DOAÇÃO
REVOGAÇÃO POR INDIGNIDADE
Sumário

I - A indignidade terá de assentar na prática de actos ilícitos cometidos contra o autor das doações.
II - A deserdação, para além de integradora de comportamentos ilícitos, está prevista para os casos em que o donatário, sem justa causa, recusa ao doador ou ao seu cônjuge os devidos alimentos (cfr. artigo 2166.º, n.º 1, alínea c) do CC).

Texto Integral

Acordam na Secção Cível (3.ª Secção), do Tribunal da Relação de Coimbra.

  Proc.º n.º 4919/21.7T8VIS.C1                               

1.- Relatório

1.1.- AA intentou a presente acção declarativa, de condenação contra Centro Social e Paroquial de S. BB, CC e Centro Social e Paroquial de ..., todos com os demais sinais identificadores constantes dos autos, pedindo que, pela sua procedência, se:

i) decrete a nulidade ou a mera anulação da doação outorgada pela escritura de 18.03.2011;

ii) a nulidade ou a mera anulação da declaração de renúncia ao usufruto outorgada por escritura pública de 21.05.2012;

iii) a nulidade ou a mera anulação do contrato verbal de mútuo a que se reportam os itens 8º, 9º da petição inicial e, em consequência, serem os RR condenado a restituir-lhe essa quantia acrescida dos juros legais vencidos desde a data da transferência, e dos vincendos, até ao seu pagamento integral;

iv) a nulidade ou a mera anulação do registo automóvel ..., matricula ..-JI-..;

v) bem como sejam os RR condenados a pagar-lhe, por enriquecimento sem causa, o valor que se vier a provar como referido em 30 da petição inicial, com juros a partir da data em que vier a decidir-se serem devidos.

Para tanto, o Autor alegou ter exercido o sacerdócio católico até 1972, altura em que pediu licença para o abandonar, tendo contraído matrimónio em 22.02.1974 com DD, tendo o casal fixado residência na cidade ..., em 1988, num prédio urbano que aquela tinha ali comprado, descrito na CRP ... sob o nº ...03, onde viveram até Janeiro de 2011, altura em que a sua esposa foi acometida por doença reumática e Alzheimer, decidindo então acolher-se ambos no “Lar S. BB”, propriedade do Réu, onde a sua esposa veio a falecer em 26.02.2011, tendo o demandante permanecido no lar.

Acrescenta o Autor que, desde o decesso da sua esposa, foi invadido pelo desejo de reingressar na igreja, impulso que o levou a consultar o 2º Réu, enquanto pároco e Diretor do Centro Social e Paroquial de S. BB, o qual lhe sugeriu que pedisse à Santa Sé que o readmitisse no exercício das Ordens Sacras, aconselhando-o a deixar os bens que tinha, doando-os ao Centro, conditio sine qua non de que tal dependeria, segundo aquele, ao que o Autor acedeu, tendo comunicado ao 2.º Réu estar disposto a doar ao Centro todos os bens que tinha, reservando para si, apenas, o usufruto dos mesmos, tudo sob condição de continuar a acolher-se no “Lar São BB” até à sua morte e sem nada mais pagar.

Refere, também, o Autor que o 2.º Réu anuiu nessa sua condição, marcando data/hora para a outorga da escritura em 18.03.2011, sem que essa condição, todavia, ficasse ali consignada, do que o Autor só ao final se apercebeu, porém, sem levantar problemas, por lhe ter sido dito pelo 2.º Réu que tal se devera a esquecimento seu, mas que seria cumprida.

O Autor narra ainda que, após e sob indicação do 2.º Réu, escreveu várias cartas ao Santo Padre, onde lhe suplicava a sua reintegração no sacerdócio, porém todas essas cartas lhe foram devolvidas, o que o levou a lamentar-se ao presidente do Lar e, sobretudo, ao pároco do Centro, o qual o levou a crer que “não lhe respondiam nem responderiam enquanto persistisse em continuar usufrutuário dos referidos bens e como titular de contas bancárias”, convencendo-o a renunciar ao seu usufruto e a emprestar 40.000,00€ ao “Lar São BB”, alegando que o mesmo estaria a atravessar uma situação económico-financeira muito difícil e que o Centro seu proprietário, corria o risco de ter de fechar portas e/ou ir para a falência, ao que o Autor acedeu, transferindo para o 1.º Réu, em 07.05.2012, a referida quantia de 40.000,00€ e tendo por escritura de 01.05.2012, renunciado ao usufruto dos bens já doados em 18.03.2011.

O Autor narra, igualmente, que quando o Lar passou a ser dirigido por um sobrinho do 2º R, a mando ou por ordem deste, retirou da garagem o seu veículo de marca ..., matrícula ... JI. .., fazendo-o seu contra a sua vontade, a pretexto de que não podia circular com ele na estrada, se não se mostrasse registado em seu nome na CRA.

Concluiu, pois, o Autor que o 2.º Réu, enquanto Director do Lar e presidente do Centro 1.º Réu se valeu da sua fragilidade, extorquiu-lhe tudo quanto tinha, sendo notório que na data em que celebrou as referidas escrituras se encontrava num estado de abatimento psíquico e de falta de noção do real que não lhe permitia dizer “não” estando a sua declaração de vontade viciada, sendo o 2.º Réu sabedor que o Autor era uma pessoa muito bondosa e fácil de convencer, por mera sugestão que fosse, tendo-lhe prometido que, após tal doação, “passaria a ter sempre o Lar ao seu dispor sem ter de pagar mais nada, podendo a partir dali, colaborar com ele nas sessões eclesiásticas e prestar assistência social, material e religiosa aos outros utentes durante o resto da sua vida”, posição que posteriormente alterou, obrigando o Autor a partir do Lar, em Novembro do corrente ano, sem nada de seu, pobre como Job, não tendo o 2.º Réu revelado o menor respeito e consideração pela sua provecta idade e pelo seu débil estado de saúde, deixando-o abandonado, obrigado a instalar-se na casa que doou e nela realizar trabalhos de vulto, uma vez que estava quase em ruinas, de cujo valor exato ainda não consegue computar, factos que defende serem subsumíveis aos conceitos de ingratidão e de deserdação.

                                                           ***

1.2.- Citados os 1.º e 3.º RR contestaram a acção por impugnação, frisando que o Autor desde Janeiro de 2011 até à sua saída da instituição em Novembro de 2021 não pagou qualquer mensalidade, com excepção de duas mensalidades, nunca lhe tendo sido prometido qualquer tipo de gratuitidade, tendo sido o mesmo quem, sem que ninguém lho pedisse ou sugerisse, decidiu doar os seus bens ao Centro Social e Paroquial S. BB, tendo decidido igualmente renunciar ao usufruto dos imóveis doados por não pretender pagar o IMI associado aqueles usufrutos, encontrando-se o doador plenamente capaz e consciente aquando da outorga das respectivas escrituras, avançando ainda que a quantia de €40.000,00 foi oferecida pelo Autor ao Centro para pagar uns painéis solares, oferta que os RR aceitaram, o mesmo sucedendo com a viatura automóvel, refutando que essas doações estivessem condicionadas pela sua pretensa vontade de regressar ao sacerdócio; excepcionando os RR com a caducidade do direito do Autor em arguir a anulabilidade de tais negócios por ter decorrido mais de um ano a contar do conhecimento do alegado vício, bem como, com a nulidade da alegada estipulação acessória assumida de modo verbal.

Os 1.º e 3.º RR deduziram também pedido reconvencional contra o Autor onde sustentaram a nulidade dos contratos de arrendamento celebrados pelo Autor tendo por objecto o prédio doado - sito na Rua ..., em ... - por se tratar de um arrendamento de bens alheios; no âmbito do qual referem que o Autor não procedeu ao pagamento das mensalidades devidas pelos serviços prestados entre Janeiro de 2011 e Novembro de 2021, no montante mensal de 1000,00 €; e onde alegam ter realizado diversas obras no imóvel sito na Rua ..., em ..., que consubstanciam benfeitorias necessárias e úteis, pelo que, caso seja declarada nula ou anulada a doação daquele imóvel, deve o Autor/Reconvindo indemnizar o Réu Centro Social e Paroquial de ... por essas benfeitorias, advogando ainda, a título subsidiário, que caso se considere que o Autor não teria de pagar mensalidades por força do contrato celebrado, deverá o Autor/Reconvindo ser condenado a indemnizar o Réu Centro Social e Paroquial de ..., a título de enriquecimento sem causa.

Em face do alegado, pretendem os RR/Reconvintes a condenação do Autor/Reconvindo como litigante de má-fé; a) que seja declarada a nulidade dos contratos de arrendamento celebrados pelo Autor/Reconvindo, que têm como objeto o imóvel sito na Rua ..., em ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...71 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...03; b) que seja o mesmo condenado a pagar a quantia de €129.800,00 (cento e vinte e nove mil e oitocentos euros) ao Centro Social e Paroquial de ..., pela sua permanência e gozo de serviços prestados na instituição, entre Janeiro de 2011 até Novembro de 2021; c) cumulativamente, seja o Autor/Reconvindo condenado a pagar ao Réu/Reconvinte Centro Social e Paroquial de ... a quantia de € 24.301,47 (vinte e quatro mil trezentos e um euros e quarenta e sete cêntimos), a título de indemnização por benfeitorias necessárias e úteis realizadas no imóvel sito na Rua ..., em ...; e subsidiariamente, d) que seja o Autor/Reconvindo condenado a indemnizar o Réu/Reconvinte Centro Social e Paroquial de ..., a título de enriquecimento sem causa, na quantia de € 154.101,47 (cento e cinquenta e quatro mil cento e um euros e quarenta e sete cêntimos).

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Citado também o 2.º Réu contestou a acção, arguindo a sua ilegitimidade e, no mais, impugnando os fundamentos da acção, aderindo à contestação dos RR Centros Sociais, conforme melhor se colhe do teor do respectivo articulado que aqui se reproduz por brevidade de exposição, pedindo a condenação do Autor como litigante de má-fé,

O Autor/Reconvindo replicou pugnando pela legitimidade passiva do 2.º Réu, impugnando a factualidade alegada pelos RR/Reconvintes para consubstanciar a nulidade dos contratos de arrendamento, a qualificada pretensa mensalidade do lar, benfeitorias e enriquecimento sem causa, bem como a sua alegada litigância de má-fé.

***

1.3. - Realizou-se a audiência prévia em sede da qual foi, além do mais, fixado o valor da acção, se concluiu pela legitimidade passiva do 2.º Réu, foi julgada inadmissível a Reconvenção no que tange aos pedidos identificados em a), b) e d), admitindo-a apenas relativamente ao pedido constante do item c), para apreciação subordinada à procedência do pedido do Autor, tendo sido ainda julgada procedente a excepção peremptória de caducidade do direito do Autor, com a consequente absolvição dos RR do pedido e improcedência, quer do pedido reconvencional admitido, quer do pedido de condenação como litigância de má-fé.

Desse saneador/sentença só o Autor interpôs recurso de apelação onde sindicou o valor fixado à acção e a procedência da excepção peremptória de caducidade.

Por douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra foi revogada a aludida sentença, determinando-se que os autos prosseguissem para julgamento, para conhecimento da excepção de caducidade, bem como para apreciação do mérito quanto aos pontos 4.º e 5.º do pedido do Autor, no caso de ser julgada improcedente a arguida caducidade.

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Realizou-se a audiência final com observância das formalidades legais como da respectiva acta emerge.

Após foi proferida sentença onde se decidiu:

A)- Julgar totalmente improcedente a presente acção e, consequentemente, absolver os RR dos respectivos pedidos.

B)- Custas da acção a cargo do Autor.

Notifique e registe.

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1.4. – Inconformado com tal decisão dela recorreu o A.- AA -, terminando a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:

“1ª- Mostra-se a sentença inquinada por diversos equívocos no que respeita à interpretação dos depoimentos prestados em juizo por algumas das testemunhas, o que poderá ter ficado a dever-se a eventuais anomalias na sua gravação, à leitura desviante de derminados trechos e/ou a eventual lapso na sua transcrição para os autos, anomalias que são muito comuns e passam inadvertidas em situações idênticas.

2ª- O que parece ter ocorrido no tocante à interpretação e subsunção jurídica dos factos e à sua fixação, a que não terá sido alheia a complexidade dos mesmos, mas também e sobretudo a escusada perda de tempo com a inquirição de testemunhas sobre a maior parte dos que nem sequer poderiam ter-se incluido nos “temas de prova”.

3ª- E assim é porque os factos a que se reportam os itens do ponto II-A da p.i.  tinham sido justamente arredados da lide, por extemporaneidade e em sede apelativa, pelo mui douto Acórdão decretado nesta superior instância recursória, permitiu-se o subscritor destas letras alertar a instância a quo para tal restrição através de reqto adrede e antes de designada a data da 2ª audiência relativamente à única causa de pedir no tocante aos temas de prova, reduzidos, portanto, à “ingratidão” arguida pelo A. no ponto II.B)

4ª- Restrição essa que passou despercebida nesta 2ª audiência de julgamento, tendo-se feito assentar a instância em factos que pouco ou nada tinham a ver com o verdadeiro quod erat demonstrandum, a pontos de se ter esbanjado imenso tempo na esteira dos já rejeitados neste TRC, onde fora decidido - com força de caso julgado e de conhecimento oficioso - que só os atinentes à alegada ingratidão materializada nos itens de 1 a 4 daquele ponto II-B) – poderiam ser objeto da respetiva instância.

5ª- Leitmotif que levara à prolação do douto Acórdão onde se rejeitaram os factos elencados no ponto II-al.A, não podendo por isso ser aproveitados e integrados na questão decidenda como foram na 1ª instância, e, muito menos incluidos nos temas de prova a que os mesmos se reportavam, mostrando-se assim a decisão em mérito incursa na nulidade prescrita no 615º-1.d) e 4 do CPC.

6ª- Enferma, pois, a sentença recorrida de notórias divergências entre os factos tidos como assentes pela Mma Juiz e o exato teor dos depoimentos prestados em audiência pelas testemunhas de ambas as partes, tudo como exsurge do exato teor dos documentos juntos aos autos, aos quais não se mostra concedida a importância probatória de que se revestem.

7ª- Efetivamente, o entendimento sufragado pela Mma Juiz relativamente a factos que não podem ter-se como provados, uns, e por não provados, outros, mostra-se inquinado por omissões e contradições incompatíveis com o alcance hermenêutico daqueles depoimentos, excedendo-se em muito a exiguidade denotativa das premissas que os suportam, relatando as dos RR, factos que dizem ter ocorrido - quando nem sequer os presenciaram - e descrevendo as do A, outrossim, situações em que dizem ter intervindo, mas provando também que nelas intervieram.

8ª- E porque cumpre ao intérprete analisar os factos com absoluta isenção, levando em conta possíveis interesses pessoais dos depoentes, (aqui, o hoc opus hic labor est, pois nem sempre os Tribunais dispõem de condições que lhes permitam aperceber-se da essencialidade dos factos probandos), não podia a Mma Juiz colher, como colheu, ilações à revelia do disposto no art.9º-2 do CC, dando como assentes, in casu, factos que, notoriamente, não têm um mínimo de correspondência com a realidade, porque de todo incompatíveis com os depoimentos prestados pelas respetivas testemunhas.

9ª- Os colhidos de algumas delas lesam o sagrado princípio da Lógica, no sentido de que nenhuma conclusão pode ser mais extensa do que no-lo permite a exiguidade da ( s ) premissa ( s ) que a suporta ( m ), sendo que, no caso dos autos, a interpretação colhida dos seus depoimentos mostra-se deturpada em alguns trechos da sentença recorrida, aqui e ali fundamentada em meras conjeturas não provindas de factos concretos e objetivos, antes, até, inquinadas por inadvertidas imprecisões, senão mesmo por inverdades a amontoarem as razões que suportam o pedido revogatório das anulandas dádivas, sobretudo as torpemente forjadas pelos RR.

