AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE
DEFESA
MURO
MURO DIVISÓRIO
MURO COMUM
ABUSO DE DIREITO
Sumário

I - A construção de um muro num lote de terreno, pelo empreiteiro e vendedor de um imóvel implica a aquisição por este da sua propriedade.
II - Mesmo que esse muro seja divisório os seus donos podem ilidir as presunções de compropriedade do mesmo, o que acontece se provarem que os muros anteriores nesse local foram destruídos e este foi construído exclusivamente pelo empreiteiro.
III - Não existe qualquer abuso de direito quando o dono pede a reposição do muro no estado anterior a nele ter sido aberto uma porta sem sua autorização, porque isso não configura qualquer excesso no direito de tapagem seja pela altura do muro, seja pelos materiais usados, seja pela sua função e utilização que visa precisamente impedir o acesso público ao local.

Texto Integral

Processo: 1720/22.4T8AVR.P1


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Sumário:

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I – RELATÓRIO

Em 06-05-2022 o Condomínio do Prédio ..., ..., ..., propôs a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra AA, peticionando a condenação do réu: . a reconhecer que o muro existente na zona de jardim que confina com o seu prédio, melhor descritos nos artigos 3º, 4º e 6º da petição inicial, é propriedade do autor; . a realizar as obras necessárias à colocação da situação original do muro, eliminando a porta/abertura que ali pretendeu ver ilegalmente aberta; . e, ainda, no pagamento da quantia de 500,00 € (quinhentos euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais que lhe causou.

Para tanto alegou, em síntese, que: . é o condomínio do prédio constituído em regime de propriedade horizontal, por escritura pública outorgada em 08/11/2002, sito na Travessa ..., ..., ..., ..., em Aveiro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o nº ..., da freguesia ... e inscrito na matriz urbana sob o artigo ... da referida freguesia; . tal Bloco/Lote ..., destina-se a cave para estacionamento (garagens) e possui, na parte superior, uma área ajardinada, que possui, na sua extremidade - Noroeste – um muro, que confina com o prédio do réu, sito na Rua ..., na freguesia ..., concelho de Aveiro; . o réu procedeu à abertura de uma porta no predito muro do autor, sem autorização deste; . em consequência da actuação ilegítima do réu, teve que recorrer a juízo com todas as despesas que isso acarreta, bem como que realizar mais Assembleias Gerais do que as previstas, com todos os incómodos a isso associados.

O réu deduziu contestação, invocando a verificação de ilegitimidade processual activa, por o autor dever ser o Condomínio, representado pelo seu administrador, e não o contrário.

Mais sustentou que o muro que o autor diz ser seu, integra o domínio público, assim como o espaço a ele adjacente, não tendo aquele qualquer jurisdição sobre ele.

Acrescenta que repôs uma abertura para o espaço público existente no muro a sul, com o conhecimento da Junta de Freguesia, abertura essa que sempre existiu ao longo dos tempos, há mais de 40 anos, tendo sido abusivamente tapada por aquele muro.

Por fim, impugnou o valor atribuído à causa pelo autor.

Foi proferido despacho saneador, no qual se julgou improcedente a invocada ilegitimidade processual activa, e se fixou o valor da causa em 6.000, 00 euros.

Foi realizado julgamento e proferida sentença que decidiu: A) DECLARAR que o muro identificado em 5) dos factos provados desta sentença, é da propriedade do Condomínio do Prédio ..., ..., ..., sito na Travessa ..., ..., ... ..., Aveiro; B) CONDENAR o réu AA a eliminar a porta/abertura que abriu no muro referido em A), realizando as obras necessárias a colocar este no estado em que se encontrava antes de aquela; C) ABSOLVER o réu do demais peticionado.

Inconformado veio o Réu interpor recurso, o qual foi admitido como de apelação, com efeito meramente devolutivo, a subir nos próprios autos e imediatamente.


