REGRAS DA EXPERIÊNCIA
IN DUBIO PRO REO
Sumário

I.–Tendo o tribunal recorrido dado como provados os factos controvertidos com base nas declarações da assistente que considerou objetivas, vivenciadas e credíveis, conjugadas com o teor das mensagens escritas, confessadamente enviadas pelo arguido, que também considerou compatíveis com as expressões ofensivas e depreciativas relatadas pela assistente, mostra-se demonstrada uma opção lógica e admissível face às regras da experiência.

II.–Não há necessidade de fazer apelo ao princípio in dubio pro reo quando o juiz não é confrontado com qualquer dúvida insanável sobre a verificação dos factos, inexistindo a possibilidade razoável de uma solução alternativa ou de uma explicação racional e plausível diferente da que mereceu o acolhimento do tribunal recorrido.

(Sumário da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

Acordam, em conferência, as Juízas Desembargadoras da 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–RELATÓRIO


1.–No Processo n.º 103/21.8PALSB do Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 6, foi proferida Sentença em 23.06.2023 que decidiu nos seguintes termos:

“Por tudo quanto fica exposto, decide-se:
- condenar o arguido AA pela prática, como autor, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º1, alíneas b) e c), do Código Penal, na pena de um ano e oito meses de prisão, suspensa na execução pelo período de dois anos e seis meses, com regime de prova, devendo o Plano de Reinserção Social ser direccionado à consciencialização por parte do arguido, da importância dos bens jurídicos protegidos pelo tipo legal violado;
- condenar o arguido demandado a pagar à assistente o valor de 1.000,00€ (mil euros), montante a que acrescem juros contabilizados desde a notificação do demandado para contestar até integral pagamento”.
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O arguido recorreu do referido Acórdão, vindo a ser proferido Acórdão nesta Relação de Lisboa, datado de 17.10.2023, que decidiu:
“(…) declarar a nulidade da sentença recorrida, devendo o processo regressar à primeira instância, para ser elaborada nova decisão final, na qual seja completada a motivação com o devido exame crítico das provas”.
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2.–Foi proferida nova Sentença na 1ª instância, em 09.01.2024, com dispositivo igual ao da Sentença originária.
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Inconformado, o arguido/demandado interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:

I.– O Recorrente não se conforma com a Decisão que resultou da Sentença, que o condenou pela prática de um crime que não cometeu.
II.–O Tribunal não baseou a sua Decisão num correto encadeamento dos factos, assim como não procedeu a uma rigorosa avaliação das declarações da Assistente e dos depoimentos das testemunhas que considerou.
III.–Aspetos relevantes da matéria de facto e de direito foram incorretamente julgados, o que veio a redundar na condenação ora posta em crise, com a apresentação do presente recurso.
IV.–Com o mais elevado respeito, o Tribunal a quo não andou bem e pecou pela injusta e infundada Decisão que proferiu.
V.–Entende-se que o Tribunal a quo chegou a conclusões que não poderia ter chegado com a prova produzida em sede de julgamento, existindo um claro erro de julgamento, resultando numa clara violação dos princípios constitucionais da presunção da inocência e do in dubio pro reo, favoráveis ao Arguido.
VI.–O Recorrente não aceita que em função do que foi alegado pelas declarações da Assistente e dos depoimentos das testemunhas, se tenham dado como factos provados, os pontos 4., 6., 7., 12. e 15. a 17. da douta sentença, sendo estes os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, ou que pelo menos, de acordo com toda a prova produzida em julgamento jamais poderiam resultar na condenação do ora Recorrente.
VII.–Em primeiro lugar, questiona-se, quais foram os elementos que caracterizam a experiência comum, pelos quais se socorreu o Tribunal a quo para formular a sua convicção e dar como provados os pontos 4. da douta sentença.
VIII.–Embora seja evidente que a Assistente tenha declarado que o Arguido lhe imputou algumas expressões tais como: “gorda”, “burra”, “tens de voltar à escola”, a verdade é que o Arguido nas suas declarações negou que tenha apelidado alguma vez a Assistente nesses mesmos termos.
IX.–E nenhuma testemunha, ou sequer mensagem de texto ou email, conseguem corroborar a versão apresentada pela Assistente.
X.–Mas não só, a Assistente de forma bastante vaga e inconclusiva alega que tais nomes lhe eram dirigidos “Muitas vezes, diariamente”, sendo que mais tarde vem alegar que afinal tais expressões só eram utilizadas quando estavam juntos, nomeadamente ao fim-de-semana, o que nos leva a crer que desta forma não é possível localizar no tempo, ou em que circunstâncias, ou em que discussões concretas lhe foram imputadas tais expressões.
XI.–Ainda assim o Tribunal a quo preferiu render-se às declarações genéricas da Assistente e dar como provados os factos constantes no ponto 4.
XII.–Neste sentido, o Tribunal da Relação de Évora, proferiu acórdão datado de 26-01-2021, no processo 229/18.5GBGDL.E1, concordando com a motivação do Tribunal a quo, que absolveu o arguido da prática do crime de violência doméstica, a qual foi objeto de recurso pelo MP e Assistente, com a seguinte conclusão: “(…) com a ausência de concretização factual que é sancionada pela jurisprudência (veja-se a este propósito o recente Acórdão da Relação de Coimbra de 17-01-2018, disponível em www.dgsi.pt, cujo entendimento igualmente perfilhamos) a factualidade não provada reconduzida aos n.°s 1 e 2 dos factos não provados, resultam da impossibilidade de aquilatar da veracidade, lógica ou coerência dos elementos objectivos relatados, da sua periodicidade ou reiteração. Com efeito, uma narrativa genérica dá para tudo e impede a corroboração, porquanto, diga-se o que se disser, à partida estará tudo certo”.
XIII.–Jamais poderia ter concluído o Tribunal a quo que o Recorrente “4. Desde Agosto de 2020, quando o arguido soube que a assistente se encontrava grávida, até 8 de Fevereiro de 2021, o arguido AA, com uma frequência não inferior a uma vez por semana, no decurso de discussões, dirigiu a BB expressões como “gorda”, “burra”, “tens de voltar à escola”.
XIV.–Porquanto, a Assistente, utilizando as doutas palavras do Acórdão supra referido, apegou-se a “uma narrativa genérica dá para tudo e impede a corroboração, porquanto, diga-se o que se disser, à partida estará tudo certo”.
XV.–Isto é, nunca conseguiu localizar momentos concretos, situações concretas ou locais concretos onde o arguido possa ter recorrido às expressões que lhe são imputadas.
XVI.–Existindo uma clara violação do princípio "in dubio pro reo", que não foi aplicado, de forma errada, pelo Tribunal “a quo”.
XVII.–Mas não só, veja-se do teor das declarações da Assistente a parcialidade com que depôs, negando de forma ostensiva que alguma vez tenha imputado expressões ofensivas ao Recorrente, o que se veio a verificar mais tarde que afinal de contas, a Assistente, de acordo com a parte final das suas declarações, confessa que também proferiu expressões com conteúdo desonroso e ofensivo ao Recorrente – “(…) ASSISTENTE [01:07:29] Num contexto de alguma conversa. Exatamente. Posso ter usado, efetivamente, essas palavras. (…)”.
XVIII.–Mais mentiu ao Tribunal a quo! Negando, inicialmente, ter dirigido ao Arguido expressões ofensivas, por mensagens escritas (factos dados como provados no ponto 14. Dos factos provados da sentença ora recorrida. Sendo que apenas “confessou” ter remetido tais escritos depois de confrontada com os mesmos.
XIX.–Nestes termos, questiona-se como é que poderá o Tribunal a quo ter valorado as declarações da Assistente, as quais estão sujeitas ao dever de verdade, quando as suas declarações na sua globalidade foram genéricas, incertas e falsas? No mínimo, deveria o Tribunal a quo ter dado como facto não provado o ponto 4. dos factos provados.
XX.–Outro dos exemplos que demonstra os verdadeiros intentos da Assistente, de querer a todo o custo imputar factos falsos ao Arguido, foram as declarações prestadas ao redor do ponto 5. da acusação pública, que resultou em facto dado como não provado: “que o arguido tenha deliberadamente causado avaria na centrifugadora da assistente”.
XXI.–Veja-se que inicialmente a Assistente em instâncias da Meritíssima Juiz refere que o dano na centrifugadora foi por mau uso, e mais tarde, em instâncias da Digníssima Procuradora, afinal, já foi por um acto de raiva.
XXII.–Sendo notório que o discurso da Assistente foi largamente parcial, o que se percebe atenta a sua posição processual.
XXIII.–No que toca à motivação, que levou o Tribunal a quo determinar que o facto descrito no ponto 4. Dos factos provados da douta sentença, é errado afirmar que o discurso da Assistente foi corroborado pelas demais testemunhas.
XXIV.–Porquanto a “corroboração” de todas as testemunhas baseia-se no “diz que disse”, isto é, são depoimentos indiretos, os quais não poderiam ter auxiliado o Tribunal para fundamentar a sua decisão,
XXV.–Facilmente, nos apercebemos que os argumentos oferecidos pelo Tribunal a quo e que fundamentam a sua Motivação, são hipotéticos e baseiam-se tão só em suposições, valorando tão só as declarações da Assistente, as quais tal como se demonstrou supra não merecem qualquer credibilidade,
XXVI.–Se realmente o Arguido proferia as expressões que lhe são imputadas, seria perfeitamente razoável e natural que o Arguido as utilizasse nos emails e mensagens de texto que remetia à Assistente, no entanto, nos presentes autos não consta nenhum escrito remetido pelo Arguido à Assistente com esse “palavreado”.
XXVII.–Mas não só, o facto do Tribunal a quo, conhecer de antemão, o primeiro recurso interposto pelo Recorrente, leva a Defesa a crer que a Sentença da qual se recorre, foi articulada a fim de, objetivamente, abalar os argumentos apresentados nesse primeiro recurso! E de certa forma diga-se que a motivação apresentada não corresponde minimamente à experiência comum e ainda menos à realidade!
XXVIII.–É que da experiência comum, e atentas as novas tecnologias associadas às redes sociais é sem dúvida plausível que no seio de uma relação que se diga tóxica ou menos cortês, as expressões que são remetidas oralmente, também são proferidas por escrito.
XXIX.–Acreditamos sim que a Assistente, utilizou expressões aleatórias e inventadas à pressa para construir uma falsa imagem do arguido.
XXX.–Chegando ao ponto do Tribunal a quo ter dado como assente na sua motivação que “(…) também foi importante o depoimento da sua mãe assistente, que explicou que recebeu a sua filha na sua casa, durante a gravidez, inicialmente de forma esporádica e, depois, a título duradouro, apercebendo-se que a mesma se encontrava sempre muito nervosa, ansiosa e receosa, tendo relacionado tais sentimentos com a conduta do arguido a partir das confidências que a assistente lhe fez”.
XXXI.–Ou seja, o facto da Assistente ter diabetes do tipo 2 (dois), o facto de ter sido declarado que a gravidez da Assistente era de risco, o facto do Arguido não aceitar a prossecução da gravidez, desejando o aborto, e ainda o facto da Assistente sentir que a sua gravidez não era desejada pelo seu companheiro, não serão argumentos, que só por si, com base na experiência comum e na avaliação do homem médio, são suficientes para despoletar nervosismo, ansiedade e receio?
XXXII.–No entanto, para a Assistente, nenhum destes argumentos teve peso na sua decisão de se mudar para a casa da sua mãe, “inicialmente de forma esporádica”.
XXXIII.–Preferindo fundamentar a sua decisão de se mudar, no facto de, alegadamente, o arguido lhe ter proferido “diariamente”, e depois “semanalmente”, as expressões enunciadas no ponto 4. Dos factos dados como provados da douta sentença.
XXXIV.–A Testemunha CC, que manteve um contacto regular com a Assistente e que “acompanhou a gravidez toda da DD”, nunca viu e nunca ouviu nada, mas mais estranho é que de acordo com a relação que as mesmas tinham, porque razão é que a Assistente nunca confidenciou à Testemunha as expressões “gorda”, “burra”, “tens de voltar à escola”?
XXXV.–Quanto ao ponto 6. dos factos dados como provados na douta sentença, o Tribunal a quo, salvo melhor opinião, não possui dados suficientes para dar como provado que “No dia 19 de Fevereiro de 2021, em contacto telefónico, o arguido AA, exaltado, disse a CC, sua irmã, que tinha a intenção de pegar fogo ao carro de BB e à casa da mesma.”
XXXVI.–Jamais se poderia ter considerado que o Recorrente “tinha a intenção de pegar fogo ao carro de BB e à casa da mesma”.
XXXVII.–Senão vejamos, a Testemunha refere primeiramente (minuto [00:07:20]) ”Ouvi sim senhora. E foi ele o próprio quem me ligou. Quando as coisas descambaram, de facto, ele ligou-me ... eu já não me recordo muito bem quem ligou a quem; onde ele me diz a mim que vai pegar fogo à casa dela e ao carro dela.”
XXXVIII.–Posteriormente referiu a testemunha (minuto [00:08:05]) “Eu acho que sim. Eu acho que foi aqui, nos nervos, naquela de estar chateado, não sei porquê”. E ainda, no minuto [00:15:23] “Eu vou ser muito honesta, porque nós estamos baseados na honestidade. Eu acho que o meu irmão disse aquilo da boca para fora para meter medo à DD”.
XXXIX.–Facilmente nos apercebemos que o que alegadamente ocorreu, foi que o Recorrente em desabafo com a sua irmã, em virtude do términus da relação, “(…) disse aquilo da boca para fora (…)”.
XL.–Colocando o homem médio a interpretar quais os sentimentos vivenciados no términus de uma relação amorosa, facilmente podemos elencar vários sentimentos negativos, tais como a tristeza, o sentimento de impotência, a depressão, destacando-se em muitos casos a raiva!
XLI.–Ora, o Arguido encontrava-se numa conversa e íntima com a Testemunha, sua irmã, para desabafar o descambar da relação.
XLII.–E quer queiramos quer não, um desabafo não se traduz numa ameaça! Um desabafo, muitas das vezes, corresponde a um alívio e traduz-se num momento que de certa forma alivia a dor e o sofrimento interno de quem se exprime.
XLIII.–A pessoa que se exprime, quando desabafa, colocando-se a defesa do Recorrente na posição do homem médio, presume que a pessoa que a escuta guarde segredo dos seus sentimentos e expressões.
XLIV.–E até se compreende que, logo após o terminus da relação, o Recorrente possa ter ficado mais exaltado e ansioso, pois todo o ser humano está sujeito a experienciar qualquer um desses sentimentos ao longo da sua vida!
XLV.–Não se coloca em causa que o Recorrente possa ter proferido expressões de que pegava fogo ao carro e à casa num jeito exaltado e histérico, mas é compreensível que tais expressões tenham sido ditas da boca para fora, em jeito de desabafo, nas circunstâncias já referidas, mas jamais em tom de ameaça!
XLVI.–Mais se dirá, nunca a testemunha referiu que o Recorrente quisesse que as mesmas fossem transmitidas à Assistente.
XLVII.–A verdade é que, infelizmente, a testemunha, nas suas palavras, comunicou o desabafo do Recorrente à Assistente, acrescentando mais informações do que aquelas que o arguido lhe teria, alegadamente, comunicado.
XLVIII.–Criando desta forma um alarme na pessoa da Assistente, sem qualquer motivo para tal! Desencadeando, de forma grosseira, os sentimentos que a Assistente diz ter sentido.
XLIX.–Isto é, quando a informação chega à Assistente, de acordo com o minuto [00:16:18] das suas declarações “(…) recebo uma chamada, na altura, da irmã do senhor AA, a dizer que o senhor AA tinha intenções de me matar, de pegar fogo à minha casa e ao meu carro e acabar com a minha vida e a do bebé”.
L.–E nas palavras da Testemunha EE, mãe da Assistente, ao que parece o Arguido já estaria a caminho de Lisboa para pegar fogo à casa e ao carro da Assistente: ”(…) TESTEMUNHA [00:08:11] Sei que foi da parte da manhã. Deviam ser umas onze e tal da manhã, onze e tal, meio dia. Contactou-me, a dizer que a cunhada que lhe tinha telefonado a dizer que o senhor AA vinha a caminho de Lisboa para lhe deitar fogo à casa, ao carro e depois que ia a saber dela. (…)”.
LI.–Mas mais, não consta nem da douta acusação nem dos factos provados da sentença recorrida que o Recorrente, ao proferir as palavras descritas em 6., sabia, ou pelo menos admitiu como possível, que a Assistente viesse a ter conhecimento das palavras ali referidas, agindo com o propósito de que as ouvisse ou conformando-se com a referida possibilidade.
LII.–Desconhecendo o Recorrente, onde é que o Tribunal a quo se socorreu para demonstrar o elemento subjectivo de que depende a ameaça!
LIII.–É que a testemunha nem sequer logrou questionar o Recorrente se tais palavras eram uma ameaça ou não! Limitando-se a transmitir ao Tribunal que foi da boca para fora!
LIV.–Ao invés, deu como provado no ponto 12. que “A assistente, em consequência dos factos referidos de 6. a 11., sentiu receio pelo seu património e pela sua integridade física e mesmo pela sua vida e a do seu filho, sentindo-se angustiada e inquieta, tendo acreditado que o arguido seria capaz de levar por diante o mal que anunciara.
Igualmente se sentiu a assistente, em virtude das expressões ofensivas descritas, humilhada, magoada, triste e envergonhada”.
LV.–Veja-se o que nos diz o Tribunal a quo na sua nova motivação, ainda quanto à impugnação do ponto 6. dado como provado: “(…) na sua decisão de se mudar, definitivamente, para casa da sua mãe. Referiu a assistente que levou a sério as palavras do arguido que lhe foram transmitidas pela irmã do mesmo, até porque esta última se mostrou muito aflita, “quase em tom de choro”, sendo que a assistente já tinha assistido a comportamentos agressivos por parte do arguido, acabando por referir – sem precisar as circunstâncias concretas de tempo e espaço – que, durante a gravidez, o arguido chegou a desferir-lhe uma bofetada e um puxão de cabelos, tendo também mostrado agressividade física na destruição ou manuseamento de objectos, factos que a assistente presenciou. Tal conhecimento de condutas prévias do arguido, que consubstanciam episódios de agressividade física, foram determinantes para que a assistente tivesse receado a concretização dos males que o arguido anunciara e que lhe foram transmitidos pela irmã do mesmo.”
LVI.–Pergunta-se como é que é possível que, o hipotético episódio mais violento, da relação de namoro de 8 (oito) meses que existiu entre Assistente e Recorrente, que se traduziu numa “bofetada e um puxão de cabelos”, não conste da acusação ou não tenha sequer sido relatado às autoridades!?
LVII.–Como é que é possível que depois de lidos e relidos o auto de noticia, os seus aditamentos, as inquirições das testemunhas, ainda em fase de inquérito, bem como produzida toda a prova em sede audiência de julgamento, e só nesta fase a Assistente se tenha lembrado de relatar a ocorrência de “uma bofetada e um puxão de cabelos”!?
LVIII.–É que o Tribunal a quo partiu de um depoimento manifestamente falso para credibilizar a alegada “ameaça” que a Assistente sofrera, argumentando no sentido que esse “conhecimento de condutas prévias do arguido”, levou ao receio da “concretização dos males que o arguido anunciara e que lhe foram transmitidos pela irmã do mesmo”.
LIX.–Mais referem as motivações do Tribunal a quo o seguinte: “Da conjugação das declarações da assistente e de FF, relativamente a este concreto comportamento do arguido, o Tribunal concluiu que o mesmo não correspondeu a um mero desabafo ou declaração não séria, mas a um acto reflectido tendente a intimidar a assistente, aceitando o arguido que as palavras proferidas chegassem ao conhecimento da mesma, face à relação próxima existente entre FF e a assistente.”
LX.–Tal como já se defendeu supra, não teve nem tem o Tribunal a quo, meios ao seu dispor para interpretar o depoimento da testemunha FF de forma a que se conclua que o comportamento não correspondeu a uma mero desabafo ou declaração não séria, mas a um acto refletido tendente a intimidar a assistente e nem que as mesmas chegassem aos ouvidos da mesma, mesmo existindo uma relação próxima entre as duas.
LXI.–É que na realidade, da experiência comum, estados exaltados levam a atos irrefletidos e comportamentos ou estados serenos levam a actos refletidos! No entanto o Tribunal a quo defende o contrário!
LXII.–O que o Tribunal a quo defende é que o Recorrente num estado de exaltação ameaçou a Assistente num acto reflectido, como se tivesse traçado um plano no momento em que falava com a sua irmã.
LXIII.–Quanto aos pontos 8. e 9. dos factos dados como provados, em conjugação com os factos dados como provados em 14., facilmente nos apercebemos que as mensagens e emails eram remetidos de parte a parte, ambos com conteúdo menos simpático.
LXIV.–Apesar de tudo isto, o Tribunal a quo preferiu dar como provados os pontos 4., 6., 7., 12., 15., 16. e 17., e proferiu uma condenação motivada:
pelo envio das mensagens escritas remetidas pelo arguido com conteúdo ofensivo, mas que se verificaram ser de parte a parte;
pela alegada “ameaça” que jamais esteve no domínio de facto do arguido, não tendo sido sequer preenchidos os elementos subjetivos do crime de ameaça
e ainda preferiu valorar as declarações da Assistente, no que toca às expressões injuriosas, tais como “gorda”, “burra”, “tens de voltar à escola”, sem se socorrer de outros meios de prova diretos para tomar uma posição acertiva.
LXV.–Perante todos estes factos, a inexistência de prova cabal, o vago depoimento da Assistente e das Testemunhas de acusação, jamais poderia ter dado o Tribunal a quo, como provados os factos melhor descritos nos pontos 4., 6., 7., 12., 15., 16. e 17. da douta sentença.
LXVI.–A redutora prova da acusação, que se produziu em sede de audiência de julgamento, patente em meras suspeitas não consubstanciadas por outra prova cabal, não permitiu que se fizesse prova da factualidade acusatória e de modo indubitável.
LXVII.–As meras suspeitas, são insuficientes para que o Tribunal a quo formulasse a sua convicção, sem outros dados ou prova objetivável, tendo em consideração os princípios constitucionais da presunção de inocência e do in dubio pro reo, favoráveis ao Recorrente.
LXVIII.–O princípio da livre convicção constitui regra de apreciação da prova em Direito Penal, sendo que, para conduzir à condenação, tal prova deve ser plena, pelo que, na decisão de factos incertos, a dúvida determina necessariamente a absolvição do arguido, de harmonia com o princípio da presunção de inocência que enforma também o direito processual penal e tem consagração constitucional no Art.º 32.º, n.º2 da Lei Fundamental.
LXIX.–Assim, o juiz deve pronunciar-se de forma favorável ao arguido quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa: o non liquet da questão da prova deve ser sempre valorado a favor daquele.
LXX.–Nas palavras de Figueiredo Dias, em o Ónus de Alegar e de Provar, “(…) A absolvição por falta de prova em todos os casos de persistência de dúvida no espírito do tribunal não é consequência de qualquer ónus da prova, mas sim resultado da incidência do princípio in dubio pro reo. Um non liquet na questão da prova tem que ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo (…)”.
LXXI.–Na realidade, “(…) o direito à presunção de inocência constitucionalmente garantido não é incompatível com que se admita que a convicção judicial num processo penal se possa formar sobre a base de uma prova indiciária. Ponto é que essa convicção em sentido desfavorável ao arguido se alcance para além de toda a dúvida razoável, através de juízos objectivos e motiváveis (…)” - cfr. acórdão da Relação do Porto, de 18.12.2002, proferido no Proc. nº 0210996, disponível em www.dgsi.pt.
LXXII.–Assim, dada a ausência de prova cabal, importaria ter sido dado como não provada a factualidade controvertida e absolver o arguido nessa parte.
LXXIII.–Pelo que e no mais, dada a ausência de prova cabal e perante as dúvidas referenciadas, mediante a falta de verificação dos demais elementos típicos objectivos e subjectivos, deveria o arguido ter sido absolvido de violência doméstica pelo qual foi condenado.
LXXIV.–Tal como se demonstrou, no decorrer da audiência de discussão e julgamento, não se fez prova cabal para concluir que não restam dúvidas que o Recorrente tinha a intenção de ameaçar a Assistente ou que tenha efetivamente utilizado expressões injuriosas, com uma frequência não inferior a uma semana.
LXXV.–Não estabeleceu o Tribunal a quo as conexões - se é que elas existem - entre os actos criminosos de forma a se poder concluir, com a necessária segurança, que o crime pelo qual o Recorrente foi condenado foi cometido por este.
LXXVI.–Por outro lado, a decisão que condenou o Recorrente, não se compadece com os princípios que regulam o nosso Direito Penal, pelo que a Decisão proferida pelo Tribunal a quo, deveria ter sido diferente.
LXXVII.–No mínimo o Tribunal a quo violou um dos princípios fundamentais do nosso Direito Penal, o princípio da presunção da inocência.
LXXVIII.–Bem sabemos que, o Julgador aprecia e valora livremente a prova, fá-lo de acordo com a sua convicção e experiência, e com base numa prática de deduções e induções lógicas a partir dos factos probatórios.
LXXIX.–Porém, é indispensável que exista prova inequívoca para que seja valorada e, não pode o Tribunal assentar a sua decisão na convicção que haja feito, partindo de pressupostos errados, incertos e ignorando factos de extrema importância.
LXXX.–A prova existente nos autos e prova produzida em Audiência de Julgamento não foi clara, e muito menos suficiente para concluir pela conduta criminosa do aqui Recorrente.
LXXXI.–Com o devido respeito, o Tribunal a quo formou a sua convicção com base em meras convicções e suspeitas, violando o princípio in dúbio pro reo.
LXXXII.–A convicção do Tribunal é livre, mas não pode ser arbitrária, deve fundamentalmente, pautar-se pela verdade material, e deveria concluir, em face do exposto, no mínimo, pela absolvição do Recorrente.
LXXXIII.–Estabelece o art.º 127.º do Código de Processo Penal que “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
LXXXIV.–Este princípio da livre apreciação das provas não tem carácter arbitrário nem se circunscreve a meras impressões criadas no espírito do julgador, encontrando-se vinculado à busca da verdade e às regras da experiência e da lógica comum.
LXXXV.–O erro de julgamento em matéria de facto a que se reporta o art.º 412º, n.os 3 e 4, do Código de Processo Penal, ocorre quando o Tribunal considera provado um determinado facto sem que tenha sido efetuada prova em audiência de discussão e julgamento de que tal facto realmente ocorreu e, igualmente, quando considera como não provado um facto que, face à prova produzida, deveria ter sido considerado provado.
LXXXVI.–Trata-se de um erro que se forma no processo cognoscitivo e, sobretudo, valorativo do julgador, podendo desdobrar-se, por essa via, em erro na apreciação da prova e erro na respetiva valoração, traduzido na violação das regras de experiência que servem de parâmetro à apreciação da prova ao abrigo do disposto no art.º 127.o do Código de Processo Penal.

