EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
ALIMENTOS
RENDA
Sumário

1 – Dada a tensão entre os interesses contrapostos que no instituto da exoneração do passivo restante se fazem sentir, não tem apoio legal a tese de que o rendimento mínimo necessário para o sustento do devedor seja sempre o das despesas por ele suportadas.
2 – No contexto do incidente de exoneração, em que se impõe aos credores um sacrifício adicional, não se negando que um pai deve, enquanto obrigação natural, ajudar a sustentar o seu filho maior que desse sustento necessite, impõe-se o respeito pelas regras aplicáveis.
3 - Estando o devedor declarado insolvente, a obrigação de prestação de alimentos é regulada nos termos dos arts. 84º e 93º do CIRE, não sendo correta a consideração do respetivo eventual beneficiário como membro do agregado familiar para o efeito de fixação do rendimento disponível.
4 – Não sendo a renda de casa uma despesa comprimível, num caso concreto em que esta atinja cerca de 43% do rendimento auferido pelo insolvente, é adequado excluir do rendimento disponível o montante correspondente a 1,2 vezes a retribuição mínima mensal garantida, num agregado familiar composto por uma pessoa.

Texto Integral

Acordam os Juízes da Secção de Comércio Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório
JV, apresentou-se à insolvência, com pedido de exoneração do passivo restante, alegando encontrar-se em situação de insolvência atual.
A insolvência do requerente foi declarada por sentença de 06/10/2023.
Foi dispensada a realização de assembleia de apreciação do relatório.
O Sr. Administrador da Insolvência juntou aos autos relatório, nos termos previstos no art. 155º do CIRE, no qual requereu prazo para pronúncia quanto ao prosseguimento para liquidação ou encerramento e, relativamente ao pedido de exoneração do passivo restante, emitiu parecer no sentido de que o requerimento deve ser deferido apontando a inexistência de incumprimento das alíneas a) a g) do nº1 do art. 238º, e que o requerente aufere uma reforma mensal de € 1.023,11, paga € 350,00 de renda e tem ainda despesas mensais de cerca de € 700,00.
Nenhum dos credores se pronunciou.
Por decisão do tribunal de 26/12/2023, foi decidido deferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, considerando cedido ao fiduciário nomeado o rendimento disponível que o devedor venha a auferir no prazo de 3 anos a contra da data de encerramento do processo de insolvência, com exclusão da quantia mensal equivalente a 1 salário mínimo nacional, 12 meses por ano, que se destina ao sustento do Insolvente.
Inconformado com a parte da decisão respeitante à fixação do montante do rendimento disponível, apelou a insolvente pedindo seja revogada a decisão recorrida, fixando-se um montante nunca inferior a € 1.140,00, como o montante necessário para o sustento minimamente digno do Insolvente, e, subsidiariamente, seja declarada nula a decisão recorrida com todas as legais consequências, designadamente ordenado que o tribunal a quo agende dia e hora para inquirição das testemunhas arroladas, sem prejuízo da produção de outro tipo de prova, nomeadamente documental e apresentando as seguintes conclusões:
“I. Na petição inicial, o requerente elencou o conjunto de despesas suportadas mensalmente de forma fixa pelo seu agregado, as quais estão directamente relacionadas com as necessidades básicas de qualquer ser humano, sendo certo que, embora tenham sido especificadas e correlacionadas mediante o recurso a quantitativos monetários fixos, as mesmas variam conforme as necessidades do agregado familiar, oscilando ao sabor de factores externos que as afectam.
II. Por referência a um período mensal, computaram como total valor agregado das suas despesas o montante de EUR. 1 140,00 e que constitui uma estimativa realizada “por baixo” daquilo que o agregado do recorrente necessita para suprir as suas necessidades básicas e regulares.
III. Tais contingências/circunstâncias processuais, e extra-processuais, conduziriam à determinação como montante adequado a assegurar o sustento minimamente digno do recorrente, o equivalente a EUR. 1 140,00, daí que se impunha a fixação deste montante, já que os factos que atestam esse valor não foram impugnados.
IV. O Meritíssimo Juiz a quo não procedeu a qualquer diligência tendente a avaliar o acerto dos montantes adiantados, não obstante ter dado como assentes tais despesas alegadas pelo recorrente, os quais consolidaram-se no mundo jurídico-cognoscitivo da lide, porém e ao arrepio do que foi dito, o Meritíssimo Juiz a quo atribuiu ao recorrente o metálico salário mínimo nacional, ou seja, EUR. 820,00, montante inferior ao necessário para a sobrevivência do recorrente, atenta a composição do agregado e as suas inerentes necessidades.
V. Não considerou que no seio de um agregado familiar composto por dois adultos, são inúmeras as despesas que surgem extraordinariamente e que não podem ser quantificadas e determinadas por referência a um período temporal tão curto (mês), i.e., o orçamento mensal nem sempre prevê e está apto a suportar certas despesas.