10ª- A ingratidão dos RR revela a sua péssima formação moral, social e religiosa de que têm dado sobejas provas, bastando atentar no depoimento e postura do 2º R., P.e CC, para se intuir que o mesmo nem sequer reconhece a ingratidão do seu impiedoso gesto, ao mandar pôr o A. no meio da rua, de noite e quase descalço, expulsando-o do LAR bem sabendo que o mesmo - porque lhes doara todos os seus bens e dinheiros, sendo pobre, octogenário e vivendo da caridade alheia, - acabaria por morrer ali mesmo, no meio da rua , ao relento e sem ajuda de ninguém.

11ª- A Mma Juiz nehuma medida tomou nem nada decidiu de acordo com a gravidade que a situação exigia e que se vai agravando, tendo dado como provados na sentença recorrida factos reportados aos itens 16 e de 20 a 24 com base, apenas, na motivação de outros provindos das declarações de parte prestadas pelo 2º R. P.e CC, único interessado pessoal na improcedência dos pedidos, cf itens I- 6º a 10º, 16º a 22º, 24º, e de 26 a 30; II-A.1,3, e B.1,3, 4, todos da p.i.)

12ª- Ao contrário do ali insinuado, o A. não fugiu nem nunca quis fugir do Lar de motu proprio, como se deu por assente no 16º item da decisão em causa, pois, se quisesse, não precisava de fugir e, muito menos, nas mentirosas circunstâncias referidas pelo RR, a que a Mma Juiz, também por aí, dera guarida, bem como às estafadas razões de que atualmente se socorrem aqueles que, querendo esquivar-se à Justiça e/às suas obrigações, vêem agora na Covid 19 e nas estafadas pandemias o refúgio mais credível e mais seguro para “tudo”. (Tudo com a agravante de invencionarem uma série de disparates, não se coibindo de tentarem demonstrar que não o deixavam sair de carro por causa da COVD, tudo com vista a arranjarem maneiras de lhe confiscarem o carro. (O que logaram e do que oportunamente se tratará em sede do 696º)

13ª- A Mma Juiz ateve-se à matéria assente nos itens 16º e de 19º a 24º, quando os mesmos, além de integrarem parte dos recusados nesta superior instância ad quem, não levaram em conta que o A. não era guerrilheiro nem abrutalhado, a não ser que se esperasse de um octogenário que andasse à pancada com o 2º R. e/ou com o funcionário a quem aquele mandara pôr os seus trapos na rua, e com o qual, estranha coincidência - pour un bon entendeur demi mot suffit- se dera sempre muito bem.

14ª- Por isso, ao dar como assentes factos para cuja prova exige a lei a existência de documentos, não levou a Mma juiz em conta que o 2º R. enviara ao A. 30 dias antes uma carta onde o notifica da anulação de um invencionado contrato de alojamento - que este nunca vira, não conhecera nem subscrevera, tratando-se, pois, a ter existido, de algum documento apócrifo e forjado pelo próprio 2º R, pois nunca o A celebrara com ele contrato algum, salvo as malfadadas escrituras - inexistindo nos autos, aliás, qualquer prova disso, verbal ou documental.

15ª- Estava, pois, vedado à Mma Juiz, ex vi dos arts 393º e 394º do CC, basear-se em depoimentos orais prestados por testemunhas - em julgamento ou fora dele – para prova de factos cuja validade faz a Lei depender da sua redução a documento idóneo por escrito - sendo, pois, inatendível em juízo dar por provados os descritos nos itens que os suportam.

16ª- Os RR expulsaram, pois, o A. do Lar por baixa retaliação pelo facto de este ter feito queixa ao ISS do mau serviço ali prestado a todos os seus utentes, o que essa entidade veio a confirmar, revelando tais atos à saciedade este baixo desejo de vingança. que os RR entenderam ser o iter mais adequado à solução do problema de uma vez por todas. In claris non fit interpretatio!...

17ª- E como decorre dos autos, caíram os RR tão baixo, no tocante à desumanidade de tão selvática retaliação, que chegaram a pontos de, sem dó nem piedade, e quando já estavam bem servidos, expulsarem do Lar o maior e mais desinteressado benemérito que o Lar alguma vez já tivera, não se vendo que tal possa deixar-se em claro a profunda ingratidão dos RR, que deverá ser declarada e, com base nela, revogar-se a sentença recorrida e conceder-se total procedência à presente ação.

18º- Ao minuto 00:22:57, achando incongruente o depoimento do 2ºR, interpela-o para o confrontar com a 2ª parte do seu depoimento: “Oh Senhor Padre, mas há aqui uma afirmação sua que também não… que é contraditória com aquilo que me disse da parte da manhã nas suas declarações, e eu vou dizer-lhe porquê: - Perguntei-lhe se estava a ser preparada a saída com o Senhor AA, disse-me que sim, que estaria a ser preparada, até porque começou a fazer, cerca de dois ou três meses antes, obras no imóvel em ... e que, portanto, fora uma saída voluntária, desejada por ele por falta de liberdade, derivado do confinamento do Covid e que, enfim, chegou à altura e ele entendeu sair. Com aquilo que me disse, esta carta (denúncia do contrato) não encaixa bem naquilo que foi declarado!.. Em que é que ficamos?!.”.

- Essa carta veio, precisamente, corroborar a vontade que ele manifestou.!.

“Mas, se era a vontade dele -insistiu a Mma Juiz,( e muito bem, dizemos nós,), era ele que fazia uma cartinha a dizer Exmos Senhores Diretores Sociais!”

- Pois, pois,(min. 00:24:13) mas ele, nessa altura... eh…fiquei eu de resolver a situação... «escrevo-lhe uma carta e o senhor, assim, sai tranquilamente!» Foi nesse sentido” Quid multa?!...

19ª- Pertinente será, ainda, questinar se o Recte quisesse sair por livre alvedrio, passe o pleonasmo, qual então a necessidade de o R.CC lhe enviar uma carta registada e com a inócua advertência de que “deveria contactar o seu Advogado” quando, para tanto, como sagazmente lhe alvitrara a Mma Juiz, bastar-lhe-ia uma simples declaração subscrita pelo próprio A. a afirmar que sairia sponte sua, mas cujo quid pro quo ter-lhe-á passado despercebido no ato deciden do, e onde se mostram omitidos e, até, adulterados alguns dos supra-descritos depoimentos, como sucedeu, v.g, com o do Prof. EE, onde a Mma Juiz dá por assente, vd pág. 16, 2º§, que o mesmo “se limitara a referir que o A.decidira sair do Lar”, quando o próprio descrevera, de forma clara, precisa e detalhada, as deploráveis condições em que ocorrera tal “ saída ”!

20ª- . Senão, ouçamo-lo:

a) Ao minu t o (00:07:29) “...Ele tinha que sair naquele dia.(*) Então, com uma carrinha do meu sogro e com uma carrinha desse colaborador, carrinhas pessoais, fomos buscar os bens do Sr.º AA, e o Sr.º AA levámo-lo até à residência em  ....,vd min. (00:07:43)”.

(*) A espressão “ter que fazer alguma coisa” equivale, comumente, a “ser obrigdo a..”

b) Ao minuto (00:08:32) “... Triste, não gostou nada do contexto. Ele não queria sair dali e até partilhou que pensava que era perpétuo o contrato dele com o Lar e que não havia forma de o revogar…No discurso dele, ao dar este apoio financeiro ao Lar, iria ficar lá perpetuamente até aos últimos dias dele e isso não aconteceu.”, vd min. (00:09:04)

c) Ao minuto (00:09:41)”…Ele estava devastado com a situação... Foi pelo próprio pé, é um facto, mas estava devastado…e visivelmente transtornado com a situação...Notava-se que queria lá ficar…” (00:09:56)

Instância: -min.(00:14:09) “Se não tivesse sido o Senhor a aparecer ali e a fazer aquela obra, digamos, de caridade, ele ficava então lá de noite, ao relento?

Resp.:”Eu tenho a perceção de que isso iria acontecer, não vi ninguém ligado à Direção do Lar…não vi ninguém…” vd min. (00:14:25)

21ª- Após o A. ter apresentado queixa na Seg.Social, relativamente a factos que motivaram a alteração substancial de um momento para o outro, da postura e  comportamento dos RR, descurando os cuidados básicos de que ele carecia, designadamente tirando-lhe o seu carro, privando-o, assim, das deslocações regulares às consultas médicas.

22ª- Mas os RR, não ficando por ali, passaram a aconselhá-lo, instando-o “para seu bem”, a sair do Lar, tudo como corroborado pelo prof. EE ao minuto (00:03:43) “…e ele falou-me que já havia alguns problemas na instituição com ele, de  não o apoiarem nem lhe darem transporte para consultas, falou de verbas que deu, doou ao Lar…” min.(00:04:00) e, também, por FF, cf 1º§ da pág. 17 da decisão recorrida, verificando “… que o mesmo tinha a barba por fazer e a roupa pouco cuidada e velha…” e por GG, cf. 2º§ da pág. 17, “…estava com o cabelo grande, deprimido e com um cheiro desagradável, tendo-lhe o A. contado que tinha sido expulso do Lar, que as condições não eram boas e que tinha feito queixa à Segurança Social…” e, ainda, por HH vd min.(00:04:59) “Não, não era o mesmo, ele até vinha ..debilitado...com o cabelo grande, barba grande, e até vinha de chinelos de quarto, que eu até fiquei surpreendida, não estava a perceber aquela situação, e ele vinha bastante abatido e muio magro…vd min.” (00:05:14)

23º. Se o A. quisesse mesmo sair do Lar, o mais lógico seria ter-se preparado antecipadamente para enfrentar a situação, não só a nível emocional como diligenciando pelas hipóteses do seu acolhimento noutro local, sendo isso o que resulta dos vários depoimentos colhidos em sede de audiência de julgamento, de que exsurge a conclusão de que o mesmo se sentia muito abalado e triste com tal situação, como descrito por GG, ao min. (00:04:28) “…apareceu-me à porta de casa a dizer que não tinha para onde ir e nós acolhemo-lo...” min. (00:04:34), (00:05:51) e (00:04:54) “…vinha com um saco de roupa suja, chinelos de quarto e disse que o puseram fora do Lar, min.(00:05:00) e (00:05:46) “…estava assim bastante deprimido e fragilizado, min.(00:07:16): “Ele o que nos disse foi que foi posto fora do Lar, que pegaram nele num braço ,que o expulsaram para fora do Lar e que não tinha para onde ir.”(00:07:24), e, ainda, HH, ao min. (00:06:23) “...vinha num estado de nervos,...muito assustado, nem sabia bem a situação em que se encontrva, a pedir-nos se podia ficar lá connosco, que não sabia o que lhe ia acontecer . e.. para onde havia de ir.”, vd min.(00:06:35), (00:09:04) “Ele disse que o expulsaram do Lar.” min. (00:09:07).

24ª- Pior ainda foi a forma tosca, impiedosa, revoltante e aliás imprópria de um sacerdote, sobretudo quando o 2º R. se atreveu a descrever o suplicante, vd, p.f., ao min. 00:12:26,“ele foi padre; depois, foi para a Suíça, e ia dizer, fugiu, mas pronto, foi para a Suíça com uma freira” vd, p.f.,min. (00:12:34), tentando fazer do A. e da mui honrada,  corajosa e respeitada senhora que fora sua extremosa esposa pessoas levianas e sem valor, quando o “erro” que o P. CC vilmente lhes assacou, revela bem e à saciedade o caráter e tipo de pessoa de que temos vindo a falar!.. Sursum corda, dizemos nós...

25ª- De todo o exposto, é de manter a alegação inicial de que o A. sempre esteve convencido de que até à sua morte teria sempre este Lar como refúgio, tudo como, aliás, referiram em audiência:

a) - EE (00:08:33) “…ele não queria sair dali ele até partilhou que pensava que era perpétuo o contrato dele com o Lar e que não havia forma de o revogar… no discurso dele ao dar este apoio financeiro ao Lar, iria ficar lá perpetuamente até aos últimos dias dele e isso não aconteceu…” (00:09:04);

b) - II (00:08:11) “…que houve benefícios que deu para o Lar e que, entretanto, neste momento, usando as palavras que ele usava, que o tratavam mal, neste momento tratam-me muito mal, era o que ele dizia” (00:08:30);

c) O próprio 2º R (00:22:51) “…na hora da refeição, diz ele, oh senhor padre não  se preocupe, eu transfiro-lhe o dinheiro e o senhor pode meter os painéis (solares), isso é um bom investimento, vai ficar aqui um bom investimento para a instituição, vai ser bom, vamos ter…há aí muitas luzes acesas durante a noite e tudo, precisamos da luz, pode fazer e aquilo ficou ali.

Sei que depois eu fiz os painéis e aquilo até me entrou no esquecimento” vd p.f.min.(00:23:16), sendo que este excerto reporta-se à entrega de 40.000,00€ à instituição - quantia que não é tão insignificante assim para que o 2º R. se haja dado por esquecido, a não ser que lhe convenha tal esquecimento - o que demonstra que o A. fizera tais doações porque acreditava que, voltando ao sacerdócio, teria sempre o Lar como a sua casa e amparo.

26ª- Mesmo após o A.ter sofrido o AVC - cerca de um mês após a sua expulso do Lar e tendo os RR conhecimento deque tinha estado hospitalizado e se encontrava muito num estado muito débil, não só não o visitaram no Hospital, ao menos por compaixão, como não procuraram saber como estava, nem tão pouco um simples telefonema lhe fizeram, limitando-se a abandoná-lo, tudo como GG afirmara ao min.00:12:32) “A visita era unicamente eu.”(00:12:35), (00:12:44)“…nem durante o curto período que esteve na casa, nunca ninguém (entenda-se, ninguém do Lar o procurou para saber se ele estava bem, se estava mal.” min.(00:12:49), e assim procederam, dizemo-lo com tristeza, porque o A. já nada tinha para lhes dar, sendo tal conclusivo, é certo, mas o mais lógico e provável.

27ª- De resto, e por desabafo, contrariamente ao que se fez constar na sentença recorrida, as doações podem e devem, aliás, ser revogadas, no caso, por notória ingratidão , ex vi do disposto nos arts 970º e 974º do CC, não só nos casos previstos no art. 2034º, mas, também, por força do art. 2166º-1.c), designadamente quando o donatário, sem justa causa, recusara ao doador os devidos alimentos e o conveniente tratamento, quer por ser uma das pessoas obrigadas a prestá-los, ex vi do art. 2009º, quer por se ter transmitido para o donatário tal obrigação, atento o art. 2011º-2 do CC, sobretudo se os bens doados puderem assegurar ao doador meios de subsistência e este careça deles, como é o caso.

28ª- E como, s.e., já o referira noutra fase deste autos, permite-se o A. citar, aqui e agora, os Mestres, Pires de Lima e A. Varela, in CC Anot, volume II, págs. 278 e 279, donde se intui que a remissão prescrita no art. 974º engloba as hipóteses de recusa injustificada de alimentos, como in casu ocorreu quando os RR, enquanto donatários, o expulsaram, bem sabendo que o mesmo ficaria entregue à sua sorte, sem abrigo, sem alimentos nem cuidados básicos, com a agravante de a sua subsistência, designadamente o local para habitação,ter sido posta em causa, em cosequência de ter doado todo o seu património imóvel e pecuniário, e nada mais possuindo de seu que lhe permita sobreviver com um mínimo de dignidade.