Impõem solução diversa:

Apreciação do conjunto da prova produzida em sede de audiência de julgamento, designadamente:
A correta apreciação e interpretação das declarações prestadas pela Assistente.
➢ BB
(20230517153501_20536215_2871130.wma)
A correta apreciação e interpretação dos depoimentos prestados pelas testemunhas:
➢ CC (20230529141431_20536215_2871130);
➢ BB (20230529155136_20536215_2871130);
➢ GG (20230529161529_20536215_2871130).
A Aplicação do Princípio in dúbio pro reo”.
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Lisboa, por despacho datado de 11.02.2024, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
*

O Ministério Público apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões:
1.–Não se conformando, igualmente, com a nova sentença proferida pelo Tribunal a quo, que o condenou pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, als. b) e c), do Código Penal (CP), na pena de um ano e oito meses de prisão, suspensa na execução pelo período de dois anos e seis meses, com regime de prova, veio o Arguido interpor o presente recurso alegando, em síntese, a existência de “um claro erro de julgamento, resultando numa clara violação dos princípios constitucionais da presunção da inocência e do «in dubio pro reo», favoráveis ao Arguido” (cfr. pág. 38 das alegações de recurso), pelo que o Recorrente deve ser absolvido da prática do crime em causa.
2.–Considerando a resposta subscrita pela Digna. Magistrado do MP relativamente ao recurso da primeira sentença proferida, com a qual se concorda, não tendo havido repetição do julgamento e mantendo-se em causa as questões fundamentais invocadas pelo Arguido, subscreve-se, na íntegra, a anterior resposta do MP, junta aos autos em 14/8/2023 (ref. nº 36764363), transcrevendo-se os argumentos aduzidos em sede de resposta ao recurso da primeira sentença proferida, os quais mantêm actualidade e não chegaram a ser objecto de decisão pelo Tribunal ad quem
3.–“O Tribunal indicou os meios de prova em que se baseou e explicitou o processo que seguiu para a formação da sua convicção, o que permite aferir das regras e critérios de valoração seguidos, e se o resultado probatório surge como o mais aceitável.
Deste modo, outra não pode ser a conclusão de que o resultado probatório a que chegou a decisão recorrida se mostra consentâneo com a prova produzida. O Mmº juiz a quo seguiu um processo lógico e racional, observando regras de experiência comum (regras de probabilidade e razoabilidade), sendo a decisão convincente pela explicitação do substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse naquele sentido e pela forma como valorou os diversos meios de prova, indicando a razão porque uns merecem credibilidade em detrimento de outros, não merecendo por isso qualquer reparo”.
4.–“E outra não pode ser a conclusão se não a de que o tribunal apreciou correctamente a prova produzida em audiência e fundamentou com clareza e objectividade a sua convicção, esclarecendo porque conferiu credibilidade a determinados meios de prova em detrimento de outros, em observância das regras que norteiam a apreciação da prova, sendo por isso insusceptível de qualquer crítica.
A decisão recorrida mostra-se lógica, conforme às regras de experiência comum e é fruto de uma adequada apreciação da prova, segundo o princípio consagrado no artº 127º do CPP, pelo que aderimos à exaustiva e criteriosa apreciação feita pelo tribunal, a qual deve ser mantida nos seus precisos termos”.
5.–“Também quanto à escolha e medida da pena se concorda inteiramente com a decisão recorrida. Em sede de prevenção, para a vertente de prevenção geral, a pena deve contribuir para fortalecer o sentimento de confiança da comunidade nas normas que protegem os valores que pretende ver defendidos e servir de inibição dos seus membros da prática de actos ilícitos.
Do ponto de vista da prevenção especial, a pena tem por fim a integração do agente, devendo causar-lhe só o mal necessário.
Assim, tendo em conta, como se refere na sentença, o estabelecido no artigo 71º do Código Penal, e que, no caso vertente, face às circunstâncias apuradas, as exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, impõe-se, no caso concreto, a aplicação de uma pena de prisão de 1 ano e 8 meses, suspensa na sua execução, sujeita a regime de prova, mostrando-se adequada a pena aplicada”.
6.–“Por todo o exposto, a douta sentença recorrida não merece qualquer censura porque fez correcta aplicação do direito à matéria de facto provada, nem violou qualquer disposição legal, designadamente as indicadas pelo recorrente”.
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A assistente apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões:
1–Pelo que, nenhum reparo nos merece a decisão ora posta em crise, antes se concordando, na íntegra, com o respetivo teor.
2–Em face do exposto, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido e demandado e, consequentemente, manter-se a sentença recorrida nos seus exatos termos”.
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Nesta Relação, a Ex.ma Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, subscrevendo na íntegra a posição do Ministério Público em 1ª Instância.
Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do C.P.Penal.
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Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.

Cumpre apreciar e decidir.
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II.–OBJETO DO RECURSO
Conforme é jurisprudência assente (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt: “é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95), o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente (das quais devem constar de forma sintética os argumentos relevantes em sede de recurso) a partir da respetiva motivação.
Pelo que “[a]s conclusões, como súmula da fundamentação, encerram, por assim dizer, a delimitação do objeto do recurso. Daí a sua importância. Não se estranha, pois, que se exija que devam ser pertinentes, reportadas e assentes na fundamentação antecedente, concisas, precisas e claras” (Pereira Madeira, Art. 412.º/ nota 3, Código de Processo Penal Comentado, Coimbra: Almedina, 2021, 3.ª ed., p. 1360 – mencionado no Acórdão do STJ, de 06.06.2023, acessível em www.dgsi.pt).
Isto, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (artigo 412º, nº 1 do C.P.Penal).
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Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, cumpre apreciar:
- erro de julgamento de facto quanto aos pontos 4, 6, 7, 12 e 15 a 17 da matéria de facto dada como provada, nos termos do art. 412º, nº 3 e 4 do C.P.Penal;
- violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
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III.–FUNDAMENTAÇÃO

