PRÁTICA DE ACTOS PROCESSUAIS ATRAVÉS DE CORREIO ELECTRÓNICO
ASSUNÇÃO DO RISCO QUANTO À PROVA DA EFECTIVA CHEGADA A TRIBUNAL
Sumário

O correio eletrónico, meio que não está expressamente previsto no Código de Processo Civil, para os atos processuais, coloca a parte utilizadora dele (sem mandatário) na posição de assumir por inteiro os seus inerentes riscos, quanto à prova da sua efetiva chegada ao tribunal.

Texto Integral

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            Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

Banco 1..., S.A., intentou ação contra AA, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 17.313,74, acrescida de juros legais vencidos e vincendos, à taxa legal, após a citação até efetivo e integral pagamento.

Alega, para tanto, em síntese:

No dia 5 de agosto de 2022, celebrou com a ré um contrato de mútuo através do qual lhe concedeu um financiamento no montante de € 14.379,36. O valor financiado seria pago pela ré ao autor em 84 prestações mensais e sucessivas, no montante de € 248,76 cada uma.

Em 27.09.2022, a ré pagou a quantia de € 325,73, em 26.10.2022, pagou € 248,76 e em 28.11.2022 pagou € 248,76, nada mais tendo pago ao autor depois desta data.

Face ao atraso nos pagamentos, o autor notificou a ré da integração em PERSI, por carta registada de 24.02.2023 e do valor do atraso de € 531,04, tendo também, por carta registada de 15.03.2023, informado a ré para o encerramento do PERSI, por falta de resposta a solicitação para análise do processo e do valor em atraso de € 802,71.

Não obstante as inúmeras interpelações levadas a cabo pelo autor, a ré não efetuou

mais qualquer pagamento.

No dia 26.07.2023, o autor resolveu o contrato, resolução esta que foi comunicada à ré.

A ré, regularmente citada, apresentou contestação, que foi julgada extemporânea, pelo que foram considerados confessados os factos articulados pelo autor.

Foi proferida sentença a julgar a ação totalmente procedente, condenando a Ré no pedido.


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           Inconformada, a Ré recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

a) Do fundamento do recurso: Erro de julgamento sobre a matéria de facto dado como provada por ter sido erroneamente aplicada a revelia a ré, embora a contestação tenha sido apresentada no prazo legal, por não ter sido considerada a interrupção do prazo com a comunicação ao tribunal da solicitação de advogado junto a Segurança Social.

Erro de julgamento quanto a fundamentação de direito, pois a contestação da ré é tempestiva. O juiz fundamentou sua decisão e reconheceu a procedência da ação em virtude de equívoco consoante a falta de contestação. Além disso, nos termos do art.º 568, d) do CPC a ré não poderia ter sofrido os efeitos da revelia, pois se trata de factos que exigem prova escrita, nos termos da al. a) do n.º 1, do art.º 20.º do D.L 133/2009, de 2 de junho, e ainda do contrato firmado.

b) Com efeito, a sentença ora recorrida considerou manifestamente extemporânea a contestação com a consequente aplicação dos efeitos da revelia à apelante.

c) O tribunal considerou que o prazo para contestação começou a contar em 13.9.2023, sendo que seu termo seria em 17.10.2023 e desta forma, determinou o desentranhamento da contestação apresentada em 2.12.2023 não sendo apreciados os argumentos da apelante.

d) Acontece que a requerente havia solicitado um advogado a Segurança Social pelo que o prazo da contestação seria interrompido.

e) A apelante comunicou ao tribunal o pedido feito para nomeação de patrono, tendo obtido sua nomeação em 3.11.2023, recomeçando o prazo para apresentação da contestação a partir desta data.

f) O tribunal afirma que não foi encaminhado pela apelante qualquer email, e que o email enviado teria sido para o endereço coimbra.centralcivilribunais.org.pt, sendo que tal email jamais haveria seguido, pois seria-lhe impossível enviá-lo, posto que lhe falta o @.

g) A apelante provou, conforme requerimento (ref.ª 8504798) que encaminhou no dia 9.10.2023 email para o endereço correcto do tribunal.