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2.1. O apelante apresentou as seguintes alegações

A/ O recorrente considera incorretamente julgados (por referência à sentença) os seguintes factos: 5) (…) e possui, na sua extremidade, a noroeste, um muro, que foi edificado pelo construtor do prédio referido em 1), no ano de 2002.; 10) O réu sabia que o muro referido em 5) não lhe pertencia. Dos factos provados e, ii. ao actuar da forma descrita em 9) o réu tivesse reposto uma abertura para o espaço publico que existia no local há mais de 40 anos, tendo sido tapada pelo muro referido em 5). Dos factos não provados;

B/ E, no que respeita ao facto 5º, cumpre adiantar que o ónus da prova da demonstração do direito real de propriedade sobre o dito muro é do A. Com efeito, a este propósito, como aliás, é adiantado na decisão ora em crise, cumpre referir que ninguém viu construir o muro;

C/ Todas as testemunhas arroladas pelo A., condóminos e, o próprio administrador do condomínio (todos com interesse direto no desfecho da ação) referiram que lhes foi dito pelo construtor que o muro seria do condomínio, contudo, ouvido o construtor, Senhor BB, o mesmo, logo que interrogado e de modo espontâneo, referiu: (…) muros, não fiz muros (…). Apenas, depois, como o adianta o Tribunal, acabou por retroceder na sua afirmação inicial, pois, decerto que se apercebeu que o seu testemunho não favorecia a pretensão do A., mas, repete-se, logo de modo espontâneo referiu que não fez muros.

D/ Este depoimento mostra-se, absolutamente, consentâneo com  a informação prestada pelo CM de Aveiro, igualmente, adiantada a fls. 8 da Sentença respeitante ao processo de loteamento 38/95 onde não existe referência à construção do muro;

E/ Depois, o A. apresenta fotografias, designadamente, uma delas contemporânea com as obras de edificação do ..., onde já se mostra edificado o muro dos autos, contudo, dela decorre, igualmente, que o muro se encontra no estado de novo e, desse jeito, perfeitamente, consentâneo com as declarações prestadas pela Senhora Presidente da Junta, que interrogada logo afirmou que o muro “é nosso”, tanto assim que é a Junta quem faz a manutenção do espaço e, CC e o Réu em declarações complementares sobre o teor da dita fotografia, esclareceram que, no entretanto, contactaram a “A...”, empreiteiro do ... e, pelo Engº. responsável forma informados que o dito muro foi efetuado por eles antes da edificação, pois, apresentava sinais de poder ruir;

F/ Não existe qualquer meio de prova produzido pelo A. que possa, com o grau de certeza necessário (pelo menos bastante) que o muro tenha sido edificado pelo empreiteiro do edifício do condomínio. Mais, nenhum meio de prova foi produzido por este no sentido de se poder concluir com o apontado grau que o muro integra o direito real de propriedade do A.. na verdade, com exceção dos depoimentos do administrador do condomínio e dos seus condóminos que, apenas, disseram os que lhe teria sido dito, nenhum outro meio de prova existe que autorize a concluir de quem é a propriedade do muro.

G/ É que, mesmo que o muro tivesse sido edificado pelo empreiteiro do condomínio, tal não é suficiente para, por si só, se concluir que o muro é integrante do seu direito real de propriedade, pois, pode ter sido edificado, apenas, para esconder ou embelezar um outro, ou, até, para suporte, por exemplo, de terras e, não é por isso que o muro passa a pertencer a quem o faz, pois, repete-se, não existe muro no projeto do loteamento do condomínio.

H/ Cabia ao A. demonstrar, não que foi quem fez o muro, mas que ele é seu e, consequentemente, integra o seu direito real de propriedade e, como acima se tentou demonstrar, não o fez e, desse jeito, o facto nº. 5, tem de ser alterado, passando a constar, apenas, (…) existindo na sua extremidade, a noroeste, um muro.

I/ No que respeita ao facto 10) (O réu sabia que o muro referido em 5) não lhe pertencia.), cremos que este facto, assim redigido, não correspondeu à prova produzida, pois, a testemunha DD, presidente da Junta, suporte acima referido, referiu que o pai do Réu suscitou a questão quanto à abertura da porta e esta referiu não ver inconveniente, assim como a Vereadora da CM que, igualmente, não viu inconveniente. Isso mesmo transmitiu ao Tribunal a testemunha CC, suporte acima referido;

J/ Assim, com o devido respeito, não cremos que o facto possa, apenas, assim, ser considerado, tanto mais que, ambas as responsáveis públicas não adiantaram qualquer oposição à abertura, pelo contrário, não viram inconveniente. Pelo exposto, julgamos que o facto deve ser considerado não provado.