1.–A decisão final recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação:
“Consideram-se demonstrados, com relevo, para a decisão da causa, os factos seguintes:
1.–O arguido AA e a assistente BB mantiveram uma relação de namoro, desde Junho de 2020 até ao dia 8 de Fevereiro de 2021, altura em que terminaram, sem contudo terem partilhado, com permanência, mesa, leito e habitação.
2.–Desse relacionamento, nasceu um filho em comum, HH, no dia … 2021.
3.–Na data em que o arguido AA e BB terminaram o relacionamento amoroso, esta encontrava-se grávida do filho em comum identificado em 2.
4.–Desde Agosto de 2020, quando o arguido soube que a assistente se encontrava grávida, até 8 de Fevereiro de 2021, o arguido AA, com uma frequência não inferior a uma vez por semana, no decurso de discussões, dirigiu a BB expressões como “gorda”, “burra”, “tens de voltar à escola”
5.–No mesmo período temporal descrito em 4., em data concretamente não apurada, o arguido AA encontrava-se no interior da residência da assistente BB, sita na ..., e, em virtude de uma utilização pouco cuidadosa de uma centrifugadora pertencente à assistente, provocou uma avaria na mesma.
6.–No dia 19 de Fevereiro de 2021, em contacto telefónico, o arguido AA, exaltado, disse a CC, sua irmã, que tinha a intenção de pegar fogo ao carro de BB e à casa da mesma.
7.–CC, nesse mesmo dia 19 de Fevereiro de 2021, contactou BB, que se encontrava na sua residência, e contou-lhe as intenções do arguido AA, nos termos que este lhe transmitiu.
8.–No dia 19 de Fevereiro de 2021, pelas 12:13 horas, o arguido AA, com o endereço electrónico ..., remeteu a BB, com o endereço electrónico ..., a seguinte mensagem de e-mail:
“Devias de ter vergonha.
Não tinhas nada de ir falar com pessoas do meu passado por vingança a dizer que eu tinha gatos.
És uma vergonha de mulher.
Ganha juízo caralho. O que me fizeste não tem desculpa.
Podes fazer as queixas que quiseres de mim à polícia.
Só uma pessoa de baixo nível como tu, é que acha que eu perco tempo com gente sem escrúpulos como tu.
Se é ir a tribunal que queres, vamos a isso.
Pobre criança que vai ter uma mãe que é um nojo de gente e que prejudicou o pai com um assunto que nem tinha nada a ver com ela.
Nojo. Sinto nojo de ti. De alguma vez ter tocado no teu corpo. Dás-me vómitos.
Felizmente tenho as pessoas certas do meu lado. Vais aprender a ficar no teu lugar. É uma experiência que levas para a vida.
Muitas pessoas vão saber o que tu fizeste.”.
9.–Naquele dia 19 de Fevereiro de 2021, o arguido AA, pelas 13:14 horas, após BB ter respondido “Desculpa estás a falar do quê? O que eu fiz? Vai tratar dessa cabeça e deixa-me em paz”, remeteu-lhe a seguinte mensagem de e-mail:
“Vou tratar? Trata mas é de uma boa defesa.
Mexeste com o que não devias.
Chegará uma notificação pra ti em breve.
Tu e ela, a pessoa a quem foste dizer que eu tinha os gatos, são umas autênticas frustradas.
Fazem queixas na polícia sem sentido nenhum com a total consciência que estão a prejudicar terceiros. Mas isso o tribunal logo resolve.
Já que nunca acreditasse em mim, talvez agora acredites, metida numa sala de tribunal. Foi o caminho que escolheste ir. Terás de viver com isso. Já te preocupaste em dizer que o nosso filho iria ter vergonha do pai por ele andar a pedir comida, imagina quando ele souber da nojice que a mãe fez ao pai dele com o assunto dos gatos.”.
10.–De seguida, o arguido AA, pelas 13:49 horas, em resposta da mensagem de BB a dizer “Mas qual assunto dos gatos? Não estou a perceber nada”, enviou-lhe a mensagem:
“Irás perceber.
Aguarda”.
11.–E, o arguido AA ao ser questionado por BB, “Mas isso é alguma ameaça?”, pelas 14:37 horas, respondeu-lhe:
“Ameaça? Não, nada disso. Uma promessa.”
12.–A assistente, em consequência dos factos referidos de 6. a 11., sentiu receio pelo seu património e pela sua integridade física e mesmo pela sua vida e a do seu filho, sentindo-se angustiada e inquieta, tendo acreditado que o arguido seria capaz de levar por diante o mal que anunciara.
Igualmente se sentiu a assistente, em virtude das expressões ofensivas descritas, humilhada, magoada, triste e envergonhada.
13.–O arguido AA, a quem a assistente deu conhecimento de que teriam de registar o filho comum, esteve presente no ..., em Lisboa, no dia 4 de Maio de 2021, para proceder a tal registo.
14.–A assistente insurgia-se contra a circunstância de o arguido se encontrar desempregado e, apesar de, por diversas vezes, lhe ter emprestado dinheiro para ele suprir as suas necessidades básicas, dirigia-lhe expressões ofensivas a esse propósito, nomeadamente por mensagens escritas, como: “(…) porque me cansei de ser chulada por um homem que não quer trabalhar (…) tive vergonha de ti quando foste pedir comida a uma instituição”.
Igualmente lhe dirigiu expressões ofensivas a propósito das características como pai, nomeadamente “(…) quero apenas proteger o meu filho de um pai maldoso, mal formado, ingrato e sem amor e carinho para dar ao seu filho”.
Tais expressões causaram mágoa no arguido e fizeram-no sentir humilhado, motivando, em algumas ocasiões, que o mesmo dirigisse expressões ofensivas à assistente.
15.–O arguido AA, ao comportar-se da forma descrita, sabia que molestava na sua saúde, especificamente no aspecto psíquico, BB, sua namorada, depois ex-namorada e mãe do seu filho.
16.–Mais sabia o arguido AA que, ao comportar-se da forma descrita, afectava a dignidade pessoal de BB, enquanto sua namorada, ex-namorada e mãe do seu filho, bem como punha em causa o equilíbrio psicológico, físico e emocional daquela, pois que a submetia a sofrimento psíquico e físico, o que quis e conseguiu.
17.–O arguido AA também não desconhecia que a reiteração do seu comportamento e a forma como o mesmo se prolongou, no tempo, punha em causa a paz familiar, indispensável ao saudável convívio entre os membros familiares.
Contudo, o arguido quis sempre agir da forma que se descreveu, o que fez deliberada, livre e conscientemente, embora ciente de que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
18.–O arguido e assistente têm, presentemente, uma relação pacificada, o que lhes permite tratar dos assuntos relacionados com o filho em comum.
19.–O arguido já foi condenado, em pena de multa, pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, na sequência de acidente de viação, datando os factos de Dezembro de 2008 e o trânsito em julgado da condenação de Novembro de 2013.
20.–O arguido AA é o primeiro filho de uma fratria de dois rapazes, da relação não marital dos pais, que, todavia, não foram as figurais parentais cuidadoras.
Desde tenra idade, o arguido ficou entregue aos cuidados dos avós maternos. Já o seu irmão ficou entregue aos cuidados da mãe.
Os avós residiam numa quinta com diversas habitações, que eram ocupadas pela família materna alargada do arguido, onde se incluía a sua mãe.
O arguido não manteve ou mantém relacionamento de proximidade com o pai ou com os 4 irmãos consanguíneos.
Os avós maternos, as figuras de referência afectiva, faleceram na década de 90.
Quando a avó materna faleceu, tendo o arguido 16 anos, o mesmo ficou entregue a dois tios maternos: II e JJ.
O percurso escolar do arguido foi, na infância, regular e positivo e, mais tarde, na adolescência, caracterizado por paragens e abandono, associados a problemas de assiduidade e pressão para se autonomizar e contribuir financeiramente para o agregado familiar. O arguido retomou os estudos via IEFP/programa RVCC. Foi progredindo até ingressar na Licenciatura de …, que está suspensa, por falta de capacidade financeira. Assim, presentemente, o arguido tem, como habilitação, o 12º ano de escolaridade.
O arguido, para apoiar as despesas familiares, aos 15 anos, iniciou a vida laboral, tendo trabalhado numa loja de …. Mais tarde, adquirida habilitação para …, …. Posteriormente, trabalhou em … e novamente como ….
AA, a par dos projectos laborais, desenvolveu projeto de autonomia de vida e, nesse contexto, estabeleceu relacionamentos amorosos em união de facto, saindo da casa dos familiares.
Por força de empréstimo contraído para aquisição de casa própria e das alterações no vencimento/actividade laboral, a par das subidas das taxas de juro, o arguido, em 2006, entrou em incumprimento das condições de pagamento do empréstimo, ficando com dívidas.
Presentemente, o arguido vive sozinho e desenvolve actividade laboral, de forma regular como …. Aufere cerca de €760,00.
Com os seus rendimentos assegura necessidades básicas: habitação, transporte, alimentação e saúde.
Suporta uma pensão de alimentos, devida ao filho menor, no valor de 75,00€.
Vive em casa arrendada, pagando uma renda de 250,00€.
Desde Agosto de 2022, mantém uma relação de namoro com KK, empregada …, que tem dois filhos maiores de idade.
Nos últimos meses, tem desenvolvido sintomatologia depressiva, que surge relacionada com quadros depressivos anteriores.
Manifesta desgosto por não ter um relacionamento mais próximo com o filho menor, sentindo-se excluído do seu processo educacional”.
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1.2–Não se provou, com relevância para a decisão:
- que o arguido tenha deliberadamente causado avaria na centrifugadora da assistente;
- que o arguido tenha dito à assistente, no dia do registo do nascimento do filho, que lhe faria “uma espera”;
- outros danos advenientes da conduta do arguido, além dos dados como assentes.
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Consigna-se que foram excluídos, do elenco dos factos não provados, os factos cuja classificação como não provados resulta naturalisticamente da prova de factos contrários ou com eles incompatíveis.
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1.3–Motivação
O Tribunal baseou-se, para concluir pelo juízo de provado associado aos factos dados como assentes, nas declarações do arguido, que assumiu parcialmente a conduta que lhe é imputada, nomeadamente o envio das mensagens escritas à assistente.
O arguido negou, porém, que tenha dirigido à assistente, oralmente, as palavras ofensivas que vêm descritas na acusação – apesar de reconhecer que o casal começou a ter discussões, com uma periodicidade não inferior a uma vez por semana, quando soube da gravidez do filho em comum – bem como negou que tenha manifestado a intenção de fazer algum mal à assistente, através de telefonema ocorrido entre o mesmo e a sua irmã FF. Porém, não obstante tais negações, o arguido não logrou obter credibilidade nesta parte, face à prova produzida em sentido contrário, trazida pelas declarações da assistente e credibilizada pelas testemunhas FF, irmã do arguido, BB e GG, respectivamente mãe e amiga da assistente, como melhor se analisará de seguida.
A assistente descreveu o relacionamento mantido entre a mesma e o arguido, esclarecendo sobre os nomes ofensivos que este último lhe dirigia, na sequência das discussões. Tal descrição foi feita de forma objectiva e vivenciada, logrando, desde logo por isso, credibilidade.
Salienta-se que o facto de, nas mensagens escritas, o arguido não utilizar as expressões ofensivas a que a assistente aludiu não é significativa no sentido de retirar credibilidade às declarações por esta prestadas, a esse propósito, porquanto resulta das regras da experiência comum que a palavra oral, atenta a sua instantaneidade, é geralmente sujeita a menor ponderação, sendo natural que, na linguagem escrita, o arguido moderasse o conteúdo ofensivo das palavras utilizadas, tanto mais que estava ciente que, a partir do envio das mensagens, a assistente ficaria a dispor de um meio de prova que poderia utilizar contra o mesmo.
A assistente igualmente esclareceu os factos relativos à ameaça que lhe foi comunicada pela irmã do arguido, tendo explicado os sentimentos que vivenciou e a contribuição desse facto na sua decisão de se mudar, definitivamente, para casa da sua mãe.
Referiu a assistente que levou a sério as palavras do arguido que lhe foram transmitidas pela irmã do mesmo, até porque esta última se mostrou muito aflita, “quase em tom de choro”, sendo que a assistente já tinha assistido a comportamentos agressivos por parte do arguido, acabando por referir – sem precisar as circunstâncias concretas de tempo e espaço – que, durante a gravidez, o arguido chegou a desferir-lhe uma bofetada e um puxão de cabelos, tendo também mostrado agressividade física na destruição ou manuseamento de objectos, factos que a assistente presenciou. Tal conhecimento de condutas prévias do arguido, que consubstanciam episódios de agressividade física, foram determinantes para que a assistente tivesse receado a concretização dos males que o arguido anunciara e que lhe foram transmitidos pela irmã do mesmo.
A assistente admitiu o envio de e.mails de censura por o arguido não trabalhar e por ter recorrido a instituição de ajuda alimentar, o que credibilizou a narrativa do arguido relativamente aos factos vertidos no ponto 14., nomeadamente quanto aos sentimentos negativos que o próprio experimentou.
O depoimento da assistente foi corroborado pelo da irmã do arguido, FF, que explicou o contexto em que o arguido lhe comunicou aquilo que interpretou como ameaças dirigidas à primeira e o procedimento subsequente que adoptou, no sentido de proteger a assistente. Não obstante a descrição desse procedimento não ser totalmente coincidente com a narrativa da assistente – o que é compatível com a erosão do tempo sobre a memória dos factos –, coincide quanto ao conteúdo essencial: a preocupação da testemunha de alertar a assistente, para que a mesma se protegesse, face à manifestada intenção do arguido de “pegar fogo ao carro e à casa” da mesma. FF explicou que o seu irmão se encontrava exaltado, quando lhe disse que iria “deitar fogo” ao carro e à casa da assistente, e que, ainda que colocasse a hipótese de ele não actuar do modo que anunciara, ficou assustada e convencida que ele queria incutir medo à assistente, já que, por saber que ela e a assistente continuavam a ter uma relação próxima, era previsível para o seu irmão que a depoente fosse contar à assistente aquilo que ele lhe transmitira, o que, de facto, a mesma fez por recear que ele concretizasse a ameaça, impondose, por isso, que a depoente assegurasse a protecção da assistente. Da conjugação das declarações da assistente e de FF, relativamente a este concreto comportamento do arguido, o Tribunal concluiu que o mesmo não correspondeu a um mero desabafo ou declaração não séria, mas a um acto reflectido tendente a intimidar a assistente, aceitando o arguido que as palavras proferidas chegassem ao conhecimento da mesma, face à relação próxima existente entre FF e a assistente.
Igualmente se valorou o depoimento de LL, agente da PSP, que confirmou o registo de um episódio de agressividade denunciado pela assistente.
Também foi importante o depoimento da mãe da assistente, que explicou que recebeu a sua filha na sua casa, durante a gravidez, inicialmente de forma esporádica e, depois, a título duradouro, apercebendo-se que a mesma se encontrava sempre muito nervosa, ansiosa e receosa, tendo relacionado tais sentimentos com a conduta do arguido a partir das confidências que a assistente lhe fez.
No mesmo sentido se desenvolveu o depoimento de GG, amiga da assistente, que explicou que, por vezes, esta última lhe telefonava a chorar, queixando-se que o arguido a injuriava, apercebendo-se que a mesma tinha receio do arguido, nomeadamente quando este último anunciou que iria deitar fogo ao carro da assistente.
Os depoimentos destas duas testemunhas, especialmente próximas da assistente no plano afectivo e conhecedoras das características de personalidade da mesma – e, por isso, especialmente sensíveis e habilitadas a interpretar as alterações de humor e de comportamentos da mesma – foram importantes no sentido de credibilizar o depoimento da assistente e atestar os sentimentos e sofrimento que a mesma experimentou e o respectivo contexto vivencial.
O arguido esclareceu sobre a sua situação pessoal, tendo tais declarações sido conjugadas com o relatório social junto aos autos. Mais descreveu os sentimentos que experimentou perante as imputações de que não queria trabalhar, conforme já referido, de forma intensa e vivenciada, nessa parte logrando credibilidade.
Foi ainda relevante a análise das mensagens escritas trocadas entre arguido e assistente, juntas aos autos, conjugadamente com as declarações prestadas pelos próprios.
Das mensagens escritas, confessadamente enviadas pelo arguido, resulta uma reiteração de considerações ofensivas da honra da assistente, que se mostram compatíveis com os restantes actos verbais ofensivos e depreciativos relatados pela assistente, nos termos já analisados.
As mensagens enviadas pela assistente credibilizam, conforme já referido, as declarações prestadas pelo arguido quanto aos comportamentos vexatórios de que foi vítima, nos termos plasmados no facto vertido no ponto 14.
Realça-se que, relativamente ao mail reproduzido a fls. 74, em que a assistente refere não ter medo “do que quer que seja para defender o meu filho HH”, a mesma foi interpelada para esclarecer se, afinal, sentira ou não receio do arguido, na sequência da ameaça que lhe foi transmitida pela irmã do mesmo, tendo reafirmado que sim, conforme já explicitado, não tendo, porém, pretendido demonstrar tal receio perante o arguido. Tal explicação foi convincente, sendo certo que não resulta sequer da declaração escrita da assistente que a mesma não tenha sentido receio, mas antes que pretendia deixar claro, perante o arguido, que estaria disposta a enfrentar qualquer coisa “para defender” o filho, sendo esse o sentido mais próximo da literalidade das palavras utilizadas lidas como um todo.
Relevou também o assento de nascimento do menor HH e o certificado de registo criminal do arguido.
Quanto aos factos não provados, o juízo de não prova baseou-se na ausência de prova positiva aos mesmos atinente”.
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Apreciação do recurso

