IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário

I - Os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem um meio a utilizar apenas nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância, sendo que, em caso de dúvida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova.
II - Impugnada a matéria de facto com vista a ver alterada a decisão de direito, não obtendo provimento essa parte do recurso, e nada havendo a apontar à decisão de direito que consta da sentença recorrida, improcede o recurso na totalidade.

Texto Integral

Apelação 1/20.2T8ARC.P1

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO
AA intentou ação declarativa com processo comum contra BB, CC, DD, EE e FF, todos melhor identificados nos autos, pedindo a condenação dos réus a:
a) reconhecerem que a parcela de terreno melhor identificada no ponto 7.º da petição inicial faz parte integrante do prédio rústico melhor identificado no ponto 1.º do mesmo articulado e, por isso, propriedade do A.;
b) absterem-se, de futuro, a praticar sobre a referida parcela qualquer ato suscetível de ser entendido como posse ou propriedade da mesma, restituindo-lhe o que lhe pertence;
Supletivamente,
c) se declare que ele, Autor, adquiriu o direito de propriedade sobre tal parcela, por usucapião.

Alegou, para o efeito, que é dono e legítimo possuidor do prédio urbano composto de parcela de terreno com 3.460 m2, destinado a construção, sito no lugar ..., freguesia ..., concelho de Arouca, descrito na Conservatória do Registo Predial de Arouca sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... daquela freguesia, sendo que o Réu FF iniciou a limpeza da parcela de terreno em causa, que o Autor diz integrar o prédio de que diz ser proprietário, e, tendo o Autor procedido à delimitação do seu prédio, colocando marcos, os mesmos foram retirados pelo Réu FF.
Defende que a parcela em causa integra o prédio de que é proprietário, e que, ainda que assim não fosse, sempre a adquiriu já por usucapião.

Os Réus contestaram a ação, apresentando defesa por exceção e por impugnação.
Arguiram a sua ilegitimidade passiva, quer porque quem se arroga proprietário da parcela dos autos é a Herança aberta por óbito do marido e pai dos Réus, DD, quer porque os cônjuges dos 2.º a 4.º Réus não foram demandados; bem como a existência de falta de causa de pedir e/ou contradição entre esta e o pedido, atento aquele primeiro fundamento de ilegitimidade.
Invocando a aquisição da parcela de terreno em causa, por usucapião, deduzem reconvenção, peticionando o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a parcela dos autos, bem como a anulação do todo e qualquer registo predial apresentado pelo Autor relativamente à mesma, por enfermar de vício de falsas declarações.

O Autor respondeu à contestação, pugnando, em síntese, pela improcedência das exceções invocadas pelos Réus e negando a versão dos factos por estes defendida quanto à propriedade da parcela dos autos. Concluiu pela improcedência do pedido reconvencional e pela procedência da ação.

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Julgadas improcedentes as exceções arguidas na contestação, foi realizada a audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença, onde, a final, se decidiu:
“Nestes termos e em face do exposto, julgo a presente ação totalmente procedente e, em consequência:
1. Condenam-se os réus CC, DD, EE, FF, a reconhecerem que o autor AA é dono e legítimo proprietário do prédio identificado em 1.º dos factos provados e que dele faz parte integrante a parcela de terreno retratada na área destacada a vermelho no croqui à escala junto a fls. 17 e consequentemente a absterem-se de ocupar a referida parcela de terreno.
2. Julga-se totalmente improcedente o pedido reconvencional deduzido pelos Réus e, em consequência, absolve-se o autor do pedido formulado.
3. Condenam-se os réus no pagamento das custas processuais da ação por a ela terem dado causa.
Registe e notifique.”.
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Não se conformando com o assim decidido, vieram os Réus interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, formulando as seguintes conclusões:
(…)