L/ Quanto ao facto não provado ii. ( ao actuar da forma descrita em 9) o réu tivesse reposto uma abertura para o espaço publico que existia no local há mais de 40 anos, tendo sido tapada pelo muro referido em 5).), com relevo para esta matéria, cremos relevante os depoimentos da Senhora Presidente da Junta, que referiu que o muro do lado de dentro da propriedade do Réu possuiu aberturas que, ainda, hoje são visíveis da varanda do edifício da Junta.;

M/ E a testemunha EE, encarregado das obras de remodelação e reconstrução do prédio do Réu, referiu que o nomo muro (o que se discute nos autos) teve no local onde abriu a porta (foi ele quem a abriu) uma abertura que deve ter sido tapada, pois, nesse local o tijolo estava com uma medida inferior e tapado na extremidade, o que é sinal que foi deixada a abertura e depois tapada.

N/ É certo que, uma vez mais, o A. veio juntar uma fotografia (documento junto em Audiência em 13.12.2022 sob a refª. 124944913), para demonstrar que não existia no muro antigo do prédio do Réu qualquer abertura, contudo, dessa mesma fotografia, se bem a vemos, resultam diferentes aspetos de revestimento e, em alguns sítios parecem sobressair locais que foram tapados;

O/ E, isso, coaduna-se, exatamente, com as declarações da Senhora Presidente da Junta de Freguesia, segundo a qual da Junta são visíveis aberturas do lado de dentro da parede da casa do Réu e, igualmente, da testemunha EE, nos termos da qual o tijolo do muro novo se encontrava mais fino no local onde foi executada a abertura. Assim, julgamos que, na verdade, já existiu abertura no dito muro, apontando, tais indícios para essa realidade, pelo que, afigura-se-nos autorizado concluir da prova que ao atuar da forma descrita em 9) o réu repôs uma abertura para o espaço publico que existia no local, devendo, assim, este segmento ser considerado provado;

P/ O A. não provou, pois, a propriedade do muro em discussão nos autos e, como tal, a abertura será de manter. Na verdade, na situação dos autos, foi concedida ao proprietário do imóvel que deu origem ao edifício do condomínio A., licença para a sua edificação, com a condicionante de o espaço para onde está voltada a porta aberta pelo R. ser de utilização Pública. Deste modo, daqui decorre que tal espaço privado de uso público não fica devassado com a abertura efetuada pelo Réu, pois, repete-se, o mesmo é de uso público e, como tal, essa abertura em nada devassa o seu prédio;

Q/ Em face de tal utilização dessa parte do prédio do A., a pretensão que deduz em juízo, consubstancia, até, um manifesto abuso de direito, figura jurídica, como se sabe, do conhecimento oficioso do Tribunal e que, ainda assim, se invoca. No caso, é manifesto que o pretendido evitar pelo A. é manifestamente desproporcional ao que é comumente aceite. Se a propriedade já se destina a uso público, não se vê que prejuízo advenha para o A. com a passagem efetuada pelo Réu;

R/ O direito de propriedade não é um direito absoluto, estando sujeito a limites, condicionamentos e enquadramentos que resultam do próprio ordenamento jurídico. Tal como o STA vem entendendo, mormente reportando-se ao direito de propriedade ou mesmo do direito à edificação, “… esse direito integra o poder de gozo sobre o bem objecto do direito … é que o exercício desse poder não inclui o direito construir nem, tão pouco, quando ele é reconhecido, o direito a construir aquilo que se quer, onde se quer e como se quer mas, apenas e tão só, a construir aquilo que as autoridades administrativas consentirem dentro das limitações e restrições assinaladas na legislação atinente …” e como tal “… se o direito de edificação inexiste como elemento integrador do direito de propriedade também dele não faz parte o direito de manter o edificado nas condições em que o proprietário quiser e na forma que quiser visto que tais edificações têm de respeitar as exigências legais a elas referentes …”