VI. Com o espartilhamento monetário decorrente da atribuição de um salário mínimo nacional ao recorrente, este terá a tarefa (excessivamente) penosa de ignorar a satisfação de necessidades fundamentais em virtude da indisponibilidade de meios económicos bastantes, abalando a estabilidade económica do recorrente, abeirando-o de uma situação precária e impedindo que o mesmo se reerga.
VII. Até porque ao valor atribuído pelo Tribunal deve ser sempre tido em conta que EUR. 350,00 são para o pagamento da habitação, ficando o recorrente limitado a apenas EUR. 470,00 por mês, violando-se grosseiramente o estatuído no art. 239.º, n.º 3, al. b), subal. i) do CIRE.
VIII. O artigo 239.º, n.º 3, al. b), subal. i) do CIRE, por referência e apelo aos presentes autos, deveria ter sido interpretado e aplicado no sentido de conceder ao requerente o direito a receber EUR. 1 140,00, dado que tal valor constitui um rendimento essencial, incindível daquilo que constitui o “razoavelmente necessário” à sua sobrevivência.
IX. Sem esse rendimento, o recorrente fica despojado de um fundo de maneio necessário e fulcral, destinado a enfrentar dificuldades não previstas, mas essenciais ao pulsar natural do grupo familiar.
X. Deve, portanto, ser atribuído ao recorrente o montante de EUR. 1 140,00, pois este valor capacitá-lo-á de prover a todas as suas necessidades básicas.
XI. Importa, pois, atender ao já doutamente concluído pelo Tribunal Constitucional em acórdão n.º 490/2020, de 6 de Outubro de 2020 e com o relator Fernando Ventura, de que é consabido que o período de cessão não é sinónimo de efectiva reabilitação dos devedores, e muito se deve a um estribo miserabilista de «Chapa 5» do SMN.
AS NULIDADES:
XII. O Tribunal a quo não tomou em linha de conta as despesas indicadas a título de despesas mensais (art. 22.º da petição inicial de fls. __), valor este não impugnado por qualquer credor nem pelo Administrador de Insolvência, logo, configurado como facto assente.
XIII. Além do mais, não explicitou o porquê de desconsiderar o valor total, sendo certo que não exigiu qualquer prova adicional – documental ou testemunhal – relativamente às restantes despesas mensais alegadas pelo recorrente e à situação concreta da sua pessoa e do seu agregado familiar, a única a relevar para se assegurar a dignidade da pessoa humana.
XIV. A desconsideração das despesas concretamente alegadas pelo recorrente, porque relevante para a boa e judicativa decisão, padece de nulidade por violação do art. 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte do CPC art., ex vi art. 17.º do CIRE, a qual desde já se argui para todos os legais efeitos.
XV. Face à omissão de sentença quanto aos factos considerados para a decisão, atendendo a que os factos alegados na petição inicial não foram impugnados, entende o recorrente que o douto Tribunal a quo decidiu em contradição com tal matéria assente.
XVI. Não se descortina o motivo pelo qual o Meritíssimo Juiz a quo na sua douta decisão atribui o valor de EUR. 820,00 correspondente a um salário mínimo nacional.
XVII. Enquanto não for esta contradição eliminada e atendendo ao facto de ser notória e relevante para a própria decisão, encerra a mesma uma nulidade, a qual desde já se argui para todos os legais efeitos nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. c) do CPC, ex vi art. 17.º do CIRE.
XVIII. In limite, deverá ter-se por verificado que a decisão incorre em agravada ambiguidade e obscuridade, tornando-a decididamente ininteligível, uma vez que não se consegue sacar o itinerário cognitivo do julgador. Também por esta razão a decisão recorrida é nula e de nenhum efeito, o que desde já se argui para todos os legais efeitos.
XIX. Esta circunstância determina que a decisão em causa deve ser revogada e substituída por outra que atribua ao recorrente o valor que peticionou a título de rendimento indisponível, ou seja, EUR. 1 140,00.
XX. Ademais, foi indicado, pelo recorrente, na sua petição inicial, prova testemunhal que não foi produzida, o que impediu que aquele pudesse evidenciar concreta e efectivamente que vive com dificuldades económicas e que os valores apresentados no art. 22.º da sua petição inicial e outros também imprescindíveis e incontornáveis à sua subsistência apresentam-se correctos e necessários à sua subsistência digna.
XXI. Assim, a falta da produção da prova testemunhal indicada constitui uma omissão judicial grave, e porque influiu no exame e consequente decisão da causa, encerra uma nulidade processual prevista no art. 195.º do CPC, a qual se argui desde já para todos os legais efeitos.
XXII. Foram violados, entre outros, os arts. 11.º e 239.º do CIRE, arts. 195.º, n.º 1, 411.º e 615.º, n.º 1, als. d), 1.ª parte e c) do CPC e, ainda, o art. 1.º e 18.º da CRP.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido por despacho de 20/02/2024 (ref.ª 149305762).
Foram colhidos os vistos.
Cumpre apreciar.