I.–Erro de julgamento de facto quanto aos pontos 4, 6, 7, 12 e 15 a 17 da matéria de facto dada como provada, nos termos do art. 412º, nº 3 e 4 do C.P.Penal
O recorrente defende que existe erro de julgamento quanto aos pontos 4, 6, 7, 12 e 15 a 17 uma vez que o conjunto da prova produzida em sede de audiência de julgamento impõe decisão diversa (conclusões VI e LXXXVI).
Termina concluindo que, na dúvida, devia ter sido absolvido.
O erro de julgamento (previsto no art. 412º, nº 3 do C.P.Penal) ocorre quando o Tribunal recorrido considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em primeira instância e a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nº 3 e 4 do art. 412º do C.P.Penal.
Quando se pretenda a impugnação ampla da decisão de facto, o recorrente tem de cumprir o aludido ónus de tríplice especificação, impondo-se que o recorrente, nos termos do disposto no art. 412º, nº 3 do C.P.Penal, especifique:
a)-Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c)-As provas que devem ser renovadas”.

A especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados, a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida e a especificação das “provas que devem ser renovadas” implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, o que pressupõe a existência de um dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do C.P.Penal (no atual quadro legal a renovação, na Relação, da prova que foi produzida em 1ª instância só é admitida se se verificarem os vícios referidos nas alíneas do nº 2 do artº 410º e houver razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo – artº 430º do C.P.Penal).
“Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos), pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do C.P.P.), salientando-se que o S.T.J, no seu acórdão n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 77, de 18 de abril de 2012, fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações». Em síntese: para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla tem o recorrente nas suas conclusões de especificar quais os pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, quais as provas (específicas) que impõem decisão diversa da recorrida, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as (se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados) ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos (quando na acta da audiência de julgamento se faz essa referência - o que não obsta a que, também nesta eventualidade, o recorrente, querendo, proceda à transcrição dessas passagens)” – cfr. Acórdão deste TRL de 02.12.2020, Proc. nº 3606/15.0T9SNT.L1-5.

Se o recorrente assim proceder pode o tribunal de recurso reapreciar a prova produzida concretamente indicada e vir a modificar a decisão quanto à matéria de facto, nos termos do artº 431º, al. b) do C.P.Penal.

Como bem refere o Acórdão deste TRL de 11.03.2021, Proc. nº 179/19.8JDLSB.L1-9 “embora este Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspetos fácticos (cfr. artº 428º e 431º, al. b) do C.P.Penal), não pode sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto. A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto. Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, referindo-se a relevância que têm para a formação da convicção do julgador «elementos intraduzíveis e subtis», tais como «a mímica e todo o aspecto exterior do depoente» e «as próprias reacções, por vezes quase imperceptíveis, do auditório» que vão agitando o espírito de quem julga (no mesmo sentido Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, vol. III, pág. 211, para acrescentar depois, a págs. 271, que «existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percebidos, apreendidos, interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores»). O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado». E convém referir que quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes. Normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar”.

Por conseguinte, o recurso amplo da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento nem a reapreciação total dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação sobre a matéria impugnada, com base na audição ou análise das provas concretamente indicadas, sem prejuízo de o tribunal de recurso poder ouvir e visualizar outras passagens que não as indicadas (nº 6 do artº 412º do C.P.Penal), procurando indagar sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto impugnados que o recorrente especifique como incorretamente julgados.

Nessa medida, na reapreciação da prova há que articular os poderes de conhecimento do tribunal de recurso com os princípios relativos à produção e à valoração da prova no tribunal de 1.ª instância, especialmente com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do C.P.Penal (nos termos do qual, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente), e com princípio do in dubio pro reo (postulado do princípio da presunção de inocência – consagrado no art. 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa - que impõe a absolvição sempre que a prova não permite resolver a dúvida acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da atuação do acusado e constitui um verdadeiro limite normativo ao princípio da livre apreciação da prova, regulando o procedimento do Tribunal quando tenha dúvidas sobre a matéria de facto), princípios que valem também para o tribunal de recurso.

No entanto, nesse poder de fiscalização ou reapreciação o tribunal de recurso está condicionado pela ausência de imediação e de oralidade que acontece na grande maioria dos recursos em que tal questão é suscitada (pelo facto de não haver a produção direta da prova) e se realizam plenamente em 1ª instância onde o tribunal “viu e ouviu o arguido, as testemunhas e os peritos, apreciou o seu comportamento não verbal, formulou as perguntas que considerou pertinentes da forma que entendeu ser mais conveniente e confrontou essas pessoas com a prova pré-constituída indicada pelos sujeitos processuais, tudo faculdades que o tribunal da Relação, pelo menos quando não é requerida a renovação da prova, não pode não beneficiar. Por isso, e não por força do princípio da livre apreciação da prova, o tribunal da 2ª instância não tem, quanto ao recurso da matéria de facto, os mesmos poderes que tinha a 1ª instância, só podendo alterar o aí decidido se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida – alínea b) do n.º3 do artigo 412.º do C.P.P.” (Acórdão deste TRL de 10.10.2007, Proc. nº 8428/2007-3).

Como bem refere o Acórdão deste TRL de 02.12.2020, supra referido, cumpre “não olvidar, como é jurisprudência corrente dos nossos Tribunais Superiores, que o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum. Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção”.

Por fim, cumpre ainda esclarecer que “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão” (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 198/2004, de 24.3.2004, DR, II Série, n.º 129, de 2 de junho).

Face ao exposto e tendo presente estes princípios vejamos a impugnação de facto do recorrente.

O recorrente entende que são os seguintes os factos incorretamente dados como provados:
4.–Desde Agosto de 2020, quando o arguido soube que a assistente se encontrava grávida, até 8 de Fevereiro de 2021, o arguido AA, com uma frequência não inferior a uma vez por semana, no decurso de discussões, dirigiu a BB expressões como “gorda”, “burra”, “tens de voltar à escola”
6.–No dia 19 de Fevereiro de 2021, em contacto telefónico, o arguido AA, exaltado, disse a CC, sua irmã, que tinha a intenção de pegar fogo ao carro de BB e à casa da mesma.
7.–CC, nesse mesmo dia 19 de Fevereiro de 2021, contactou BB, que se encontrava na sua residência, e contou-lhe as intenções do arguido AA, nos termos que este lhe transmitiu.
12.–A assistente, em consequência dos factos referidos de 6. a 11., sentiu receio pelo seu património e pela sua integridade física e mesmo pela sua vida e a do seu filho, sentindo-se angustiada e inquieta, tendo acreditado que o arguido seria capaz de levar por diante o mal que anunciara.
Igualmente se sentiu a assistente, em virtude das expressões ofensivas descritas, humilhada, magoada, triste e envergonhada.
15.–O arguido AA, ao comportar-se da forma descrita, sabia que molestava na sua saúde, especificamente no aspecto psíquico, BB, sua namorada, depois ex-namorada e mãe do seu filho.
16.–Mais sabia o arguido AA que, ao comportar-se da forma descrita, afectava a dignidade pessoal de BB, enquanto sua namorada, ex-namorada e mãe do seu filho, bem como punha em causa o equilíbrio psicológico, físico e emocional daquela, pois que a submetia a sofrimento psíquico e físico, o que quis e conseguiu.
17.–O arguido AA também não desconhecia que a reiteração do seu comportamento e a forma como o mesmo se prolongou, no tempo, punha em causa a paz familiar, indispensável ao saudável convívio entre os membros familiares.
Contudo, o arguido quis sempre agir da forma que se descreveu, o que fez deliberada, livre e conscientemente, embora ciente de que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.”

