ACÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO POR DANOS DECORRENTES DA RUPTURA CONJUGAL
COMPETÊNCIA
Sumário

A competência para a tramitação e julgamento das acções de indemnização por danos decorrentes da ruptura conjugal está atribuída aos tribunais/juízos com competência cível e não aos juízos de família e menores.

Texto Integral

Apelações em processo comum e especial (2013)

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Relator: Falcão de Magalhães
1.º Adjunto: Des. Pires Robalo
2.º Adjunto: Des. Sílvia Pires
Apelação n.º 211/22.8T8CLD-B.C1
 
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra[1]:
 
I - A) - 1) – AA, referindo ter sido casada com BB, desde ../../2012 e até ao divórcio de ambos – já transitado em julgado - veio, em 5/2/2024, invocando o disposto no artº 1792° n° 1 do Código Civil, propor acção com processo comum contra esse seu ex-cônjuge, o que fez no Juízo de Família e Menores ....
Inconformada com o divórcio, a que sempre se opôs, tendo este ocorrido por exclusiva vontade do ora Réu, terminou a petição inicial, pedindo a condenação do Réu numa indemnização a seu favor “….pelos danos
patrimoniais e não patrimoniais decorrentes da rutura conjugal, causada única e simplesmente pelo R., no montante de €30.000,00 por cada ano de solidão, sofrimento, amargura, desalento e todos os pesadelos existenciais que cairão sobre uma esposa repudiada...sobretudo de um modo tão brusco e inexplicável…”, indemnização essa, totalizando o “…montante de €600.000,00, referente a vinte anos de vida que perdeu de um casamento que deveria ter durado uma vida, acrescida dos juros de mora à taxa legal…”.
 
2) - Após ter sido concedido o contraditório à Autora para que se pronunciasse sobre essa matéria, a Mma. Juiz do Juízo de Família e Menores ..., por despacho de 20/2/2024, julgou verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria e, em consequência, absolveu a Réu da instância. *
B) - A Autora, inconformada com tal decisão, recorreu para esta Relação, oferecendo, a findar a alegação recursiva, as seguintes conclusões: «36. Os juízos de família e menores são os tribunais mais adequados para a tramitação e julgamento das ações de indemnização decorrentes da rutura ou dissolução do casamento.
37. Foram violados os artigos 1792° n° 1 do Código Civil e 122° da LOSJ com a interpretação restritiva que o douto despacho fez destes preceitos no que diz respeito à competência material para o julgamento da presente ação.
38. Deverá o artigo 122° da LOSJ ser interpretado, não em termos restritivos, mas sim em termos amplos, de forma a abranger igualmente as ações de indemnização decorrentes da rutura ou dissolução do casamento.
39. O artigo 122° da LOSJ é inconstitucional, quando interpretado no sentido de excluir a competência material dos juízos de família e menores para a tramitação e decisão das ações de indemnização decorrentes da rutura ou dissolução do casamento, por violação do princípio do Acesso ao Direito decorrente do artigo 20° n° 1 da C.R.P.
40. Deste modo, a enumeração do referido normativo legal deverá ser considerada como meramente exemplificativa, incluindo as ações em que, face à estrutura, causa de pedir e pedido, se deva considerar que os juízos de família e menores serão os mais vocacionados para as apreciar.
 
41. A alínea g) do n° 1 do referido artigo 122° da LOSJ deverá ter "o sentido e desiderato de abranger toda e qualquer acção que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida".
42. O artigo 1792° n° 1 do Código Civil é inconstitucional pelas mesmas razões, quando interpretado no sentido de excluir, à partida, a competência material destes tribunais para a tramitação e julgamento destas ações.
43. Apenas se justificará a remessa para os meios comuns quando exista a necessidade de uma mais larga indagação e discussão da matéria de facto.
44. O Juízo de Família e Menores é o tribunal mais adequado para esta ação porque foi nele que correu a ação de divórcio, o inventário e o procedimento cautelar de arrolamento, existindo, portanto, nestes processos o acervo probatório necessário para a boa decisão da causa.
45. Assim, deverá manter-se a competência material deste Juízo de Família e Menores, correndo a presente ação, autonomamente, por apenso à de divórcio, na qual se funda a pretensão da mesma, e não fazendo sentido remeter o processo para a jurisdição cível […]». * II - As questões:
Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do novo Código de Processo Civil - doravante NCPC[2] -, o objecto dos recursos delimitase, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, “questões”, para efeito do disposto no n.º 2 do artº 608º do NCPC, são apenas as que se reconduzem aos pedidos
 
