CREDOR HIPOTECÁRIO
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CESSÃO DE CRÉDITOS
RENOVAÇÃO DA EXECUÇÃO
PERSI
Sumário

1. O incumprimento de um mútuo bancário garantido por hipoteca, obriga a entidade bancária mutuante a inserir o cliente faltoso no PERSI, só podendo a ação judicial destinada à satisfação do crédito, uma vez verificados os respetivos pressupostos, ser intentada após a extinção daquele procedimento.
2. A omissão de integração do cliente incumpridor no PERSI por parte da entidade bancária constitui uma exceção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, a todo o momento, até ao primeiro ato  de transmissão dos bens penhorados.
3. Num caso em que o credor hipotecário reclamou créditos, e mais tarde requereu, ao abrigo do disposto no art. 850.º, n.º 2, do CPC, para pagamento dos mesmos, a renovação da execução que entretanto havia sido declarada extinta, deveria ter, nesse segundo momento, em que se assume como exequente, demonstrado nos autos que anteriormente já havia encetado o PERSI, pois já então se encontravam, necessariamente, vencidas as prestações a que os mutuários se encontravam obrigados.
4. Aliás, tivesse a entidade bancária acionado o PERSI, como devia, e automaticamente ficaria impedida de ceder a terceiro, a totalidade ou apenas parte dos créditos reclamados.
5. Tendo, no entanto, a entidade bancária, credora reclamante, depois de ter requerido a renovação da instância executiva, nos termos do art. 850.º, n.º 2, do CPC, cedido a terceiro os créditos reclamados, estende-se a este, enquanto cessionário e novel exequente, o “manto” do PERSI, não escapando, por isso, também ele, à obrigatoriedade de atuação de tal procedimento.
6. Por conseguinte, não tendo, nem a entidade bancária, credora reclamante, nem o terceiro a quem aquela cedeu os créditos reclamados, demonstrado a integração dos devedores no PERSI, outra coisa não restava que não fosse julgar verificada, também em relação ao cessionário, a exceção dilatória inominada que tal omissão consubstancia, com a consequente absolvição dos executados da instância executiva, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 278.º, 1, al. e), 573.º, nº. 2, 576.º, nºs 1 e 2, 577º e 578º, do CPC.

Texto Integral

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
BPPF, S.A., instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo de Execução de Almada, onde foi distribuído pelo Juiz _, processo executivo contra CM, a que foi atribuído o n.º ___/__.3TBMTA, dando à execução um requerimento injuntivo no qual foi aposta fórmula executória, com vista ao pagamento coercivo da quantia de € 1.196,86.
*
Por escritura realizada no dia __.__.____, na sede da CMG[1], RP, na qualidade de gerente e em representação da sociedade “RRIU, Lda.”, declarou vender a CM, solteiro, maior, e a ML, solteira, maior, que declararam comprar, pelo preço de € 80.000,00, a fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente ao r/c direito, destinado a habitação, do prédio urbano sito na ____, n.º __, freguesia da ____, concelho da ____[2];
Pela AP. __ de __/__/____, foi inscrita no registo predial, a aquisição da fração “A”, por compra, a favor de CM, solteiro, maior, e de ML, solteira, maior;
*
Pela AP. __ de __/__/____, foi inscrita no registo predial, a favor do M, hipoteca voluntária sobre a fração “A”, para garantia de pagamento de um empréstimo por este concedido a CM, solteiro, maior, e a ML, solteira, maior, no valor de € 113.535,20, para aquisição daquela fração;
*
Pela AP. __ de __/__/____, foi inscrita no registo predial, a favor do M, hipoteca voluntária sobre a fração “A”, para garantia de pagamento de um empréstimo por este concedido a CM, solteiro, maior, e a ML, solteira, maior, no valor de € 7.095,00;
*
Pela AP. __ de __/__/____, foi inscrito no registo predial, o seguinte facto:
«(...) Penhora
Data da penhora: 2014/05/13
Quantia exequenda: 1.204.07 Euros
Sujeito Ativo:
** BPPF, S.A.
Sujeito Passivo:
** CM
(...)