O Recorrido apresentou contra-alegações, concluindo pela manutenção da sentença recorrida.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II - DO MÉRITO DO RECURSO
1. Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelos Apelantes, são as seguintes as questões a apreciar:
- Se ocorre erro de julgamento, por errada apreciação das provas, pelo que deve ser alterada a decisão da matéria de facto;
- Decidir se em conformidade, face à alteração, ou não, da matéria de facto e subsunção dos factos ao direito, deve ser alterada a decisão de direito.
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2. Sentença recorrida
2.1. O Tribunal de 1ª Instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
1) Mostra-se inscrito a favor do autor o prédio urbano composto de parcela de terreno com 3.460 m2, destinado a construção, sito no lugar ..., freguesia ..., concelho de Arouca, descrito na Conservatória do Registo Predial de Arouca sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... daquela freguesia. [cf. caderneta predial e certidão da CRP de Arouca junta a fls.10 e 9]
2) O A adquiriu o referido prédio mediante doação de seu pai, GG, conforme resulta do teor da escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Arouca, em 28.04.2017, que aqui se dá por integralmente reproduzido. [cf. certidão da escritura de doação junta a fls. 11 ss].
3) O prédio doado ao autor resultou da desanexação daquela área pelo seu pai, efectuada a partir do prédio inscrito na matriz sob o art.º ... que adquiriu por compra e venda verbal aos seus avós e tios-avós paternos por volta do ano de 1976. [cf. escritura de justificação junta a fls. 91 ss conjugada com o teor da certidão da CRP atinente ao prédio identificado em 1 dos factos provados e escritura de divisão de coisa comum]
4) Por sua vez o referido prédio inscrito na matriz sob o art.º ... havia sido adjudicado ao avô e tios-avós do Autor, no âmbito da escritura de divisão de coisa comum celebrada a 07.06.1976 no Cartório Notarial de Arouca. [cf. escritura de divisão de coisa comum junta aos autos a fls. 95 ss em especial fls. 98, e 100 da qual se infere a adjudicação ao avô e aos tios- avós que posteriormente transmitem o mesmo ao pai do autor, do qual foi desanexado o prédio doado ao autor.]
5) Mostra-se inscrito a favor dos herdeiros de DD e mulher o prédio composto de casa de habitação de dois pisos, sito no lugar ..., a confrontar de nascente com MM, de norte com caminho, de poente com DD e de sul com NN, descrito na Conservatória do Registo predial de Arouca sob o nº ... e inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., concelho de Arouca sob o artigo ....[cf. certidão da CRP de Arouca junta a fls. 13 verso e 14, e caderneta predial junta a fls. 14 verso.]
6) Mostra-se inscrito a favor dos herdeiros de DD e mulher o prédio composto de casa de habitação de dois pisos, sito no lugar ... a confrontar de nascente com Herdeiros de DD, de norte com caminho e capela de ..., de poente com caminho de ... e de sul com KK, descrito na Conservatória do Registo predial de Arouca sob o nº ... e inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., concelho de Arouca sob o artigo ....[cf. certidão da CRP de Arouca junta a fls. 15 verso e 16, e caderneta predial junta a fls. 16 verso.]
7) Os prédios identificados nos pontos 5.º e 6.º são em parte contíguos ao prédio identificado no ponto 1.º;
8) Em 01.05.2018, o R FF iniciou a limpeza da parcela dos autos. [área destacada a vermelho no croqui à escala junto à p.i. como doc. n.º 8].
9) Afirmando aquele ao A que a parcela dos autos pertence à Herança deixada pelo seu pai, DD.
10) Em Julho de 2020, o R FF limpou a parcela dos autos, retirando as ervas daninhas e as silvas que ali cresceram;
11) Arrogando-se herdeiro do seu falecido pai, DD;
12) O A encetou diligências no sentido de demarcar a área total do prédio identificado no ponto 1.º;
13) Volvidos dias sobre a colocação dos esteios, verificou o A que os mesmos já não se encontravam nos pontos onde os havia colocado, tendo dali sido retirados pelo R FF;
14) Há mais 50 anos que os antecessores do pai do autor zelam pelo terreno da parcela dos autos;
15) Na parcela dos autos encontra-se instalado um depósito de água, propriedade da Junta de freguesia ...;
16) Depósito que ali colocado há mais de 50 anos;
17) Com autorização concedida pelos avós e tios-avós do A, anteriores proprietários do prédio descrito em 1.º;
18) É ao A. e antes de si aos seus antecessores que a Junta de freguesia ... pede autorização para aceder a tal depósito aquando da realização de qualquer obra de limpeza ou requalificação do mesmo.[cf. missiva da junta de freguesia junta a fls. 19 verso]
19) Praticando estes actos à vista de todos, de forma contínua e pública, sem a oposição de quem quer que fosse, nomeadamente do falecido DD e/ou dos RR, animados da convicção de serem seus proprietários;
20) Em tempos, ainda a parcela de terreno supra identificada em 1) estava junta com a parcela de terreno do irmão do A e ambas na posse do avô e tios-avôs do deste, foram as mesmas objecto de proposta de doação à Câmara Municipal ... para projecto de construção de um Bairro ....[cf. planta da Câmara Municipal ... junta a fls. 20]
21) À data, a parcela dos autos estava incluída no prédio identificado em 1);
22) Aquando da aquisição dos prédios identificados em 5) e 6) e após a construção das duas habitações, o falecido DD murou-os, delimitando a sua propriedade, não tenho delimitado a parcela dos autos.
23) Factos que ocorreram há mais de 40 anos;
24) Os RR deram entrada de dois processos de legalização das habitações implantadas nos prédios identificados nos pontos 5) e 6), sob os números de processo 133/2018 e 134/2018 junto da Câmara Municipal .... .[cf. cópias extraídas do processo de obras ... da Câmara Municipal ... junta a fls. 20 verso e 21 e 134/2018 de fls. 21 verso e 22]
25) Das plantas juntas a estes processos constam a delimitação de cada um dos seus prédios, delas não se alcançando qualquer delimitação da parcela dos autos. .[cf. Cópias extraídas do processo de obras ... da Câmara Municipal ... junta a fls. 20 verso e 21 e 134/2018 de fls. 21 verso e 22]
26) Em 03.06.1970, os falecidos pais dos RR adquiriram, por escrito particular, a KK e mulher OO, uma parcela de terreno com a área total de 852m2, composto de terreno de Monte, sito no lugar ..., da freguesia ..., concelho de Arouca, a confrontar de Norte com KK, Nascente com DD, Sul com herdeiro de LL (bisavó paterno do autor) e Poente com Herdeiro de LL. [cf.declaração junta a fls. 62]
27) O prédio descrito em 26. não está descrito na Conservatória do Registo Predial de Arouca, nem inscrita na matriz predial da respectiva freguesia e concelho;
28) Os herdeiros de LL são os antepassados do ora A, seu avô e tios-avós paternos;
29) O prédio identificado em 1) confronta a sul e a poente com caminho, a norte com DD e MM e a Nascente com PP;
30) Os réus são os únicos e legítimos herdeiros da herança aberta por óbito de DD e BB, falecidos respectivamente 24 de Dezembro de 2017 e 19 de Maio de 2019, ainda por partilhar.[cf. apenso de habilitação de herdeiros]
31) O pai dos RR limpava a parcela rente ao seu muro e teve colmeias encostadas ao mesmo.
32) As ovelhas do pai dos RR e bem assim as de outros residentes do lugar ... pastavam no prédio dos antepassados do autor.

2.2. E deu como não provados os factos seguintes:
a) O prédio referido em 26) corresponde actualmente ao prédio identificado supra no ponto 6);
b) O terreno mencionado no ponto 26 dos factos provados corresponde à parcela em litígio nos autos;
c) O terreno mencionado no ponto 26 dos factos provados encontra-se devidamente delimitado e distinguido do prédio identificado em 1);
d) O prédio identificado em 1) confronta com o prédio identificado em 26);
e) Desde a data referida no ponto 26), os RR, por si e pelos seus antecessores, têm vigiado a parcela em litígio, e colhido os seus frutos, retirado ervas daninhas e silvas que ali cresciam.
f) Tudo isto sem interrupções, sem oposição de quem quer que seja, com o conhecimento de toda a gente, na séria convicção de não lesarem quaisquer direitos de outrem e, assim, se encontrarem no exercício de um direito próprio;
g) No decorrer dos mandatos anteriores ao do actual presidente da junta todos os executivos pediram oralmente autorização ao pai dos RR para a aceder ao depósito referido em 15);
h) Em momento posterior à compra referida em 26), os antecessores do A procederam à plantação de eucaliptos na totalidade da sua propriedade, deixando de fora a área da parcela dos autos;