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2. Objeto do recurso
Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art. 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
Consideradas as conclusões acima transcritas são as seguintes as questões a decidir:
- nulidade da sentença;
- determinação do montante relativo ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, para os efeitos da exoneração do passivo restante.
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Pese embora no introito e no termo das suas alegações o recorrente refira arguir a nulidade da decisão recorrida subsidiariamente, ou seja, para ser conhecida apenas na improcedência do recurso de mérito quanto ao montante a fixar como sustento minimamente digno do devedor, lidas as conclusões[1], que delimitam objetiva e subjetivamente o recurso[2], verifica-se que foram arguidas duas nulidades, nos termos do art. 615º do CPC, sem qualquer indicação do carater subsidiário do respetivo conhecimento.
Nas conclusões XIV, XVII e XVIII, aliás, são arguidas as nulidades “para todos os legais efeitos”, sem qualquer menção de subsidiariedade, pelo que se impõe o respetivo conhecimento, enquanto parte integrante do objeto do recurso.
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Nos termos do disposto no nº1 do artigo 617º do CPC, se a nulidade da sentença for suscitada no âmbito do recurso dela interposto, compete ao juiz apreciá-la, no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso.
No caso presente tal apreciação foi omitida pelo tribunal recorrido, mas, por dispensável para a apreciação do objeto do recurso, clarifica-se que não foi ordenada a baixa do processo para apreciação da nulidade da sentença arguida pela recorrente, a qual se passará a apreciar (art. 617º, nº 5 do CPC).
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3. Fundamentos de facto:
O tribunal recorrido deu como assentes os seguintes factos:
“O Requerente encontra-se reformado desde o ano de 2021, auferindo a título de reforma a quantia de € 1.023,11. Invoca que tem despesas mensais na ordem dos € 1 140,00.”
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Com relevo para a decisão do presente recurso, mostram-se ainda assentes, com base nos termos dos autos, nos documentos juntos ao processo e na ausência de impugnação por parte dos interessados, os seguintes factos:
1 – O requerente nasceu em 26/02/1957.
2 - O requerente vive com um filho maior que contribui mensalmente com € 100,00.
3 – Invocou na petição inicial as seguintes despesas:
- € 500,00 para a alimentação (dado que o agregado familiar é composto por dois adultos);
- € 350,00 para arrendamento;
- € 90,00 para luz, água e gás;
- € 60,00 para televisão e telecomunicações;
- € 45,00 para saúde;
- € 30,00 para transporte;
- € 45,00 para vestuário e calçado;
- € 20,00 para despesas quotidianas (pão, leite, fiambre).
4 - Foi proferida em 06/03/2024, sentença de verificação e graduação de créditos tendo sido verificados, por homologação da lista de credores reconhecidos apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência, créditos reclamados por quatro credores, todos créditos comuns, no valor global de € 39.830,69.
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4. Nulidade da sentença
O recorrente arguiu a nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia, nos termos da 1ª parte da al. d) do nº1 do art. 615º do CPC, aplicável ex vi art. 17º nº1 do CIRE, por não terem sido tomadas em conta as despesas indicadas a título de despesas mensais.
Entende também ter sido cometida a nulidade prevista na al. c) do nº1 do mesmo art. 615º do CPC dado que a sentença encerra contradição entre os factos considerados para a decisão, constantes da petição inicial e não impugnados e a decisão de atribuição do valor correspondente a um salário mínimo nacional.
No limite, deverá ser considerado que a decisão encerra grave ambiguidade e obscuridade, sendo ininteligível, pois não se consegue seguir o itinerário cognitivo do julgador e, logo, nula, nos termos do mesmo preceito.
Acrescenta que foi indicada na petição inicial prova testemunhal, que não foi produzida, o que impediu a prova de que vive com dificuldades económicas e que os valores de despesas que apresentou são corretos e necessários à sua subsistência digna, o que encerra uma nulidade processual prevista no art. 195º do CPC, dado que influiu no exame e decisão da causa.
Apreciando:
Dispõe o n.º 1 do art. 615º do CPC:
«1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.»
O art. 615º do CPC prevê o elenco taxativo de nulidades que podem afetar a sentença.
Como é uniformemente prevenido pela doutrina e jurisprudência, importa sempre distinguir as nulidades de processo e as nulidades de julgamento, sendo que o regime deste preceito apenas se aplica às segundas.
O recorrente arguiu, além das nulidades da sentença uma nulidade processual, nos termos do art. 195º do CPC, pela primeira vez em sede de recurso, que teremos que determinar se pode ser conhecida na presente sede.
Iniciaremos a apreciação pelas nulidades da sentença, cuja oportunidade de conhecimento em sede de recurso se encontra legalmente prevista – cfr. art. 615º nº4 do CPC.