Permita-se-nos, finalmente, explicar a razão por que não se arrolara nenhum dos infelizes ex-companheiros do A a quem era ele próprio que lhes dava toda a assistência – os quais, seguramente, não se recusariam a depor sobre todos os factos que fossem do seu conhecimento – só não o tendo feito o signatário em cumprimento da vontade do mandante, que lho suplicara, invocando razões ponderosas, mais precisamente porque aos “diretores”do Lar bastaria o seu simples arrolamento para logo os perseguirem e dar-lhes o mesmo “rumo”,senão até pior do que o do próprio A. O que nos dá uma ideia, Excelências, da formação moral deste seu infeliz constitruinte!...

Termos em que - suprindo mui doutamente eventuais “falhas” de direito - não deixará este Venerando Tribunal de fazer inteira JUSTIÇA, decidindo de conformidade com a Lei, e, sempre, pela forma que entenadam ser a mais isenta e amais justa”

                                                           ***

1.5. – Feitas as notificações a que alude o art.º 221.º, do C.P.C., responderam o R. – CENTRO SOCIAL E PAROQUIAL DE S. BB – terminando a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:

I. No recurso interposto, o recorrente tece uma série de considerações e impugna, de forma genérica, os factos que foram julgados como provados, o que equivale a que nenhum concreto/especificado ponto de facto acabe por ser impugnado na motivação e nas conclusões do recurso de apelação.

II. O recorrente não o fez com a correcção e clareza suficientes para a delimitação da quaestio decidendi e da respectiva solução, até porque não indicou,

especificadamente, quais os concretos meios probatórios que impunham decisão

sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida.

III. O Recorrente não refere qual o sentido da decisão a proferir relativamente a cada um desses pontos de facto: se deviam ser considerados totalmente não provados, ou provados parcialmente ou com limitações (restritivas ou explicativas), e nesta hipótese, quais.

IV. O Recorrente devia ter especificado ou indicado dos factos que impugnaram quais, em concreto, consideravam não provados na totalidade ou provados parcialmente, restritiva ou explicativamente, explicitando-o claramente.

V. Contudo, não o fez, nem no corpo nem nas conclusões do seu recurso porquanto não especificou as respostas que, no seu entender, se impunha fossem dadas aos referidos factos impugnados.

VI. Aliás, o recorrente deixa dúvidas sobre aquilo que pretende ver sindicado, não definindo o objecto do recurso mediante uma enunciação suficientemente clara

das questões que submete à apreciação do tribunal de recurso.

VII. Em conclusão, o recorrente não cumpriu, de forma suficiente o ónus em causa, designadamente o disposto no artigo 640.º, n.º 1, al. a), do CPC, verificando-se

fundamento para o não conhecimento da “impugnação” deduzida.

VIII. Pelo que, o recurso interposto pelo mesmo deve ser rejeitado, com as demais consequências legais.

IX. Caso assim não se entenda, o que apenas se considera por mero raciocínio

académico: cumpre referir que, ao contrário do que o recorrente quer fazer crer,

ao tribunal a quo, no seguimento do que ora foi decido poe esta Relação,

competia decidir as seguintes questões: - se a vontade do Autor se encontrava

viciada quando celebrou as escrituras de doação e renúncia ao usufruto, doação

verbal da quantia de €40.000,00 e doação do veículo automóvel aos RR; - caso se

verifique algum vício da vontade determinar quais os seus efeitos legais (nulidade

ou anulabilidade); - se se encontra extinto o direito de acção do Autor, por

decurso do prazo de caducidade; - se o comportamento dos RR configura

ingratidão e, em caso afirmativo, se o Autor tem o direito à revogação das doações

realizadas.

X. E foi precisamente isso que sucedeu, sendo certo que a douta decisão recorrida não padece de qualquer nulidade ou erro de julgamento, não carecendo, assim, se ser revogada, seja a que título for.

XI. De facto, como se refere na sentença do Tribunal a quo, da prova carreada para os presentes autos e produzida em audiência de julgamento, não se identifica

qualquer vício na formação ou exteriorização da vontade do autor aqui recorrente,

razão pela qual, soçobrará a pretensão do mesmo em ver declarada a anulabilidade das doações realizadas com base nesses arguidos vícios.

XII. Sem prejuízo do supra exposto, sempre se dirá que se algum vício da

declaração/vontade existisse, o que não se concede, sempre se teria de concluir

que a pretendida anulabilidade dos negócios jurídicos celebrados pelo Autor,

consequência jurídica prevista para os vícios que a matéria de facto alegada na

petição inicial permitiria equacionar, esbarrava no que estatui o artigo 287.º, n.º 1

do CC, o qual impõe que a sua arguição se faça no prazo de um ano subsequente

à cessação do vício.

XIII. Isto é, tendo os réus excepcionado com a caducidade do direito de arguir a anulabilidade de tais negócios e tendo ficado provado que, pelo menos em 21 de

Junho de 2016, o Autor teve conhecimento de que não seria readmitido no sacerdócio, apercebendo-se do alegado erro ou dolo em que teria incorrido – facto este não impugnado em sede de recurso pelo recorrente - dúvidas não restam que nessa data começaria a contar-se o prazo de um ano para a propositura da presente acção de anulação, sob pena de caducidade desse direito, tendo ainda em mente o que dispõem os artigos 298.º, n.º 2, 328.º a 333.º do CC, pelo que, também por verificação desta excepção peremptória os RR teriam de ser absolvidos do pedido de anulabilidade das doações.

XIV. No que concerne à alegada ingratidão e como também vem devidamente

fundamentado na douta sentença do tribunal a quo, sempre se dirá que as

doações efectuadas pelo Autor a favor dos 1.º e 3.º Réus, em face à comprovada

renúncia ao usufruto nos bens imóveis doados, configuram doações puras, sem

qualquer cláusula de reversão e sem qualquer encargo (cláusula modal), tendo

esses negócios jurídicos produzido os seus efeitos essenciais, tal como prevê o

artigo 954.º do Código Civil.

XV. Ora, como refere António Menezes Cordeiro, o artigo 963.º, n.º 1, admite que as doações possam ser oneradas com encargos, sendo que esse encargo traduza uma obrigação a cargo do beneficiário da liberalidade e que, a ser incumprida, poderia consubstanciar ingratidão do donatário, visando, na prática, o interesse pessoal ou patrimonial do próprio donatário (o que acontecerá, por exemplo, quando o

doador se reserva o direito de a rescindir caso não seja tratado com todo o amor e

carinho, receba maus tratos do donatário e não lhe seja proporcionada alimentação, vestuário, calçado e assistência médica e medicamentosa).

XVI. Contudo, no caso que aqui nos ocupa, e ao contrário do que vem alegado pelo recorrente, não se provou que a doação dos seus bens tenha sido feita sob

condição de o mesmo se continuar a acolher no “Lar São BB” até à sua

morte e sem nada mais pagar, nem tão pouco se provou que a sua saída do Lar

tenha sido involuntária – matéria esta que também não foi impugnada pelo

mesmo no recurso interposto.

XVII. A acrescer, por configurar uma cláusula acessória típica deste negócio, aquela condição sempre teria de observar os mesmos requisitos formais da doação de

bens imóveis, exigindo a lei que essa estipulação acessória constasse da respectiva

escritura, o que não sucedeu.

XVIII. Assim, mesmo que existisse um acordo verbal – o que não corresponde à verdade e, por isso, não se provou - a cláusula modal seria nula por inobservância de forma nos termos do artigo 221.º do CC.

XIX. Por outro lado, para que o doador pudesse pedir a resolução da doação, fundada no não cumprimento de encargos, exige o artigo 966.º do CC que esse direito

estivesse conferido no contrato, pelo que, também relativamente aos imóveis

doados, essa possibilidade teria de constar da respectiva escritura pública e não

consta.

XX. Além disso, a “revogação por ingratidão e indignidade”, além de ser matéria que para ser decidida dependia da sua invocação pela parte interessada (o que não sucedeu), também estava sujeita a um prazo de caducidade de um ano a contar do

conhecimento pelo doador teve conhecimento do facto que lhe deu causa, o que

não sucedeu - artigo 976.º n.º 1 do CC.

XXI. No que concerne à deserdação, para além de integradora de comportamentos ilícitos, está prevista para os casos em que o donatário, sem justa causa, recusa ao doador ou ao seu cônjuge os devidos alimentos (cfr. artigo 2166.º, n.º 1, alínea c) do CC), situação que não se enquadra no caso que aqui nos ocupa.

XXII. Porquanto, o Recorrente nunca careceu nem pediu nada a esse título aos aqui Recorridos.

XXIII. Por fim, diga-se que este instituto não serviu de fundamento a qualquer pedido, não configurando, por isso, a causa de pedir da ação ou uma “questão” que o juiz sequer devesse apreciar.

XXIV. Face ao exposto, entende o recorrido que nada há a apontar à decisão recorrida, pelo que o recurso interposto pelo recorrente deve improceder, com as demais consequências legais.

Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deverá o recurso interposto pelo Recorrente ser rejeitado com as demais consequências legais. Caso assim não se entenda, deve o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão decorrida, com as demais consequências legais.

Assim se fazendo JUSTIÇA!”

                                                           ***                                                    

1.6. – Foi proferido despacho a receber o recurso do seguinte teor:

“ Requerimento com a referência n.º 6361429, para interposição de recurso da sentença final, pelo Autor:

Por ser legal e tempestivo admito o recurso interposto através do requerimento em epígrafe, que é de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo - artigos 627º, n º 1, 629º, n º 1, 631º, n º 1, 633.º, n.º 1, 637º, n º 1 e 2, 638.º, n.º 1, parte final, 644.º, n.º 1 a), 645.º, n.º 1 a) e 647.º, n.º 1 todos do CPC.

Notifique.
*

Oportunamente subam os autos ao Venerando Tribunal da Relação de Coimbra.”

                                                           ***

1.7. – Colhidos os vistos cumpre decidir.

                                                           ***

2. Fundamentação.

Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos, com relevo para a decisão:

1. O Autor nasceu na freguesia ... de ..., concelho ..., em ../../1937, tendo exercido o sacerdócio católico até que pediu licença à Santa Sé para o abandonar (1.º PI)

2. Em 22.02.1974, o Autor contraiu matrimónio, no Registo Civil de Orbe, Suíça, sem qualquer convenção antenupcial, com DD - natural de ..., concelho ... - tendo ambos ali trabalhado (1.ºPI).

3. O Autor e a esposa regressaram definitivamente a Portugal vindo a fixar-se na cidade ..., onde viveram até Janeiro de 2011 num prédio urbano que aquela tinha ali comprado, descrito na CRP ... sob o nº ...03, ali registado a seu favor sob Ap. ...5 de ../../1988 (2.º PI)

4. Nessa altura, a esposa do Autor foi acometida por doença decidindo acolher-se ambos num Lar de Idosos em ..., concelho ... (3.º PI).

5. É o Centro Social e Paroquial de ..., NIPC ...68, que explora o “Lar de S. BB”, instituição que acolheu o Autor (1.º Cont).

6. A esposa do Autor veio a falecer no Lar em 26.02.2011 (3.º PI).

7. Depois da morte da esposa, o Autor manteve-se no Lar. (4.º PI)

8. Desde o decesso da esposa, o Autor desejava reingressar na igreja, impulso que haveria de levá-lo a consultar o 2º R., enquanto pároco e Diretor do Centro Social e Paroquial (6.º PI)

9. Em 18 de Março de 2011 o Autor outorgou escritura de habilitação na qual declarou ter sucedido como único herdeiro, viúvo, de DD (doc. 2 da PI).

10. Em 18 de Março de 2011 o Autor outorgou escritura de doação, no Cartório Notarial ..., através da qual declarou doar, com reserva para si do respectivo usufruto, ao Centro Social e Paroquial de S. BB, no acto representado pelo Pe.

CC, o qual, por sua vez, declarou aceitar tais doações para as suas representadas, as fracções autónomas V e F do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal pela inscrição Ap. vinte e três de 04.06.1998, sito na Rua ..., Quinta ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...85, e o prédio urbano sito na freguesia ..., concelho ..., composto de casa destinada a habitação de dois pavimentos e logradouro, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...03 (doc. 3 da PI)

11. O Autor dirigiu-se ao “Banco 1..., S.A”, de onde transferiu, em 07.05.2012, para o 3.º Réu, Centro Paroquial ..., a quantia de 40.000,00€, oferta que a Ré aceitou (8.º PI e 26.º Cont).

12. Em 21 de Maio de 2012 o Autor outorgou escritura pública de renúncia, declarando renunciar gratuitamente ao usufruto dos imóveis descritos em 10 (9.º PI e doc. 5)

13. O Autor escreveu cartas ao Santo Padre nelas reiterando o pedido de readmissão ao exercício das Ordens Sacras as quais mereceram a resposta datada de 21 de Junho de 2016 onde a Secretaria de Estado do Vaticano o informa que se recusa deferir a sua pretensão com o fundamento de que “para o pastoreio do Rebanho de Deus já não lhe seria confiado por motivos da idade (8.º, 10.º, 11.º PI e doc. 6)

14. No ano de 2016 o Lar passou a ser dirigido por um sobrinho do 2º Reu (16.º PI).

15. O veículo do Autor ..., matrícula ..-JI-.. foi transferido e registado em nome do Centro Social e Paroquial de ... (16.º PI e doc. 1 da contestação).

16. No período de isolamento obrigatório por força da pandemia Covid-19, o Autor queria “fugir” da instituição com o aludido veículo, mas foi impedido de o fazer, atendendo às circunstâncias em que estiveram envolvidos todos os Lares de Idosos naquele período, por serem considerados locais sensíveis ao aparecimento de surtos, acompanhados de elevado número de morte e de doentes graves (34.º Cont.).

17. O Autor passou a fretar táxis que o conduzissem até onde tinha necessidade de se deslocar (16.º PI).

18. O Autor denunciou, por escrito, à Segurança Social, a falta de pessoal no Lar, conforme melhor se colhe do teor do documento 7 junto com a petição inicial, cujo

teor aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo o ISS, IP dado a resposta social junta a fls. 17 dos autos, na qual alerta os Réus para a necessidade de reforço dos recursos humanos (23.º PI).

19. Em 13 de Outubro de 2021 o Centro Social e Paroquial de ... enviou ao Autor uma carta, onde declarava denunciar o contrato celebrado com o mesmo em 01.09.2017, a qual produziria efeitos 30 dias após a recepção dessa comunicação (26 PI e doc. 8)

20. O Autor saiu do Lar em Novembro de 2021 e instalou-se no imóvel descrito em 3., onde tinha mandado realizar obras (27.º, 29.º e 30.º PI)

21. Desde Janeiro de 2011 até à sua saída da instituição, em Novembro de 2021, o Autor não pagou qualquer quantia pela sua permanência com a exceção de duas mensalidades de € 600,00 cada uma, em Outubro e Novembro de 2016 (10.º Cont.).

22. A permanência de utentes na instituição dependia do pagamento de uma mensalidade (13.º Cont).

23. O Autor recebe rendas pelos contratos de arrendamento que celebrou sobre o imóvel referido em 3. (49.º Cont.)

24. O Centro Social e Paroquial de ... investiu dinheiro no imóvel referido em 3. com a realização de obras de restauro (54.º Cont.).

25. Em 15.09.2022 foi proferida sentença no âmbito do processo 1361/21...., “acompanhamento de maior” a qual decretou o acompanhamento do Autor, aplicando-lhe as medidas de acompanhamento de representação geral e de administração total de bens, fixando-se como data a partir da qual as medidas se tornaram convenientes, Novembro de 2021 (sentença junta a fls. 140 a 143 dos autos).