2.3. E motivou a decisão de facto, nos seguintes termos:
A convicção do Tribunal para a determinação da matéria de facto acima descrita teve em consideração a posição assumida pelas partes nos respectivos articulados e resultou da análise crítica e conjugada, à luz das regras de experiência, fundadas em critérios de normalidade, e atendendo às regras do ónus da prova aplicáveis. As respostas dadas pelo Tribunal fundamentaram-se, na análise, global e pormenorizada, do teor dos documentos juntos aos autos, nomeadamente, das certidões da CRP respeitantes ao prédio do autor e aos prédios dos Réus, cadernetas prediais, certidão da escritura de doação, das escrituras de compra e venda, escritura de justificação e de divisão de coisa comum, para além dos demais documentos que em cada ponto fomos assinalando para melhor esclarecimento (pontos 1 a 7).
Ademais tivemos em consideração as fotografias juntas a fls. 17 verso e ss, levantamento topográfico elaborado pelo autor do qual se infere a área do prédio do autor e parcela objecto da controvérsia entre autor e os réus e bem assim nos depoimentos prestados pelas testemunhas.
Do depoimento das testemunhas dos autores:
GG (pai do autor), que descreveu com rigor e de forma objectiva, a origem do prédio doado ao autor, que adquiriu verbalmente ao seu próprio pai e tios paternos devidamente identificados na escritura de divisão de coisa comum e que posteriormente justificou a seu favor conforme a prova documental que juntou a pedido do Tribunal atento o seu depoimento, esclarecendo que nunca em vida do pai dos Réus DD, por qualquer forma sustentou que aquele trato de terreno lhe pertencia. Não tem dúvidas que aquele trato de terreno pertence prédio por si doado ao seu filho, explicando as confrontações dos prédios dos réus e do autor tendo mantido sempre relações cordiais com o pai dos réus, identifica com detalhe os prédios, as primitivas confrontações, não tendo qualquer dúvida que o trato de terreno aqui em discussão integra o prédio do autor e não o dos réus), explicitando ainda o Caminho ..., hoje alcatroado, e que passa pela propriedade do autor, descreve o depósito da água que é dos fontanários públicos de 3 consortes, foi pedida ao pai e aos tios para colocar tal depósito para servir os fontanários do lugar ..., acrescenta o momento em que a Câmara equacionou a hipótese de construir um bairro ... da escritura da divisão de coisa comum propondo dar em troca ao seu pai e tios (6 filhos no total) um lote a cada um, proposta que estes não aceitaram. Diga-se que deste lote ... descrito na escritura da divisão de coisa comum, foi desanexado o prédio que hoje pertence ao autor (ponto 3). Admite que DD possa ter tido ovelhas a pastar neste trato de terreno, como todos os moradores que não tinham terrenos soltavam o seus animais para o monte (ponto 32). Com grande relevância infere-se das fotografias juntas aos autos que o pai dos réus construiu um muro por meio do qual vedou os seus prédios, mas agora, na parte em que este confronta com o prédio do autor, os seus herdeiros sustentam que tal muro deixou de fora a parcela que agora está em discussão, o que manifestamente não faz qualquer sentido.
O proprietário que veda um prédio, veda-o pelos seus limites, não deixando do lado de fora uma área que os RR agora sustentam corresponder ao prédio identificado no ponto 26. Por fim quanto ao trato de terreno mencionado em 26) dos factos provados a testemunha tem a convicção que essa área está inserida nos prédios dos RR, referindo que o pai destes chegou a ceder uma parcela de terreno a uma cunhada para construção de habitação.
HH, padrinho do autor, sendo a sua esposa prima direita do pai do autor) corrobora as declarações do pai do autor quanto à existência do depósito e o pedido de autorização formulado nos termos descritos por GG, recorda que o pai dos RR comprou aqueles terrenos (prédios identificados nos pontos 5 e 6) e fez os muros, delimitando a sua propriedade.
II (vizinha dos pais dos RR) que descreveu que tinha cães e que teve que os deixar em casa da sua mãe e posteriormente o pai dos réus lhe disse que elas que deixasse os cães irem para o monte que “não era de ninguém” (local onde foram colocadas as casotas e que situa na parcela objecto da controvérsia. Assim fez, logo aparecendo a tia do pai do autor D. QQ (a D. QQ é RR casada com o tio do pai do autor, SS conforme é corroborado pela escritura junta a fls. 92) questionando quem havia autorizado a colocação das casotas naquele trato de terreno ao que a testemunha referiu ter sido o pai dos RR dizendo-lhe “que não era de ninguém”, ao que aquela reagiu dizendo “isto é meu… não é dizer que não é de ninguém”. Mas a D. QQ permitiu que as casotas da testemunha lá permanecessem. Admite que o pai dos réus procedia à limpeza daquele trato de terreno mas apenas rente ao seu muro e não em toda a extensão da parcela, confirmando que as ovelhas dele andavam por ali como andavam as de toda a gente.
TT, vizinha do pai do autor que pertence à sua geração que a todos conhece, desde a mãe dos RR, o Sr. UU (SS) casado com a D. QQ, padeiro de profissão e tio do pai do autor por ser irmão do avô do autor, sempre deambulou por ali, nunca ouviu DD dizer que tinha comprado aquele trato de terreno ou que aquilo pertencia ao seu prédio, nunca lá viu lenha depositada, deslocando-se aquela localidade de quinze em quinze dias por ter lá uma propriedade.
JJ, (conhece o pai do autor por ter para ele trabalhado, e dá-se bem como os réus e com o seu falecido pai,) e em síntese revelou que o seu pai VV ia cortar mato tanto para os ... como para os ..., especificando que foi o “maneta” que mandou cortar os eucaliptos e que este dizia que aquilo era tudo baldio (note-se a que testemunha quanto tinha 10 anos de idade o pai já não era feitor das identificadas famílias mas continuou a residir em ... até há 16 anos), nunca viu DD a praticar qualquer acto naquele trato de terreno, que estava a monte todo por igual, tem conhecimento do depósito da água, cuja limpeza era feita pela Junta de Freguesia, e questionado sobre um bardo de videiras revelou que só recentemente se apercebeu de uns ferros que passam do muro para cá, referindo com objectividade e coerência que primeiro o pai dos réus construiu a casa, depois construiu o muro à face da Rua que dá para o Largo ... e por fim construiu o muro que é paralelo ao Caminho ... (entre muro e o caminho interpõe-se parte da parcela aqui em litigio).
Das testemunhas arroladas pelos réus:
WW, que residiu em ... até aos 25 anos de idade, residindo há 35 anos no Porto mas afirmando que todos os fins-de-semana ali se desloca (é o filho do “maneta” que arrancou os eucaliptos) e afirma que DD limpava os matos, descarregava lenha, tinha colmeias no trato de terreno aqui em apreço – “as colmeias estavam de encosto ao muro”, afirma que há dez anos que o filho do réu, começou a limpar por causa dos incêndios, e pensa que limpavam por ser deles. Mais sustenta que para entrar no depósito que vem sendo referido era preciso entrar pelo portão do Sr. DD, o Sr.UU era pontual nesta questão.
FF, residente em ..., revela que os réus é que limpavam a parcela, refere que as ovelhas tanto andavam ali como em qualquer outro lado, e que desde os dois anos de idade recorda os depósitos, que pensa ter sido o antigo dono Sr. XX que autorizou a sua colocação e que uma vez o presidente da Junta pediu para substituir o depósito por um em inox e que tal foi negado. Depois afirma, e aqui perde a credibilidade que o seu depoimento nos podia merecer que depois do pai dos RR comprar (pensamos o trato de terreno mencionado em 26. Dos factos provados, foram plantados eucaliptos deixando de fora a área da parcela aqui em discussão e daí retira que assim sucedeu por os antepassados do autor não considerarem aquele trato de terreno integrado na sua propriedade.
YY, que reside desde 1976 em Vila Nova de Gaia, mas mantém casa em ..., que de um prisma afirma que nunca viu o autor a limpar o trato de terreno aqui em apreço, mas também nunca viu as colmeias apesar de só ver o pai dos réus a limpar o terreno. Mas estranhamento afirma que o questionaram há 35 a 40 anos a quem é que pediam para passar os canos naquele terreno e que ele respondeu – não precisam que é meu”. Diga-se, desde já, que se esta testemunha só via o pai dos réus a limpar aquele trato de terreno não se percebe qual era a dúvida sobre a quem pediam para passar os canos – notoriamente fica arredada qualquer credibilidade quanto ao seu depoimento.
Neste sentido também o depoimento de ZZ que também disse que queriam saber quem era o dono do terreno e o pai do réu terá dito que era dele, diz que as colmeias eram do filho do DD, pai dos aqui réus, colocava lenha, fazia ali queimadas que até queimava os canos – com tanta actividade até se estranha que as testemunhas não soubessem a quem pediam autorização para passar os canos- quando confrontado com a construção do muro pelo pai dos réus deixando do lado de fora tal trato de terreno sempre acaba por concluir que afinal “quem vedou marcou”.