deduzidos, às causas de pedir, às excepções invocadas e às excepções de que oficiosamente cumpra conhecer, não podendo merecer tal classificação o que meramente são invocações, “considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes”[3] e que o Tribunal, embora possa abordar para um maior esclarecimento das partes, não está obrigado a apreciar.
No âmbito deste recurso importa apreciar a questão que foi julgada em desfavor da Recorrente e que se encontra no âmbito do respectivo objecto, ou seja, a questão de saber do acerto do Tribunal “a quo”, no que concerne à decisão da sua falta de competência, em razão da matéria, para o conhecer da acção em causa.
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III – Como se sabe, de acordo com o entendimento expendido, entre outros autores, por Manuel de Andrade ("in" Noções Elementares de Processo Civil, I, reedição de 1979, pág. 91) e seguido em numerosos Acórdãos do STJ (v.g., Ac. do STJ, de 20/02/90, no BMJ n.º 394, pág. 453, Ac. do STJ, de 27/06/89, no BMJ n.º 388, pág. 464, e Ac. do STJ, de 06/06/78, no BMJ n.º 278, pág. 122), a competência do tribunal afere-se pelos termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos).
No que respeita a este entendimento e versando a competência material, vejam-se, no âmbito das Relações, os Acórdãos da Relação de Coimbra, de 25/6/2015,[4] e da Relação de Lisboa, de 26/6/2019,[5] proferidos, respectivamente, nos autos de apelação nºs 422/14.0TTLRA.C1 e nºs. 7840/17.0T8CBR.L1-4.
Como também salienta Maria Helena Barbosa Ferreira Canelas[6] (“A
AMPLITUDE DA COMPETÊNCIA MATERIAL DOS TRIBUNAIS
ADMINISTRATIVOS     EM    SEDE    DE    ACÇÕES    RELATIVAS     A
RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL” in, JULGAR - N.º 15 –
 
2011, pág. 104): «[…] É a estrutura da causa apresentada pelas partes que fixa o tema decisivo para efeitos de competência material, o que significa que é pelo “quid decidendum” que a competência se afere, sendo irrelevante qualquer tipo de indagação atinente ao mérito do pedido formulado, ou seja, sendo irrelevante o “quid decisum” […]».
Ora, independentemente do bem fundado do peticionado, o certo é que a Autora, invocando o disposto no artº 1792° n° 1 do Código Civil, pretende ser indemnizada pelo Réu por danos que lhe diz terem sido causados pela frustração do casamento originada por um divórcio que diz ter sido concretizado, exclusivamente, devido à vontade do Réu.
Diferentemente da indemnização prevista no nº 2 do artigo 1792 do CC – que não está aqui em causa – cujo pedido deve ser deduzido na própria acção de divórcio [e, portanto, nos juízos de família e menores – artº 122º, nº 1, c), da LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (Lei 62/2013, de 26 de Agosto)] – o nº 1 desse artigo estipula que “O cônjuge lesado tem o direito de pedir a reparação dos danos causados pelo outro cônjuge, nos termos gerais da responsabilidade civil e nos tribunais comuns”. 
Ora, a referência aos “termos gerais da responsabilidade civil” e, em especial, aos “tribunais comuns”, exclui os juízos de família e menores, que têm competência especializada (cfr. artºs 81º nº 1 e nº 3, g) da LOSJ). Por outro lado, a acção para reparação dos danos, aludida no artº 1792 do CC, não cabe na previsão de qualquer das alíneas do nº 1 do artº 122 LOSJ, que definem a competência dos juízos de família e menores, nem na previsão do nº 2 de tal artigo.
As normas são o que são e não o que as partes pretendem que sejam, não sendo de interpretar o artº 122 LOSJ, de forma a abarcar a acção para
 
peticionar a reparação de que trata o nº 1 do artº 1792 do CC, norma esta que, claramente, atribui essa competência aos “tribunais comuns”.
A atribuição da referida competência aos tribunais comuns em nada contraria as normas ou os princípios constitucionais, v.g., a norma do artº 20 da CRP, que garante o acesso ao direito, porquanto a parte pode amplamente exercer o direito previsto no nº 1 do citado artº 1792 desde que, para tal, proponha a respectiva acção no tribunal competente para a apreciar.
Atente-se no que se escreveu no Acórdão da Relação de Évora, de 26/01/2017, Apelação nº 18/16.1TBSRP.E1[7]:
«[…] a) Em face do disposto no n.º 1 do art.º 1792º do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, é admissível a indemnização do cônjuge lesado, por danos não patrimoniais resultantes da violação dos deveres conjugais na constância do património, em particular se essa violação constituir simultaneamente violação dos direitos de personalidade;
b) Para além disso, também é devida indemnização ao cônjuge lesado, por danos não patrimoniais resultantes da cessação do vínculo matrimonial, por divórcio;
c)Os danos não patrimoniais acima referidos, devem ser apreciados nos termos gerais da responsabilidade civil aquiliana, tendo em conta o princípio geral consagrado no art.º 483º do Cód. Civ. e a sua relevância em termos da tutela do direito, consagrada no art.º 496º do Cód. Civ.;
d)Tais indemnizações devem ser requeridas em acção própria a interpor nos tribunais comuns e independentemente do matrimónio já ter sido dissolvido, por divórcio.
Paralelamente à indemnização por danos não patrimoniais, no quadro acima traçado, pode o cônjuge lesado demandar o outro cônjuge para o pagamento dos danos patrimoniais decorrentes da prática de factos ilícitos violadores dos deveres conjugais, concomitantes aos direitos de personalidade, ocorridos na constância do
 