O recorrente alega que o Tribunal a quo valorou as declarações da assistente em detrimento das declarações do arguido, o qual negou ter imputado à assistente as expressões que constam do ponto 4 dos factos provados.

Acrescenta que as declarações da assistente não merecem credibilidade pois depôs, a tal respeito, de forma parcial, vaga e inconclusiva (sem referência a momentos concretos, situações concretas ou locais concretos, onde o recorrente tenha proferido tais expressões), o que não se mostra corroborado por prova testemunhal nem documental, na medida em que os depoimentos de todas as testemunhas são depoimentos indiretos que não poderiam ter auxiliado o Tribunal a fundamentar a sua decisão e que é ”da experiência comum, e atentas as novas tecnologias associadas às redes sociais é sem dúvida plausível que no seio de uma relação que se diga tóxica ou menos cortês, as expressões que são remetidas oralmente, também são proferidas por escrito” (conclusão XXVIII).

Na fundamentação da sua posição, o recorrente socorre-se das declarações da assistente (gravação áudio 06:28 a 08:49, 18:30 a 18:59, 19:20 a 19:42, 23:45 a 24:10, 26:37 a 29:32, 01:05:36 a 01:06:01 e 01:07:29 a 01:08:29) e do depoimento da testemunha CC (gravação áudio 05:15 a 06:59 e 12:34 a 13:18).

O recorrente também alega que as expressões que constam do ponto 6 dos factos provados foram proferidas em jeito de desabafo, não se tendo traduzido numa ameaça.

Mais alega que não consta da acusação nem dos factos provados que o recorrente ao proferir tais palavras sabia, ou pelo menos admitiu como possível, que a assistente viesse a ter conhecimento das mesmas, agindo com o propósito de que as ouvisse ou conformando-se com a referida possibilidade.

O recorrente invoca, a este respeito, as declarações da assistente (gravação áudio 16:18) e os depoimentos das testemunhas CC (gravação áudio 07:14 a 09:42 e 15:10 a 16:38) e EE (gravação áudio 08:11).

Desta forma, o recorrente menciona provas que, no seu entender, impõem decisão diversa da recorrida quanto aos mencionados pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados e indica os segmentos das gravações áudio que suportam o seu entendimento divergente, do que se conclui que cumpriu as exigências legalmente impostas no art. 412º do C.P.Penal para a impugnação ampla da matéria de facto relativa aos mencionados pontos da matéria de facto dada como provada, pelo que se conhecerá da mesma, nos termos infra expostos.

No entanto, “não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal a quo. Na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios. Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo, não só é vulgar, como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto. O que aqui se mostra necessário é que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido, em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada, à solução por si (recorrente) defendida, e não àquela consignada pelo Tribunal”(Acórdão do TRP de 10.01.204, Proc. nº 16/20.0T9STS.P1).

Nessa medida, no que concerne aos meios de prova testemunhal elencados pelo recorrente importa, desde logo, sublinhar que os mesmos não podem ser analisados isoladamente, de forma segmentada, mas têm que ser apreciados concatenadamente (como o fez o tribunal recorrido), devendo ser conjugados e estabelecidas correlações internas entre todos os meios de prova produzidos, confrontando-os de forma que, ainda que de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear, fazendo-se inferências ou deduções de factos conhecidos, desde que tal se justifique, e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência.

A prova é analisada conjuntamente e não basta indicar provas que permitam uma diferente convicção para alterar a decisão do tribunal sobre a matéria de facto, antes exigindo a lei provas que imponham uma convicção diferente.

Na verdade, as razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras não dependem do critério de cada um, mas antes do juízo de valoração livremente realizado por quem compete julgar os factos, de acordo com a imediação (que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova) e tendo por base as regras da experiência comum.

E, a imediação confere ao julgador em 1.ª instância meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reações humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de fatores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc.

O exposto não significa “que o tribunal de recurso não possa pôr em causa essa credibilidade através da análise dos depoimentos prestados e com base neles escrutinar a aplicação das máximas da experiência comum que estiveram na base da opção do julgador. Ou seja, o tribunal superior não pode criticar a opção pela valoração da credibilidade de um determinado meio de prova; não pode dizer que rejeita o convencimento do juiz de 1.ª instância porque este optou por um determinado depoimento por ser mais credível. Porém, já tem o dever de analisar o depoimento prestado em si mesmo considerado e concluir se a versão que apresenta é objectivável, ou seja, se qualquer um aceitaria o raciocínio explanado como compatível com o sentido comum. Não se trata de o tribunal superior se convencer do depoimento e da sua certeza mas de o considerar como uma conclusão razoável” (cfr. Acórdão do STJ de 19.12.2007, Proc. nº 07P4203).

O que se pretende num julgamento é conhecer um acontecimento pretérito e por isso, a valoração das provas sobre o mesmo tem de traduzir uma atividade racional, objetivada e motivada, para além de toda a dúvida razoável, consistente na eleição da hipótese mais provável entre as diversas reconstruções possíveis dos factos.

Resulta do exposto que o juiz deve apreciar a prova testemunhal segundo os critérios de valoração racional e lógica, tendo em conta as regras normais de experiência, julgando segundo a sua consciência e convicção.

Portanto, o juiz é livre, no sentido mencionado de formar a sua convicção com base no depoimento de uma testemunha (ainda que familiar do arguido ou do ofendido) em detrimento de testemunhos contrários (v.g. de pessoas sem quaisquer ligações ao arguido ou ao ofendido).

Por conseguinte, de acordo com a jurisprudência, a convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso, quando a mesma violar os seus momentos estritamente vinculados (obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova) ou então quando afronte, de forma manifesta, as regras de experiência comum ou o princípio in dubio pro reo.

O art. 127º do C.P.Penal indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Isto equivale a dizer que, sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador.

A avaliação da prova em primeira instância, feita de forma direta, oral e imediata, obedece a uma forma de procedimento que coloca o juiz do julgamento em melhores condições para a decisão da matéria de facto do que a avaliação feita com base na audição do registo, meramente parcial (porque despido de expressões faciais, comportamentos físicos), de provas de produção pretérita.

Reiteramos que a reapreciação da prova em recurso não pode e não deve, por isso, equivaler a um segundo julgamento. O duplo grau de jurisdição não assegura a sujeição da acusação a dois julgamentos em tribunais diferentes, mas apenas garante que o interessado pode obter do tribunal superior a fiscalização e controlo de eventuais erros da decisão da matéria de facto, através do reexame parcial da prova.

Regressando ao caso concreto, impõe-se verificar se a formação da convicção do tribunal em relação aos apurados comportamentos do recorrente padece de erro.

A propósito da motivação da factualidade impugnada relativa às expressões imputadas ao recorrente e que constam do ponto 4 dos factos provados, pode ler-se na decisão recorrida:
“O arguido negou, porém, que tenha dirigido à assistente, oralmente, as palavras ofensivas que vêm descritas na acusação – apesar de reconhecer que o casal começou a ter discussões, com uma periodicidade não inferior a uma vez por semana, quando soube da gravidez do filho em comum (…) Porém, não obstante tais negações, o arguido não logrou obter credibilidade nesta parte, face à prova produzida em sentido contrário, trazida pelas declarações da assistente e credibilizada pelas testemunhas FF, irmã do arguido, BB e GG, respectivamente mãe e amiga da assistente, como melhor se analisará de seguida.
A assistente descreveu o relacionamento mantido entre a mesma e o arguido, esclarecendo sobre os nomes ofensivos que este último lhe dirigia, na sequência das discussões. Tal descrição foi feita de forma objectiva e vivenciada, logrando, desde logo por isso, credibilidade.
Salienta-se que o facto de, nas mensagens escritas, o arguido não utilizar as expressões ofensivas a que a assistente aludiu não é significativa no sentido de retirar credibilidade às declarações por esta prestadas, a esse propósito, porquanto resulta das regras da experiência comum que a palavra oral, atenta a sua instantaneidade, é geralmente sujeita a menor ponderação, sendo natural que, na linguagem escrita, o arguido moderasse o conteúdo ofensivo das palavras utilizadas, tanto mais que estava ciente que, a partir do envio das mensagens, a assistente ficaria a dispor de um meio de prova que poderia utilizar contra o mesmo.
(…)
Também foi importante o depoimento da mãe da assistente, que explicou que recebeu a sua filha na sua casa, durante a gravidez, inicialmente de forma esporádica e, depois, a título duradouro, apercebendo-se que a mesma se encontrava sempre muito nervosa, ansiosa e receosa, tendo relacionado tais sentimentos com a conduta do arguido a partir das confidências que a assistente lhe fez.
No mesmo sentido se desenvolveu o depoimento de GG, amiga da assistente, que explicou que, por vezes, esta última lhe telefonava a chorar, queixando-se que o arguido a injuriava, apercebendo-se que a mesma tinha receio do arguido, nomeadamente quando este último anunciou que iria deitar fogo ao carro da assistente.
Os depoimentos destas duas testemunhas, especialmente próximas da assistente no plano afectivo e conhecedoras das características de personalidade da mesma – e, por isso, especialmente sensíveis e habilitadas a interpretar as alterações de humor e de comportamentos da mesma – foram importantes no sentido de credibilizar o depoimento da assistente e atestar os sentimentos e sofrimento que a mesma experimentou e o respectivo contexto vivencial.
(…)
Das mensagens escritas, confessadamente enviadas pelo arguido, resulta uma reiteração de considerações ofensivas da honra da assistente, que se mostram compatíveis com os restantes actos verbais ofensivos e depreciativos relatados pela assistente, nos termos já analisados.”

Resulta da motivação da matéria de facto supra transcrita que o tribunal a quo deu como provados os factos aqui controvertidos com base nas declarações da assistente que considerou, a este respeito, objetivas, vivenciadas e credíveis, conjugadas com o teor das mensagens escritas, confessadamente enviadas pelo recorrente, que também considerou compatíveis com as expressões ofensivas e depreciativas relatadas pela assistente.

Mais resulta que o tribunal a quo explicou, de forma lógica e razoável, as razões pelas quais, nesta parte, “o arguido não logrou obter credibilidade”, tendo dado maior credibilidade às declarações da assistente. E fê-lo de modo adequado às regras da experiência comum e da normalidade, tendo o tribunal recorrido justificado devidamente a sua opção de forma coerente e convincente.

Resulta ainda que a referência aos depoimentos testemunhais destinou-se apenas a acentuar a credibilidade das declarações da assistente uma vez que, conforme infra se demonstrará, as expressões eram proferidas quando ambos se encontravam sozinhos, em casa desta, pelo que nenhuma das testemunhas inquiridas assistiu a tais episódios.