S/ A implantação desse caminho apenas limita esse direito de propriedade no que respeita ao uso do espaço a ele destinado, que deixou de ser pleno e exclusivo dos condóminos para poder ser de qualquer pessoa, sem que os condóminos o possam impedir. O disposto no Artº. 1360º do Código Civil, cede, assim, em situações como a dos autos (propriedade privada de utilização pública), sob pena de manifesto e desproporcional abuso de direito do proprietário da propriedade privada.

T/ Cremos, pois, ser esse o sentido da conjugação das normas dos Artº.s 342º e 1360º, esta conjugada com o Artº. 344º, todos do Código Civil, das quais a decisão sem crise se desviou.

2.2. A parte contra-alegou, cujo teor integral se dá por reproduzido, concluindo que pela falta manifesta, completa e absoluta de fundamento do recurso interposto pelo Réu que, assim, deve ser julgado improcedente.


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3. Questões a conhecer

1. Apreciar o recurso da matéria de facto

2. Apurar depois, se existem fundamentos para alterar o enquadramento e decisão jurídica.


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4. Do recurso sobre a matéria de facto

Está em causa a questão de saber a quem pertence um muro no qual foi aberta ou reaberta uma porta, cujo valor processual foi fixado em 500 euros.

A tese do autor de que o muro pertencia ao domínio público e não à autora (art. 19 da contestação) claudicou, desde logo, com o depoimento deste.

Este afirma que antes de efectuarem a abertura foram falar com a presidente da junta que lhes disse nada ter a opor.  Ora, essa autorização só seria relevante se aquela fosse a dona do muro. E, à pergunta o muro é de quem? respondeu “não conseguimos apurar”, existiam uma série de muros já derrubados e não conseguimos saber com base nos elementos da câmara.

Ou seja, se teve necessidade de procurar “o dono do muro” é porque sabia que este não era seu e os elementos juntos nada de relevante demonstram sobre a propriedade pública do mesmo.

Depois, note-se a memória selectiva dessa parte que nem sequer admite ou diz ter conhecimento das negociações e reuniões feitas com o seu pai.

Logo, estas declarações são pouco credíveis.


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Acresce que independentemente do depoimento das inúmeras testemunhas as fotografias juntas com a petição (confirmadas em audiência) demostram claramente a natureza inovatória da abertura em causa, logo estranho seria que a Junta tivesse adquirido um muro novo e pintado sem que nunca tivesse realizado qualquer obra.

Em terceiro lugar, note-se que essa abertura não consta inicialmente do projecto de licenciamento da obra do autor e foi aditada apenas depois (cfr. documentos juntos em 4.1.23).

Finalmente, o depoimento das testemunhas confirma também a tese factual da autora.

Desde logo a única testemunha que teve conhecimento efectivo dos muros existentes antes do loteamento e obra foi o anterior empreiteiro (Sr. BB). É certo que este foi contraditório no seu depoimento, mas essa contradição explica-se não apenas com o decurso do tempo, a questão menor da propriedade do muro, como também com a forma como foi efectuada a longa instância (mais de 54 minutos). Estranho seria que as respostas fossem todas iguais quando as perguntas foram insistentemente repetidas.

Mas, note-se que este à pergunta simples de quem é o muro diz é da propriedade/condominio, porque ficou a fechar o jardim (minuto 48). Note-se que esta testemunha não é actualmente condómino, pelo que não tem interesse no desfecho da causa ao contrária da maioria das restantes testemunhas.

Depois, o Sr. FF (que é o administrador do condomínio) descreve a sua intervenção quando abertura estava a ser feita, a sua imediata oposição porque o muro pertenceria ao condomínio, e a intervenção do pai do réu que teria dito que falou com a presidente da junta que lhe teria dito que aquele muro não pertencia a ninguém. Reproduziu o teor das negociações extra-judiciais que nos coibimos de reproduzir e foi peremptório “nunca ali existiu uma porta”.

