EMBARGOS DE TERCEIRO
PENHORA
HERANÇA INDIVISA
Sumário


Não tendo sido penhorado qualquer bem imóvel ou quota-parte deste pertencente à executada, mas apenas a quota-parte desta na herança indivisa em causa, a penhora e subsequente venda deste direito não ofende a posse ou o direito de habitação que o embargante, co-herdeira na herança, eventualmente detenha sobre imóvel que integra a referida herança, não tendo, por conseguinte fundamento para a dedução de embargos de terceiro.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
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I. Relatório
Por apenso à execução comum para pagamento de quantia certa que “EOS Credit Funding DAC”, que foi julgada habilitada no lugar do Exequente “Banco Popular Portugal, S. A”, move contra AA, BB e CC, veio DD deduzir oposição por embargos de terceiro, alegando, em suma que EE lhe legou, por conta da sua quota disponível o usufruto da fração autónoma que se encontra penhorada na execução.
Concluiu que independentemente de a propriedade da fração autónoma ser transmitida a terceiros, tal nunca pode afectar ou pôr de qualquer forma em causa o direito ao uso vitalício por parte do ora Embargante.
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Por despacho de 18.01.2024, foram os embargos de terceiro liminarmente indeferidos, com o fundamento em que o direito invocado pelo Embargante não era ofendido pela penhora realizada nos autos.
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Inconformado, interpôs o embargante o presente recurso, o qual motivou, apresentando a seguinte síntese conclusiva:
1. O tribunal a que indeferiu liminarmente os presentes embargos alegando que nos presentes autos não consta qualquer auto de penhora relativo ao quinhão hereditário de uma das executadas.
2. O que, salvo o devido respeito, não pode levar ao indeferimento dos presentes Embargos pois que a referida herança é constituída somente por essa fração e para além do mais, a venda desse quinhão hereditário pode dar origem ao comprador instaurar uma ação de divisão de coisa comum, o que, por sua vez, dará o mesmo resultado que se tivesse sido penhorada toda a fração autónoma com um todo.
3. De maneira que, por tudo o supra exposto, deve ser declarado de forma judicial que o direito ao uso por parte do ora aqui recorrente não pode ser de nenhuma forma afetado, independentemente da propriedade em causa sobre a aludida fração ser objeto de transmissão.
Temos em que requer a V. Exa concedam provimento ao presente Recurso, renegando a sentença recorrida que extingue o presente processo, nos termos das presentes alegações, levando o processo seguir os seus termos até final.
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
O Tribunal a quo ao admitir o recurso entendeu que no caso não seria de cumprir o contraditório, por considerar que o artigo 641.º n.º 7 do Código de Processo Civil não é aplicável ao indeferimento liminar dos embargos de terceiro, uma vez que apenas no caso de ser ultrapassada a fase de apreciação liminar da petição inicial de embargos, com sucesso, é que se seguiria a notificação das partes primitivas para contestarem, querendo, os embargos, invocando nesse sentido o Acórdão do T.R.G. de 7/11/2019, relatado por José Alberto Moreira Dias (disponível in www.dgsi.pt).
Assim, não foi cumprido o contraditório e não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. QUESTÕES A DECIDIR.
O objeto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, a questão essencial a decidir consiste em saber se, no caso, ocorre fundamento para a dedução de embargos de terceiro com função preventiva, por parte do legatário do usufruto de herança, em que foi penhorado o quinhão hereditário da executada, sendo a herança integrada apenas por um único bem imóvel, alegando que a penhora e a venda do mesmo é suscetível de ofender o seu direito.
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III. Fundamentação
III.1. Fundamentação de facto.
Com interesse para a decisão relevam os seguintes factos relativos ao processado, a que se fez alusão na decisão recorrida:
- O Embargante juntou ao requerimento inicial cópia do testamento outorgado por EE no dia 15/03/2017 no Cartório Notarial ..., no qual, além do mais, consta que pela testadora foi dito “Que, por conta da quota disponível, lega a seu neto DD (...) o usufruto da fracção autónoma designada pela ... destinada a habitação, correspondente ao ... andar, do prédio urbano sito na Avenida ..., freguesia e concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ... (...), inscrito na matriz sob o artigo ...83, bem como o usufruto do respectivo recheio”.