Da audição integral dos depoimentos da assistente e das referidas testemunhas resulta que nenhuma delas afirmou ter ouvido o recorrente a insultar a assistente. Contudo, a testemunha CC descreveu uma videochamada com o recorrente, quando este se encontrava em casa da assistente a aguardar que ela fizesse o jantar, durante a qual assistiu a comportamentos desrespeitosos dele para com ela (cfr. gravação áudio 6:15-6:45) pelo que é possível concluir, mesmo sem a perceção sensorial completa que só o julgador de primeira instância teve acesso, que a apreciação dos meios de prova em causa se mostra devidamente sustentada e racional.

Com efeito, nem só quando o arguido faz uma confissão integral e sem reservas dos factos ou em situações de flagrante delito ou quando há testemunhas presenciais ou outras fontes de prova direta pode haver condenações. Na verdade, são muitas as situações em que não há prova direta, porque o autor do crime o praticou sem ser notado ou de forma dissimulada, e nem por isso pode deixar de ser punido.

Contrariamente ao alegado pelo recorrente, consideramos que as declarações da assistente não podem ser consideradas genéricas, vagas e incertas dado que a assistente:
- concretizou as expressões que lhe eram dirigidas pelo recorrente (“gorda”, “burra” e “tens de voltar à escola”–gravação áudio 06:52);
- fez corresponder o início de tal comportamento do recorrente a agosto de 2020 (“em agosto” - gravação áudio 08:26 a 08:47 – e a partir do momento em que ele tomou conhecimento da gravidez da assistente, ou seja, quando souberam o resultado do teste de gravidez que fez na presença dele), o qual terminou apenas com o fim da relação (a assistente reporta-se ao início de fevereiro e o recorrente concretiza o dia 8 de fevereiro);
- descreveu a frequência com que tal sucedia (“muitas vezes diariamente” e à pergunta formulada pela Mma Juíza “Então, pelo menos, uma, duas vezes por semana acontecia?”, respondeu afirmativamente e acrescentou que, de setembro a dezembro de 2020, passaram a estar juntos apenas aos fins de semana – gravação áudio 08:02 a 08.07 e 09:21);
- mencionou o local onde tais expressões lhe eram dirigidas (“dentro da minha casa” – gravação áudio 10:53), encontrando-se apenas ambos em casa da assistente.
Assim, decorre das suas declarações que apesar de, no início do relacionamento passarem muito tempo juntos, a partir de setembro de 2020 passaram a estar juntos apenas aos fins de semana, sendo tais expressões proferidas “quase praticamente diariamente, quando estava comigo” (gravação áudio 19:10).

Conjugando a globalidade das declarações da assistente, o tribunal a quo considerou, e bem, que as expressões eram proferidas “com uma frequência não inferior a uma vez por semana”, o que corresponde à frequência com que ocorriam as discussões entre ambos (o próprio recorrente reconheceu “que o casal começou a ter discussões, com uma periodicidade não inferior a uma vez por semana” (cfr. decisão recorrida e gravação áudio 06:40).

Por conseguinte, o tribunal recorrido justificou, de forma lógica e racional, a razão pela qual atribuiu maior credibilidade às declarações da assistente que “esclarecendo sobre os nomes ofensivos que este último lhe dirigia na sequência das discussões”, fez uma descrição “objetiva e vivenciada, logrando, desde logo por isso, credibilidade”.

E, no que respeita à circunstância de o recorrente não utilizar tais expressões aquando dos contactos escritos, o tribunal a quo considerou que tal não retira credibilidade “às declarações por esta prestadas, a esse propósito, porquanto resulta das regras da experiência comum que a palavra oral, atenta a sua instantaneidade, é geralmente sujeita a menor ponderação, sendo natural que, na linguagem escrita, o arguido moderasse o conteúdo ofensivo das palavras utilizadas, tanto mais que estava ciente que, a partir do envio das mensagens, a assistente ficaria a dispor de um meio de prova que poderia utilizar contra o mesmo”.

Ora, quando a atribuição de credibilidade ou falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica e é inadmissível face às regras da experiência comum.

Por conseguinte, a posição do recorrente traduz-se numa discordância face ao resultado da apreciação da prova pois não logrou demonstrar que convicção do tribunal de 1ª instância sobre a veracidade dos factos provados acima descritos é inadmissível (não é sustentada em dados objetivos) ou que existem outras hipóteses dadas pelas provas tão ou mais plausíveis do que aquela adotada pelo tribunal recorrido.

Na verdade, o recorrente limita-se a manifestar a sua discordância relativamente ao modo como o tribunal de 1ª instância valorou a prova produzida, contrapondo a sua própria análise valorativa, verificando-se, porém, inequivocamente, que o tribunal explica de forma coerente o motivo pelo qual se convenceu de que o recorrente adotou os comportamentos descritos na sentença recorrida, sendo da análise conjugada das declarações do recorrente e da assistente e dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas e da prova documental disponível – mostrando-se, no essencial, os meios de prova coerentes e congruentes entre si – que retira a sua convicção.

No que respeita à motivação da factualidade impugnada relativa às afirmações do recorrente, proferidas aquando do contacto telefónico ocorrido no dia 19.02.2021 (entre o recorrente e a sua irmã e posteriormente, nesse mesmo dia, entre esta e a assistente) e que constam do ponto 6 dos factos provados, pode ler-se na decisão recorrida:
“O arguido … negou que tenha manifestado a intenção de fazer algum mal à assistente, através de telefonema ocorrido entre o mesmo e a sua irmã FF. Porém, não obstante tais negações, o arguido não logrou obter credibilidade nesta parte, face à prova produzida em sentido contrário, trazida pelas declarações da assistente e credibilizada pelas testemunhas FF, irmã do arguido, BB e GG, respectivamente mãe e amiga da assistente, como melhor se analisará de seguida.
(…)
A assistente igualmente esclareceu os factos relativos à ameaça que lhe foi comunicada pela irmã do arguido, tendo explicado os sentimentos que vivenciou e a contribuição desse facto na sua decisão de se mudar, definitivamente, para casa da sua mãe.
Referiu a assistente que levou a sério as palavras do arguido que lhe foram transmitidas pela irmã do mesmo, até porque esta última se mostrou muito aflita, “quase em tom de choro”, sendo que a assistente já tinha assistido a comportamentos agressivos por parte do arguido, acabando por referir – sem precisar as circunstâncias concretas de tempo e espaço – que, durante a gravidez, o arguido chegou a desferir-lhe uma bofetada e um puxão de cabelos, tendo também mostrado agressividade física na destruição ou manuseamento de objectos, factos que a assistente presenciou. Tal conhecimento de condutas prévias do arguido, que consubstanciam episódios de agressividade física, foram determinantes para que a assistente tivesse receado a concretização dos males que o arguido anunciara e que lhe foram transmitidos pela irmã do mesmo.
(…)
O depoimento da assistente foi corroborado pelo da irmã do arguido, FF, que explicou o contexto em que o arguido lhe comunicou aquilo que interpretou como ameaças dirigidas à primeira e o procedimento subsequente que adoptou, no sentido de proteger a assistente. Não obstante a descrição desse procedimento não ser totalmente coincidente com a narrativa da assistente – o que é compatível com a erosão do tempo sobre a memória dos factos –, coincide quanto ao conteúdo essencial: a preocupação da testemunha de alertar a assistente, para que a mesma se protegesse, face à manifestada intenção do arguido de “pegar fogo ao carro e à casa” da mesma. FF explicou que o seu irmão se encontrava exaltado, quando lhe disse que iria “deitar fogo” ao carro e à casa da assistente, e que, ainda que colocasse a hipótese de ele não actuar do modo que anunciara, ficou assustada e convencida que ele queria incutir medo à assistente, já que, por saber que ela e a assistente continuavam a ter uma relação próxima, era previsível para o seu irmão que a depoente fosse contar à assistente aquilo que ele lhe transmitira, o que, de facto, a mesma fez por recear que ele concretizasse a ameaça, impondo se, por isso, que a depoente assegurasse a protecção da assistente. Da conjugação das declarações da assistente e de FF, relativamente a este concreto comportamento do arguido, o Tribunal concluiu que o mesmo não correspondeu a um mero desabafo ou declaração não séria, mas a um acto reflectido tendente a intimidar a assistente, aceitando o arguido que as palavras proferidas chegassem ao conhecimento da mesma, face à relação próxima existente entre FF e a assistente.
(…) Também foi importante o depoimento da mãe da assistente, que explicou que recebeu a sua filha na sua casa, durante a gravidez, inicialmente de forma esporádica e, depois, a título duradouro, apercebendo-se que a mesma se encontrava sempre muito nervosa, ansiosa e receosa, tendo relacionado tais sentimentos com a conduta do arguido a partir das confidências que a assistente lhe fez.
No mesmo sentido se desenvolveu o depoimento de GG, amiga da assistente, que explicou que, por vezes, esta última lhe telefonava a chorar, queixando-se que o arguido a injuriava, apercebendo-se que a mesma tinha receio do arguido, nomeadamente quando este último anunciou que iria deitar fogo ao carro da assistente.
Os depoimentos destas duas testemunhas, especialmente próximas da assistente no plano afectivo e conhecedoras das características de personalidade da mesma – e, por isso, especialmente sensíveis e habilitadas a interpretar as alterações de humor e de comportamentos da mesma – foram importantes no sentido de credibilizar o depoimento da assistente e atestar os sentimentos e sofrimento que a mesma experimentou e o respectivo contexto vivencial.
(…)
Realça-se que, relativamente ao mail reproduzido a fls. 74, em que a assistente refere não ter medo “do que quer que seja para defender o meu filho HH”, a mesma foi interpelada para esclarecer se, afinal, sentira ou não receio do arguido, na sequência da ameaça que lhe foi transmitida pela irmã do mesmo, tendo reafirmado que sim, conforme já explicitado, não tendo, porém, pretendido demonstrar tal receio perante o arguido. Tal explicação foi convincente, sendo certo que não resulta sequer da declaração escrita da assistente que a mesma não tenha sentido receio, mas antes que pretendia deixar claro, perante o arguido, que estaria disposta a enfrentar qualquer coisa “para defender” o filho, sendo esse o sentido mais próximo da literalidade das palavras utilizadas lidas como um todo”.

Resulta desta transcrição que o tribunal a quo fundamentou a intenção do recorrente “pegar fogo ao carro e à casa da assistente” na conjugação do depoimento da testemunha CC com as declarações da assistente (reportadas à forma como a testemunha lhe transmitiu a intenção do recorrente e ao efeito que tal teve no seu estado de espírito e no seu comportamento posterior).

O tribunal recorrido concluiu que não se tratou de mero desabafo ou declaração não séria, mas antes de um ato refletido destinado a intimidar a assistente pois, sabendo o recorrente da relação próxima que esta mantinha com a CC, aceitou que as palavras por si proferidas chegassem ao conhecimento da assistente (o que previu como possível).

O recorrente alega que proferiu a expressão que lhe é imputada no âmbito de uma conversa íntima com a sua irmã e em jeito de desabafo, não tendo o Tribunal meios aos seu dispor “para interpretar o depoimento da testemunha FF de forma a que se conclua que o comportamento não correspondeu a um mero desabafo ou declaração não séria, mas a um acto refletido tendente a intimidar a assistente e nem que as mesmas chegassem aos ouvidos da mesma, mesmo existindo uma relação próxima entre as duas” (conclusão LX).