O Sr. GG afirma também que o muro foi construído pelo construtor (B...) no limite dos prédios.

As restantes testemunhas por parte do réu DD (Presidente da Junta) e CC são irrelevantes. Este último sabe apenas o que viu aquando da realização da obra que incluiu a abertura do “famoso” muro. Não sabe, pois, directamente a quem este pertence, sendo aliás o pai do réu e depôs de forma comprometida (começa por dizer, quando advertido que não podia omitir a sua condição de pai que “neste processo o que interessa é a obra”).

A Sra. Presidente da Junta diz “antes do edifício não tenho memória daquele espaço”, e que “falou sobre a abertura da porta com a vereador quando a porta foi aberta”. Logo a sua afirmação de que o muro “é nosso”, pode ser uma real vontade mas está muito longe de estar sustentada em conhecimentos e factos concretos, pois, quando à razão de ser desta afirmação nada foi esclarecido.

Por fim, em termos documentais resulta, como bem salienta, a sentença, que a abertura desse muro criando um vão não foi licenciada nem fez parte do projecto inicial e apenas em 25-05-2022, o réu informou que pretende proceder ao pedido de legalização desse vão de passagem, aberto para o espaço exterior ajardinado (página 158 do processo de legalização das obras). Essa é posterior à data da citação para a presente acção.

Ou seja, até 25.5.22 o dono do muro aceitou a decisão urbanística de não o abrir para o exterior, o que é manifestamente desconforme com a tese do mesmo neste processo, no sentido de que foi até pedir autorização à Junta.

Inexistem assim elementos probatórios que ponham em causa a justeza da decisão de facto realizada a qual é, de acordo com os elementos dos autos congruente e racional pelo que deve ser mantida.


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5. Motivação de facto

1) O autor é o Condomínio do prédio sito na Travessa ..., ..., ..., ..., em Aveiro, constituído em regime de propriedade horizontal por escritura pública outorgada em 08/11/2002,

2) (…) descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o nº ..., da freguesia ..., e inscrito na matriz urbana com o artigo ....

3) O Bloco/Lote ... referido em 1) destina-se a cave para estacionamento (garagens), e integra um conjunto de cinco lotes, objecto da autorização de loteamento concedida por alvará n.º ..., emitido em 02-02-1999, sendo os Lotes ..., ..., ... e ... destinados a habitação e comércio.

4) A parte superior (cobertura) do Lote ... é constituída por um terreno/logradouro, que foi destinado a espaço verde/jardim,

5) (…) e possui, na sua extremidade, a noroeste, um muro, que foi edificado pelo construtor do prédio referido em 1), no ano de 2002.1

6) Para a aprovação/emissão do alvará de loteamento referido em 3), a Câmara Municipal ... exigiu que o espaço referido em 4) fosse de 1 Artigo 3.º e 4.º da petição inicial e 3.º da resposta à contestação (apresentada em 29-06-2022). utilização colectiva/pública, apesar de o considerar uma parte comum dos lotes e de o qualificar como espaço do domínio privado.

7) O réu é dono do prédio sito na Rua ..., ..., na freguesia ..., concelho de Aveiro, inscrito na matriz predial urbana com o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro, sob o n.º ..., daquela freguesia.

8) O prédio referido em 7) confronta a sudoeste com o muro identificado em 5).

9) Em Maio de 2021 o réu procedeu à abertura de uma porta no muro identificado em 5), demolindo parte do mesmo, sem autorização do autor.

10) O réu sabia que o muro referido em 5) não lhe pertencia.

11) No dia 29/05/2021, pelas 21 horas, a Assembleia Geral de Condóminos do autor deliberou que “Depois de discutida a ilegalidade da abertura do portal, no muro pertencente ao condomínio, foi aprovado por unanimidade dos condóminos presentes, fazer a reposição do muro vandalizado”, e “iniciar um processo contra a pessoa que derrubou ou mandou derrubar o muro do condomínio, no sentido de pedir o ressarcimento dos estragos patrimoniais e não patrimoniais causados pelo derrube do mesmo e abertura do portal, genericamente designado por porta.».