Para os efeitos da alínea d) do nº1 do art. 615º do CPC, quando se comina com nulidade a sentença, em que o juiz “…deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar…” referem-se as questões que constituem o objeto da sentença. Também a alínea d) do nº1 do art. 615º deve ser conjugado com o artº 608º, com vista à determinação das questões a resolver na sentença. Essas questões, aquelas que se impõe ao juiz resolva na sentença são, em primeira linha as questões de forma, alegadas pelas partes ou de conhecimento oficioso e finalmente as questões de fundo, que constituem o mérito da causa, suscitadas pelas partes como fundamento do pedido ou como fundamento das exceções e ainda as que o juiz deva conhecer oficiosamente – cfr. nº2 do art. 608º.
Na lição de Ferreira de Almeida[3] “Integra esta causa de nulidade a omissão do conhecimento total ou parcial do pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão (não fundamentação jurídica adrede invocada por qualquer das partes). Não confundir, porém, questões com razões, argumentos ou motivos invocados pelas partes para sustentarem e fazerem vingar as suas posições (jurídico-processuais ou jurídico-substantivas); só a omissão da abordagem de uma qualquer questão temática central integra vício invalidante da sentença, que não a falta de consideração de um qualquer elemento da retórica argumentativa produzida pelas partes.”
Trata-se, aliás, de questão pacífica na jurisprudência, como nos apontam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa[4] - o dever de decidir tem por referência as questões suscitadas e bem assim as questões de conhecimento oficioso, mas que não obriga a que se incida sobre todos os argumentos, pois que estes não se confundem com “questões”.
“Na verdade, o que a lei impõe é, antes de mais, que os fundamentos e a parte dispositiva de uma decisão sejam construídos em jeito de resposta aos problemas fundamentais com que as partes construíram a causa de pedir, os pedidos ou as exceções; não em jeito de resposta aos raciocínios em que as partes suportam as suas posições. Deste modo, uma decisão não tem de ser o espelho do teor argumentativo da extensão do requerimento ou dos articulados respetivos.
Dito isto, é natural que uma decisão bem fundamentada “dialogue” com a argumentação das partes quando esta seja decisiva na substanciação da causa de pedir, pedidos ou exceções. Ou seja: a não apreciação de certo argumento expendido pela parte pode, indiretamente, ter consequências na (já referida) suficiência do mérito demonstrativo dos fundamentos da decisão, sindicável por recurso, quando admissível.”[5]
Não integra omissão de pronúncia a situação em que a solução dada a determinada questão prejudique o conhecimento de outras.
O tribunal conheceu integralmente o pedido formulado pelo recorrente e ali requerente que nesta fase importava decidir – a apreciação liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Claramente, o tribunal não desconsiderou o valor das despesas concretamente alegadas pelo recorrente, pelo contrário, considerou-as, tanto assim, que não apenas referiu o valor total das despesas invocadas enquanto fundamento de facto para a sua decisão[6], como referiu, na fundamentação jurídica (com sublinhado nosso):
“O valor a fixar terá que levar em consideração que se está perante uma situação transitória, durante a qual o insolvente deverá fazer um particular esforço de contenção de despesas e de perceção de receitas de molde a atenuar ao máximo as perdas que advirão aos credores da exoneração do passivo restante e, por outro lado, atender ao que é indispensável para, em consonância com a consagração constitucional do respeito pela dignidade humana, assegurar as necessidades básicas do mesmo.
Considerando o supra exposto, afigura-se que um salário mínimo nacional, por mês, com referência aos doze meses do ano, é o valor indisponível, pois assegura de forma razoável o sustento mínimo. O Insolvente terá que adaptar a sua vida e restringir as suas despesas que são excessivas e estão desajustadas a um agregado familiar que é composto por uma só pessoa. 500 € mensais de alimentação para uma só pessoa ou 20 € para despesas quotidianas denotam que o Insolvente tem que controlar melhor os seus gastos diários.”
Ou seja, o tribunal considerou totalmente as despesas alegadas pelo recorrente e entendeu que teriam que ser comprimidas, considerando-as excessivas, em fundamentação com a qual o recorrente pode discordar, mas que não configura nulidade por omissão de pronúncia, antes uma questão a apreciar de mérito.
Relativamente ao fundamento previsto na primeira parte da alínea c) do nº1 do art. 615º do CPC trata-se de um dos vícios que respeita à estrutura da decisão – “entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença.”[7]
Nas palavras de Rui Pinto[8] “há vício lógico no próprio silogismo judiciário em que se estrutura a fundamentação da decisão, exigido pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 607.º, porquanto a decisão não é a conclusão lógica daqueles fundamentos, sejam estes as normas aplicadas (premissa maior) ou os factos provados (premissa menor).”
Não se confunde com o erro de julgamento a que se conduzirá uma contradição entre os factos e a subsunção jurídica ou de decisão contra a lei, que respeita ao mérito e ao conhecimento de fundo.
Por sua vez a ocorrência de obscuridade ou ambiguidade que tornem a decisão ininteligível ocorre quando “… (i) de uma parte da decisão se puder retirar mais do que um sentido ou se (ii) não se puder retirar sentido algum – respetivamente, ambiguidade ou obscuridade –, em termos que determinem que a própria decisão não é compreensível, nos termos gerais do artigo 236.º CC, ex vi artigo 295.º CC.”[9] Não se poderá confundir com a discordância – se a decisão é percetível, embora dela se discorde, já não ocorrerá nulidade.