AAA, nascido em 1965 e que desde 1988 que não reside em ..., que recorda as colmeias do filho de DD e que pensa que o pai também teve, nunca viu o autor a limpar aquele trato de terreno, mas recorda os depósitos de água e que a D. QQ ia lá ver os ditos depósitos (note-se que se nos afigura que existem dois depósitos – um no interior da propriedade dos réus e outro fora dela, no trato de terreno aqui em discussão e que a D. QQ sempre vigiou e se apresentou como uma das proprietárias do terreno – o que é corroborado quer pela escritura de divisão de coisa comum, quer pela escritura de justificação outorgada pelo pai do autor, sendo certo que desse terreno foi desanexado o prédio que hoje pertence ao autor por lhe ter sido doado pelo seu pai. Tudo visto não temos qualquer dúvida que o prédio identificado em 26) não corresponde a parcela assinalada a vermelho no documento supra citado, antes sim faz parte integrante do prédio do autor.
Vejamos.
Tendo presentes os meios de prova já referidos, isoladamente ou conjugados entre si, cumpre concretizar como se formou a convicção do Tribunal, tendo presente que, nos termos do disposto no artigo 342.º do Código Civil, o ónus da prova sobre os factos constitutivos dodireito dos autores (alegados na petição inicial e resposta à excepção suscitada em sede de contestação) impendia sobre os mesmos, que o ónus da prova sobre os factos modificativos e impeditivos alegados pelos réus (na contestação e reconvenção) impendia sobre estes e, ainda, que, nos termos do artigo 414.º do Código de Processo Civil, a dúvida sobre a realidade dos factos alegados resolve-se contra a parte a quem os factos aproveitam.
Assim, no que respeita à matéria de facto dada como provada (ponto 1 a 7, 24, 25, 26, 29, 30) o Tribunal ateve-se na prova documental supra elencada que não foi abalada por qualquer outro meio de prova.
Diga-se que não estava em causa a aquisição de cada um dos prédios por autor e réus.
A controvérsia prende-se, tão só, com a questão de saber se o trato de terreno que se interpõe entre o muro construído pelo pai dos réus e a parcela de terreno assinalada a vermelho no levantamento topográfico junto como doc. 8 com a petição inicial integra o prédio do autor ou dos réus, sendo que a área foi apurada de acordo com o levantamento topográfico realizado pelo pai do autor aquando da desanexação do prédio identificado em 1 dos factos provados.
Tal corresponde à que consta inscrita na matriz e descrita na CRP.
Ao contrário do que sucede com a prova produzida pelos réus, o autor quer pela prova documental, quer pelos depoimentos das testemunhas por si arroladas, logrou demonstrar o trato sucessivo do prédio hoje inscrito na CRP a seu favor, as suas confrontações e a área. Ademais não é pelo facto de o pai dos RR limpar a parcela rente ao muro, ter tido colmeias “de encosto ao muro”, ter ovelhas a pastar como todos os que não tinham pastagens suficientes tiveram na parcela e no monte dos antepassados do autor que tal significa a prática de actos de posse relevantes para o que aqui nos ocupa.
Não se alcançou de qualquer documento, prova testemunhal que o pai dos RR por si ou ante possuidores possuísse o trato de terreno assinalado no croqui a escala já referido.
Nenhuma prova credível foi produzida nesse sentido. Nada indicia tal factualidade, além dos actos praticados com a tolerância do autor, do seu pai, avós e tios avós paternos e bisavó paterno, tudo em conformidade com a confrontação do seu prédio com os dos pais dos RR.
Pelo exposto tivemos por não prova a matéria vertida nas alíneas a) a f).
Quanto à matéria vertida na alínea h) dos factos não provados nenhuma prova segura foi produzida a propósito, sendo certo que a plantação dos eucaliptos e a destruição da plantação estiveram relacionadas com as contendas do pós 25 Abril.
No que concerne à alínea g) apenas uma testemunha referiu que a Junta quis colocar um depósito em inox e que o pai dos RR recusou. Ficou-nos, a impressão que no interior do prédio dos RR, existirá um outro depósito e que para aceder a esse, é que pedem ordem para entrar no quintal, não no que respeita ao depósito situado na parcela do Autor, sendo referido por várias testemunhas que era a D. QQ e o Sr. UU que acompanhavam tais tarefas executadas pela Junta. E foi por escrito que isso foi pedido ao autor, e foi aos antepassados do autor que a Câmara Municipal apresentou a proposta mencionada nos factos provados (ponto 20). De outro prisma os próprios réus nos documentos apresentados para licenciar as habitações dos prédios mencionados em 5 e 6 dos factos provados, também não incluíram o trato de terreno em litígio nesses processos (ponto 25).
Diga-se que o depoimento do pai do autor, apesar da relação que o une ao autor, foi um assomo de verdade, explicitou com rigor o passado do prédio, admitiu que não podia dizer que limpava, porque aquilo era monte, e que apenas quando decidiu dividir o terreno (lote ... da escritura de divisão) entre os filhos passou a ser mais cuidado/limpo, (pontos 14 a 21), sendo que tal depoimento para além de corroborado em muitos aspectos pela restante prova testemunhal, não foi colocado em crise por nenhum outro elemento probatório. Dúvidas não temos sobre a veracidade da prova produzida pelo autor, ao invés do que sucede com os depoimentos das testemunhas dos RR e que em cada momento já fomos assinalando as perplexidades que alguns depoimentos deixaram transparecer.
Depois, decisivo, é ainda o facto do local onde o pai dos réus construiu o muro (ponto 22 e 23).
Ninguém constrói muros deixando parcelas de terreno com esta dimensão fora deles. E em 1970 – data da declaração junta a fls. 62 - não ficou demonstrado que já existisse tal muro, o muro foi contruído depois das casas e depois da construção do muro que deita para o Largo ... e por conseguinte já depois de 1970 pelo que se o prédio identificado em 26) correspondesse à área do prédio do autor certamente que o muro não tinha sido ali construído.
A matéria vertida nos pontos 8 a 13, 27, e 28 não se mostrou verdadeiramente controvertida resultando de forma segura da globalidade da prova produzida.
Concluindo, nenhuma dúvida subsiste quanto aos factos tidos por provados, sendo certo que nenhum depoimento, de forma isolada ou apoiado num outro elemento instrutório contrariou a fundamentação da convicção do Tribunal quanto à verosimilhança de uma determinada realidade de facto, sendo certo que, numa apreciação global da prova, mais nenhum meio de prova confirmou a alegação dos réus.
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3. Do erro de julgamento
Nas conclusões de recurso vieram os apelantes requerer a reapreciação da decisão de facto, em relação a um conjunto de factos julgados provados e não provados, com fundamento em erro na apreciação da prova.
O art. 640º do CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”
O mencionado regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão de facto, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, o qual terá que apresentar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Recai, assim, sobre o recorrente, o ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar os concretos pontos da decisão que pretende questionar, ou seja, delimitar o objeto do recurso, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto, a fundamentação, e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pelo Tribunal da Relação.
No caso concreto, o julgamento foi realizado com gravação dos depoimentos prestados em audiência, sendo que os apelantes impugnam a decisão da matéria de facto com indicação dos pontos de facto alvo de impugnação, indicam a prova a reapreciar, bem como a decisão que sugerem, mostrando-se, assim, suficientemente, reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão.
Tal como dispõe o nº 1 do art. 662º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “(…) se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem um meio a utilizar apenas nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância (sublinhado nosso).
No presente processo, como referido, a audiência final processou-se com gravação da prova produzida.
Segundo ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225, e a respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim, compete ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, face ao teor das alegações do recorrente e do recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Cabe, ainda, referir que neste âmbito da reapreciação da prova vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396.º do Código Civil.
E é por isso que o art. 607.º, nº 4 do CPC impõe ao julgador o dever de fundamentação da factualidade provada e não provada, especificando os fundamentos que levaram à convicção quanto a toda a matéria de facto, fundamentação essencial para o Tribunal de Recurso, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, com vista a verificar se ocorreu, ou não, erro de apreciação da prova.