12) Em 12-03-2022, pelas 21h00m, a Assembleia Geral Extraordinária de Condóminos do autor deliberou que «Depois de discutida a ilegalidade da abertura do portal, no muro pertencente ao condomínio, foi aprovado por unanimidade dos condóminos presentes, não aceitar qualquer compensação pela abertura abusiva do mesmo e fazer com que este seja fechado, obrigando a empresa que o derrubou a repor o muro, à sua situação original.»

13) No espaço referido em 4) passam pessoas e são efectuados eventos públicos.


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6. Motivação Jurídica

1. Da aquisição da propriedade

Resulta dos factos provados que o “famoso” muro desta acção, na qual já de despenderam mais recursos do que o seu real valor (o da porta foi fixado em 500 euros), foi construído pelo empreiteiro que edificou o lote que a autora representa.

Mais resulta provado que esse muro foi implantado no terreno desse edifício e que o réu sabia que esse muro não lhe pertencia.

Logo, os fundamentos para a aquisição do direito de propriedade estão verificados.

Não através do instituto da acessão industrial imobiliária, (art. 1391º, do CC), que pressupõe que a obra/muro seja originalmente alheia, mas sim através da aquisição da propriedade, seu loteamento e construção de uma obra nova através inicialmente da empreitada e depois da venda das fracções e edifício pelo empreiteiro (art. 1212, nº2, do CC).


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2. Da natureza do muro
O facto de estamos perante um muro colocado entre duas propriedades inculcaria a ideia que o muro em causa pertence em compropriedade a ambas as partes, porque, o  art. 1371º, do C.Civil dispõe que "a parede ou muro divisório entre dois edifícios presume-se comum em toda a sua altura, sendo os edifícios iguais (...)".
Nas palavras de António Carvalho Martins[1] esta norma deriva "da necessidade de, num dado momento se provar se certo muro é comum ou pertence exclusivamente a um dos proprietários. Por isso o legislador estabeleceu uma série de presunções, baseadas em simples probabilidades".
Visa-se aqui a pacificação social delimitando critérios para resolver os conflitos de vizinhança.
Mas, in casu conforme resulta da factualidade provada, não se encontra preenchida a previsão porque o réu sabia que esse muro não lhe pertencia.
Note-se, aliás, que o facto do muro ter sido destruído afectaria a sua natureza de coisa comum caso a destruição tivesse sido total. Se, pelo contrário, parte relevante do mesmo tivesse permanecido a sua natureza comum poderia ter permanecido. Isto, porque, conforme salienta alguma doutrina[2] "pode acontecer que um dos edifícios tenha desaparecido por ter caído em ruínas ou por ter desaparecido. Nenhum destes factos pode inutilizar a presunção que existia anteriormente. Ponto é que o muro se mantenha e que ele esteja construído precisamente sobre a linha divisória".  

In casu, face aos factos provados estamos perante uma nova construção pelo que é claro que não existe um muro divisório em compropriedade, e por isso a presunção do art. 1372º, do CC foi ilidida.


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3. Da defesa da propriedade

A ser assim, o proprietário terá direito a usar e fruir a coisa (art. 1305, do CC ), defendendo-se até de terceiro que afecte, restrinja ou impeça esse uso (art. 1311º, do CC).

Acresce que a violação de um direito real poderá dar origem a outras relações que não as tipicamente reais, porque se pode traduzir num direito de indemnização, fundado nas regras gerais da responsabilidade civil.

Neste caso, todos os requisitos em sede de responsabilidade extra-contratual art. 483º do C.C. estão verificados sendo que a autora pretende apenas reconstituição natural com a reposição do muro ao estado inicial.

4. Do abuso de direito

Como questão nova veio o réu invocar a existência de um abuso de direito da autora.

Esta é, em rigor uma questão nova, mas por assumir natureza oficiosa será apreciada.

A área dos direitos reais é precisamente um campo fértil para a aplicação deste instituto, nomeadamente no campo do direito de tapagem.

Decorre do art 1356º do C. Civil que o proprietário tem o direito de tapagem do seu prédio por qualquer modo, referindo expressamente a faculdade de construir muros.