Processo de execução nº ___/__.3TBMTA do Tribunal Judicial da ____ – 3º Juízo.
(...)
Recai sobre ½»;
*
Pela AP. __ de __/__/____, foi inscrita no registo predial, o seguinte facto:
«(...) Penhora
Data da penhora: 2014/05/04
Quantia exequenda: 3.450,28 Euros
Sujeito Ativo:
** Fazenda Nacional
Sujeito Passivo:
** CM
(...)
Penhora de ½
Processo de Execução Fiscal n.º ____ e apensos – Serviço de Finanças de Lisboa-3.
(...)»;
*
No dia 8 de janeiro de 2019, veio o M, por apenso à ação executiva, reclamar créditos no valor de € 119.306,26, acrescido de juros vencidos e vincendos.
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No dia 2 de outubro de 2019, o M foi notificado da seguinte decisão da senhora agente de execução: «Pela presente, fica V. Exa. notificada, na qualidade de comproprietária do prédio descrito na conservatória do Registo Predial de ____ sob o n.º 1215/19890208-A, que ao abrigo do disposto na alínea a), número 1, do artigo 849º, do Código de Processo Civil, conjugado com os artigos 846º e 847º, do mesmo diploma legal, os presentes autos foram declarados extintos por pagamento voluntário.»
*
Notificado dessa decisão, no dia 11 de outubro de 2019 o M apresentou o seguinte requerimento: «(...) tendo sido notificada da extinção da instância, vem, muito respeitosamente, requerer a V. Exa. se digne diligenciar pelo prosseguimento dos presentes autos para satisfação do seu crédito, nos termos e para os efeitos do artigo 850º, n.º 2 do Código de Processo Civil.»
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No dia 21 de janeiro de 2020, foi proferida decisão nos autos de incidente de habilitação de cessionário, que constituem o apenso B), a julgar a sociedade PJ, S.A., habilitada a ocupar, na ação principal, a posição de exequente, que então, após o requerimento de 11 de outubro de 2019, era ocupada pelo M, depois de este lhe ter cedido, no dia 12 de julho de 2019, dos créditos por este reclamados no dia 8 de janeiro de 2019.
*
ML foi citada no dia 9 de março de 2022, mediante contacto pessoal através do Consulado de Portugal em Paris, para se opor à habilitação do adquirente/cessionário e ainda nos termos e para os efeitos do artigo 54.º n.º 2.
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No dia 23 de junho de 2002 foi lavrado, nos autos principais, auto de penhora, do qual consta, além do mais, o seguinte:

Tribunal da execução Lisboa – Almada – Juízo Execução – Juiz _
Processo n.º ___/__.3TBMTA
Exequente PJ, S.A.
Executados CM
ML
Limite da Penhora Dívida Exequenda Despesas prováveis
119.306,29 €5.965,31
Total previsto
€ €125.271,60
Bens penhorados
Verba Espécie Descrição Valor
1 Imóvel
Penhora de ½ da Fração Autónoma, designada pela letra “A”, destinada a habitação com tipologia T2, n.º de pisos da fração: 1, área bruta privativa: 93,00 m2 e área bruta dependente: 4.9775 m2, no prédio urbano localizado ____ N.º __, freguesia da ____, concelho da ____ (...) A apurar
Verba 1 ML
Observações O bem acima mencionado, encontra-se penhorado à ordem dos presentes autos sob a inscrição AP. __ de ____/__/__, conforme certidão predial que anexo.
Fica nomeada fiel depositária do bem descrito na verba 1 a Executada ML (...).
*
Pela Ap. __ de ____/__/__, encontra-se inscrito no registo predial o seguinte facto:
«(...) Penhora
Sujeito(s) Activo(s):
PJ, S.A.