Para a arguição desta nulidade o recorrente já entendeu que os factos relativos a despesas alegados na petição inicial tinham sido considerados na sentença – porque admitidos por acordo – e que a contradição estaria entre estes factos e a decisão de fixação do sustento minimamente digno do devedor, em montante menor que aquelas despesas.
Como já vimos, efetivamente, os factos em causa foram considerados na decisão sob recurso, mas o tribunal não entendeu fixar o montante do sustento minimamente digno no correspondente às despesas. Não se trata de contradição, dado que o tribunal enumerou o montante total das despesas e as considerou excessivas, como já referido, e por esse motivo fixou o montante correspondente à retribuição mínima mensal garantida (vulgo salário mínimo nacional).
Não se surpreende qualquer vício lógico no raciocínio exposto pelo tribunal que, acrescente-se, é bastante claro, não sofrendo, nem de ambiguidade, nem de obscuridade.
O arguido como nulidade analisa-se numa pura discordância com o decidido, que deve ser apreciada em sede de mérito.
A decisão proferida não sofre de nulidade, seja por contradição entre os fundamentos e a decisão, seja por obscuridade ou ambiguidade, nos termos da al. c) do nº1 do art. 615º do CPC.
Resta a análise da nulidade processual arguida, em relação à qual se coloca a questão de saber se o vício em causa pode ser reconhecido e declarado nesta instância, ou se devia antes ter sido reclamada perante o tribunal onde o vício se consumou.
Como já referia Alberto dos Reis[10] “A arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou omissão do acto ou formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente.”
Também Manuel de Andrade ensinava que, “Mas se a nulidade está coberta por uma decisão judicial (despacho), que ordenou, autorizou ou sancionou o respetivo acto ou omissão (ainda que só de modo implícito, refere em nota de rodapé), em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. É a doutrina tradicional, condensada na máxima: dos despachos recorre-se; contra as nulidades reclama-se.”[11]
Antunes Varela partilhava a mesma visão “Se, entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão.”[12]
Mantêm atualidade estes ensinamentos, como se pode colher do Ac. STJ de 23/06/2016 (Abrantes Geraldes – 1937/15)[13]:
“Em tais circunstâncias, depara-se-nos uma nulidade processual traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve, mas que se comunica ao despacho saneador, de modo que a reacção da parte vencida passa pela interposição de recurso da decisão proferida em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d), in fine, do CPC.
É esta a posição assumida por Teixeira de Sousa quando, no comentário ao Ac. da Rel. de Évora, de 10-4-14 (www.dgsi.pt), observou que ainda que a falta de audição prévia constitua uma nulidade processual, por violação do princípio do contraditório, essa “nulidade processual é consumida por uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1, al. d), do NCPC), dado que sem a prévia audição das partes o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão” (em blogippc.blogspot.pt, escrito datado de 10-5-14).”
A nulidade apontada – omissão de produção de prova testemunhal – ficou coberta por uma decisão que pressupôs a sua desnecessidade, pelo que estamos ante um caso clássico de alegada nulidade processual coberta por um despacho, pelo que podia ser arguida apenas em recurso e, consequentemente, deve aqui ser conhecida.
Mas na verdade estamos ainda a analisar uma discordância com o decidido e, na visão do recorrente, um erro de julgamento, a mesma e exata discordância que já diagnosticámos no conhecimento das nulidades arguidas ao abrigo do art. 615º do CPC.
O tribunal considerou a factualidade relevante alegada na petição inicial, nomeadamente as despesas e a composição do agregado familiar. Não os questionou e considerou-os assentes. Assim sendo, não necessitava de produzir qualquer prova – não tendo sequer exigido prova documental das despesas alegadas. Mas face a este quadro factual, o tribunal considerou, fundamentando, que o devedor deveria reduzir o seu nível de despesas e fixou, como montante a partir do qual deveria ser cedido o rendimento disponível um montante diverso do valor das despesas. A não produção de prova, como se depreende, não teve qualquer influência na decisão da causa.
Improcedem, assim, todas as nulidades arguidas.
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5. Apreciação do mérito do recurso:
A exoneração do passivo restante é um instituto introduzido, de forma inovatória, em 2004, pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, e que confere aos devedores pessoas singulares uma oportunidade de começar de novo – o fresh start.
Nos termos do disposto no art. 235.º do CIRE: «Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.»
“A principal vantagem da exoneração é a libertação do devedor das dívidas que ficaram por pagar no processo de insolvência, permitindo-lhe encetar uma vida nova.”[14]
É, antes de mais, uma medida de proteção do devedor mas que joga com dois interesses conflituantes: a lógica de segunda oportunidade e a proteção imediata dos interesses dos credores atuais do insolvente.