Posto isto, cabe analisar se assiste razão aos apelantes, na parte da impugnação da matéria de facto.
Como resulta das respetivas conclusões do recurso, os apelantes entendem que deve ser alterada a matéria de facto dada como provada nos números 1, 2, 3, 4 e 29, nos números 14 a 19, nos números 20 e 21, e, ainda, nos números 7, 8, 10, 31 e 32, factos provados que entendem deverem ser considerados como não provados.
Consideram, ainda, que os factos dados como não provados nas alíneas b) a f) e h) devem, por sua vez, considerar-se como provados.

Os apelantes impugnam a matéria de facto por blocos, pelo que iremos começar pelos factos 1 a 4 e 29 dos factos provados, que são os seguintes:
1) Mostra-se inscrito a favor do autor o prédio urbano composto de parcela de terreno com 3.460 m2, destinado a construção, sito no lugar ..., freguesia ..., concelho de Arouca, descrito na Conservatória do Registo Predial de Arouca sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... daquela freguesia.
2) O Autor adquiriu o referido prédio mediante doação de seu pai, GG, conforme resulta do teor da escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Arouca, em 28.04.2017, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
3) O prédio doado ao autor resultou da desanexação daquela área pelo seu pai, efetuada a partir do prédio inscrito na matriz sob o art.º ... que adquiriu por compra e venda verbal ao seus avô e tios-avós paternos por volta do ano de 1976.
4) Por sua vez o referido prédio inscrito na matriz sob o art.º ... havia sido adjudicado ao avô e tios-avós do Autor, no âmbito da escritura de divisão de coisa comum celebrada a 07.06.1976 no Cartório Notarial de Arouca.
29) O prédio identificado em 1) confronta a sul e a poente com caminho, a norte com DD e MM e a Nascente com PP.
Vejamos:
No que diz respeito aos factos 1 a 4 e 29, e como resulta da sentença recorrida, os mesmos fundamentam-se em prova documental que consta dos autos, designadamente, caderneta predial, certidão da Conservatória do Registo Predial, escritura de doação, escritura de justificação e escritura de divisão de coisa comum, prova documental que “não foi abalada por qualquer outro meio de prova”, pelo que não se vê qualquer motivo para alterar os factos provados respetivos, os quais refletem o que consta dos documentos mencionados.

