condicionalismo do citado normativo (art. 674) que justifica que o vínculo de filiação, constituído por sentença já transitada em julgado, não possa (já não quanto a acto de perfilhação ou a paternidade presumida) ser destruído através de uma acção de impugnação.
Nesta perspectiva, entende-se que o vínculo de filiação estabelecido através da aludida decisão proferida na acção de investigação solucionou definitivamente a questão da paternidade relativamente à Ré C..............., tendo a força de caso julgado extensivo ao aqui agravante, o qual não pode, assim, ver prosseguir a acção negatória da declaração que daquela decorre.
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao agravo, nessa medindo se mantendo a decisão recorrida, enquanto absolveu as Rés da instância, por verificação da excepção de caso julgado.
Custas a cargo do Agravante.
Porto, 20 de Maio de 2004
Mário Manuel Baptista Fernandes
Pedro dos Santos Gonçalves Antunes
Fernando Baptista Oliveira