Não esqueçamos que o processo de insolvência «…tem como finalidade a satisfação dos credores…» como se prescreve logo no art. 1º do CIRE. Este instituto posterga essa finalidade em nome não apenas do benefício direto (exoneração e segunda oportunidade) do devedor, mas de uma série de interesses de índole mais geral: a possibilidade de exoneração estimula a apresentação tempestiva dos devedores à insolvência, permite a tendencial uniformização entre os efeitos da insolvência para pessoas jurídicas e pessoas singulares e, em última análise, beneficia a economia em geral, provocando, a contração do crédito mas gerando maior responsabilidade e responsabilidade na concessão do mesmo.[15]
Essa tensão entre dois interesses opostos, reflete-se, mas várias normas que regulam a exoneração, desde logo na opção do nosso legislador pelo regime do earned start, ou reabilitação (por contraposição ao fresh start puro), ou seja, fazendo o devedor passar por um período de prova e concedendo o benefício apenas se o devedor o merecer.
É também o modelo eleito a nível europeu, como resulta da Diretiva 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2019 (sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas)[16], transposta pela Lei nº 9/2022 de 11 de janeiro, e que, em matéria de exoneração ou perdão, na linguagem da diretiva, prevê o acesso ao perdão total da dívida aos empresários, deixando aos Estados a opção de o aplicar aos consumidores (cfr. considerando 21), após um prazo não superior a três anos, possibilitando a reserva a devedores de boa-fé e à verificação do cumprimento de determinadas condições – cfr. arts. 20º a 24º da diretiva, em especial o artigo 22º.
A ponderação destes interesses contrapostos deve ser considerada como guião para a interpretação das normas dos arts. 235º e ss. do CIRE, como resulta, entre outros, do Ac. STJ de 02-02-2016 (Fonseca Ramos – 3562/14) e TRP de 15-09-2015 (José Igreja de Matos – 24/14)[17], entre as quais o art. 239º.
Estabelece o art. 239º nº3 do CIRE que integram o rendimento disponível do devedor, a ceder ao fiduciário durante o período de cessão de rendimentos:
«…todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
(…)» (sublinhado nosso).
Razoavelmente necessário e sustento minimamente digno são conceitos indeterminados a preencher pelo juiz, com apelo ao conceito fundamental de dignidade humana, consagrado nos arts. 1º e 26º da Constituição da República Portuguesa.
Temos que ter presente, no momento da fixação do rendimento disponível que estaremos, porque ultrapassada a decisão liminar, ante um devedor de boa-fé (a inexistência desta levaria, idealmente, na economia normativa, ao indeferimento liminar do pedido[18]) e que jogar a sua dignidade com o sacrifício que vai ser imposto aos seus credores implica um sacrifício da sua parte: “com esta afirmação pretende-se dizer que o devedor insolvente não deve manter o mesmo nível de vida anterior, devendo sacrificar-se numa medida razoável perante os factos apresentados ao juiz; mas o devedor também não deve ser penalizado como se fosse culpado pela sua insolvência.”[19]
A determinação da medida do sacrifício razoável tem levado à indagação da existência de um limite mínimo, não determinado por lei.
Como refere criticamente Ana Filipa Conceição, tem sido afirmada a ideia de que um salário mínimo nacional por insolvente é um mínimo de sobrevivência adequado, quando a lei impõe, rigorosamente uma averiguação casuística[20].
Concordamos com o raciocínio mas não podemos deixar de frisar que, e seguindo a linha condutora do Ac. STJ citado acima, o que é muitas vezes decidido é que o salário mínimo nacional é o limiar mínimo abaixo do qual não deve passar-se, no exato sentido de que não poderá nunca, sejam quais forem as condições do insolvente e do seu agregado, fixar como sustento minimamente digno do devedor menos que um salário mínimo por devedor, nomeadamente rejeitando que o Rendimento Social de Inserção possa cumprir esse papel – cfr. também os Acs. TRC de 06/07/2016 (Falcão de Magalhães – 334/15), TRE de 04/12/14 (Cristina Cerdeira – 1956/11), TRP de 22/05/19 (Maria Cecília Agante – 1756/16), TRL de 27/02/18 (Higina Castelo – 1809/17) ou TRP de 16/09/14 (Maria Amália Santos – 1940/12)[21].
Refira-se, também que é recorrente a menção à falta de prova de elementos que permitam uma apreciação mais casuística, o que justificará, que, por um lado se busque um limiar mínimo abstrato e, por outro, que esse limiar mínimo venha tantas vezes a ser fixado.
Finalmente, e com os Acs. TRP de 16/09/14, já citado e TRP de 12/04/2021 (Pedro Damião Cunha - 2221/20), dada a tensão entre interesses contrapostos que no instituto se fazem sentir, diremos que não tem apoio legal a tese de que o rendimento mínimo necessário para o sustento do devedor seja sempre o das despesas por ele suportadas, o que parece ser a tese do recorrente. Em alguns casos poderá ser, noutros nem tanto, mas sempre sem aderirmos à tese de que há que proceder a uma adequação comportamental punitiva pelo facto de ter chegado a uma situação de insolvência.