(...)
Sujeito(s) Passivo(s):
ML
Penhora de ½
Processo Executivo n.º ___/__.3TBMTA – Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Almada – Juízo Execução – Juiz _.»
                                         *
No dia 16 de novembro de 2022, ML apresentou na ação executiva de que estes autos constituem apenso, um requerimento com o seguinte teor:
«1.º A presente ação executiva foi instaurada em 01 de abril de 2014, sendo apresentado como título executivo a Injunção n.º ____/__._YIPRT.
2.º E indicado como executado CM (...).
3.º No âmbito da execução, foi penhorado ½ indiviso da fração autónoma designada pela letra “A” (...)
4.º Conforme a certidão de registo predial do imóvel, a penhora foi efetuada em 15 de maio de 2014 e incidiu sobre a metade pertencente ao referido CM, referência ___.
5.º Citada a credora com garantia real, a Caixa Económica M Geral reclamou os seus créditos em 08-01-2019, indicando como requerido CM.
6.º Notificada da extinção da execução por pagamento, a credora com garantia real veio requerer a prossecução da execução, em 11-10-2019, Ref.ª ____.
7.º Assim, a ora requerente não foi citada na execução nem notificada da reclamação de créditos, para efeitos de exercício do contraditório, o que pressupõe que tivesse sido citada na execução.
8.º E tanto assim é que, em 04-12-2020, a credora habilitada veio requerer a extensão da penhora e “a citação do titular da outra ½ do imóvel, ML, para efeitos da sua intervenção na qualidade de executada, nos termos do disposto no artigo 54.º, n.º 2 do CPC”, cfr. ref.ª ____.
9.º Sobre o assim requerido, a senhora Agente de Execução solicitou despacho judicial, o que foi deferido, conforme as referências ____, ____ e ____.
10.º A senhora Agente de Execução comunicou nos autos o teor da carta de citação, onde consta que “Nos termos do disposto no art.º 228º do Código de Processo Civil, conjugado com o artigo 356º, n.º 1 do mesmo diploma legal, fica V. Ex.ª citado para, no prazo de 10 dias contestar, querendo, a habilitação de adquirente/ cessionário acima identificada, podendo impugnar a validade do acto ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo”, cfr. as referências 31661106 e 32149412.
11.º Paradoxalmente, no mesmo ato, em que é “citado para, no prazo de 10 dias contestar, querendo, a habilitação de adquirente/cessionário”, é também notificada da sentença que julgou habilitada a requerente.
12.º Todavia, das certidões de registo predial constantes dos autos decorre que o imóvel está inscrito em nome CM, e da ora requerente, ML.
13.º O imóvel foi adquirido em 11-07-2009, em regime de compropriedade, mediante crédito à habitação concedido pela CMG, ficando consignado que “se destina a sua habitação própria e permanente” (cláusula 1.ª do documento complementar).
14.º Nesta casa nasceram os filhos dos ora Executados, CD, em __/__/____, e MD, em __/__/___.
15.º Naturalmente, sendo a casa de morada de família, passou a ser o respetivo domicílio fiscal, a morada inscrita na Segurança Social, na respetiva Junta de Freguesia, e nos serviços de saúde, nomeadamente.
16.º O artigo 1682.º-A, n.º 2, do Código Civil dispõe que “a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre a casa de morada da família carece de consentimento de ambos os cônjuges.”.
17.º Além disso, o artigo 1403.º, n.º 1, do Código Civil estabelece que “existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa.”.
18.º Assim sendo, os artigos 786.º, n.º 1, alínea a) e 787.º, n.º 1, do CPC impõem a citação do cônjuge do executado quando a penhora tenha recaído sobre um imóvel que é a casa de morada de família ou bem comum do casal.
19.º Sob a epígrafe “estatuto processual do cônjuge do executado”, o artigo 787.º do CPC, determina:
(...)