O próximo conjunto de factos impugnado pelos apelantes, é constituído pelos factos provados 14 a 19, que têm o seguinte teor:
14) Há mais 50 anos que os antecessores do pai do autor zelam pelo terreno da parcela dos autos.
15) Na parcela dos autos encontra-se instalado um depósito de água, propriedade da Junta de freguesia ....
16) Depósito que ali (foi) colocado há mais de 50 anos.
17) Com autorização concedida pelos avós e tios-avós do Autor, anteriores proprietários do prédio descrito em 1.º.
18) É ao Autor e antes de si aos seus antecessores que a Junta de freguesia ... pede autorização para aceder a tal depósito aquando da realização de qualquer obra de limpeza ou requalificação do mesmo. [cf. missiva da junta de freguesia junta a fls. 19 verso]
19) Praticando estes atos à vista de todos, de forma contínua e pública, sem a oposição de quem quer que fosse, nomeadamente do falecido DD e/ou dos RR, animados da convicção de serem seus proprietários.
Antes de mais, estranha-se que tenham sido impugnados os factos 15 e 16, já que não resulta que os apelantes neguem a existência do depósito na parcela de terreno em causa, pelo que nada há a alterar.
E mesmo em relação ao facto 18, existe prova documental nos autos que o comprova, sendo certo que em relação a situações anteriores, as regras da experiência comum permitem concluir que quem praticava atos de posse sobre o prédio era quem dava também a autorização referida no preceito.
Já quanto aos atos de posse, logo também quanto aos factos provados 14, 17 e 19, ouvida a prova gravada, não se vê que a mesma tenha sido apreciada de forma incorreta pelo Tribunal recorrido.
De facto, a testemunha GG, pai do autor, como se diz na sentença impugnada e resulta da prova gravada, “explicou com rigor o passado do prédio, admitiu que não podia dizer que limpava, porque aquilo era monte, e que apenas quando decidiu dividir o terreno (lote ... da escritura de divisão) entre os filhos passou a ser mais cuidado/limpo”, sendo certo que o seu depoimento não foi contrariado por outro meio de prova, tendo antes sido corroborado.
Concretamente, a testemunha HH confirmou o que foi dito pelo pai do autor, disse saber de quem era o prédio antes, e explicou que o pai dos Réus comprou os terrenos onde se encontram os prédios identificados nos pontos 5 e 6, e fez os muros, delimitando a sua propriedade, sem incluir a parcela de terreno em questão.
E também a testemunha II, no que para esta questão interessa, disse, a propósito de deixar os seus cães na parcela em causa, que o pai dos réus lhe disse que aquele monte “não era de ninguém”, enquanto que uma tia do pai do autor, que identifica como D. QQ (e que é RR casada com o tio do pai do autor, SS conforme resulta pela escritura junta aos autos), em relação à mesma situação, disse que aquilo era dela, o que vai ao encontro de ser da família do autor. Acresce que, esta mesma testemunha, referindo que o pai dos réus procedia à limpeza daquele trato de terreno, disse que apenas o fazia “rente ao seu muro” e não em toda a extensão da parcela, confirmando que as ovelhas dele andavam por ali como andavam as de toda a gente. Ou seja, não contrariou o que foi dito pelo pai do autor, nem contraria a versão deste.
JJ, por sua vez, disse conhecer o pai do autor por ter para ele trabalhado, e dar-se bem como os réus e com o seu falecido pai, e referiu que nunca viu DD a praticar qualquer ato naquele trato de terreno, que estava a monte, referindo, pelo contrário, que o pai dos réus, primeiro, construiu a casa, depois construiu o muro à face da Rua que dá para o Largo ... e por fim construiu o muro que é paralelo ao Caminho ..., o que demonstra que vedou a sua propriedade, sem incluir na mesma a parcela em causa nos autos.
Mas também as testemunhas arroladas pelos réus, não confirmam a versão destes e acabam por corroborar a versão do autor.
Em concreto, WW referiu que DD limpava os matos, descarregava lenha, tinha colmeias no trato de terreno em causa. Contudo, esclareceu que “as colmeias estavam de encosto ao muro” e que há dez anos o filho do réu, começou a limpar por causa dos incêndios, “e pensa” que limpavam por ser deles, pelo que o seu depoimento nenhuma certeza traz quanto aos factos em causa.
Estes depoimentos, aliados ao facto de o pai dos réus ter murado a propriedade, sem ter incluído a parcela de terreno em causa, permitem concluir, em conjugação com os documentos já referidos supra, que quem tinha a posse dessa parcela eram os familiares do autor e, depois, este, ainda que não fossem muitos os atos concretos praticados, tendo em conta que se trata de um monte e não de um terreno com culturas que impliquem um cultivo ou tratamento mais intensivo.
Não existem, assim, motivos para alterar a matéria de facto referida.

O mesmo vale para os factos 20 e 21 da matéria de facto provada:
20) Em tempos, ainda a parcela de terreno supra identificada em 1) estava junta com a parcela de terreno do irmão do Autor, e ambas na posse do avô e tios-avôs deste, foram as mesmas, objeto de proposta de doação à Câmara Municipal ... para projeto de construção de um Bairro .... [cf. planta da Câmara Municipal ... junta a fls. 20]
21) À data, a parcela dos autos estava incluída no prédio identificado em 1).
Insurgem-se os apelantes contra a consideração destes factos como provados, por entenderem que existe “uma enorme contradição” nos depoimentos das duas principais testemunhas arroladas pelo A./Recorrido, o que não foi relevado pelo Tribunal a quo.
Essa alegada contradição está relacionada com o facto de o pai do A./Recorrido, ter referido ter “comprado” o lote ... ao seu pai e tios, proveniente da escritura de divisão de coisa comum, no ano de 1976, mas, contudo, referir ter apenas realizado a escritura de justificação em 2017, uma vez que foi a forma que arranjou para conseguir legalizar a situação dado que muitos tios se encontravam no Brasil e já haviam falecido, o que a testemunha efetivamente disse, como pudemos verificar na audição da prova gravada.
Porém, dizem os apelantes, a mesma testemunha, GG, pai do Autor, refere também que aquando do primeiro projeto de construção do Bairro ..., a Câmara procurou os proprietários do referido terreno, referindo que os proprietários eram o seu pai e os seus tios, sendo que a contradição se dará pelo facto de o projeto do Bairro ... ter ocorrido entre a década de 1990 e 2000, altura em que, pelas declarações prestadas pela referida testemunha, o proprietário já era o Senhor GG, pai do A.
Pois, não têm razão os apelantes, não ocorrendo a tão grave contradição, já que a testemunha explicou que só em 2017 procedeu à justificação do prédio, pelo que aquando do projeto de construção do Bairro ..., não estando o prédio em seu nome, ou do autor, foi considerado que seria dos anteriores titulares, o que é contrariado, posteriormente, pelo teor da escritura de justificação.