*

Factos não provados com interesse para a decisão da causa:

a) Que o Autor se tenha mantido no Lar por força da imensa dor e saudade que sentia pela morte da companheira, que o impediam de voltar a ser o mesmo, faltando-lhe o ânimo que lhe permitiria regressar a ... (4.º PI);

b) Que o Autor se sentia apoderado pela tentação de pôr termo à vida (4.º PI);

c) Que no Lar o Autor ajudasse outros utentes que ali também se acolhiam e que não dispunham de meios nem de força moral os quais sabendo que o Autor exercera o sacerdócio, lhe pediam “para lhe confessarem os seus pecados” (5.º PI);

d) Que o 2º Réu tenha sugerido ao Autor que pedisse à Santa Sé, ao próprio Papa, para o readmitir ao “exercício das Ordens Sacras”, aconselhando-o a deixar os bens que tinha e a doá-los ao Centro, única e improrrogável conditio sine qua non de que tal dependeria, segundo aquele (6.º PI);

e) Que o Autor por estar obcecado pelo sonho de reingressar no seio da igreja como sacerdote e por pretender cumprir sugestões e conselhos do 2.º Réu lhe comunicou estar disposto a doar ao Centro todos os bens que tinha, reservando para si o usufruto dos mesmos, tudo sob condição de continuar a acolher-se no “Lar São BB” até à sua morte e sem nada mais pagar (7.º PI).

f) Que o Director do Réu, ora 2.º Réu anuiu, marcando data/hora para a outorga da escritura, sem que essa condição ficasse ali consignada, do que o Autor só ao final se apercebeu, sem levantar problemas, por lhe ter sido dito pelo Director do Réu, e o Autor aceitar, que tal se devera a esquecimento seu, mas que seria cumprida (7.º PI).

g) Que o Director do Réu, ora 2.º Réu prometeu ao Autor após tais doações que “passaria a ter sempre o Lar ao seu dispor sem ter de pagar mais nada, podendo, então, a partir dali, colaborar com ele nas sessões eclesiásticas e prestar assistência social, material e religiosa aos outros utentes durante o resto da sua vida” (20 PI).

h) Que sob indicação do 2.º Réu o Autor escreveu várias cartas ao Sto Padre informando a conselho do seu confessor, que já “se desfizera de todos os bens terrenos” (8.º PI)

i) Que todas essas cartas lhe foram devolvidas, quase intactas, vários meses depois, levando-o a telefonar para a secretaria de Estado do Vaticano, sem que fosse atendido (8.º PI).

j) Que o 2.º Réu foi a pessoa que mais instou o Autor a proceder daquela forma, levando-o a crer que “não lhe respondiam nem responderiam enquanto persistisse em continuar usufrutuário dos referidos bens e como titular de contas bancárias” (8.º PI);

k) Que o 2.º Réu convenceu o Autor a renunciar ao seu usufruto e a emprestar 40.000,00€ ao “Lar São BB”, alegando que o mesmo estaria a atravessar uma situação económico-financeira muito difícil e que o “C.S.P. S. BB”, seu proprietário, corria o risco de ter de fechar portas e/ou ir para a falência (8.º PI)

l) Que duas das cartas que o Autor pedira no Lar para lhas enviarem pelo correio para o Vaticano só tenham chegado lá anos depois (11.º PI);

m) Que alguém vigiara e retivera o correio do Autor (11.º PI);

n) Que o 2.º Réu valendo-se da fragilidade do Autor, por estar na situação de viúvo, privado da companheira de tantos anos, sem filhos, lhe tenha extorquido tudo quanto aquele tinha (12.º PI);

o) Que era notório que o Autor na data da outorga das escrituras de doação e renúncia ao usufruto se encontrava num estado de tal abatimento psíquico que não lhe permitia dizer “não” a ninguém com algum discernimento, já que, então, os bens da terra nada lhe diziam (12.º PI).

p) Atenta a sua formação religiosa e académica, sabia bem o 2º R que o Autor, após o decesso da esposa, passara a ser um homem muito diferente do que era antes, não apenas pelos 74 anos de idade que já o fragilizavam, física, moral e psiquicamente, mas também por se ter visto só e abatido pela dor da separação da sua esposa (17.º PI).

q) Que o 2.º Réu sabia que o Autor era uma pessoa muito bondosa e fácil de convencer, por mera sugestão que fosse (18.º PI).

r) Que o Autor, com a certeza de que já não poderia ser mais sacerdote, foi novamente acometido por grave crise psíquica que perdeu a vontade de viver, de resistir à dor e a tudo quanto o fizera descambar para uma depressão permanente, a pontos de o seu cérebro ter ficado de todo incapaz de refletir, raciocinar e reagir como uma pessoa normal (13.º PI).

s) Que vedado o acesso ao sacerdócio formal, regrediu o Autor à decisão de ajudar os acolhidos como ele no “Lar São BB”, quer ouvindo e tomando nota das suas queixas frequentes, quer tratando-lhes de ferimentos, ajudando-os nas operações de saúde, higiene, limpeza, quer ouvindo as queixas de funcionários e dos trabalhadores (15.ºPI).

t) Que o sobrinho do 2º Réu, a mando ou por ordem deste, retirou da garagem o veículo do Autor, ..., mat. ... JI. .., fazendo-o seu contra a vontade do Autor e fazendo constar do boletim de inscrição que o Autor lho doara, tudo a propósito de lhe ter pedido para dar com ele umas voltas para não ficar paralisado durante muito tempo (16.º PI).

u) Que o comportamento do Autor despoletou alguma “ira” e crispação do 2º Réu, que não resistiu à tentação de lhe sugerir, com falsos bons modos, que procurasse outro local para residir, com o argumento de que andava a ser subversivo e a levar o Lar à falência (22.º PI).

v) Que o Autor se tenha recusado a sair pois já não tinha casa para viver com dignidade, tanto mais que a de ... precisava de obras cujo valor excederia o do respetivo VP (22.º PI)

w) Que os utentes do Lar começaram a dar mostras de se revoltarem, passando a procurar o Autor cada vez mais e a suplicar-lhe que intercedesse por eles, de contrário haveria ali uma desgraça, atentos os maus tratos, falta de limpeza, sofrimento e privações de toda a ordem (23.º PI)

x) Que o Autor se dirigiu pessoalmente ao 2º Réu a quem narrou o sucedido sendo que este, malcriadamente, voltou-lhe as costas, dizendo-lhe que se queixassem todos a quem, como e quando quisessem (24.º PI).

y) Que o facto aludido em 19 despoletou ira por parte dos RR, sobretudo por impulso e sob a égide do 2º Réu, que, a partir daí, começaram por fazer a vida negra ao Autor, passando a olhá-lo e a tratá-lo de outra forma, como se ele fosse um estranho para quem nem sequer olhava, não o cumprimentando nem lhe falando nunca, manifestando-lhe vontade de o afastar e vê-lo longe de si, a ponto de lhe ter ordenado que saísse do Lar quanto antes (26.º PI)

z) Que depois de sair do Lar, o Autor se viu na necessidade de pedir auxílio num dos Asilos deste distrito, estando a aguardar por vaga e que, por caridade, possam recebê-lo.

aa) Que os RR, por desleixo, mantiveram o imóvel aludido em 3. sempre fechado, quase em ruinas, porque ao abandono desde a doação e que tenham acordado que seria o Autor a mandar realizar trabalhos de vulto, obrigando-se este a compensá-los com a entrega das rendas que têm vindo a ser-lhe pagas pelas inquilinas (30.º PI).

*

Não ficaram por provar outros factos com interesse para a decisão desta causa, não tendo o tribunal considerado o demais articulado pelas partes por corresponder a narrativa com um conteúdo jurídico ou conclusivo, duplicação de factos já considerados ou constituindo mera impugnação, ainda que motivada, sem relevo para o objecto do litígio.

                                                           ***

  3. Motivação

É sabido que é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2, do CPC).

Constitui ainda communis opinio, de que o conceito de questões de que tribunal deve tomar conhecimento, para além de estar delimitado pelas conclusões das alegações de recurso e/ou contra-alegações às mesmas (em caso de ampliação do objeto do recurso), deve somente ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, ou seja, abrange tão somente as pretensões deduzidas em termos do pedido ou da causa de pedir ou as exceções aduzidas capazes de levar à improcedência desse pedido, delas sendo excluídos os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes, bem como matéria nova antes submetida apreciação do tribunal a quo – a não que sejam de conhecimento oficioso - (vide, por todos, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª. ed., Almedina, pág. 735.

Calcorreando as conclusões das alegações do recurso, verificamos que as questões a decidir são:

A)- Saber se a sentença recorrida é nula por violação da al.ª d), do n.º 1, do art.º 615.º, do C.P.C.

B)- Saber se matéria de facto fixada em 1.ª instância deve ser alterada.

C) – Saber se a sentença recorrida deve ser revogada e substituído por acórdão, nos termos pugnados pelo Recorrente, revogação da doação por indignidade.

            Atendendo que são várias as questões a decidir, por uma questão de método iremos analisar cada uma de per si.

            Assim,

                                                                       *

A)- Saber se a sentença recorrida é nula por violação da al.ª d), do n.º 1, do art.º 615.º, do C.P.C.

Muito embora o Tribunal “a quo” não tenha proferido a que alude o n.º 1, do art.º 617.º do C.P.C., este Tribunal não entende ser  indispensável, mandar baixar o processo para que seja proferido despacho a que alude o n.º 1, do artigo citado, pelo que, passa, desde já, apreciar tal matéria (cfr. n.º 5, do preceito).

                                                           *

Segundo o recorrente os factos a que se reportam os itens do ponto II-A da p.i.  tinham sido justamente arredados da lide, por extemporaneidade e em sede apelativa, pelo mui douto Acórdão decretado nesta superior instância recursória, permitiu-se o subscritor destas letras alertar a instância a quo para tal restrição através de reqto adrede e antes de designada a data da 2ª audiência relativamente à única causa de pedir no tocante aos temas de prova, reduzidos, portanto, à “ingratidão” arguida pelo A. no ponto II.B).

Restrição essa que passou despercebida nesta 2ª audiência de julgamento, tendo-se feito assentar a instância em factos que pouco ou nada tinham a ver com o verdadeiro quod erat demonstrandum, a pontos de se ter esbanjado imenso tempo na esteira dos já rejeitados neste TRC, onde fora decidido - com força de caso julgado e de conhecimento oficioso - que só os atinentes à alegada ingratidão materializada nos itens de 1 a 4 daquele ponto II-B) – poderiam ser objeto da respetiva instância.

Opinião oposta têm os recorridos, que pugnam pela improcedência da pretensão do recorrente.

Apreciando.

O nº1, do art.º 615º, do Código de Processo Civil, sendo deste diploma todos os preceitos citados sem outra referência, que consagra as “Causas de nulidade da sentença”, estabelece que é nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

As nulidades de decisão são vícios intrínsecos (quanto à estrutura, limites e inteligibilidade) da peça processual que é a própria decisão (trata-se, pois, de um error in procedendo), nada tendo a ver com os erros de julgamento (error in iudicando) seja em matéria de facto seja em matéria de direito.

As nulidades da sentença são vícios formais, intrínsecos de tal peça processual, taxativamente consagrados no nº1, do art. 615º, sendo tipificados vícios do silogismo judiciário, inerentes à sua formação e à harmonia formal entre premissas e conclusão, não podendo ser confundidas com hipotéticos erros de julgamento (error in judicando) de facto ou de direito (cfr. . Cfr., entre muitos, Ac. do STJ de 1/4/2014, Processo 360/09: Sumários, Abril /2014, p1 e Ac. da RE de 3/11/2016, Processo 1070/13:dgsi.Net.)

Assim, as nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento, estes, a sindicar noutro âmbito.

Há nulidade da sentença quando a sua parte dispositiva está em contradição com as premissas efetivamente adotadas pelo juiz e não com as premissas que ele poderia ter adotado, no entender de uma das partes, mas não adotou.

Os referidos vícios respeitam “à estrutura ou aos limites da sentença. Respeitam à estrutura da sentença os fundamentos das alíneas b) (falta de fundamentação), c) (oposição entre os fundamentos e a decisão). Respeitam aos seus limites os das alíneas d) (omissão ou excesso de pronúncia) e e) (pronúncia ultra petitum)” (cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª Edição Almedina, pág 735).

Trata-se de vícios que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)” (cfr. Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734).

As causas de nulidade da decisão, taxativamente enumeradas nesse artigo 615º, conforme se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/10/2017, “visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, ou a não conformidade dela com o direito aplicável, nada tendo a ver com qualquer de tais vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar a pretensão formulada: não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados, sendo coisas distintas a nulidade da sentença e o erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei. Como tal, a nulidade consistente na omissão de pronúncia ou no desrespeito pelo objecto do recurso, em directa conexão com os comandos ínsitos nos arts. 608º e 609º, só se verifica quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões ou pretensões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada”.

Enquanto nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto. Esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença, mas o mérito da relação material controvertida nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas de error in judicando atacáveis em via de recurso (cfr. Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277, in base de dados da DGSI).

Analisemos os referidos vícios que respeitam à estrutura ou aos limites da sentença:

1. O vício consagrado na al. a) reporta-se à falta de assinatura do juiz, que no caso em apreço não é posto em causa.

2. Quanto ao vício consagrado na al. b): falta de fundamentação de facto ou/e direito, que no caso em apreço não é invocada pelo recorrente.

3. Quanto ao vício consagrado na al. c): os fundamentos estarem em oposição com a decisão ou ocorrer ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, questão também não invocada pelo recorrente.

4. Quanto ao vício consagrado na al. d) : omissão ou excesso de pronúncia.

Questão invocada pelo recorrente.

 Cumpre referir, quanto à omissão de pronúncia, que “devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art. 608-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado” (cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 737).

Sobre esta matéria refere-se no Acórdão da Rel. de Guimarães, proc.º n.º 1799/13.0TBGMR-B, Devendo o tribunal conhecer de todas as questões que lhe são submetidas (art. 608º, n.º 2 do CPC), isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e de todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção (desde que suscitada/arguida pelas partes) cuja conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão, constitui nulidade por omissão de pronúncia, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado, uma vez que o juiz não se encontra sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5º, n.º 3 do CPC) (cfr. Neste sentido Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado, 5º vol., págs. 142 e 143).

Assim, já referia Alberto dos Reis, in Alberto dos Reis, in ob. cit., 5º vol., págs. 55 e 143, impõe-se distinguir, por um lado entre “questões” e, por outro, “razões ou argumentos”. “…Uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar, outra invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção (…). São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar as suas pretensões”.

Apenas a não pronúncia pelo tribunal quanto a questões que lhe são submetidas determina a nulidade da sentença, mas já não a falta de discussão das “razões” ou “argumentos” invocados para concluir sobre as questões.

Acresce que a jurisprudência é uniforme no sentido de que a nulidade por omissão de pronúncia supõe o silenciar, em absoluto, por parte do tribunal sobre qualquer questão de cognição obrigatória, isto é, que a questão tenha passado despercebida ao tribunal, já não preenchendo esta concreta nulidade a decisão sintética e escassamente fundamentada a propósito dessa questão (cfr. Acs. STJ. de 01/03/2007. Proc. 07A091; 14/11/2006, Proc. 06A1986; 20/06/2006, Proc. 06A1443,in base de dados da DGSI.).

Significa isto, que caso o tribunal se pronuncie quanto às questões que lhe foram submetidas, isto é, sobre todos os pedidos, causas de pedir e exceções que foram suscitadas, ainda que o faça genericamente, não ocorre o vício da nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, mas o que poderá existir é um mero erro de julgamento, atacável em via de recurso, onde caso assista razão ao recorrente, se impõe alterar o decidido, tornando-o conforme ao direito aplicável”.

Operando à leitura da decisão não vislumbramos tal nulidade, no que concerne à omissão de pronúncia, porquanto a sentença recorrida tomou posição, quanto ao que havia de tomar.