21.º Por um lado, é manifesta a falta de citação adequada, tal como está previsto nos artigos 786.º e 787.º do CPC; consequentemente, a citação efetuada é também nula.
22. A falta de citação configura uma nulidade principal de conhecimento oficioso, arguível em qualquer estado do processo, desde que não esteja sanada, nos termos dos artigos 187.º, alínea a), 188.º, n.º 1, alínea a), 191.º, n.º 2, 2ª parte, 196.º, 198.º, n.º 2, e 200.º, n.º 1, todos do CPC.
23.º Estabelece o artigo 734.º, n.º 1, do CPC, que “O juiz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726.º, o indeferimento liminar ou aperfeiçoamento do requerimento executivo”, sem prejuízo do disposto no artigo 851.º do mesmo Código.»
Conclui assim:
Nestes termos, nos demais de Direito e com o douto suprimento de Vossa Excelência, requer que a presente reclamação seja julgada procedente, com a consequente anulação dos atos de execução posteriores à data em que deveria ter sido citada.»
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Na mesma data, ML juntou na ação principal, uma procuração forense passada a favor de ilustre advogado.
*
No dia 24 de abril de 2024, ML veio «ao abrigo do disposto nos artigos 729.º, alíneas c) e), e g) e 731.º, in fine, e 192.º do Código de Processo Civil, deduzir oposição à execução mediante embargos de executado», invocando:
- a violação do PERSI;
- a prescrição da dívida exequenda;
- a prescrição da obrigação de juros;
- que a cessão de créditos pelo M à PJ, S.A., colocou os «cedidos em posição inferior»;
- a omissão de pronúncia quanto a juros;
- a mora do credor;
- a indevida liquidação da dívida exequenda.
Conclui assim:
«Nestes termos, nos demais de Direito e com o douto suprimento de Vossa Excelência, requerem:
1.º- Que os presentes embargos sejam julgados procedentes, por provados, com a consequentemente extinção da execução.
2.º- A suspensão da execução, ao abrigo do disposto no artigo 733.º, n.º 1, alínea c) do CPC»
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Na primeira vez que os autos lhe foram conclusões, a senhora juíza a quo proferiu o despacho datado de 1 de junho de 2023, de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«Pelo exposto, não admito liminarmente os presentes embargos de executado.»
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A embargante apelou desse despacho, tendo o ora relator proferido a decisão sumária datada de 18 de outubro de 2023, que declarou nulo o despacho recorrido, por absoluta falta de fundamentação, de facto e de direito, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. b).
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Devolvidos os autos à 1.ª instância, foi proferida nova decisão, datada de 11 de dezembro de 2023, cuja parte dispositiva é exatamente igual à da decisão anulada.
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É desta decisão que, pela embargante, vem, agora, interposto o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:
«1.ª Pelo presente recurso pretende-se impugnar a sentença proferida nos autos de execução, apenso C, em 11-12-2023, notificada à Executada com a data de elaboração de 12-12-2023, e que considerou que a oposição mediante embargos de executado foi deduzido fora de prazo atenta a data da citação.
2.ª Porém, está provado que a Embargante não consta do título executivo nem foi demandada no requerimento executivo, não foi demandada na reclamação do crédito pelo qual é agora responsável, nem foi indicada como parte na habilitação do adquirente ou cessionário, com as consequentes omissões de notificação, conforme os atos com as referências ____, ____ e ____.
3.ª Por isso, em 04-02-2020, a exequente habilitada apresentou o requerimento onde refere que “requer-se a citação do titular da outra ½ do imóvel, ML, para efeitos da sua intervenção na qualidade de executada, nos termos do disposto no artigo 54.º, n.º 2, do CPC”, ato com a referência ____.
4.ª Também, está provado que até 09-03-2022, data da alegada “citação” pelo Consulado sito em Paris, a Embargante não recebeu qualquer notificação do Tribunal, uma vez que todas as cartas de notificação foram devolvidas, conforme os atos com as referências ____, ­____, ____, ____, ____ e ____.