Maria Elizabeth Moreira Fernandez[3], aborda de forma precisa esta problemática referindo que sobre o proprietário impende a obrigação jurídica de exercer o seu direito em conformidade com a função social da propriedade, pois o mesmo só é constitucionalmente garantido enquanto ainda puder ser reconduzido a uma forma legítima de utilização da propriedade, isto é, a uma forma que ainda revele de algum modo, a função social da mesma, concluindo que o exercício de tal direito em manifesta contrariedade do fim constitucionalmente incluído em tal direito fundamental reveste a qualidade de um abuso de direito.

Do mesmo modo o Ac do STJ de 28.10.08 (in www.dgsi.pt ), anotado de forma concordante por Pedro de Albuquerque[4], considera, que  existe “abuso do direito de propriedade dos demandados por terem procedido a um aterro e construído um muro de 2,80 m de altura, sendo o mesmo de suporte de terras na altura de 1,5 m, afectando desse modo a luminosidade da casa dos demandantes e o calor que ela antes recebia”.

Ou seja, poder-se-ia discutir se não obstante o muro ser propriedade da autora a pretensão de que este seja reposto pode ou não constituir um verdadeiro abuso de direito.

No âmbito desse direito questiona-se, em regra a altura dos mesmos, que pode por em causa a salubridade dos prédios vizinhos.

Mas in casu o réu nunca pôs em causa essa altura (nem pretende a sua diminuição), sendo certo que podemos presumir que a mesma é 2,.25 metros de altura a qual é a estabelecida nos limites gerais previstos nos arts. 58,. 59 e 60 do Regulamento das Edificações Urbanas e pode ainda ser fixada pelo Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação que não foi invocado por qualquer parte.

Logo, não existe qualquer abuso por parte da autora, já que esta pretende apenas a reconstituição do muro com a tapagem da abertura que foi construído para que este possa cumprir a sua função básica de tapagem, ou seja, impedir a entrada e circulação de pessoas estranhas e evitar a devassa do local.

Acresce que nada foi alegado sobre a necessidade dessa abertura, sendo que uma coisa é a utilização publica do espaço em situações ocasionais, outra, inteiramente diferente, a abertura permanente do muro com uma porta.

Diremos, apenas que com uma porta o muro deixa de cumprir a sua função de isolamento. Mesmo que o espaço seja ocasionalmente usado para fins públicos, a função do muro é precisamente tornar esse uso raro, ocasional e condicionado à permissão dos donos do espaço, isto é, a autora. Logo, não se vislumbra em que medida o direito de tapagem seja abusivo se visa apenas repor uma situação que impede o acesso não autorizado do público ao local.

Acresce que a pretensão da autora nunca poderia ser abusiva porque visa reagir a uma conduta, essa sim, ilícita, pois, nada justifica que um terceiro sem prévia autorização destrua a propriedade de outrem. Ora, foi precisamente isso que o réu efetuou.

Logo, podemos concluir que ao pedir a simples reconstituição da sua propriedade abusivamente violada pelo réu a autora não praticou qualquer abuso de direito. O réu é que ilicitamente violou o direito desta estando pois obrigado a repor a anterior situação.

Improcedem, pois as restantes conclusões.


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7. Deliberação

Pelo exposto este tribunal colectivo julga a presente apelação não provida e, por via disso, confirma integralmente a douta decisão recorrida.

Custas a cargo do autor.


Porto, 4.4.2024
Paulo Duarte Teixeira
Aristides Rodrigues de Almeida
João Venade
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[1] in Paredes e Muros de Meação, Coimbra Editora, pág. 38 e segs.
[2] Antuves Varela e Pires de Lima in C.C.Anotado, III volume, pág. 246 e segs.
[3] Direito ao Ambiente e Propriedade Privada, em Studia Iuridica”, n.º 57, pág. 199
[4] Direito à Isolação - Direito de Tapagem - Conflito de Direitos, ou o Direito ao Ambiente e à Qualidade de Vida - Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de Outubro de 2008, in ROA 2009, 69, I e II.