Aliás, se bem lemos o referido pelo recorrente, o mesmo parece ir no sentido de excesso de pronúncia.

Relativamente ao excesso de pronúncia, diga-se que “Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de exceções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes (art. 608-2), é nula a sentença em que o faça. (cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 737).

Nesta vertente o recorrente refere que o Tribunal “a quo” tomou posição sobre matérias, que tinham sido “barradas” no acórdão datado de 28/3/2023, proferido neste Tribunal.

Operando à leitura do mesmo, temos para nós, não assistir-lhe razão.

Por um lado, no mesmo refere-se no - B)- Saber se a exceção de caducidade invocada deve improceder ou relegar o seu conhecimento para final – questão invocada pelo recorrente, e abordada, como não podia deixar no Ac. datado de 28/3/2023, se decidiu dar razão ao recorrente, e, por consequência mandar baixar os autos à 1.ª instância, a fim de tal questão ser apreciada, apenas após audiência de discussão e julgamento, por os autos não conterem, todos os elementos para a questão ser conhecida. Nesta medida, não conheceu o acórdão, datado de 28/3/2023, das demais questões.

Por outro lado, referiu-se no citado acórdão, que a pretensão da anulabilidade da doação, com base no vício da vontade, seria apreciada, desde que a exceção de caducidade seja julgada improcedente.

Operando à leitura da sentença recorrida, não vislumbramos que a sentença recorrida tenha ido além do decidido no acórdão datado de 28/3/2023, pois a mesma faz várias considerações a respeito do vicio da vontade, referindo que o mesmo não se verificava, mas fê-lo, para enquadrar a questão da anulabilidade, tanto assim, que refere:

Umas breves palavras para dar conta que ainda que algum vício da declaração/vontade existisse, o que não se concede, sempre se teria de concluir que a pretendida anulabilidade dos negócios jurídicos celebrados pelo Autor, consequência jurídica prevista para os vícios que a matéria de facto alegada na petição inicial permitiria equacionar, esbarrava no que estatui o artigo 287.º, n.º 1 do CC, o qual impõe que a sua arguição se faça no prazo de um ano subsequente à cessação do vício.

Tendo os RR excepcionado com a caducidade do direito de arguir a anulabilidade de tais negócios e tendo ficado provado que, pelo menos em 21 de Junho de 2016, o Autor teve conhecimento de que não seria readmitido no sacerdócio, apercebendo-se do alegado erro ou dolo em que teria incorrido, dúvidas não restam que nessa data começaria a contar-se o prazo de um ano para a propositura da presente acção de anulação, sob pena de caducidade desse direito, tendo ainda em mente o que dispõem os artigos 298.º, n.º 2, 328.º a 333.º do CC, pelo que, também por verificação desta excepção peremptória os RR teriam de ser absolvidos do pedido de anulabilidade das doações”.

            Assim, pelo exposto, temos para nós, não proceder esta pretensão do recorrente.

                                                                                   *

O recorrente, parece, enquadrar o caso julgado nos argumentos da nulidade, ao referir: “…a pontos de se ter esbanjado imenso tempo na esteira dos já rejeitados neste TRC, onde fora decidido - com força de caso julgado e de conhecimento oficioso”.

Sobre esta matéria, diremos, apenas umas palavras, para evitar que venha a ser invocada nulidade do acórdão por omissão de pronuncia.

Diga-se, desde já, que não foi violado qualquer caso julgado, o que nem se enquadra na nulidade da sentença. Pois, como já referimos, este Tribunal, referiu que seria de conhecer a anulabilidade da doação, com base no vicio da vontade, desde que a exceção de caducidade seja julgada improcedente.

Ora, da leitura da sentença recorrida, resulta que foi conhecida a questão da exceção, ainda que a sentença tivesse feito considerações ao vicio da vontade e que por essa vertente a pretensão do recorrente não podia proceder.

Acresce que este Tribunal, como resulta do acórdão datado de 28/3/2023, não “barrou o Tribunal a quo” de formular factos tendentes a apurar se houve vicio de vontade no momento da outorga da escritura de doação, como parece fazer crer o recorrente, desde logo, por não saber, nem ser possível saber, antes da audiência de discussão e julgamento, se a exceção de caducidade ia ou não proceder. Tanto assim, que refere que conhecerá da anulabilidade da doação se a exceção de caducidade for julgada improcedente. Ora, se eventualmente, a caducidade fosse julgada improcedente, como se poderia conhecer da nulidade da doação, se não constassem factos sobre tal matéria.

Pelo exposto, não se verifica a nulidade invocada, sem a exceção de caso julgado, como invoca o recorrente.

5. Quanto ao vício consagrado na al. e) : condene em quantidade superior ou objeto diverso do pedido, questão não levantada pelo recorrente.

Visto este ponto passemos ao ponto seguinte.

                                                                               **

B)- Saber se matéria de facto fixada em 1.ª instância deve ser alterada.

Antes de entrarmos na análise deste ponto, cabe verificar se o recurso sobre a matéria de facto deve ser rejeitado, como pugna o recorrido.

Segundo o mesmo, o recorrente não observou o exigido pelo art.º 640.º, do C.P.C., desde logo, por não referir qual o sentido da decisão a proferir relativamente a cada um desses pontos de facto: se deviam ser considerados totalmente não provados, ou provados parcialmente ou com limitações (restritivas ou explicativas), e nesta hipótese, quais. De igual modo, deveria ter especificado ou indicado dos factos que impugnaram quais, em concreto, consideravam não provados na totalidade ou provados parcialmente, restritiva ou explicativamente, explicitando-o claramente, o que não fez nem no corpo nem nas conclusões do seu recurso porquanto não especificou as respostas que, no seu entender, se impunha fossem dadas aos referidos factos impugnados.

 Aliás, o recorrente deixa dúvidas sobre aquilo que pretende ver sindicado, não definindo o objecto do recurso mediante uma enunciação suficientemente clara

das questões que submete à apreciação do tribunal de recurso.

            Apreciando.

            Da leitura do art.º 640.º, do C.P.C., resulta:

            1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.

Da leitura do preceito resulta, desde logo, que o recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (cfr. al.ª a). Operando à leitura das conclusões, temos para nós, que embora de forma, não muito clara, o faz, pois na conclusão 11.º refere “A Mma Juiz nehuma medida tomou nem nada decidiu de acordo com a gravidade que a situação exigia e que se vai agravando, tendo dado como provados na sentença recorrida factos reportados aos itens 16 e de 20 a 24 com base, apenas, na motivação de outros provindos das declarações de parte prestadas pelo 2º R. P.e CC, único interessado pessoal na improcedência dos pedidos”.

Daqui temos, para nós, que se compreende que o mesmo considera incorretamente julgados os pontos de facto provados vertidos em 16 e 20 a 24.

Deve também indicar os meios de prova, que em seu entender, impõem decisão diversa sobre os mesmos (al.ª b). No caso em apreço, ainda que de forma pouco clara, parece fazê-lo, aludindo, desde logo, ao Padre CC, a EE, FF, GG e HH (cfr. conclusões 14.ª a 26.ª inclusive).

Na conclusão 15.ª o recorrente refere “Estava, pois, vedado à Mma Juiz, ex vi dos arts 393º e 394º do CC, basear-se em depoimentos orais prestados por testemunhas - em julgamento ou fora dele – para prova de factos cuja validade faz a Lei depender da sua redução a documento idóneo por escrito - sendo, pois, inatendível em juízo dar por provados os descritos nos itens que os suportam”.

Nesta não refere o recorrente a que factos alude, se alude aos factos, 16 e 20 a 24, não lhe assiste razão, pois qualquer, deles pode ser provado por prova testemunhal, por não se enquadrarem em qualquer das situações a que aludem os art.ºs 393.º e 394.º, do C.Civil.

Deve ainda o recorrente indicar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (cfr. al.ª c). No caso em apreço, ainda que de forma não aconselhável, o faz quanto ao facto 16, da matéria provada, com a seguinte redação: “No período de isolamento obrigatório por força da pandemia Covid-19, o Autor queria “fugir” da instituição com o aludido veículo, mas foi impedido de o fazer, atendendo às circunstâncias em que estiveram envolvidos todos os Lares de Idosos naquele período, por serem considerados locais sensíveis ao aparecimento de surtos, acompanhados de elevado número de morte e de doentes graves (34.º Cont.)”.

Sendo que o recorrente, na conclusão 12ª refere – “Ao contrário do ali insinuado, o A. não fugiu nem nunca quis fugir do Lar de motu proprio, como se deu por assente no 16º item da decisão em causa, pois, se quisesse, não precisava de fugir …”.

Assim, sendo, deve forma compreensível, refere que o facto provado com o número 16.º, deve ser não provado.

No que concerne aos factos provados números 20 a 24 o recorrente não refere qual o sentido que pretende que os mesmos tenham, e não o refere nem na motivação, nem nas conclusões, pelo que, não se pode aplicar o Acórdão do S.T.J. n.º 12/2023, de fixação de jurisprudência, datado de 17/10/2023, tirado no processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1, publicado no D.R. n.º 220/2023, Série I, de 14/11/2023, segundo o qual – “nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”, desde logo, por não ser possível, quanto a nós, de forma inequívoca, qual o sentido que o recorrente pretende dar a tais pontos (20 a 24).

Face ao exposto, não vislumbramos razão, para rejeitar o recurso da matéria de facto, quanto ao ponto 16 da matéria provada.

Porém, pelas razões expostas, rejeitamos o recurso da matéria de facto quanto aos pontos 20 a 24 da matéria de facto provada.

Até porque, como é consabido não há lugar a despacho de aperfeiçoamento, no que concerne á matéria de facto, ao contrário do que sucede com o recurso relativo à decisão sobre a matéria de direito (previsto no art. 639.º, n.º 2 e n.º 3 do CPC) - (cfr. entre outros, Ac. da RG, de 19.06.2014, Manuel Bargado, Processo n.º 1458/10.5TBEPS.G1, Ac. do STJ, de 27.10.2016, Ribeiro Cardoso, Processo n.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, Ac. da RG, de 18.12.2017, Pedro Damião e Cunha, Processo n.º 292/08.7TBVLP.G1, Ac. do STJ, 27.09.2018, Sousa Lameira, Processo n.º 2611/12.2TBSTS.L1.S1, ou Ac. do STJ, de 03.10.2019, Maria Rosa Tching, Processo n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2).

                                                                       *

Como se sabe, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova, o juiz aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição. 

É sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc. (cfr. Abrantes Geraldes in “Temas Prova, II Vol. cit., p. 201) “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (cfr. Abrantes Geraldes in “Temas de Prova”  II Vol. cit., p. 273).

Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.

“O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (cfr. Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348).

Nesta perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.

Daí que conforme orientação jurisprudencial prevalecente o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, pelas razões já enunciadas, está em melhor posição.

Em conclusão: mais do que uma simples divergência em relação ao decidido, é necessário que se demonstre, através dos concretos meios de prova que foram produzidos, que existiu um erro na apreciação do seu valor probatório, conclusão difícil quando os meios de prova porventura não se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo apelante ou quando também eles sejam contrariados por meios de prova de igual ou de superior valor ou credibilidade, não descurando a vertente que a prova tem de ser analisada em conjunto.

É que o tribunal de 2ª jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si.

Sendo, portanto, um problema de aferição da razoabilidade da convicção probatória do julgador recorrido, aquele que essencialmente se coloca em sede de sindicabilidade ou fiscalização do julgamento fáctico operado pela 1ª instância, forçoso se torna concluir que, na reapreciação da matéria de facto, à Relação apenas cabe, pois, um papel residual, limitado ao controle e eventual censura dos casos mais flagrantes, como sejam aqueles em que o teor de algum ou alguns dos depoimentos prestados no tribunal a quo lhe foram indevidamente indiferentes, ou, de outro modo, eram de todo inidóneos ou ineficientes para suportar a decisão a que se chegou (cfr. cfr. Miguel Teixeira de Sousa obra citada, pág. 348).

Casos excepcionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre matéria de facto serão, por exemplo, os de o depoimento de uma testemunha ter um sentido em absoluto dissonante ou inconciliável com o que lhe foi conferido no julgamento, de não terem sido consideradas- v.g. por distracção-determinadas declarações ou outros elementos de prova que, sendo relevantes, se apresentavam livres de qualquer inquinação, e pouco mais.

A admissibilidade da respectiva alteração por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.

Cabe ainda referir que advogamos o defendido no Ac. desta Relação de 10/7/2018, proc.º n.º 1445/16.0T8FIG.C1, relatado por Luiz José Falcão de Magalhães, do qual somos 1.º adjunto, onde refere citando o Ac. da mesma relação de 4/4/2017, proc.º n.º 516/12.6TBPCV.C1), relatado por Jorge Arcanjo «… o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância, embora exija uma avaliação da prova (e não apenas uma mera sindicância do raciocínio lógico) deve, no entanto, restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal ou por depoimento de parte é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e, na avaliação da respectiva credibilidade, tem que reconhecer que o tribunal a quo, está em melhor posição.

Por isso, se entende não bastar qualquer divergência de apreciação e valoração da prova, impondo-se a ocorrência de erro de julgamento ( cf., por ex., Ac STJ de 15/9/2010 ( proc. nº 241/05), de 1/7/2014 ( proc. nº 1825/09), em www dgsi.pt ), tanto mais que o nosso sistema é predominantemente de reponderação (…)».

Ao que acresce que o dever de fundamentação da decisão de facto, exige actualmente a indicação do processo lógico – racional que conduziu à formação da convicção do julgador, relativamente aos factos que considerou provados ou não provados, de acordo com o ónus de prova que incumbia a cada uma das partes, conforme dispõe, no que concerne à sentença, o artº 607º, nº 4 do CPC, segundo os diversos critérios legais e jurisprudenciais, tendo em conta que, na formação da convicção do julgador rege o princípio da livre apreciação das provas, excepto nos casos previstos no nº 5 do artº 607 do C.P.C.-aqueles para cuja prova seja exigida formalidade especial, os que só possam ser provados por documentos e os que estejam já provados por acordo, documento ou confissão das partes.

É este dever de fundamentação imprescindível a um processo equitativo e contraditório, salvaguardando as garantias das partes e possibilitando a sua cabal reacção, em caso de discordância em relação a esta convicção, bem como assegurando que o tribunal de recurso tem todos os elementos necessários para a apreensão e reapreciação da matéria fáctica.

Conforme referido por Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, págs. 296, 297,), “o dever de fundamentação introduzido pela reforma de 1961, reforçado em 1995 e agora transferido para a própria sentença que simultaneamente deve conter a enunciação dos factos provados e não provados e as respectivas implicações jurídicas “ exige que “se estabeleça o fio condutor entre a decisão sobre os factos provados e não provados e os meios de prova usados na aquisição da convicção, fazendo a respectiva apreciação crítica nos seus aspectos mais relevantes. Por conseguinte, quer relativamente aos factos provados, quer quanto aos factos não provados, o juiz deve justificar os motivos da sua decisão, declarando por que razão, sem perda da liberdade de julgamento garantida pela manutenção do princípio da livre apreciação das provas (…), deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões dos peritos ou achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos. É na motivação que agora devem ser inequivocamente integradas as presunções judiciais e correspondentes factos instrumentais (…).

Por último, no que toca à possibilidade e limites da reapreciação da matéria de facto, não obstante se garantir um duplo grau de jurisdição, tem este de ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no artº 607 nº 5 do C. P. Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o tribunal de recurso não pode já recorrer.

De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 347, “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.

Assim, para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.

                                                           *

 A convicção do Tribunal assentou no conjunto da prova documental apresentada pelas partes, conforme análise crítica que se passará a fazer, sendo que, em alguns pontos de facto que se encontravam controvertidos, acolhemos igualmente a prova testemunhal e por declarações de parte que foram produzidas, tendo sempre em mente as regras de repartição do ónus da prova.