5.ª Como refere a senhora Agente de Execução, desde a “data do registo fotográfico o imóvel estava devoluto e vazio”, conhecimento que adquiriu aquando da penhora de ½ pertencente ao Executado, ocorrida em 13.05.2014, e registado pela AP __ de __/__/____, mas persistiu em enviar notificações para aquela morada, sabendo que a interessada, ora Executada, já lá não residia, conforme os atos com as referências ­ e ____.
6.ª Em caso de renovação da execução extinta, ao abrigo do artigo 850.º, n.º 2, do CPC, o número 4 desta norma estabelece que “não se repetem as citações”, o que pressupõe que tenham sido realizadas, e justifica-se por razões de economia, de celeridade e de aproveitamento processual, bem como da proibição de realização de atos inúteis, nos termos do artigo 130.º do mesmo Código.
7.ª Mas a dispensa da citação das pessoas que não foram citadas na execução extinta e que devem ser chamadas, pela primeira vez, por terem interesse na discussão da relação substantiva em litígio, o que se constatou só no decurso da execução renovada, viola o direito de defesa e o exercício do contraditório, nos termos dos artigos 2.º do CPC e 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa.
8.ª A interpretação do artigo 850.º, n.º 4 do CPC, no sentido de excluir as citações que nunca foram realizadas e que são devidas em face do direito substantivo em litígio torna esta norma inconstitucional por violação do direito de defesa e a um processo equitativo, nos termos do artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa.
9.ª O ato realizado em 09-03-2022 no consulado sito em Paris é uma mera notificação, na qualidade de cônjuge do executado, para no “prazo de 10 (dez) dias para contestar, querendo, a habilitação de adquirente/ cessionário acima identificada, podendo impugnar a validade do acto ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo”, nos termos dos artigos 356.º, n.º 1, e 219.º, n.º 2, do CPC, e que, no caso concreto, é desprovida de qualquer fundamento legal.
10.ª Considerando que a tramitação da ação executiva, nomeadamente a citação do executado, a dedução de oposição, o julgamento deste pelo tribunal, e os prazos inerentes aos diversos atos estão regulados no Código de Processo Civil, de forma imperativa, como prescrições que devem ser escrupulosamente cumpridas, a notificação prevista no n.º 1 do artigo 356.º do CPC não pode ser transformada em citação do executado, por conveniência do exequente ou outro interessado, nos termos do artigo 219.º do CPC.
11.ª A habilitação de adquirente ou cessionário destina-se à modificação subjetiva da instância, nos termos dos artigos 356.º e 262.º, alínea a) do CPC, pelo que, neste incidente, não pode o executado que não deduziu oportunamente oposição mediante embargos de executado suscitar questões relativas à discussão e decisão sobre o direito que constitui o objeto da causa principal, conforme o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15 de julho de 2021, proferido no processo n.º 30378/14.4TCSNT-B.L1.
12.ª Assim sendo, entendendo-se que o cônjuge do executado, que não é parte na causa, ao ser notificado, para contestar, querendo, a habilitação do adquirente / cessionário, regulado no artigo 356.º, n.º 1, do CPC, foi citado para os termos da execução na qualidade de devedor/executado, viola-se o direito de defesa e de contraditório, previsto nos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição e 2.º do CPC.
13.ª Sendo certo que com a notificação de 09-03-2022 ocorrida no consulado em Paris, a Embargante não foi confrontada com qualquer título executivo nem com um requerimento executivo onde esteja demandada, nem com o pedido de pagamento da dívida exequenda, e bem assim com o requerimento de 08-01-2019, onde a credora reclamou o seu crédito garantido por hipoteca, e com as devidas cominações legais.
14.ª Assim sendo, com esta notificação, a Embargante tomou conhecimento da existência do processo, mas considerando o teor da mesma, não é possível tomar conhecimento da pretensão deduzida contra si e, consequentemente, não ficou ciente da necessidade de desenvolver qualquer defesa, pelo que a falta de citação na qualidade de devedora executada nunca poderá ser considerada sanada.