Finalmente, pretendem os apelantes que sejam dados como não provados os factos provados 7, 8, 10, 31 e 32, e que são os seguintes:
7) Os prédios identificados nos pontos 5.º e 6.º são em parte contíguos ao prédio identificado no ponto 1.º.
8) Em 01.05.2018, o R. FF iniciou a limpeza da parcela dos autos.
10) Em julho de 2020, o Réu FF limpou a parcela dos autos, retirando as ervas daninhas e as silvas que ali cresceram;
31) O pai dos RR limpava a parcela rente ao seu muro e teve colmeias encostadas ao mesmo.
32) As ovelhas do pai dos RR e bem assim as de outros residentes do lugar ... pastavam no prédio dos antepassados do autor.
Dizem os recorrentes que os factos referidos não podem ser dados como provados, porque isso significa que não se tenha provado a posse deles, recorrentes, no que à parcela em causa diz respeito.
Afirmam que todas as testemunhas que arrolaram, e mesmo a testemunha II, arrolada pelo autor, afirmam que o pai dos réus, DD, usava essa parcela de terreno em toda a sua extensão, colocando lá colmeias, lenha e cortando o mato e silvas.
Mas não é assim.
Quanto à testemunha II, já supra, referimos que a mesma disse que o pai dos réus colocava colmeias, mas apenas junto ao muro que vedava a sua propriedade, e que as ovelhas andavam no monte, como outras de outras pessoas da localidade, o que nada prova quanto à alegada posse dos réus.
Por sua vez, as testemunhas arroladas pelos réus/recorrentes também não prestaram depoimentos inequívocos no sentido de que o pai dos réus praticava atos de posse concretos sobre a parcela em causa, com a convicção de ser o proprietário, sendo certo que tal é contrariado pelo facto, este, sim, inequívoco, de o pai dos réus ter vedado a sua propriedade com um muro, sem ter incluído a parcela em causa, facto que de acordo com as regras da experiência comum, permite concluir, precisamente, em sentido contrário ao pretendido pelos apelantes.
No que diz respeito aos factos impugnados, em concreto, diremos, ainda, o seguinte:
O facto 7, relativo à contiguidade dos prédios de autor e réus, não se vê que os apelantes tivessem sequer invocado qualquer meio de prova que o contrarie.
Os factos 8 e 10, relativos à limpeza da parcela em causa, resultam como provados da prova produzida, nem se vendo em que medida são impugnados, a não ser pelo facto de aí se referir que o réu “iniciou” a limpeza, sendo tal facto interpretado pelos apelantes como sendo a primeira vez que tal aconteceu, o que contraria a posse que os mesmos alegam.
Mas, o certo, é que o réu deu início à limpeza da parcela, na data em causa, o que foi um dos motivos para a entrada da ação, pelo que os factos se mantêm.
Quanto aos factos 31 e 32, os mesos resultaram inequivocamente provados pelos depoimentos das testemunhas ouvidas, sendo certo que até foi referido que enquanto o pai dos réus foi vivo, nunca houve conflitos.

Por outro lado, no que diz respeito aos factos não provados, as alíneas b) a f) e h) têm a seguinte redação:
b) O terreno mencionado no ponto 26 dos factos provados corresponde à parcela em litígio nos autos;
c) O terreno mencionado no ponto 26 dos factos provados encontra-se devidamente delimitado e distinguido do prédio identificado em 1);
d) O prédio identificado em 1) confronta com o prédio identificado em 26);
e) Desde a data referida no ponto 26), os RR, por si e pelos seus antecessores, têm vigiado a parcela em litígio, e colhido os seus frutos, retirado ervas daninhas e silvas que ali cresciam;
f) Tudo isto sem interrupções, sem oposição de quem quer que seja, com o conhecimento de toda a gente, na séria convicção de não lesarem quaisquer direitos de outrem e, assim, se encontrarem no exercício de um direito próprio;
h) Em momento posterior à compra referida em 26), os antecessores do A. procederam à plantação de eucaliptos na totalidade da sua propriedade, deixando de fora a área da parcela dos autos.
Pretendem os apelantes, em relação a estes factos, que sejam dados como provados.
Mas também sem razão.
Desde logo, não tendo logrado obter a alteração da matéria de facto provada, nunca os factos não provados em causa, poderiam dar-se como provados, sob pena de existir contradição.
Mas, ainda que assim não fosse, o certo é que os meios de prova produzidos não se afiguram suficientes para ser dada como provada tal factualidade.
Aliás, a decisão recorrida fundamentou devidamente a sua decisão a este respeito, nomeadamente quando refere “Ao contrário do que sucede com a prova produzida pelos réus, o autor quer pela prova documental, quer pelos depoimentos das testemunhas por si arroladas, logrou demonstrar o trato sucessivo do prédio hoje inscrito na CRP a seu favor, as suas confrontações e a área. Ademais não é pelo facto de o pai dos RR limpar a parcela rente ao muro, ter tido colmeias “de encosto ao muro”, ter ovelhas a pastar como todos os que não tinham pastagens suficientes tiveram na parcela e no monte dos antepassados do autor que tal significa a prática de atos de posse relevantes para o que aqui nos ocupa.
Não se alcançou de qualquer documento, prova testemunhal que o pai dos RR por si ou ante possuidores possuísse o trato de terreno assinalado no croqui à escala já referido.
Nenhuma prova credível foi produzida nesse sentido. Nada indicia tal factualidade, além dos actos praticados com a tolerância do autor, do seu pai, avós e tios avós paternos e bisavô paterno, tudo em conformidade com a confrontação do seu prédio com os dos pais dos RR.
Pelo exposto tivemos por não prova a matéria vertida nas alíneas a) a f).
Quanto à matéria vertida na alínea h) dos factos não provados nenhuma prova segura foi produzida a propósito, sendo certo que a plantação dos eucaliptos e a destruição da plantação estiveram relacionadas com as contendas do pós-25 Abril. (…)”.
Ao que acresce que, como já referimos e consta da mesma decisão recorrida “Depois, decisivo, é ainda o facto do local onde o pai dos réus construiu o muro (ponto 22 e 23).
Ninguém constrói muros deixando parcelas de terreno com esta dimensão fora deles. E em 1970 – data da declaração junta a fls. 62 - não ficou demonstrado que já existisse tal muro, o muro foi contruído depois das casas e depois da construção do muro que deita para o Largo ... e por conseguinte já depois de 1970 pelo que se o prédio identificado em 26) correspondesse à área do prédio do autor certamente que o muro não tinha sido ali construído.”.
Ou seja, a matéria de facto foi decidida conjugando toda a prova produzida, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e respeitando as regras do ónus da prova.