Com efeito, incumbia ao Autor provar os factos constitutivos do seu alegado direito de arguir a nulidade ou anulabilidade dos negócios jurídicos que celebrou a favor dos RR Centros Sociais e Paroquiais, tal como lhe impõe o artigo 342.º, n.º 1 do CC, o que manifestamente não logrou fazer, dado que as testemunhas arroladas para esse desiderato nada presenciaram e nada sabiam quanto ao estado físico e psíquico do Autor e quanto à sua motivação/intenção quando realizou tais doações, sendo certo que nenhum elemento probatório relevante foi apresentado para convencer o tribunal quanto à existência de um acordo verbal condicionante dessas doações.

Vejamos, em concreto.

Os factos descritos em 1, 2, e 6 reproduzem parte do teor do assento de casamento civil celebrado pelo Autor e pela sua falecida esposa, na Suíça, mais concretamente em Orbe, a 22.02.1974, do qual constam as freguesias de naturalidade dos nubentes, a sua data de nascimento e ainda o averbamento do óbito do cônjuge, DD, documento que se encontra a fls. 8-9 dos autos, acolhendo o tribunal a carta emitida pela Secretaria de Estado do Vaticano (doc. 6 junto com a petição inicial, a fls. 16) para se convencer quanto ao facto de o Autor ter exercido o sacerdócio católico e de lhe ter sido dada dispensa das Ordens Sacras.

Já a materialidade provada em 3 e 4 encontra, a primeira, respaldo no teor da escritura de doação outorgada em 18 de Março de 2011 (documento 3 junto com a petição inicial) dela se extraindo a titularidade do prédio urbano descrito na CRP ... sob o nº ...03, registado pela Ap. ...5 de ../../1988 a favor da falecida DD, sendo certo que a ida do casal para o Lar explorado pelo 1.º Réu é facto incontestado entre as partes.

Assenta, igualmente, no acordo das partes, quanto à sua verificação, a realidade ínsita em 5 a 7.

A prova de que o Autor, desde que ficou viúvo, tinha o desejo de reingressar na igreja e que consultou o 2.º Réu, manifestando-lhe essa vontade (item 8), justifica-se por força do teor do documento 6 junto com a petição inicial - a referida carta emitida pela Secretaria de Estado do Vaticano -, conjugado com as declarações de parte prestadas pelo 2.º Réu, Padre CC, o qual, de modo inequívoco, confirmou essa realidade.

Os factos 9, 10 e 12 estão provados com base no teor dos documentos autênticos juntos aos autos que ali de deram como parcialmente reproduzidos, ou seja, a escritura de habilitação, pela qual o Autor declarou ter sucedido como único herdeiro da sua falecida mulher, a escritura de doação de três imóveis, com reserva de usufruto, outorgada a 18 de Março de 2011 a favor do 1.º Réu, Centro Social e Paroquial de S. BB e a escritura pública de renúncia a esse usufruto outorgada a 21.05.2012.

A transferência da quantia de 40.000,00€ para o 3.º Réu, em 07.05.2012, tem base probatória nos documentos bancários juntos a fls. 12 verso a 13 verso dos autos, sendo certo que sempre resultaria provada por não ter merecido qualquer contestação dos RR, o que justifica o facto provado em 11.

O facto 13 é a realidade que resulta do teor da carta emitida pela Secretaria de Estado do Vaticano em 21 de Junho de 2016, junta a fls. 16 dos autos, inferindo-se desse documento apenas a materialidade que se deixou consignada nesse item.

A circunstância de o Lar ter passado a ser dirigido pelo sobrinho do 2.º Réu, tal como provado em 14, foi atestada pelo próprio director em funções, a testemunha JJ, o qual confirmou ser sobrinho do 2.º Réu e ter passado a director técnico do Lar em 2016.

Relativamente à comprovada transferência da propriedade do veículo ..., matrícula ..-JI-.. para o Centro Social e Paroquial de ... (item 15) acolheu-se o teor do documento 1 junto com a contestação, ou seja, o respectivo certificado de matrícula, sendo certo que os RR aceitam expressamente que a aludida viatura, antes dessa transferência, era propriedade do Autor.

A materialidade descrita em 16 e 17 resultou provada com base nos depoimentos de JJ, este, como se referiu, director técnico do Lar e II, proprietário de um táxi em ....

JJ, num relato tranquilo, assertivo e que reputámos convincente, afirmou que, a determinada altura, não permitiram que o Autor continuasse a conduzir a aludida viatura pelo facto de o mesmo ter tido alguns acidentes enquanto a conduzia, exigindo que os arranjos fossem pagos pela instituição, adiantando ainda que no período de isolamento a que estiveram sujeitos por força da Covid 19, o Autor pegou no carro e saiu do Lar, tendo sido necessário telefonar ao Delegado de Saúde para que o colocassem em isolamento e o impedissem de sair, sendo que, por sua vez, II, disse ao Tribunal ter transportado o Autor no seu táxi em várias ocasiões, a consultas médicas, queixando-se o mesmo de não ter transporte porque, embora tivesse um carro, não o deixavam usá-lo e estava arrumado na garagem.

A denúncia feita pelo Autor à Segurança Social e a resposta dada por este organismo, tal como provado em 18, assenta no teor dos documentos juntos a fls. 16 verso e 17, nada mais se tendo apurado relativamente a esta questão, sendo certo que o envio da carta de denúncia descrita em 19 tem igualmente suporte probatório no documento 8 junto com a petição inicial, não tendo merecido, a ocorrência desse facto, qualquer dissenso entre as partes.

A materialidade descrita em 20 resulta de modo inequívoco do conjunto da prova testemunhal produzida a este propósito, nomeadamente dos depoimentos de EE, FF, GG, HH e KK, sendo certo que a sua ocorrência não suscitou controvérsia entre as partes.

Assenta igualmente no depoimento de JJ, conjugado com o teor dos documentos juntos a fls. 49 e 50, a demonstração de que a permanência no Lar dependia do pagamento de uma mensalidade (item 22), sendo certo que existe consenso entre as partes quanto ao facto do Autor desde Janeiro de 2011 até à sua saída da instituição, em Novembro de 2021, não ter pago qualquer quantia por ali permanecer, com a exceção de duas mensalidades de € 600,00 cada uma, em Outubro e Novembro de 2016. Neste último ponto, o director técnico da instituição fez um relato sincero, declarando ter sido informado que o Autor não pagava mensalidade porque tinha havido um acordo, anterior à sua entrada, por causa das doações, afirmando-lhe a direcção que, em face dessas doações, seria tolerado o não pagamento da mensalidade, porque não queriam atritos com o Sr. AA, pese embora o mesmo tenha decidido liquidar duas prestações de 600€, uma em Outubro e a outra em Novembro de 2016, das quais emitiu os respectivos recibos. Mais esclareceu JJ que a mensalidade que deveria ter sido paga pelo Autor era a que constava do contrato de alojamento que a instituição celebrou com o mesmo, não a tendo, no entanto, presente – relato esse que vai de encontro ao alegado pelo Autor no artigo 20.º da petição inicial (assim se justificando o item 21).

Fundamenta-se, por fim, que se tenha dado como provado que o Autor recebe rendas pelos contratos de arrendamento que celebrou sobre o imóvel referido em 3. e que o Centro Social e Paroquial de ... tenha investido dinheiro nesse imóvel com a realização de obras de restauro (factos 23 e 24), por ser essa a realidade que resulta dos testemunhos de FF, GG e de HH, todas arrendatárias desse imóvel, as quais declararam que o mesmo lhes foi arrendado pelo Autor, sendo que, quanto às obras realizadas nesse imóvel, pelo Centro Social e Paroquial de ..., foi a sua realização confirmada, de modo que não nos suscitou quaisquer reservas, por LL, tesoureiro do Centro Social e Paroquial de ... e presente na direcção da instituição há cerca de 7 ou 8 anos, o qual afirmou, de modo incisivo, que essas obras foram acompanhadas presencialmente pelo Autor.

Atento o disposto no artigo 607.º, n.º 4 do CPC, deu-se ainda como provado o facto descrito em 25, reproduzido em sentença judicial junta aos autos.

Relativamente aos factos não provados a sua justificação, ainda que genérica, encontra-se na absoluta ausência de prova, seja documental, seja testemunhal, apta à sua confirmação.

As testemunhas ouvidas, mormente as indicadas pelo Autor, desconheciam, em absoluto, qual era o estado de espirito do Autor aquando da morte da esposa, as razões que o levaram a permanecer no Lar, as circunstâncias que o levaram a fazer doações aos Centros Sociais e o que o motivou a renunciar ao usufruto nos bens imóveis doados, ignorando quaisquer acordos ou condições estabelecidas entre as partes.

Assim, EE, coordenador do espaço cidadão do Município ..., sabia basicamente aquilo que o Autor lhe tinha contado, afirmando que o mesmo, se tinha deslocado ao espaço cidadão, a fim de renovar a carta de condução e que nessa ocasião lhe confidenciou que tinha feito uma denúncia do Lar à Segurança Social e que por essa razão o Lar tinha sido inspeccionado, o que lhe teria trazido problemas, conversa essa que terá ocorrido alguns meses antes da saída do Autor da instituição. Por outro lado, ainda que esta testemunha tenha estado presente quando o Autor fez a mudança do Lar para a casa de ..., limitou-se a referir que o Autor decidiu sair, o que fez pelo próprio pé, embora lhe tivesse dito que tinha uma data limite para o fazer, tendo sido auxiliado na tarefa de recolha dos seus bens por um colaborador do Lar, revelando estar triste, sem vontade de sair, porque gostava muito de lá viver porque era muito bem tratado. EE afirmou ainda que, quando chegaram a ..., se encontravam duas raparigas no imóvel – arrendatárias – tendo o Autor ficado na sua companhia das mesmas; sendo que, quanto ao veículo automóvel, se recordava-se que o Autor lhe falou da sua existência, mas constatou que a viatura não estava registada em seu nome, mencionando ainda uma troca de mensagem através de WhatsApp, já depois da saída do Autor do Lar, em que o mesmo refere não se recordar se ter assinado qualquer transferência de propriedade da viatura.

Já II referiu conhecer o Autor há vários anos (tendo-o conhecido cerca de um ano depois de o mesmo ter entrado na instituição) tendo-o transportado no seu táxi por várias ocasiões, sendo que sempre o sentiu satisfeito por se encontrar na Lar até que, a determinada altura, começou a queixar-se de falta de atenção, sem nunca lhe ter pormenorizado quaisquer problemas. Instado sobre se o ouviu falar de um veiculo automóvel esta testemunha limitou-se a revelar que o mesmo lhe disse que tinha um carro, o qual não o deixariam usar, encontrando-se arrumado na garagem.

O depoimento de FF, arrendatária do imóvel sito em ..., compreendeu apenas o facto de o Autor ser seu senhorio num T2, cujo arrendamento teria sido celebrado entre ambos há cerca de três anos atrás e na circunstância de, no dia em que o mesmo voltou para a casa de ..., saído do Lar, ter-lhe feito uma visita, na qual pôde verificar que o mesmo tinha a barba por fazer e a roupa era pouco cuidada, velha, revelando também que quando o mesmo fazia refeições se mostrava muito satisfeito com a qualidade da comida, dizendo: há muito tempo que não fazia uma refeição assim. Ainda segundo esta testemunha, o Autor permaneceu cerca de um mês nesta casa até que teve um AVC e foi para o hospital onde ficou algum tempo, tendo depois sido encaminhado para uma unidade de cuidados continuados para fazer terapia da fala.

GG, outra das arrendatárias do imóvel sito ... e nomeada acompanhante ao Autor no processo de maior acompanhado, instaurado na sequência do AVC que o incapacitou, declarou tê-lo conhecido há cerca de 2 anos, afirmando que o mesmo vinha frequentemente ao imóvel ver a obra que estava a ser feita no edifício, sabendo que em Novembro passado o mesmo regressou para ali viver, tendo-o ido visitar e verificado que o mesmo estava com o cabelo grande, deprimido e com um cheiro desagradável, tendo-lhe o Autor contado que tinha sido expulso do Lar, que as condições não eram boas e que tinha feito queixa à Segurança Social e que por essa razão o teriam fechado no quarto, com a denúncia colada na porta. GG disse ainda que o Autor depois de ter tido um AVC foi hospitalizado e que foi a única pessoa a visitá-lo, não tendo o mesmo recebido qualquer visita de pessoas do Lar.

Consigna-se que o relato desta testemunha nos pareceu inconsistente e parcial quando relata uma alegada expulsão do Lar e o facto do Autor ter sido fechado no quarto, dado que essa versão colide frontalmente com a autonomia e liberdade de movimentos que todas as testemunhas revelam que o Autor tinha, nomeadamente, para se deslocar ao espaço cidadão e para acompanhar a realização de obras no imóvel, sendo contraditória com a versão da única testemunha que o acompanhou e estava presente no dia e momento em que o Autor saiu do Lar, o mencionado EE.

Já HH, secundou basicamente o depoimento da irmã GG, fazendo-o, no entanto, sem mencionar a alegada expulsão e fecho no quarto da instituição, apresentando um relato com algumas contradições, nomeadamente quanto ao facto do Autor ter regressado a ... com chinelos de quarto calçados, o que segundo asseverou tal nunca tinha acontecido, quando segundo GG, já não era a primeira vez que o mesmo aparecia na casa em ..., com esse tipo de calçado.

Por fim, limitou-se MM, trabalhador na área da construção civil que havia prestado serviços ao Autor há cerca de oito anos, a declarar ter tido conhecimento do seu regresso a ... de ter ido visitá-lo a casa, tendo-o achado triste, desconhecendo as razões desse estado de espirito.

Neste contexto probatório – mesmo desconsiderando a contraprova que resulta do depoimento das testemunhas dos RR e das declarações de parte prestadas pelo 2.º Réu - não obtivemos qualquer indício revelador do estado anímico do Autor depois da morte da sua mulher, o que justifica a falta de prova das alíneas a) e b) dos factos não provados; não existe qualquer depoimento que confirme o alegado auxilio material e espiritual do Autor aos outros utentes do Lar, o que impossibilita a prova dos factos constantes das alíneas c), s) e w), sendo certo que, quanto a esta última materialidade, se dá conta que do facto de o Autor ter feito uma denúncia à Segurança Social e de este organismo ter alertado os Réus para a necessidade de reforço dos recursos humanos (cf. facto provado em 18), não se pode extrair, naturalmente, que essa insatisfação se estendesse a todos os demais os utentes do Lar e que estes suplicassem ao Autor que intercedesse por eles, estando sujeitos a maus tratos, falta de limpeza, sofrimento e privações de toda a ordem; sendo certo que também não se infere ou presume do conjunto da prova testemunhal e documental que o 2.º Réu tenha aconselhado o Autor a deixar os seus bens ao Centro, por ser essa a única via para regressar ao sacerdócio (facto não provado em d)), nem se colhe que as doações realizadas tivessem sido feitas sob qualquer condição, designadamente do Autor se continuar a acolher no “Lar São BB” até à sua morte e sem nada mais pagar, uma vez que, mais uma vez, dos factos dados como provados em 21 e 22 (sobretudo que desde Janeiro de 2011 até à sua saída da instituição, em Novembro de 2021, o Autor não pagou qualquer quantia pela sua permanência, com exceção de duas mensalidades de € 600,00 cada uma, em Outubro e Novembro de 2016) apenas se extrai, como explicou o Director do Lar, JJ, que a instituição reconhecia que, por força de tais doações, não deveria exigir pagamentos ao Sr. AA e não queria atritos com o mesmo, pelo que, neste conspecto, mostra-se justificado por que razão ficaram por provar os factos constantes das alíneas e) a g).