15.ª Sendo a Embargante mutuária e responsável pelo crédito exequendo, tem um interesse próprio que justifica a sua citação para os termos da execução, nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 728.º, n.º 1, 729.º, 731.º, 219.º, n.ºs 1 e 2, 228.º ou 239.º, todos do Código de Processo Civil e 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa, para o que a notificação de 09-03-2022 é absolutamente irrelevante.
16.ª A Executada deduziu a reclamação por falta de citação na sua primeira intervenção no processo, e nela também arguiu a nulidade da citação, o que não foi posto em causa na sentença ora impugnada, pelo que a falta de citação não pode ser considerado sanada, face ao disposto no artigo 189.º do CPC, cfr. a referência 34203942.
17.ª Sob a epígrafe “ anulação da execução, por falta ou nulidade de citação do executado”, o artigo 851.º, n.º 1, do CPC determina que “se a execução correr à revelia do executado e este não tiver sido citado, quando o deva ser, ou houver fundamento para declarar nula a citação, pode o executado invocar a nulidade da citação a todo o tempo”, o que também está de acordo com o disposto nos artigos 187.º, alínea a), 188.º, n.º 1, al. a) e 191.º, n.º 1, do mesmo Código.
18.ª – Não podendo a Executada defender-se através do meio processualmente adequado, poderá ser confrontada com uma decisão judicial cujos fundamentos de facto e de direito não teve possibilidade de contrariar, o que viola o princípio do contraditório, em que se integra a proibição de indefesa, e o direito de acesso aos tribunais, nos termos dos artigos 2.º do CPC, 2.º e 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa.
19.ª A eventual extemporaneidade da oposição mediante embargos de executado não impede o conhecimento da questão de violação do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento, implementado pelo Decreto-Lei 227/2012 de 25 outubro, de conhecimento oficioso, em obediência ao disposto nos artigos 3.º, n.º 3, 4.º, 6.º, 7.º, 547.º e 573.º, n.º 2, in fine, do CPC, ainda que nos autos de execução.
20.ª Pelo exposto, salvo o devido respeito, a decisão impugnada violou, por erro de interpretação e aplicação, os artigos 2.º, 3.º, n.º 3, 356.º, n.º 1, 728.º, n.ºs 1, 729.º, alíneas c) e), e g), 731.º, in fine, e 851.º do CPC, 20.º, n.ºs 1, e 4, da Constituição da República Portuguesa.»
Remata assim:
«Nestes termos, nos demais de direito e com o douto suprimento de vossas excelências, requer que seja concedido provimento ao presente recurso, com a consequente revogação da sentença.»
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Apesar de notificada para os termos do recurso e dos embargos, a exequente não contra-alegou.
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
II – ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1), que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, ex vi do art. 663.º, n.º 2).
À luz destes considerandos, neste recurso importa começar por decidir da questão atinente à preterição do PERSI, enquanto exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso.
Caso se considere infundada tal questão, conhecer-se-á, então, das demais questões suscitadas neste recurso.
***
III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
A factualidade relevante é a que decorre do antecedente relatório.