h) A apelante, do email ..........@..... enviou em 9/10/2023, 11:32, para o email do tribunal coimbra.centralcivel@tribunais.org.pt com o subject: Processo 3754/23.... a prova de que teria solicitado advogado perante à Segurança Social

i) A apelante não tem culpa se o Tribunal não recebeu o email enviado, seja porque foi ao lixo, por ter sido inadvertidamente apagado, ou até mesmo que não tenha recebido, pois a apelante fez prova de que o fez na primeira oportunidade que teve acesso aos autos.

j) Se houve erro foi do tribunal, porém a apelante não pode ser prejudicada.

k) Na motivação de direito, o Tribunal se utiliza da falta de contestação para formar sua convicção sem analisar as provas que foram juntas pela parte autora, notadamente o comprovativo de que não foram cumpridos todos os requisitos do art. 568.º, al. d) do CPC.

l) Ainda que a contestação não tivesse sido apresentada, o Tribunal não poderia no caso em questão aplicar ao apelante os efeitos da revelia, e consequentemente, o réu deveria ter sido absolvido da instância, pois a empresa não cumpriu as determinações contratuais e legais a que o juiz está obrigado a verificar.

m) Os factos narrados dependem nos termos da al. a) do n.º 1, do art.º 20.º do D.L 133/2009, de 2 de junho, e ainda do contrato firmado entras as partes, que o autor comprove cumulativamente, para invocar a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato: a) A falta do pagamento de duas prestações sucessivas que exceda 10/prct.

do montante total do crédito; b) Ter o credor, sem sucesso, concedido ao consumidor um prazo suplementar mínimo de 15 dias para proceder ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas da eventual indemnização devida, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato.”

n) O credor não cumpriu nenhuma das obrigações acima elencadas.

o) Nos termos do art.º 568.º, d), do CPC, a ré não poderia ter sofrido os efeitos da revelia, pois se trata de factos que dependem de prova escrita.

p) Quando a autora enviou carta a ré com a possibilidade de resolver o contrato em 18.5.2023, a dívida em atraso ainda não perfazia 10% do valor total exigido por lei, pelo que não se pode dar o efeito pretendido pelo autor destinado a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato.

q) Desta forma, a acção não pode prosperar, pois não estão presentes seus requisitos de admissibilidade, por descumprimento dos preceitos da al. a) do n.º 1, do art.º 20.º, do D.L 133/09, de 2 de junho, devendo a ré ser absolvida da instância.

DAS NORMAS VIOLADAS: Art.º 568.º, d), do CPC. Art.º. 607.º, do CPC. Art.º 20.º, n.º 1, al. a), do D.L 133/2009, de 2 de junho. Art.º 24, n.º 4 e 5, da Lei 34/2004, de 27 de janeiro.


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            Não foram apresentadas contra-alegações.

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As questões a decidir são as seguintes (apenas estas porque são as conclusões que delimitam o recurso – art.639 do Código de Processo Civil; embora a Recorrente alegue na contestação, sumariamente, uma nulidade da sanção contratual e uma falta de recebimento da carta do PERSI, nada concluiu agora a respeito):

A tempestividade da contestação;

A prova escrita do contrato e dos procedimentos relevantes subsequentes;

As condições cumulativas da resolução.


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A tempestividade da contestação.

Compulsados os autos, verifica-se que a Ré foi citada para contestar a presente ação no dia 12.09.2023 (cfr. assinatura do A/R junto aos autos), sendo que o prazo para a apresentação da contestação é de 30 dias e começou a contar no dia seguinte ao da assinatura do aviso de recepção, ou seja, no dia 13.09.2023.

Ao prazo de 30 dias acresce uma dilação de 5 dias, nos termos do disposto no artigo 233º do C.P.C.

Assim sendo, verifica-se que o prazo para a apresentação da contestação terminou no dia 17.10.2023.

A Ré apresentou a contestação no dia 2.12.2023.

No dia 04.12.2023, veio a Ré alegar que em 9.10.2023 comunicou ao Tribunal (doc.1), no email indicado, que havia solicitado o patrocínio judiciário à Segurança Social.

A Ré enviou o email para o endereço coimbra.centralcivil(arroba)tribunais.org.pt.

Conforme certificado pelo Tribunal, o seu endereço de email é coimbra.centralcivel @tribunais.org.pt., e aquele email não foi por si recebido.

Como se constata, há uma diferença entre civil e civel.