A propósito desta materialidade, o 2.º Réu, Padre CC declarou que não teve, nem poderia ter, qualquer interferência no processo de regresso do Autor ao sacerdócio, dado que essa questão estava a ser tratada pela Diocese ..., explicando que aceitou subscrever uma carta abonatória, juntamente com outros três sacerdotes, para que o Autor instruísse esse processo sem que, alguma vez, lhe tenha prometido o que quer que fosse, dado que não estava nas suas mãos qualquer decisão a esse respeito (versão essa que se mostra consentânea com as regras da razoabilidade e da experiência comum, tendo ainda em mente que o Autor tem habilitações académicas superiores, já tinha exercido o sacerdócio e era conhecedor das regras impostas pela Igreja Católica para que esse ofício fosse exercido pelo que, neste conspecto, estamos convencidos que o mesmo não seria facilmente enganado ou compelido a fazer aquilo que não desejava ou não tinha vontade).

Não logrou o Autor igualmente demonstrar, atento o teor dos depoimentos supra analisados, que tenha sido sob indicação do 2.º Réu que escreveu várias cartas ao Santo Padre (facto não provado em h), bem como que, muitas dessas cartas tenham sido devolvidas e que tenham sido feitos telefonemas para o Vaticano (dado que o Autor não juntou essas missivas aos autos e ninguém se pronunciou sobre essa materialidade), donde resulta como não provada a alínea i), adiantando-se que, para além de não ter logrado provar o alegado em j), l) e m), tais afirmações são contraditórias com o teor da carta emitida pela Secretaria de Estado do Vaticano em 21.06.2016, de onde resulta que terão sido enviadas apenas duas cartas, sendo que a primeira era datada de 29 de Julho de 2013, ou seja, posterior, não só à doação dos imóveis, como à escritura de renúncia ao respectivo usufruto, pelo que não se concebe que as doações tenham sido feitas sob condição de reingresso no sacerdócio.

Estamos, pois, convictos que a ideia do Autor em se desfazer dos seus bens foi estritamente pessoal e está relacionada com o desejo que o mesmo manifesta, após o óbito da esposa, em reingressar no sacerdócio, ofício que já tinha exercido e cujas condições de desempenho conhecia bem.

É igualmente na falta de qualquer actividade probatória apta à sua demonstração que se fundamenta a resposta negativa constante da alínea k), sendo certo que as declarações do 2.º Réu e o depoimento de JJ serviram, ao invés, para infirmar o que vinha alegado pelo Autor.

Não se prova igualmente a realidade alegada pelo Autor e constante das alíneas n) a r) dado que ninguém a confirmou em juízo. Pelo contrário, a prova testemunhal e documental produzida convence no sentido oposto, ou seja, de que o Autor esteve sempre lucido e capaz até Novembro de 2021, competências essas que nos são reveladas pelos teores das cartas que escreveu à Segurança Social e ao Vaticano, nas deslocações e contactos que manteve com o coordenador do espaço cidadão de ..., nos momentos em que acompanhou as obras de restauro do imóvel de ... e quando arrendou esses imóveis a terceiras pessoas, sendo certo que os indícios recolhidos nos autos nos levam a presumir que o Autor, depois de ter recebido a carta da Secretaria de Estado do Vaticano, em Junho de 2016 e de ter tomado consciência que não seria readmitido no exercício das Ordens Sacras por motivos de idade, se terá arrependido de se ter desfeito de alguns dos seus bens, o que terá estado na origem do conflito com os RR.

Aliás, a propósito da declaração, vontade e capacidade das partes, a Sra. Notária que elaborou a escritura de doação, Dra. NN foi muito clara e assertiva no depoimento que prestou, esclarecendo o tribunal que, em todas, sem excepção, lê e explica aos intervenientes o negócio que estão a fazer, declarando recordar-se do Autor em particular porque o mesmo lhe referiu que estava a tentar voltar a ser padre, não se tendo colocado qualquer questão relativa capacidade do mesmo para o acto que pretendia praticar.

Relativamente ao facto não provado em t) consigna-se que, mais uma vez, o Autor não juntou qualquer documento que atestasse a sua versão dos factos quanto à transmissão da viatura a favor do sobrinho do segundo Réu, sendo certo que os RR contrariaram essa alegação, juntando o respectivo certificado de matrícula de onde resulta o facto provado em 15.

Por fim, quanto à alegada expulsão do Lar, reproduzida nos factos não provados em u) a v), x) a y) dá-se conta que não foi apresentada qualquer testemunha que tenha presenciado conversas entre o Autor e o 2.º Réu em que este tenha ordenado ao Autor que saísse do Lar, sendo certo que as referidas GG e HH, ainda que de modo muito parcial, se limitaram a reproduzir aquilo que, supostamente, o Autor lhes teria contado, sucedendo que os demais elementos probatórios recolhidos, designamente, o facto de o Autor ter decidido realizar obras no imóvel para onde foi viver e o ter arrendado, indiciam que se tratou novamente de uma decisão pessoal e reflectida, tomada algum tempo antes dessa saída, ocorrida em Novembro de 2021 e, como tal, incompatível com a alegada inesperada expulsão.

Note-se que o próprio relato de EE, reportado ao dia da saída – quando afirma que o Autor não queria sair do Lar, estava muito triste, estava devastado por sair, porque gostava muito de lá viver e era muito bem tratado – é contraditório com a versão que o Autor expõe na petição inicial, relativa ao modo como os utentes do Lar eram tratados e à revolta que alega existir.

Por outro lado, se é certo que a carta endereçada pelo Réu Centro Social e Paroquial de ... ao Autor, em 13 de Outubro de 2021, tendo como assunto: denúncia do contrato celebrado com V. Ex. em 01 de Setembro de 2017, sugere que foram os RR quem teve a iniciativa de pôr fim à permanência do Autor na instituição, segundo contextualizou o 2.º Réu nas declarações que prestou, tratou-se de uma carta emitida na sequência da conversa que declara ter tido com o Autor, onde o mesmo declara pretender sair, essencialmente por não estar satisfeito com os condicionamentos que viveu no Lar relacionados com a pandemia, servindo essa missiva para formalizar essa saída por questões de segurança, para que o Lar deixe de ser responsável por aquela pessoa, e que é emitida sempre que um utente sai, para justificar a abertura de uma vaga junto da Segurança Social.

Neste contexto, subsiste a dúvida quanto aos verdadeiros motivos da saída do Autor do Lar, dúvida essa que, nos termos do artigo 414.º do CPC, se resolve em seu desfavor.

A própria materialidade alegada pelo Autor em z) - depois de sair do Lar, o Autor viu-se na necessidade de pedir auxílio num dos Asilos deste distrito, estando a aguardar por vaga e que, por caridade, possam recebê-lo, (a qual não logrou provar, dado que ninguém a confirmou e nenhum documento foi junto que pudesse comprovar essa pré-inscrição), é, no nosso entendimento, contraditória com a instalação no imóvel de ... precedida da realização de obras de vulto, tal como ficou provado em 20.

Por fim, o facto não provado em aa) justifica-se, em parte, por ter sido produzida prova de sentido contrário, a qual deu origem ao facto provado em 24., sendo que, no mais, não foi produzida qualquer prova apta a confirmar o acordo que ali se alega ter sido feito, nem que as obras realizadas pelo Autor no imóvel possam ser consideradas de vulto.

                                                           *

Da audição da prova resulta:

Testemunha EE, conhece o A.

Refere que o A. lhe referiu que a instituição não o apoiava, e que fez queixa junto do ISS, para inspecionarem o lar. Pensa que esta conversa foi antes de ele ter saído do lar. Não saiu do lar por vontade própria. Foi com uma carrinha, buscar os pertences do A., ao lar e levou-o para a residência em ...

O A. lamentou-se pelo sucedido, ia triste, veio pelo próprio pé, mas estava devastado.

Perguntado se ele (a testemunha) não tivesse aparecido ele (o A.) ficava lá de noite. Responde ter a perceção que sim pois não viu ninguém, nem da direção do lar.

A instâncias do mandatário dos RR. refere conhecer o A. desde setembro/outubro de 2021 e não saber o que se passou quanto às doações, por não ter presenciado.

Testemunha II, refere ser solicitador e conhecer as partes envolvidas no processo.

Afirma que o A. se lhe queixou de algumas situações do lar, que não o levavam às consultas e que não estava satisfeito com as pessoas do lar. Que o transportou, várias vezes, de táxi, dizendo-lhe que ajudava os outros no lar.

Instado em concreto do que o A. se queixava, refere que o mesmo não lhe contou pormenores.

Afirma também que o A. lhe referiu ter um carro, mas que não deixavam que o utilizasse e que ia sair e ia para a casa dele.

A instâncias do mandatário dos RR., refere que o A. inicialmente estava satisfeito, no lar, mas depois deixou de estar, por o tratarem mal, não tendo em concreto referido quais eram esses maus tratos.

Testemunha FF, refere conhecer o A. e não conhecer os RR.

Ele, referindo-se ao A., sublinhado é nosso, saiu do lar e foi para casa dele. À noite foi visitá-lo. Estava com o cabelo e com a barba compridos, não estava bem arranjado e com roupa velha.

Ficou lá em casa 1 mês, depois saiu por ter um problema de saúde. Foi de ambulância para o hospital onde esteve algum tempo e não sabe que tipo de tratamento lhe foi feito. Depois foi para os cuidados continuados e depois para um lar em ...

A instâncias do mandatário dos RR. refere que estes intentaram uma ação contra si, mas isso não a impede de dizer a verdade.

Testemunha GG, conhece o A. e que os RR. intentaram uma ação contra si, mas tal não a impede de dizer a verdade.

Refere ser acompanhante do A. e que o conheceu no lar. Enquanto esteve no lar ia de vez enquanto ver as obras da casa. Há cerca de dois anos que deixou de estar no lar. O A. chegou a casa, vestido com roupa suja. Não viu quem o levou. E apresentava-se com cabelo e barba compridos e fragilizado, vinha de chanelos e cheirava a suor. Tinha um cheiro desagradável e dava ideia que não tinha tomado banho a algum tempo.

O A. referiu-lhe que o tinham expulso do lar. A partir dessa data quem tratou dele foi ela (testemunha) e a sua irmã. Que o A. também dizia que as condições do lar não eram as melhores e que se sentia mal tratado, que a segurança social tinha ido fazer uma inspeção ao lar, que não o deixavam sair do quarto e que o seu carro tinha desaparecido.

O A. teve um AVC foi de ambulância para o hospital de ..., depois foi transferido para o hospital de ... Não tem conhecimento que alguém do lar o fosse visitar.

A instâncias do mandatário dos RR., refere que esteve 1 mês em casa delas (testemunha e sua irmã) e que apareceu de chanelos, o que já acontecia ultimamente.

Testemunha HH, que conhece o A. há cerca de três anos, conheceu-o quando fizeram o arrendamento da casa e que os RR. intentaram uma ação contra si, mas tal não a impede de dizer a verdade.

Quando for habitar a casa com a irmã o A. era um homem limpo, fazia a barba todos os dias e tomava banho.

Ele onde dia chegou a sua casa (dela testemunha), não sabe quem o levou, como não tinha onde ficar ficou em sua casa. Vinha com cabelo, de barba grande e de chinelos. Esteve em casa delas, cerca de 1 mês. Teve um problema de saúde e foi de ambulância para o hospital. Após sair do hospital foi para uma casa de repouso em ..., não tendo recuperado muito, indo depois para um lar em ...

Disse-lhe que era mal tratado no lar (lar onde estava antes) e que o expulsaram.

Referiu que ele saiu do carro com auxilio.

Testemunha MM, refere conhecer o A.

Esteve num lar. Depois soube que tinha sido expulso, por ter ouvido dizer. Quando o viu estava triste, face ao que se passou, e também ouviu dizer que tinha tido um AVC.

CC, sacerdote, em declarações de parte referiu:

O A. e a mulher instalaram-se no lar logo na abertura, no inicio de 2011. Não o conhecia e teve conhecimento do lar, pela publicidade feita. Viu as instalações do lar, e quis logo ficar nesse dia. Contudo, como não havia condições foi para o lar no dia seguinte. Nessa altura não falaram em pagamentos. Só mais tarde, 2 ou 3 meses depois e como ele nada dizia a respeito de pagamentos, chegaram junto dele e falaram. Nessa altura, referiu que ia fazer uma doação à instituição, não como forma de pagamento, e por isso, não lhe pediram pagamento e deixaram correr as coisas. Adoeceu e foi para a CUF, ao regressar referiu que estava muito melhor no lar, do que no hospital da CUF e se pagava na CUF também pagava ao lar, por sua iniciativa pagou duas mensalidades de 600,00€ cada, tendo sido ele que fez o valor e fê-lo livremente. Ele pensava que não pagava enquanto lá estivesse.

Durante a pandemia ele não entendia e só queria sair, o que não lhe era permitido.

Após a pandemia ele quis sair e foi nessa altura que referiu que ia para a sua casa de ... e foi nessa altura que rescindiram o contrato. Ele não foi expulso, era uma pessoa muito inconstante. Quando saiu do lar a casa dele estava livre só arrendou a mesma depois. Não tinha a chave da parte debaixo, que estava em seu poder (dele declarante), por terem feito obras, por a casa estar degrada. Sendo as mesmas feitas durante a pandemia. As obras foram feitas quando ele estava no lar. O objectivo dele era arrendar os quartos e ficar ali. Quando saiu levou todos os seus haveres numa carrinha que o foi buscar.

Ficou na casa de ... até ficar doente. Depois de ter saído lar, veio pedir-lhes para passarem um recibo das rendas, por ele recebidas, tendo-lhe sido dito que isso não podia ser, porque a instituição não tinha recebido qualquer dinheiro.

Nas escrituras da doação foi-lhe referido se tinha consciência de que estava a dar as casas à instituição tendo referido que sim. Mais tarde passou abdicou do usufruto a favor da instituição, para não pagar o IMI e fê-lo de forma livre e consciente.

Quanto aos 40.000,00€ afirma ter sido uma proposta espontânea dele. O eletricista em conversa disse-lhe (a ele declarante) para colocarem uns painéis pois poupariam muito dinheiro em electricidade. Ele (declarante) referiu-lhe que a instituição não tinha dinheiro para suportar tal despesa. Então o A. referiu que isso não era problema, porque ele daria o dinheiro para os painéis.

Ele já tinha dificuldade em conduzir e teve várias batidas, e de forma livre colocou o carro em nome da instituição, isto na altura da pandemia.

Não está com ele desde que saiu do lar. Só soube que tinha estado no hospital quando ligaram para o lar a perguntar se o lar o podia receber. Nessa altura foi referido que não porque não havia quartos vagos.

Refere ainda que o A. pretendia voltar a ser sacerdote.

A instancias do seu mandatário, refere, que o carro ficou encostado que não faziam qualquer reparação ao mesmo, e disseram-lhe se queria arranjar o carro teria de ser ele a suportar as despesas. Afirma, ainda, ter-lhe dado as chaves do seu escritório, e que em confissão, lhe referiram que ele (referindo-se ao A.) uma noite pelas duas da manhã foi ao escritório, tendo-se inteirado de tudo, referindo nunca o ter confrontado com isso. Fez uma queixa à segurança social.

Instado pelo mandatário do A. refere não conhecer qualquer declaração de venda do carro em nome do seu sobrinho (dele declarante). Na altura em que o A. esteve no hospital uma assistente social fez uma chamada para o lar a perguntar se o A. poderia ir para o mesmo, referiram-lhe não ser possível nessa altura por não haver vaga.