matrimónio, por exemplo pela prática da violação da integridade física do cônjuge agredido, e ainda pelos danos patrimoniais decorrentes da dissolução do casamento, por divórcio (art.ºs 1792º, n.º1, 1672º e 483º, todos do Código Civil), que devem ser peticionados em acção própria a intentar nos tribunais comuns.
Concluindo, nesta parte, é legítimo ao cônjuge cuja lesão decorra da prática, pelo outro cônjuge, na constância do matrimónio, de factos ilícitos violadores dos deveres conjugais, que consubstanciem também a violação dos seus direitos de personalidade, demandar o cônjuge lesante, peticionando indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, nos termos gerais da responsabilidade civil aquiliana.
Tal acção deve ser intentada nos tribunais comuns e é independente da dissolução do matrimónio por divórcio e, consequentemente, dos factos que serviram de fundamento à sentença que o decretou. […]». (o sublinhado é nosso). Esta “independência” que se refere na parte final do texto que se acaba de transcrever, traduz bem a falta de préstimo suficiente do processo de divórcio para efeitos de a acção comum aludida no citado art. 1792º, nº 1, correr por apenso a ele, e, portanto, no juízo de Juízo de Família e Menores que decretou o divórcio.
Também a Prof. Paula Távora Vítor, considera, inequivocamente, que “Para a acção prevista no art. 1792º/1 têm competência os Tribunais comuns, o que (…) se apresenta em coerência com a sua competência para tratar das matérias que envolvem responsabilidade civil aquiliana (…) e não o específico familiar. […]» (pág. 572, do Código Civil Anotado- Livro IV - Direito da Família,[8] obra com a coordenação da Exma. Srª Cons. Clara Sottomayor). (o itálico e sublinhado são nossos).
Concluindo, dir-se-á o Juízo de Família e Menores ... decidiu acertadamente em negar a sua competência material para apreciar a
 
acção em causa, declarando verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria.
Contudo, como é sabido, a absolvição da instância decorre de uma patologia processual que, quando reportada ao sujeito passivo da relação em causa, pressupõe que o mesmo já esteja na lide. Isto porque, embora a instância se inicie com o acto da proposição da acção, este, salvo disposição legal em contrário (v.g. interrupção da caducidade), não produz efeitos quanto ao réu senão depois da citação deste (artº 259º, nº 2 do NCPC). Por isso é que a infracção das regras da competência em razão da matéria, resultando na excepção dilatória insuprível da incompetência absoluta, dá lugar, quando for evidente e detectada no despacho liminar – que foi o que aqui ocorreu -, não à absolvição do Réu da instância, mas antes ao indeferimento liminar da petição (artºs 96º, 99º, 577º, a) e 590, nº 1, do NCPC).
Assim, é de confirmar a decisão recorrida no que respeita à incompetência absoluta do Juízo de Família e Menores ... para apreciar a acção em causa, mas há que alterar a consequência da procedência dessa excepção dilatória insuprível, que, no estado dos autos, não é a absolvição do Réu da instância, mas antes o indeferimento da petição inicial. *
IV - Em face de tudo o exposto, os Juízes Desembargadores desta Relação de Coimbra, julgando a apelação improcedente:
- Confirmam a decisão do Juízo de Família e Menores ... em julgar verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria;
- Revogam o despacho recorrido, na parte em que absolveu o Réu da instância e, em lugar dessa absolvição, indeferem a petição inicial.
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Custas pela Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia (artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6, 663º, nº 2, todos do NCPC).
 
23/4/2024[9]
 
               (Luiz José Falcão de Magalhães)
    (António Domingos Pires Robalo)
                   (Sílvia Maria Pereira Pires)
 
                                                 

[1] Segue-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.

[2] Código este aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/06, sendo que, o código que o antecedeu, será aqui referenciado com a sigla “CPC”, embora esta, excepcionalmente, possa também respeitar ao novo CPC, nos casos de transcrição de texto, em que tal sigla já foi utilizada para o identificar.

[3] Cfr. Acórdão do STJ, de 06 de Julho de 2004, Revista nº 04A2070, embora versando a norma correspondente da legislação processual civil pretérita, à semelhança do que se pode constatar, entre outros, no Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e no Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586, todos estes arestos consultáveis em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase, tal como aqueles que, desse Tribunal e sem referência de publicação, ou com uma outra, vierem a ser citados adiante.

[4] http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase.

[5] http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf?OpenDatabase.

[6] “A AMPLITUDE DA COMPETÊNCIA MATERIAL DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS EM SEDE DE ACÇÕES RELATIVAS A RESPONSABILIDADE
CIVIL CONTRATUAL”, in, JULGAR - N.º 15 – 2011, pág. 104.
[7] Consultável em http://www.dgsi.pt/jtre.nsf?OpenDatabase. 
[8] Almedina, 2020.

[9] Processado e revisto pelo Relator.