- Conforme consta do auto de penhora junto aos autos de execução em 03.01.2024, foi penhorado o quinhão hereditário que a executada BB detém na herança aberta por óbito de EE;
- Resulta da certidão registral junta aos autos que a dita fracção autónoma designada pela ... está inscrita/registada a favor de EE pela Ap. ...99 de 2014/09/04.
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III.2. Apreciação Jurídica.
Na decisão recorrida indeferiu-se liminarmente a petição por se ter entendido que não se mostram reunidos os pressupostos exigidos pelo artigo 342º do Código de Processo Civil para a dedução em embargos de terceiros, pois a penhora ali realizada incide sobre o direito ao quinhão hereditário da executada na supra identificada herança e não sobre o imóvel a que se refere o usufruto que o ora Apelante alega ter-lhe sido legado.
Adianta-se já que nenhum reparo nos merece a decisão recorrida.
Vejamos porquê.
Dispõe o artigo 342.º, n.º1 do Código de Processo Civil que “Se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.”
Por seu lado, também resulta do artigo 345.º, n.º1 do mesmo diploma que “sendo apresentada em tempo e não havendo outras razões para o imediato indeferimento da petição de embargos, realizam-se as diligências probatórias necessárias, sendo os embargos recebidos ou rejeitados conforme haja ou não probabilidade séria da existência do direito invocado pelo embargante.”
Ora, como o objeto de penhora nos autos principais foi o direito ou quinhão hereditário que a executada detém sobre a herança aberta por óbito de EE.
Assim sendo, em nenhum momento foi penhorado o prédio cujo usufruto o Embargante refere ter-lhe sido legado, e menos ainda foi ofendida a posse sobre esse prédio.
A penhora de um quinhão de uma herança ou de um património autónomo não se confunde com a penhora de direitos sobre os bens individuais, mesmo que imóveis, que a compõem.
É que a herança é uma universalidade jurídica insuscetível de ser possuída, sendo as coisas integrantes, isoladamente, que constituem o objeto das relações jurídicas pelo que o quinhão hereditário sobre a referida herança é, insuscetível de posse.
A essa luz não é configurável a colisão da penhora com qualquer direito de gozo do agora Recorrente, porquanto não foi sobre seus direitos que a penhora incidiu visto que o que foi penhorado não foi qualquer dos bens do acervo hereditário, nem mesmo uma fração deles, mas apenas o direito da executado a tal herança.
É por essa razão que a penhora do quinhão hereditário não está sujeita a registo, mesmo quando a herança compreenda bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, e que o artigo 743.º, n.º1 do Código de Processo Civil não permite, expressamente, a penhora de bens compreendidos no património comum ou uma fração de qualquer deles.
E é também por isso que nestes casos, o procedimento escolhido pelo legislador é aquele previsto no artigo 781.º, n.ºs 1 a 4 do Código de Processo Civil, que, por sua vez, remete para o disposto no artigo 775.º do mesmo diploma.
Assim, o Embargante não poderá opor embargos à penhora de um direito (quinhão hereditário) que não lhe é atribuído, com vista ao seu levantamento, não relevando o facto de ser alegado usufrutuário de um dos bens que compõem a herança, pois nenhum bem da herança se mostra penhorado, designadamente, o aludido prédio - logo também não existe qualquer incompatibilidade, para efeitos de embargos, entre o alegado direito do embargante e a penhora do direito da executada.

Como se decidiu no recente Acórdão desta Secção de 30.03.2023[1], que aqui seguimos de perto:
“(…)Como se sabe, os embargos de terceiro servem para quem não é parte na causa reagir contra a penhora ou outro acto de apreensão ou entrega de bens, alegando a ofensa da sua posse ou a titularidade de outro direito incompatível com a diligência realizada ou com o seu âmbito, podendo ser requeridos a título repressivo ou preventivo (cf. artigos 342º, n.º 1, e 350º, n.º 1, do Código de Processo Civil)
Nos termos do artigo 342.º, nº 1, do Código de Processo Civil [também aplicável aos embargos preventivos, com as necessárias adaptações – cf. artigo 350º, n.º 1, do Código de Processo Civil], “se a penhora, ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer deduzindo embargos de terceiro”.