Posto isto, como se deixou dito supra, o Tribunal da Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “(…) se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem um meio a utilizar apenas nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância, o que não ocorre no caso, pelo que improcede a impugnação da matéria de facto.
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4. Decisão de Direito
Os apelantes discordam da sentença proferida em 1ª Instância, concluindo no seu recurso que a mesma deve ser revogada e substituída por outra que julgue “a ação nos termos peticionados”, supondo-se que isso significa que a ação deve improceder e proceder a reconvenção.
Sucede que, para verem proceder esta sua pretensão, teria que ter procedido a impugnação da matéria de facto, o que não sucedeu.
Assim, com a factualidade dada como provada e não provada pelo Tribunal recorrido, considera-se que nada há a apontar à decisão de direito que consta da sentença sob recurso.
Efetivamente, face aos pedidos formulados, o Autor instaurou ação de reivindicação da parcela de terreno que identifica e que diz fazer parte do prédio inscrito a seu favor.
Ora, no que respeita ao modo de aquisição do direito de propriedade, dispõe o art. 1316º do Código Civil que o direito de propriedade se adquire por contrato, sucessão por morte, usucapião, acessão e demais modos previstos na lei.
Desses modos legítimos de adquirir o direito de propriedade, há uns que são meros atos translativos do direito, também designados de “modos de aquisição derivada”, como são os casos do contrato e da sucessão mortis causa; outros são constitutivos do próprio direito, por isso designados de “modos de aquisição originária”, como são os casos da usucapião (art. 1287º Código Civil), da ocupação (arts. 1318º e ss. do Código Civil) e da acessão (arts. 1325º e ss. do Código Civil).
Tem-se entendido que se alguém invoca como fonte do seu direito uma das formas de aquisição derivada, porque não constitutivas, mas meramente translativas do direito (e, por isso, subordinadas ao princípio "nemo plus juris ad alium transferre potest, quam ipse habet", ou seja, ninguém pode transferir para outrem mais direitos do que aqueles que o próprio tem), não lhe basta provar este modo aquisitivo para que possa ser considerado o titular do direito. Terá ainda que demonstrar que esse direito já existia na titularidade do seu transmitente e bem assim as sucessivas aquisições dos seus antecessores até atingir a aquisição originária em algum deles.
São, no entanto, ressalvados os casos em que existe presunção legal da propriedade, como a resultante do registo (art. 7º do Cód. Reg. Predial) ou a resultante da posse (art. 1268º do Código Civil), porque em tais casos, por força do disposto nos arts. 344º, nº 1 e 350º do Código Civil, cabe à parte contra quem tais presunções são invocadas fazer a prova do seu direito, de modo a ilidir essas presunções.
No presente caso, está em causa o reconhecimento do direito de propriedade plena e exclusiva, sobre o prédio identificado pelo autor no artigo 1º da petição inicial, o qual se mostra inscrito no registo predial competente e registado na Conservatória do Registo Predial a favor do autor, pelo que se verifica a aludida presunção resultante do registo.
Provado está também que o autor adquiriu tal prédio por via da aquisição derivada, através de doação.
Ainda assim, impunha-se analisar se existe uma forma de aquisição originária do direito de propriedade sobre o prédio em causa, a favor do autor, já que os réus impugnam tal direito, invocando que do prédio referido não faz parte a parcela de terreno em discussão nos autos.
Assim, nos termos da lei civil, a posse mantida por certo lapso de tempo faculta ao possuidor a aquisição do direito a que corresponda a sua atuação, por usucapião.
A posse, por sua vez, consiste no poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (pressupondo quer o “corpus”, elemento objetivo da posse, que consiste na prática reiterada e pública de atos materiais correspondentes ao exercício do direito, quer o “animus”, elemento subjetivo, ou seja, a intenção por parte do detentor de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa e não um mero poder de facto sobre ela), podendo a posse ser titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta, tudo de acordo com o estabelecido nos arts. 1251º e 1258º e ss. do Cód. Civil.
No caso concreto, perante a realidade factual provada e descrita supra, tem de concluir-se que o autor/recorrido logrou fazer a prova que lhe cabia – art. 342º, nº 1 do Código Civil, por um lado de que é proprietário do prédio identificado, o qual se mostra registado a seu favor, sendo certo que os apelantes não contrariaram tal presunção, e por outro lado, no sentido de que a parcela de terreno em causa faz parte integrante desse prédio, já que o autor, por si e ante possuidores, tem vindo a praticar sobre o prédio referido, atos de posse com características tais e por período suficiente, que lhe permitem invocar a aquisição do direito de propriedade sobre o mesmo, com as características que apresenta e que incluem a área da parcela em causa, aliás, correspondente ao que se mostra registado, quer em termos de área, quer de confrontações.
Deve, pois, manter-se a decisão recorrida, nos seus precisos termos, já que procedente a ação, improcede necessariamente a reconvenção.
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III- DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a cargo dos apelantes (art. 527.º, nºs 1 e 2 do CPC).

Porto, 2024-04-04
Manuela Machado
António Carneiro da Silva
João Venade