Deverá considerar-se que a Ré comprovou nos autos, durante o prazo de que dispunha para contestar, ter requerido o apoio judiciário, nos termos previstos no artigo 24º, nº 4, da Lei 34/2004 ?

Na lei (art.144, nº 7, do Código de Processo Civil (CPC)), para o caso da parte não representada por mandatário, não está elencado, como forma de acto, o envio por correio eletrónico, não sendo este meio idóneo de envio de peças processuais escritas.

Mas daí não se retirará que a consequência do envio de uma peça processual escrita por correio eletrónico seja a imediata e total desconsideração dessa peça.

O objetivo da lei, ao regular o meio de apresentação de peças processuais, é assegurar a entrega e a fixação do momento da entrega, de forma a criar certeza jurídica no cômputo dos prazos e seus efeitos preclusivos.

Não o sendo pelas vias previstas na norma, o ato só valerá quando for notado e admitido pelo tribunal.

O envio, por outro modo que não o previsto no art.º 144, nº 7, do CPC, não será causa da sua absoluta inamissibilidade, mas importa uma total assunção do risco pela parte, quanto à certificação da chegada do ato ao tribunal.

No caso, perante a certificação do não recebimento pelo Tribunal, porventura decorrente do erro no endereço, podemos dizer que a parte não demonstra a junção do documento no processo, no prazo devido.

Assim, não interrompido o prazo, e decorrido este, a contestação é intempestiva.

Ainda que não seja entendido assim, facilmente se verifica que a Ré não contestou os factos alegados pela Autora, questionando apenas as ilações jurídicas que deles se possam retirar e argumentando uma falta de prova escrita que não se entende.


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A prova escrita do contrato e dos procedimentos relevantes subsequentes.

Toda a prova é documental.

O contrato é escrito.

As interpelações foram feitas por carta, para a morada indicada, com menção de entrega.

Não se percebe como a Recorrente alega falta de prova do escrito.


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           Com base no contrato escrito, junto pela Autora, deteta-se um erro no facto 11, por referência à sua cláusula 14. As condições aí previstas são expressa e literalmente cumulativas. Por isso, devemos retirar do facto o “ou”, expressão de uma alternativa que não existe.

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Factos provados:

1. O autor tem como objecto social o financiamento para aquisições a crédito;

2. No exercício dessa actividade, o Autor concedeu um crédito, por contrato subscrito em 05.08.2022, contrato a que foi atribuído o número ...46, resultante de proposta n.º ...44, à Ré AA;

3. O crédito concedido foi a título de crédito pessoal;

4. Tendo a Ré ficado obrigada a pagar ao Autor a quantia financiada, do montante total do crédito de 14.379,36€, acrescida de juros e encargos, em 84 prestações mensais, no valor cada de 248,76€;

5. Do extrato de contrato ...61...., a ré apenas efetuou o pagamento dos seguintes valores: a) 325,73€, em 27.09.2022; b) 248,76€, em 26.10.2022; c) 248,76€, em 28.11.2022;

6. Nada mais tendo a Ré pago ao Autor após tal data de 28.11.2022;

7. No contrato subscrito pela Ré, a mesma solicitou um crédito pessoal, no montante total de crédito de 14.379,36€, a pagar em 84 prestações mensais e sucessivas de 248,76€, cada, com Taxa Anual Nominal de 10,900% e TAEG de 12,9%;

8. Com um custo total do crédito de 6.986,40€;

9. E com um montante total imputado ao consumidor de 20.986,40€, se efectiva integral e pontualmente cumprido;

10. Tal contrato, a que foi atribuído o número ...46, resultante da proposta ...44, está subordinado às cláusulas do mesmo constante;