Porém, da audição integral do depoimento da testemunha CC resulta:
- a relação próxima com a assistente, após se terem conhecido no dia do aniversário da filha da testemunha (6 de setembro de 2020), com a qual passou a manter contacto regular e que, inclusive, vai ser madrinha de batismo da sua filha (“da família do meu irmão, fui a primeira pessoa a ver o HH, a saber que o HH já tinha nascido … soube antes do meu irmão … fui a primeira da família a saber que o bebé tinha nascido” – gravação áudio 3:00-3:50; “convidei o meu irmão para o aniversário de 1 ano da minha filha e ele apresentou-me a DD como a sua namorada”- gravação áudio 11:50);
- a existência de conversas entre a testemunha e o recorrente, na sequência dos desentendimentos entre este e a assistente (“houve uma altura em que eles se chatearam a sério e eu falei várias vezes com o meu irmão a perguntar-lhe se achava correto aquilo que ele estava a fazer” – gravação áudio 5:15);
- o teor das expressões proferidas pelo recorrente, no dia 19 de fevereiro de 2021 (“ele me diz a mim que vai pegar fogo à casa dela e ao carro dela” – gravação áudio 7:39);
- a forma exaltada e nervosa como o recorrente as proferiu (“foi aqui nos nervos, naquela de estar chateado” - gravação áudio 8:05);
- a reação imediata da testemunha a tais expressões (“fiquei um pouco assustada, de facto e liguei para a DD uma vez, duas vezes, e a DD só atendeu o telefone à terceira vez, no qual eu lhe pergunto a ela onde é que ela está” – gravação áudio 8:35);
- a circunstância de, decorridas algumas horas, ter voltado a falar com a assistente ao telefone e nessa altura contou-lhe o que o recorrente lhe tinha dito (gravação áudio 9:17);
- a reação da assistente, na sequência do telefonema da testemunha (“ela levou a sério, ficou assustada” – gravação áudio 9:37; a respeito do medo com que a assistente ficou afirmou ”meteu, meteu, meteu sim senhora, a DD não saía à rua sozinha, cada vez que saia à rua, a DD ia sempre a olhar para o ombro a ver se alguém estava atrás” – gravação áudio 15:35);
- o facto de a testemunha ter ficado preocupada por considerar possível que o recorrente concretizasse tais intentos (gravação áudio 10:27; “um desabafo que se poderia tornar realidade … um desabafo grave … para mim foi uma ameaça … se me dissessem isso eu faria queixa” – gravação áudio 21:05 – 21:59);
- a perspetiva atual da testemunha (“eu acho que o meu irmão disse aquilo da boca para fora, para meter medo à DD” - gravação áudio 15:30 – “eu acho que foi uma ameaça … levei a sério … sim, fiquei com medo” – gravação áudio 25:20);
- a possibilidade de o recorrente prever que a testemunha poderia relatar o teor do telefonema à DD (“não me disse para eu comunicar … parto do princípio que ele saberia porque uma vez que eu nunca deixei de falar com a DD” – gravação áudio 16:10).
Por outro lado, a assistente descreveu o telefonema que a testemunha CC lhe fez (“recebo a chamada da irmã do Sr. AA, muito aflita, a perguntar/questionar onde é que eu estava” – gravação áudio 30:00; “ela pediu-me para eu ir rapidamente para casa da minha mãe ou para algum sítio em segurança” – gravação áudio 46:33; “estava bastante aflita, quase em tom de choro” – gravação áudio 48:05) e o facto de ela lhe ter ligado três vezes (gravação áudio 47:22), os seus sentimentos (“fiquei com muito receio da minha vida e do bebé que tinha na altura na minha barriga” – gravação áudio 18:00; “) e o seu comportamento posterior (a partir daí portanto faço a mudança para casa da minha mãe” – gravação áudio 16:30; “ligo para a PSP … só saia da casa da minha mãe para as consultas, de uber porque comecei a recear alguma situação … entre fevereiro, que eu apresentei a queixa, e abril, quando o HH nasce, eu passei a estar sempre em casa, fechada, com receio e só saia para ir às consultas, acompanhada da minha mãe e de uber ou táxi … – gravação áudio 30:22; “fiquei em casa da minha mãe desde fevereiro 2021 até outubro /novembro de 2021 que é quando me é atribuído o botão SOS” – gravação áudio 48:35) motivado por ter acreditado que o recorrente seria capaz de levar por diante o mal que anunciara.

Estas circunstâncias são reveladoras, para lá de qualquer dúvida, da seriedade da afirmação feita pelo recorrente e da perceção da gravidade da mesma pela sua irmã que, por isso mesmo, a transmitiu à assistente, sendo, por isso, lógico e espectável que a própria assistente sentisse também ela medo e receio.

Cumpre esclarecer, ainda, a respeito do receio sentido pela assistente, que a sua explicação para o teor do email reproduzido a fls. 74 (“uma coisa é nós assumirmos perante alguém que temos medo dessa pessoa, outra coisa, completamente diferente, é nós termos o receio e mostrar que não o temos” – gravação áudio 53:58), juntamente com o seu comportamento posterior (demonstrativo desse mesmo receio), foi convincente, tal como considerou o tribunal recorrido, no sentido de resultar demonstrado que sentia receio mas não o quis expor perante o recorrente.

Pelo que o teor desse mesmo email não abalou a credibilidade atribuída às declarações da assistente.

A testemunha BB, mãe da assistente, descreveu as circunstâncias em que a filha foi viver para sua casa (“pediu auxílio para ficar na minha casa” – gravação áudio 1:50; “tinha receio, medo, por ela e pelo filho que tinha dentro da barriga” – gravação áudio 2:45) e como a filha se passou a sentir após o dia 19 de fevereiro de 2021 (“sentia medo e andava muito nervosa” – gravação áudio 10:09).
Apesar de as declarações da assistente e o depoimento da testemunha CC não terem sido exatamente coincidentes, o que o tribunal recorrido considerou “compatível com a erosão do tempo sobre a memória dos factos”, são-no, no essencial, nomeadamente quanto ao teor do telefonema e à insistência da testemunha em contatar a assistente.

Cumpre esclarecer que, apesar de ter havido momentos em que a testemunha CC se reportou ao que lhe foi dito pelo irmão como “desabafo” na verdade o seu comportamento posterior (traduzido na insistência dos telefonemas, na preocupação em que a assistente não permanecesse na sua casa, na forma aflita como expressou o que o irmão lhe tinha dito) é demonstrativo de que considerou tratar-se de uma ameaça séria, tanto assim que a transmitiu à assistente (o que comprova que não a considerou apenas como um desabafo não sério).

Também resulta do depoimento da testemunha CC que o recorrente, sabendo da relação próxima entre ambas, a utilizou como veículo para fazer chegar a mensagem à assistente (“eu acho que o meu irmão disse aquilo da boca para fora, para meter medo à DD” - gravação áudio 15:30), sabendo que, dessa forma, lograva molestar a saúde psíquica e o equilíbrio emocional da mesma.

Resulta do exposto que as provas parcialmente transcritas e analisadas corroboram totalmente a conclusão do tribunal a quo no sentido de que o teor do telefonema entre o recorrente e a sua irmã “não correspondeu a um mero desabafo ou declaração não séria, mas a um acto reflectido tendente a intimidar a assistente, aceitando o arguido que as palavras proferidas chegassem ao conhecimento da mesma, face à relação próxima existente ente FF e a assistente”.

Por fim, cumpre referir que, apesar da menção do recorrente ao elemento subjetivo do tipo de crime de ameaça, a factualidade que lhe é imputada, traduzida num comportamento reiterado de maus tratos psíquicos (insultos, críticas achincalhantes e vexatórios, humilhações, provocações e ameaças mesmo que não configuradoras, em si, do crime de ameaças) consubstancia, tal como resulta da decisão recorrida, a prática de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152°, n° 1, als. b) e c) do C.Penal.

Pelo que traduzindo as ameaças uma forma de maus tratos psíquicos não é necessário, como vimos, que as mesmas configurem um crime de ameaça (para cujo preenchimento do tipo seria necessária a factualidade relativa ao elemento subjetivo).

Nessa medida, na estrutura de fundamentação da decisão da matéria de facto, o julgador perscrutou, individualmente e em conjunto, todos os meios de prova produzidos em audiência de julgamento, tendo explicitado de forma razoável, lógica, racional e plausível as razões de ter dado (ou não) credibilidade a cada um deles e os motivos porque deu como provados os factos controvertidos.

Nestes termos, o grau de credibilidade atribuído aos depoimentos das referidas testemunhas mostra-se irrepreensivelmente conferido, de acordo com a perceção própria permitida pelo imediatismo que acompanhou a produção daqueles meios de prova, pelo que, nesta parte, não encontramos qualquer anomalia na valoração judicial dos meios de prova em causa.

Resulta do exposto que o recorrente não demonstra variáveis que contrariem as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e da ciência na apreciação da prova.

O que o recorrente apresenta é a sua convicção, subjetiva, relativamente à apreciação daqueles meios de prova que, naturalmente, não constitui argumento impugnativo válido.

Em suma, a sentença recorrida está bem fundamentada pois, face à versão do recorrente e a toda a prova produzida, faz uma apreciação crítica das declarações do arguido e da assistente e dos depoimentos das testemunhas bem como da prova documental, inexistindo quaisquer razões para alterar a matéria de facto provada nos pontos 4, 6, 7, 12 e 15 a 17.
Do que decorre a improcedência do recurso.
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II.–Violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo

O recorrente invoca ainda no seu recurso a violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo (conclusões LXXVII e LXXXI).

Referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4ª edição revista, pág. 519) que “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”.

Este princípio (do in dubio pro reo) é aplicável na incerteza valorativa dos factos: constitui uma autêntica regra de decisão que opera quando, na mente do julgador e na fase de valoração da prova, surge uma dúvida – razoável, insuperável, positiva, invencível – em relação à verificação de facto e, nesse caso, deve o Julgador decidir sempre a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.

Posto isto, perante versões contraditórias sobre os factos, considera-se legítima a dúvida sobre a verdade do ocorrido.

No caso em apreço e nos termos expostos, o julgador apreciou a prova, de forma crítica, que soube conjugar de forma lógica e coerente, com observância das regras da experiência e da livre convicção, nos termos do art. 127. ° do C.P.Penal, além do mais de forma transparente, compreensível e convincente.

Não se deparou (nem se devia ter deparado) com qualquer dúvida insanável sobre a verificação dos factos atenta a motivação acima transcrita e as considerações expendidas sobre a consistência e plausibilidade dessa motivação, bem como, dos meios de prova que a sustentam.

A prova produzida é demonstrativa da ocorrência da factualidade imputada ao recorrente, inexistindo a possibilidade razoável de uma solução alternativa ou de uma explicação racional e plausível diferente da que mereceu o acolhimento do tribunal recorrido, pelo que, inexistindo uma encruzilhada dubitativa, não há necessidade de fazer apelo ao princípio in dubio pro reo e consequentemente improcede o recurso interposto.
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IV–DECISÃO

Pelo exposto, acordam as Juízas deste Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, em negar provimento ao recurso, declarando-o totalmente improcedente.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se em 3 UCs a taxa de justiça (art. 513º, nº 1 do C.P.Penal e art. 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III).


Lisboa,7 de maio de 2024.


Luísa Oliveira Alvoeiro
(Juíza Desembargadora Relatora)
Carla Francisco
(Juíza Desembargadora Adjunta)
Maria José Machado
(Juíza Desembargadora Adjunta)