Neste primeiro ponto nos afastamos das alegações do recorrente que assume, precisamente, que o montante relativo ao sustento minimamente condigno sempre corresponderá ao das despesas apresentadas. Não é assim e tanto o disse o despacho recorrido.
No nosso caso concreto temos um insolvente, que aufere mensalmente uma pensão de reforma de € 1.023,11.
O seu agregado familiar é composto pelo próprio e por um filho maior, que alega auferir apenas o salário mínio nacional, contribuindo com € 100 mensais para o sustento.
As despesas que alega, de alimentação (€ 500 mensais) especificamente foram indicadas como sendo de dois adultos. São ainda alegadas despesas não quantificadas com o sustento dos netos quando estes ficam com o pai, o referido filho maior.
O despacho recorrido entendeu fixar o rendimento disponível tendo em conta um agregado familiar composto apenas de uma pessoa.
O recorrente pretende se considere este um agregado de duas pessoas, dois adultos alicerçando nesta pretensão parte do seu pedido de alteração do rendimento disponível fixado.
Tal como frequentemente acolhido nos nossos tribunais, a denominada “escala de Oxford”, tem servido de referência, mas não de modelo exato para a fixação da medida do rendimento mínimo de sobrevivência com dignidade. É um ponto de referência, uma escala de equivalência que pode servir como padrão, mas que não afasta a necessidade de apuro casuístico – ver neste sentido, entre outros, o Ac. TRC de 21/01/2020 (Maria João Areias – 49/15) ou o Ac. TRG de 17/05/2018 (António Barroca Penha – 4074/17), ou TRL de 27/09/2018 (António Santos – 15558/16)[22].
Tendemos a concordar com o uso da escala para determinar a capitação dos rendimentos de um agregado familiar como um patamar mínimo: na maioria dos casos a atribuição do índice 100 ao 1º adulto, 0,7 ao 2º adulto e 0,5 por cada criança corresponderá, fazendo coincidir o índice 100 à retribuição mínima mensal garantida[23], o vulgarmente designado salário mínimo nacional, ao patamar mínimo de sobrevivência com respeito pela dignidade.
Há duas questões a apreciar: a composição do agregado familiar e o nível (geral) das despesas apresentadas, versus os rendimentos.
Começaremos por referir que o facto de o filho do devedor, maior viver com o mesmo não implica que deva ser efetuada a capitação por agregado familiar nos termos referidos.
Juridicamente a obrigação de sustento dos filhos apenas se verifica durante a menoridade e, após a maioridade nos termos do art. 1880º do CC (enquanto não houver maioridade económica por não completude de formação profissional).
Pais e filhos, porém, são obrigados naturais dada a previsão do nº2 do art. 1874º do CC – existe, reciprocamente, um dever de assistência entre pais e filhos que se mantém toda a vida.
O que corresponde à maioria das situações de facto – os pais ajudam os filhos e os filhos ajudam os pais – os laços e a afetividade assim o explicam.
Mas no presente contexto, em que estamos a impor aos credores um sacrifício adicional, não se negando a realidade da vida, ou seja, que um pai deve, mesmo enquanto obrigação natural, ajudar a sustentar o seu filho que desse sustento necessite, impõe-se o respeito pelas regras aplicáveis.
Estando o devedor declarado insolvente a obrigação de prestação de alimentos é regulada nos termos dos arts. 84º e 93º do CIRE, não sendo correta a consideração do beneficiário como membro do agregado familiar[24].
Contar com um filho maior (e produtivo) para o efeito de fixação das despesas para a finalidade de fixação do rendimento disponível é sacrificar os credores sem qualquer fundamento legal.
Até porque o dever de assistência é recíproco e sobre os familiares em economia comum recai também a obrigação de comparticipar nas despesas que provoquem ou agravem – como o faz o filho do insolvente, razão pela qual, mesmo considerando-se todas as despesas alegadas, ter-se-ia que descontar € 100, fixando as despesas num total de € 1.040,00.
Assim, temos a considerar, tal como o fez o tribunal recorrido, o sustento de uma pessoa maior, ou seja, o devedor.
Concordamos, como já referido, que a remuneração mínima garantida pode não ser o mínimo, e que as despesas apuradas podem elevar (nunca baixar), esse mínimo de sobrevivência, no caso concreto. Mas, como já referimos e frisamos, isso não quer dizer que o mínimo de sobrevivência seja sempre igual às despesas apresentadas.
Há assim, a considerar, como o fez o tribunal recorrido, um montante menor de alimentação – não se compreendendo sequer uma verba mensal de € 20,00 para despesas quotidianas elencadas como de alimentação, e a necessidade de comprimir outro tipo de despesas, como por exemplo, todos os meses, € 45 em vestuário e calçado.
Tendo em conta que a renda de casa não é uma despesa comprimível e que atinge cerca de 43% do rendimento auferido pelo insolvente, no caso concreto, tem-se por adequado para o caso concreto excluir do rendimento disponível o montante correspondente a 1,2 vezes a retribuição mínima mensal garantida. Tal tem em conta as despesas correntes de um agregado familiar de uma pessoa.