*
3.2 – Fundamentação de direito:
Conforme decorre do dito relatório:
- O BPPF, S.A., instaurou ação executiva contra CM, com vista ao pagamento coercivo da quantia de € 1.196,86;
- Por escritura realizada no dia __.__.____, na sede do M, RP, na qualidade de gerente e em representação da sociedade “RRIU, Lda.”, declarou vender a CM, solteiro, maior, e ML, solteira, maior, que declararam comprar, pelo preço de € 80.000,00, a fração “A”;
- Pela AP. __ de __/__/____, foi inscrita no registo predial, a aquisição da fração “A”, por compra, a favor de CM, solteiro, maior, e de ML, solteira, maior;
- Pela AP. __ de __/__/____, foi inscrita no registo predial, a favor do M, hipoteca voluntária sobre a fração “A”, para garantia de pagamento de um empréstimo por este concedido a CM, solteiro, maior, e a ML, solteira, maior, no valor de € 113.535,20, para aquisição daquela fração;
- Pela AP. __ de __/__/____, foi inscrito no registo predial, a favor do M, hipoteca voluntária sobre a fração “A”, para garantia de pagamento de um empréstimo por este concedido a CM, solteiro, maior, e a ML, solteira, maior, no valor de € 7.095,00;
- Pela AP. __ de __/__/____, foi inscrito no registo predial, o seguinte facto:
«(...) Penhora
Data da penhora: 2014/05/13
Quantia exequenda: 1.204.07 Euros
Sujeito Ativo:
** BPPF, S.A.
Sujeito Passivo:
** CM
(...)
Processo de execução nº ___/__.3TBMTA do Tribunal Judicial da ____ – 3º Juízo.
(...)
Recai sobre ½»;
- No dia 8 de janeiro de 2019, o M veio, por apenso à ação executiva, reclamar créditos no valor de € 119.306,26, acrescido de juros vencidos e vincendos;
- No dia 2 de outubro de 2019, o M foi notificado da seguinte decisão da senhora agente de execução: «Pela presente, fica V. Exa. notificada, na qualidade de comproprietária do prédio descrito na conservatória do Registo Predial de ____ sob o n.º __/____-A, que ao abrigo do disposto na alínea a), número 1, do artigo 849º, do Código de Processo Civil, conjugado com os artigos 846º e 847º, do mesmo diploma legal, os presentes autos foram declarados extintos por pagamento voluntário.»;
- Notificado dessa decisão, no dia 11 de outubro de 2019, o M apresentou o seguinte requerimento: «(...) tendo sido notificada da extinção da instância, vem, muito respeitosamente, requerer a V. Exa. se digne diligenciar pelo prosseguimento dos presentes autos para satisfação do seu crédito, nos termos e para os efeitos do artigo 850º, n.º 2 do Código de Processo Civil.»
Não obstante a embargante ter suscitado, logo na petição inicial dos embargos, a questão da violação do PERSI, afirmando tratar-se de uma questão se conhecimento oficioso, a senhora juíza limitou-se a indeferir liminarmente aquele articulado, por extemporaneidade.
Não o devia ter feito, pois impunha-se-lhe conhecer de tal questão!
É hoje entendimento, se não unânime, pelo menos esmagadoramente maioritário, que no caso de crédito hipotecário bancário, a não integração, pela entidade bancária mutuante, do devedor no PERSI, constitui uma exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso.
A este propósito, veja-se o esclarecedor Ac. desta Relação e Secção, datado de 29.09.2020, proferido no Proc. n.º 1827/18.2T8ALM-B.L1-7 (relatado por Micaela Sousa), acessível em www.dgsi.pt, superiormente fundamentado com várias referências jurisprudenciais, onde se afirma que «a integração do cliente bancário no PERSI é obrigatória.
E porque essa integração é obrigatória, verificados que sejam os respectivos pressupostos, a acção judicial destinada a satisfazer o crédito, só poderá ser intentada pela instituição de crédito contra o cliente bancário, devedor mutuário, após a extinção do PERSI – cf. art. 18º, nº 1, b) do Decreto-Lei nº 227/2012.
Com efeito, estatui o referido art. 18º do DL 227/2012, sob a epígrafe “Garantias do cliente bancário”:
“1 – No período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, a instituição de crédito está impedida de:
a) Resolver o contrato de crédito com fundamento em incumprimento;
b) Intentar acções judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito;
c) Ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito; ou
d) Transmitir a terceiro a sua posição contratual.
2 – Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do número anterior, a instituição de crédito pode:
a) Fazer uso de procedimentos cautelares adequados a assegurar a efectividade do seu direito de crédito;
b) Ceder créditos para efeitos de titularização; ou
c) Ceder créditos ou transmitir a sua posição contratual a outra instituição de crédito.