11. (Alterado.) Nesse contrato estão contratualizadas questões de: a) Características e custo do crédito e condições de reembolso, a pág. 1; b) As definições contrato e custo total do crédito e montante total imputado ao consumidor na cláusula 1 e nas características e custo do crédito e condições de reembolso; c) O objeto do contrato, na cláusula 2,doc. 1; d) A confissão de dívida em que o consumidor, ré, no caso em concreto, se confessa desde já devedor da quantia mutuada, obrigando-se a reembolsá-la ao Banco acrescida dos respectivos juros remuneratórios, encargos, comissões e despesas, vem como dos juros moratórios e indemnizações a que eventualmente haja ligar nos termos do contrato, cláusula 4; e) Encargos, cláusula 7, em que são da responsabilidade do cliente, neste caso a ré, todos os encargos, despesas, e comissões estipuladas no contrato, bem como os previsos no preçário que constitui parte integrante do presente contrato, disponibilizado ao público no endereço www.....pt, na sede e estabelecimento do Banco 1...; f) A mora e suas consequências, cláusula 13, doc.1, em que a falta de pagamento no prazo estipulado constitui o cliente em mora e importa aplicação de uma sobretaxa no valor de 3% a título de juros moratórios (sujeitos a imposto de selo) a acrescer à taxa de juros remuneratórios acordada, calculada sobre o capital vencido e não pago, o qual incluirá os juros remuneratórios capitalizados; A cobrança uma única vez por cada prestação vencida e não paga, de uma comissão pela recuperação dos valores em dívida de 4% do valor da prestação em mora; E bem assim despesas posteriores; g) Perda do benefício do prazo e resolução, cláusula 14 doc.1, em que o Banco pode exigir antecipadamente o cumprimento do contrato, ressalvados juros vincendos, por meio de comunicação em papel, nomeadamente no previsto na cláusula 14.2 cliente falta ao pagamento de duas prestações sucessivas que no seu conjunto ultrapassem 10% do montante total do crédito, e (e não ou) 14.2 b. ter o Banco sem sucesso concedido ao cliente um prazo suplementar mínimo de 15 dias para proceder ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas da eventual indemnização devida, com expressa advertência da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato; (Sublinhado nosso.)

12. Face ao atraso nos pagamentos, o Autor notificou a Ré da integração em PERSI, por carta registadas de 24.02.2023, e do valor do atraso de 531,04€;

13. Tendo também por carta registada datada de 15.03.2023, informado a Ré, para o encerramento de PERSI, por falta de resposta a solicitação para análise do processo, e do valor em atraso de 802,71€;

14. E quer por contactos pessoais e telefónicos tentou o Autor contacto e regularização de valores em atraso com a Ré, sem resultados, bem como por cartas de 06.01.2023, 16.03.2023 e 29.04.2023;

15. E por carta registada, de 18.05.2023, interpelou o A a Ré, caso não fosse o atraso de 1.345,34€, regularizado, iria resolver o contrato e exigir judicialmente o pagamento da totalidade do capital em dívida de 14.037,38€, imputando-lhe as sanções contratualmente previstas para o incumprimento, sem prejuízo de outras importâncias que se mostrem devidas;

16. Como nada foi pago pese embora as notificações e comunicações nesse sentido, e atentos os valores devidos, o contrato celebrado entre Autor e Ré foi resolvido, por carta registada datada de 26.07.2023, pelo valor de 17.313,74€;

17. Tal como as anteriores, a carta foi remetida para a morada contratualmente definida, não tendo sido pela ré comunicada qualquer alteração de morada ao Autor.


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           Como defende a Recorrente, as condições (contratuais e legais) para a resolução são cumulativas.

           Mas, ao contrário do que diz, quando a resolução é declarada, as condições estão preenchidas.

           Primeira condição: a Autora, em 18.5.2023, por existirem prestações em mora, concedeu à Ré um prazo suplementar mínimo de 15 dias, para aquela proceder ao pagamento das prestações em atraso, com expressa advertência, caso a mora não fosse extinta, da perda do benefício do prazo e/ou da resolução do contrato.

           Segunda condição: a resolução é de 26.7.2023. Nesta data, as prestações não pagas já são 7 e ascendem a € 1.741,32, mais de 10% do montante total do crédito (€ 1.437,93).

            Em conclusão: o recurso não merece provimento.

           Breves notas a 2 questões da Recorrente, não levadas às conclusões:

           A sanção contratual (cláusula 14.4 – “cláusula penal indemnizatória”), para o incumprimento definitivo, correspondente a 15% do capital em dívida, não constitui qualquer juro remuneratório.

           Não se percebe como pode a Autora afirmar que não recebeu qualquer comunicado do banco acerca do PERSI, quando está documentado o que consta de 12 e 13, cartas registadas com menção da entrega na morada disponível.


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            Decisão.

           Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

           Custas pela Recorrente, vencida, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

2024-04-23


(Fernando Monteiro)

(Alberto Ruço)

(Moreira do Carmo)