O recorrente argumenta com o surgimento de despesas extraordinárias (cls. V) e necessidade de um fundo de maneio (cls. IX). Sucede que esse tipo de despesas extraordinárias podem ser ressalvadas desde que devidamente justificadas, por decisão do juiz a requerimento do devedor, nos termos da subalínea iii) da alínea b) do nº3 do art. 239º do CIRE, não devendo ser consideradas para os efeitos da subalínea i) da mesma alínea, número e artigo. Por outro lado, os três anos do período de cessão não são compatíveis com o ressalvar de quantias para fundo de maneio do devedor. É um período de sacrifício que é compensado no final com o perdão dos créditos.
Acrescente-se ainda que o douto Ac. do Tribunal Constitucional citado pelo recorrente (nº 490/2020, relatado por Fernando Ventura) em nada se relaciona com o montante do rendimento disponível, antes declarando a inconstitucionalidade do nº4 do art. 248º do CIRE[25] e ali se referindo, expressamente que “A medida assenta na concessão ao devedor de uma oportunidade de reabilitação financeira através da libertação do peso (total ou em parcial) do passivo acumulado, que se revelou incapaz de satisfazer, ultrapassado que seja um período alargado – cinco anos – durante o qual os seus rendimentos disponíveis são destinados ao pagamento dos credores.”
O que significa que, no caso em apreço, no ano de 2024 – a decisão recorrida data de 26-12-2023 – o valor correspondente ao rendimento indisponível mensalmente calculado é de € 984,00 (€ 820 x 1,2).
O valor que exceda este montante e que corresponde ao rendimento disponível, deve ser entregue ao fiduciário, todos os meses, ponderando os 12 meses do ano (calendário gregoriano), tendo por referência o período de cessão.
Nestes termos, procedendo, embora não integralmente, as conclusões do recurso, impõe-se a revogação correspondente da decisão recorrida.
*
Custas pelo recorrente, sem prejuízo do disposto no art. 248º nº1 do CIRE e do eventual benefício de apoio judiciário – arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil.
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6. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em, julgando parcialmente procedente a apelação, alterar a decisão recorrida e, consequentemente, fixar como rendimento indisponível a quantia correspondente a 1,2 remunerações mínimas mensais garantidas.
Custas pelo recorrente, sem prejuízo do disposto no art. 248º nº1 do CIRE e do benefício de apoio judiciário.
Notifique.
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Lisboa, 7 de maio de 2024
Fátima Reis Silva
Manuel Marques
Amélia Sofia Rebelo
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[1] O mesmo resultando da motivação.
[2] Como escreve Abrantes Geraldes em Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, 2022, pg. 186 “As conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso, como clara e inequivocamente resulta do art. 635.º, n.º3. Conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões do recurso devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do Tribunal Superior, em contraposição com o que foi decidido pelo tribunal a quo.”
[3] Em Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, 2015, pg. 371.
[4] Em Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pg. 738.
[5] Rui Pinto, Em Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º CPC), Julgar Online, maio de 2020, pg. 26.
[6] Cfr. ponto 3 deste acórdão.
[7] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre em Código de Processo Civil anotado, vol. 2º, 4ª edição, Almedina, 2019, pg. 736.
[8] Em Os meios reclamatórios comuns …, pgs. 18 e ss.
[9] Rui Pinto, local citado na nota anterior.
[10] Em Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2º, Coimbra Editora, 1945, pg. 507.
[11] Em Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pg.183.
[12] Em Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, 1985, pg. 393.
[13] Disponível em www.dgsi.pt, como os demais citados sem referência.
[14] Catarina Serra in Lições de Direito da Insolvência, Almedina, Abril de 2018, pg. 560.
[15] Neste sentido Catarina Serra, local citado, pgs. 562 e 563.
[16] Texto disponível in https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32019L1023&from=PT
[17] Todos disponíveis em www.dgsi.pt
[18] Neste sentido, ou seja, de que o conjunto de requisitos ou condições de acesso à exoneração previstos no art. 238º do CIRE se destinam a comprovar a boa-fé do devedor Ana Filipa Conceição in A jurisprudência portuguesa sobre exoneração do passivo restante”, Julgar Online, junho de 2016, pg. 11.
[19] Local citado, pg. 12.     
[20] Local citado, pg. 12.
[21] Todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[22] Todos disponíveis, tal como os demais citados sem referência, em www.dgsi.pt.
[23] Fixada, para 2024, em Portugal Continental em € 820, nos termos do art. 3º do Decreto-Lei n.º 107/2023 de 17 de novembro.
[24] Neste exato sentido Ac. TRP de 24/09/2020 (Paulo Duarte Teixeira – 4303/18).
[25] Que veio a ser declarado inconstitucional com forma obrigatória geral pelo Ac. do Tribunal Constitucional nº 418/2021 (DR Iª série nº 142/2021, de 23/07/2021) e revogado pela Lei nº 9/2022 de 11 de janeiro.