Confrontado com a carta junto aos autos com a P.I. como doc. 8, com a epigrafe Denúncia do contrato celebrado com V.Ex.ª em 1 de setembro de 2017onde se refere “Nos termos e para efeitos do sisposto na cláusula “XV” n.º 2, do contrato celebrado com V.Ex.ª em 1/9/2019, somos pela presente missiva a denúnciar o mesmo.

Mais informamos que a presente denúncia produz efeitos 30 (trinta dias) após a recepção da presente comunicação …”, referiu que o fizeram no seguimento da conversa que tinham tido com ele sobre a denúncia do contrato. Nesta altura, a dr.ª Juiz referiu “mas não foi bem isso que disse de manhã, onde referiu que ele saiu por vontade própria não expulso”.

Face a tal questão, explicou que a carta veio a confirmar o seu desejo (dela A.) e foi escrita para evitar problemas para a instituição. A carta alude à data de 2017, porque no inicio entraram muitas pessoas, e os contratos não foram logo feitos.

Quando chegou ao lar não estava lá ninguém foi ele (declarante) que o fundou. O diretor do mesmo era o dr.º OO, ele era presidente da direção.

Nesta altura o mandatário do R. (aqui declarante) referiu ter sido ele quem escreveu a carta e fê-lo daquela forma para evitar problemas para a instituição até por ter havido já uma queixa.

O depoente quanto à carta refere, ainda que a mesma se destinou a evitar problemas para a instituição e ao mesmo tempo servia para a segurança social saber que estava um quarto vago.

Testemunha PP, diretor do Lar ..., desde 2016 refere conhecer o A.

Afirma que as doações foram feitas em data anterior à sua ida para o lar. Que o carro do A. não lhe foi doado. Proibiram o A. de conduzir o carro, por ter tido vários acidentes enquanto conduzia, exigindo que a instituição pagasse os arranjos. Sendo que, o A. um fim de semana, em período de isolamento por força da Covid 19, pegou no carro e saiu do lar, tendo ele (testemunha) telefonado ao Delegado de Saúde, tendo-lhe sido referido para o impedir de sair e que o colocassem em isolamento.  

Refere que o A. estava normal até sair do lar.

O A. pediu-lhe para passar recibos de arrendamento das suas casas, que já tinha doado, tendo-lhe sido referido que não era possível. Ele (referindo-se ao A.) arrendou as casas depois da doação, quando as mesmas já eram da instituição.

O A. esteve hospitalizado e quando regressou ao lar referiu, se tinha de pagar no hospital, também pagaria à instituição, tendo pago duas mensalidades de 600,00€ cada, tendo-lhe passado os recibos. O A. entrou em 2011/2012 no lar, não sabe se nessa altura foi feito algum contrato.   

Testemunha LL, refere conhecer o A. e ser tesoureiro da instituição.

O Lar abriu em 2011, o A. fez doações a favor do mesmo.

Testemunha NN, notária.

Refere que foi feita doação a favor do centro social e que a escritura foi lida e explicada ao A. que compreendeu.

                                                                       *

Da conjugação da prova na sua globalidade não vemos razão para alterar a matéria de facto fixada em 1.ª instância.

Na verdade, a testemunha PP foi muito claro e convincente ao referir que o A. um fim de semana, em período de isolamento por força da Covid 19, pegou no carro e saiu do lar, tendo ele (testemunha) telefonado ao Delegado de Saúde, tendo-lhe sido referido para o impedir de sair e que o colocassem em isolamento. 

Aliás, o referido pelas testemunhas EE, FF, GG e HH, sobre a ida do A. para a casa de ..., reporta-se a data temporal, que nada tem haver com a data temporal aludida no facto provado com o n.º 16, pois reporta-se a data pós pandemia, enquanto a matéria dertida no ponto 16 da matéria de facto provada se reporta ao período pandémico.

Diga-se, ainda, que advogamos que para a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes, o que não sucedeu no caso em apreço, antes pelo contrário, da audição da prova, resulta que a matéria de facto foi apreciada, de acordo com a prova efetuada e com as regras da experiência da ciência e da lógica.

Por tudo o exposto, mantemos inalterada a matéria fixada em 1.ª instância.

Aqui chegados, passemos ao ponto seguinte.

                                                           **

C) – Saber se a sentença recorrida deve ser revogada e substituído por acórdão, nos termos pugnados pelo Recorrente, revogação da doação por indignidade.

Segundo o recorrente a sentença recorrida deve ser revogada, na medida em que, segundo o mesmo, a revogação da doação, pode por ingratidão (cfr. art.ºs 970.º e 974.º, do C.C.) e esta não se verifica apenas nos casos previstos no art.º 2034º, mas, também, por força do art.º 2166º-1.c), designadamente quando o donatário, sem justa causa, recusara ao doador os devidos alimentos e o conveniente tratamento, quer por ser uma das pessoas obrigadas a prestá-los, ex vi do art. 2009º, quer por se ter transmitido para o donatário tal obrigação, atento o art. 2011º-2 do CC, sobretudo se os bens doados puderem assegurar ao doador meios de subsistência e este careça deles, como é o caso.

Diga-se, desde já, que a matéria de facto, a ter em conta, para a questão em apreço, é a fixada em 1.ª instância, desde logo, por o recorrente não obter vencido no recurso da matéria de facto.

Dito isto, passemos analisar a questão.

Saliente-se, desde já, que a sentença recorrida, abordou a questão da ingratidão, em ambas as vertentes aludidas, pelo recorrente, tendo explicado a(s) razão(ões), da não verificação de qualquer das situações.

Diremos algo a respeito da doação.

Nos termos do art. 940º,1 CC, “Doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente”.

Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela (em anotação a este artigo), são 3 os requisitos exigidos no art. 940º para que exista uma doação: a) disposição gratuita de certos bens ou direitos, ou assunção de uma dívida, em benefício do donatário, ou seja a atribuição patrimonial sem correspectivo; b) diminuição do património do doador; c) espírito de liberalidade”.

E, mais adiante, explicando este regime: “forçoso é que a atribuição patrimonial seja gratuita, e que não exista, portanto, um correspectivo de natureza patrimonial. Pode existir, porém, um correspectivo de natureza moral, sem que o acto perca a sua gratuitidade, assim como podem existir encargos impostos ao donatário (cláusulas modais), que limitem o valor da liberalidade”.

E ainda: “exige-se, por último, o espírito de liberalidade por parte do disponente.

A liberalidade implica, em regra, a ideia de generosidade ou espontaneidade, oposta à de necessidade ou de dever. Aquele que cumpre, por exemplo, uma obrigação natural, não faz uma doação. (…) O espírito de liberalidade é um elemento subjectivo, sempre dependente do estado psicológico do doador, ao contrário da gratuitidade que depende da estrutura típica de cada um dos negócios jurídicos, tal como aparecem regulados na lei”.

A doação é, regra geral, um contrato formal, já que o art.º 947º, nº1 do Cód. Civil, na redacção do D.L. 116/2008, de 4.7. condiciona a validade da doação de imóveis à sua celebração por escritura pública ou por documento particular autenticado (sem prejuízo do disposto em lei especial).

Previu também a lei, no art.º 958º e segs,. que as partes possam incluir no contrato determinadas cláusulas acessórias, dentre as quais a reserva de usufruto.

Aliás, é precisamente no art.º 958º que se estabelece que o doador possa reservar para si ou para terceiro o usufruto dos bens doados, o que não dispensa, porém, o donatário do ónus de aceitar a doação da nua propriedade, o que tem de fazer em vida do doador (art.º 945º, nº1).

Por conseguinte, naquele caso, o doador, num único negócio jurídico limita o objecto da liberalidade à nua propriedade, retendo, para si, o direito de gozo temporário e pleno da coisa que constitui o usufruto.

A lei admite igualmente a possibilidade de as doações serem oneradas com encargos ( art.º 963º, nº1 ) que consistem em restrições impostas ao beneficiário da liberalidade que o obriga à realização de determinada prestação no interesse do autor da liberalidade , de terceiro ou do próprio beneficiário , podendo, por isso, consoante os casos, revestir tanto a natureza de uma obrigação em sentido técnico, como a de um ónus jurídico (cfr. L. Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, Vol.III, 2015, pag. 184/185). Caso o encargo não venha a ser cumprido, quer o doador quer os seus herdeiros poderão resolver a doação mas apenas se esse direito lhes tiver sido conferido pelo contrato ( art.º 966º).

Quaisquer dessas estipulações, i.e. quer a reserva de usufruto, quer os encargos, terão de constar também do documento legalmente exigido para a celebração do contrato de doação, sob pena de invalidade (art.º 1440º do Cód. Civil conjugado com o art.º 80º, nº1 do Código do Notariado e art.ºs 219º, 220º e 221º, nº1 do Cód. Civil).

Por outro lado, enquanto a doação não for aceite, pode o doador livremente revogar a sua declaração negocial (cfr. art.º 969); uma vez aceite, a mesma torna-se irrevogável, a não ser que se verifique a ingratidão do donatário, art.º 970º.

Por seu turno, o art.º 974º explicita que a doação pode ser revogada por ingratidão quando o donatário se torne incapaz, por indignidade, de suceder ao doador ou quando se verifique alguma das ocorrências que justificam a deserdação.

“O conceito jurídico de ingratidão do donatário tem muito pouco a ver com o seu correspondente significado na linguagem comum, sendo muitíssimo mais restrito.” (cfr. L. Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, Vol. III, 2015, pag. 208).

Com efeito o sentido a atender encontra-se vertido noutros preceitos legais, reportado a uma situação que se configurada quanto a um herdeiro seria qualificada como justificativa de indignidade, nos termos do art.º 2034º ou de deserdação, art.º 2166.

“ Face ao carácter taxativo da enumeração legal não é possível fundamentar o acto revogatório nem em comportamentos moralmente censuráveis não enumerados nas normas legais, nem sequer na “ ingratidão” ou “ indignidade” de pessoas distintas do donatário” (cfr. Nuno Manuel Pinto Oliveira, in “ Scientia Iuridica, Tomo L, nº 290, Maio/Agosto 2001, pag.157).

As causas de constituição do direito potestativo de revogação das doações podem ser ordenadas em três categorias:

“Em primeiro lugar, aparecem-nos os casos de condenação do donatário por crime cometido contra a pessoa, os bens ou a honra do doador, ou do seu cônjuge, descendente, ascendente, adoptante ou adoptado (art.º 2166º, nº1 alíneas a) e b) e art.º2034º, alíneas a) e b) do Cód. Civ.), diga-se desde já, não ser o caso em apreço.

A alínea a) do n.º 1 do art.º 2166º, refere-se aos casos de crime doloso cometido contra a pessoa, bens ou honra do doador, ou do seu cônjuge, descendente, ascendente, adoptante ou adoptado, desde que ao crime corresponda a pena superior a seis meses de prisão. A alínea a) do art.º 2034ºcompleta a hipótese da alínea a) do nº1 do art.º 2166º, concedendo ao doador o direito potestativo de revogar a doação em caso de cumplicidade ou de tentativa de homicídio contra as pessoas indicadas.

A alínea b) do nº1 do art.º 2166º refere-se às hipóteses de condenação do donatário por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as pessoas acima mencionadas. A alínea b) do art.º 2034º (condenação por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas por crime a que corresponda pena de prisão superior a dois anos) é neste contexto consumida pela previsão normativa da alínea b) do nº1 do art.º 2166º, formulada em termos mais abrangentes , por não exigir que ao crime corresponda pena superior a dois anos.” (cfr. Nuno Manuel Pinto Oliveira, in “ Scientia Iuridica, Tomo L, nº 290, Maio/Agosto 2001, pag.158).

“Em segundo lugar, a remissão do art.º974º, engloba as hipóteses de recusa injustificada de alimentos ao autor da sucessão ou aos seus herdeiros ( art.º 2166º, nº1 c) ) . O conceito de “recusa injustificada de alimentos” há-de ser preenchido com o auxílio do texto do art.º 2011º do Código Civil : o donatário ou os seus herdeiros só devem alimentos ao doador na medida em que os bens doados pudessem assegurar ao doador meios de subsistência e este carecesse deles” (cfr. Nuno Manuel Pinto Oliveira, in “ Scientia Iuridica, Tomo L, nº 290, Maio/Agosto 2001, pag.158).

“Em terceiro e último lugar, a remissão do art.º 974º engloba também os casos de “atentado contra a liberdade de testar” enunciados na alínea c) do art.º 2034º e de “atentado contra o próprio testamento” indicados na alínea d) do artigo citado.

A categoria do “atentado contra a liberdade de testar” inclui as hipóteses em que o donatário “por meio de dolo ou de coacção” induziu o autor da sucessão a fazer, revogar ou modificar o testamento, ou disso o impediu (art.º 2034º, c) do Cód. Civ); a categoria do “atentado contra o próprio testamento” integra as situações em que o donatário “ dolosamente subtraiu , ocultou, falsificou ou subtraiu o testamento, antes ou depois da morte do autor da sucessão, ou se aproveitou de qualquer desses factos ( cfr. art.º 2034º, al. d) do Cód. Civil).” (cfr. Nuno Manuel Pinto Oliveira, in “ Scientia Iuridica, Tomo L, nº 290, Maio/Agosto 2001, 160/161).

Sendo estes os casos de revogação taxativamente fixados na lei, isto significa que, como dissemos, fora deles, não há possibilidade de o doador revogar a doação.

“ A revogação por ingratidão do donatário corresponde, pois, a uma hipótese equiparável à resolução do contrato, com um regime particular, nomeadamente quanto ao exercício do direito ( art.º 976º) e aos efeitos extintivos ( art.º 978º, nº1) e não se poderia enquadrar numa típica resolução por incumprimento, na medida em que a ingratidão dificilmente corresponderia à falta de realização de prestações contratuais por parte do donatário mas pode entender-se que se confere a uma das partes ( doador) o direito de se desvincular invocando um motivo ( ingratidão) que vem, posteriormente, a pôr em causa o equilíbrio contratual” ( Pedro Romano Martinez in “ Da cessação do Contrato “, 2ª ed., pag.297).

Cabe referir, que situações há em que o legislador nem sequer permite a revogação por ingratidão do donatário (cfr. art.º 975º).

Aplicando tais ensinamentos, que advogamos, ao caso em apreço, temos para nós não assistir razão ao recorrente.

Por um lado, por a indignidade terá de assentar na prática de actos ilícitos cometidos contra o autor das doações realidade que, no nosso juízo, a petição inicial nem sequer continha e que, certamente, a matéria de facto dada como provada não consente.

Por outro lado, a deserdação, para além de integradora de comportamentos ilícitos, está prevista para os casos em que o donatário, sem justa causa, recusa ao doador ou ao seu cônjuge os devidos alimentos (cfr. artigo 2166.º, n.º 1, alínea c) do CC), situação jurídica que não se enquadra ao vertente caso, dado que nenhum dos RR estava obrigado a prestar alimentos ao Autor, como bem refere a sentença recorrida.

Destarte, ajuíza-se que a acção terá de improceder também na parte em que o Autor pede a revogação das doações feitas aos Réus, por ingratidão.

Face ao exposto e pelas razões expostas, não vislumbramos assistir razão ao recorrente, nem razão para revogar a sentença recorrida.

                                                           **

                                                4. Decisão

Pelo exposto, decide-se, por acórdão.

A– Julgar improcedente a nulidade da sentença recorrida, como referido e a não verificação da exceção de caso julgado.

B)– Rejeitar o recurso da matéria de facto quanto aos pontos n.ºs 20 a 24, da matéria de facto provada, face às razões supra.

C)- Julgar improcedente o recurso da matéria de facto quanto ao ponto 16 da matéria provada, pelas razões supra.

D)- Julgar o recurso improcedente e manter nos seus termos a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente.

Coimbra, 23/4/2024

Pires Robalo (relator)

Sílvia Pires (adjunta)

António Marques Fernandes (adjunto)