Assim, são pressupostos da procedência do referido incidente:
- A existência de uma posse real e efectiva sobre um bem (ou de outro direito incompatível com o âmbito da diligência);
- A ofensa desse direito mediante penhora, ou outro acto de apreensão ou entrega de bens ordenado judicialmente;
- A qualidade de terceiro do embargante, que não pode ser parte na causa.
No caso em apreço, não subsistem dúvidas de que o Embargante tem a qualidade de terceiro, porquanto não é parte no processo executivo onde foi realizada a penhora e onde poderá vir a ter lugar a venda executiva que invoca como lesiva do seu direito.
Porém, ao contrário do alegado, nem a penhora nem a venda do “bem” penhorado implicam lesão para o direito do embargante, seja ele o direito decorrente da posse do imóvel que identifica ou o direito à habitação.
Na verdade, como se diz na decisão recorrida, e resulta dos factos apurados, não foi penhorado nos autos, para posteriormente ser vendido em sede executiva, qualquer imóvel, nem quota-parte de imóvel pertencente à executada DD. A penhora incidiu, antes sobre o direito ao quinhão hereditário da executada na herança de BB, sendo esta um património autónomo que inclui o referido imóvel.
O que significa que a executada não é titular de qualquer direito de propriedade sobre o imóvel em causa, mas apenas titular do quinhão hereditário na referida herança, que integra o imóvel.
Por conseguinte, a penhora foi efetuada nos termos do artigo 781º do Código de Processo Civil [correspondente ao anterior artigo 862º], onde se estabelece as especialidades do procedimento da penhora que tenha por objeto o quinhão em património autónomo ou direito a bem indiviso não sujeito a registo, prescrevendo-se a este respeito no n.º 1 que: “Se a penhora tiver por objecto quinhão em património autónomo ou direito a bem indiviso não sujeito a registo, a diligência consiste unicamente na notificação do facto ao administrador dos bens, se o houver, e aos contitulares, com a expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do agente de execução, desde a data da primeira notificação efetuada.”
Ora, deste ato, não decorre ofensa de qualquer direito da embargante, o qual só afeta o direito da executada na dita herança, que poderá vir a ser objeto de venda executiva.
E também não vemos que desta venda possa resultar ofensa da alegada posse sobre o imóvel (relativamente à qual nem sequer foram alegados os factos integradores, mas tão só o facto de habitar no imóvel há “longos anos”), ou do direito a habitar nele, pois o que será eventualmente transmitido na execução é o direito que a executada tem na dita herança, ainda que o imóvel seja o único bem que a integre.
A única diferença é que, a concretizar-se a venda executiva, a quota-parte da executada na herança, que foi penhorada, mudará de titular, passando da executada para o adquirente, só havendo lugar à venda do património autónomo, constituído pela herança na sua totalidade, se os co-titulares assim o pretenderem (cf. n.º 2 e 4 do artigo 781º do Código de Processo Civil).
Questão diferente é a de na partilha da herança haver o risco de o imóvel que a integra vir a ser adquirido por outro co-titular do direito, mas esse risco já existia, pois qualquer dos herdeiros poderia por fim à indivisão da herança, requerendo inventário. A única diferença é que nessa partilha, tendo sido vendido o quinhão hereditário, a quota-parte da executada na herança terá outro titular, que não a executada.
Deste modo, conclui-se que não tendo sido penhorado qualquer bem imóvel ou quota-parte deste pertencente à executada, mas apenas a quota-parte desta na herança indivisa em causa, a penhora e subsequente venda deste direito não ofende a posse ou o direito de habitação que a embargante, co-herdeira na herança, eventualmente detenha sobre imóvel que integra a referida herança, não tendo, por conseguinte fundamento para a dedução de embargos de terceiro.(…)”

Não pode, pois, deixar de concluir-se, como na decisão recorrida, pela manifesta a improcedência da pretensão do Embargante e pela necessidade de prolação despacho de indeferimento liminar.
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IV. Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo do Apelante, sem prejuízo do apoio judiciário.
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Évora, 11 de abril de 2024
Ana Pessoa
Maria Adelaide Domingos
Maria João Sousa e Faro
_________________________________________________[1] Proferido no âmbito do processo n.º 2276/21.0T8STB-A.E1, acessível em www.dgsi.pt.