3 – Caso a instituição de crédito ceda o crédito ou transmita a sua posição contratual nos termos previstos na alínea c) do número anterior, a instituição de crédito cessionária está obrigada a prosseguir com o PERSI, retomando este procedimento na fase em que o mesmo se encontrava à data da cessão do crédito ou da transmissão da posição contratual.
4 – Antes de decorrido o prazo de 15 dias a contar da comunicação da extinção do PERSI, a instituição de crédito está impedida de praticar os actos previstos nos números anteriores, no caso de contratos previstos na alínea a) do nº 1 do artigo 2º, e em que a extinção do referido procedimento tenha por fundamento a alínea c) do nº 1 ou as alíneas c), f) e g) do nº 2 todas do artigo anterior.”
Ora, da conjugação dos normativos disciplinadores do regime em apreço resulta que, reunidos os pressupostos da aplicação do DL 227/2012, de 25 de Outubro, a integração do cliente bancário no PERSI é obrigatória; sendo obrigatória e havendo lugar à integração do devedor no PERSI, enquanto o procedimento não for extinto, não é possível o accionamento judicial do devedor.
De igual modo, deve também ter-se por verdadeiro que a falta de integração no PERSI, verificados que estivessem os pressupostos para tanto, impede também que a instituição de crédito intente acção judicial com vista à satisfação do seu crédito, porque antes de o poder fazer tem de cumprir aquela obrigação que lhe é imposta de tentativa extrajudicial de regularização do incumprimento, ou seja, aquela integração surge como uma condição prévia ao accionamento judicial.
Assim tem concluído a doutrina e a jurisprudência dos tribunais superiores, de que é exemplo o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 6-10-2016, relator Tomé de Carvalho, processo n.º 4956/14.8T8ENT-A.E1, onde se refere:
“Em estudo sobre o assunto, Francisco Almeida Garrett opinou que «o Decreto-Lei nº 227/2012, impõe assim às instituições de crédito mutuante uma “renegociação forçada” e confere ainda ao cliente diversas garantias não displicentes tais como a impossibilidade de a instituição de crédito mutuante (a) resolver o contrato com fundamento no incumprimento, (b) intentar acções judiciais com vista à satisfação do seu crédito, (c) ceder a terceiros, total ou parcialmente, o crédito em questão, ou (d) transmitir a sua posição contratual – tudo isto, enquanto durar o PERSI».
Da interligação entre as diversas normas contidas no Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) ressalta claramente que, relativamente ao cliente bancário, a instituição de crédito está impedida de «intentar acções judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito» (artigo 18º, n.º 1, al. b), do DL nº 227/2012, de 25 de Outubro).[…]
O conjunto dos elementos hermenêuticos – histórico, sistemático, teleológico e literal – aponta claramente que a integração do cliente bancário [e, bem assim, do fiador] no PERSI é obrigatória, quando verificados os respectivos pressupostos, posto que, consequentemente, a acção executiva só poderia ser intentada contra os obrigados após a extinção deste procedimento. E isto porque existe igualmente um feixe de direito concedidos aos clientes bancários e a concretização dessas garantias não é compatibilizável com a existência de um processo em curso.
Desta sorte, através do recurso ao método integrativo da inferência lógica de regras imanentes, se existe um quadro de proibição de accionamento de “acções judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito», é manifestamente inviável, na pendência da lide, suprir a irregularidade verificada. […]”.
(...)
Estamos, assim, perante uma excepção dilatória inominada que impedia ab initio a instauração de acção executiva para a efectiva satisfação do crédito do exequente e que implica a absolvição da instância com as consequências descritas na decisão sob censura, incluindo a comunicação ao Banco de Portugal.
Em suma, no presente caso, existe uma situação de um crédito que não é exigível, por incumprimento de norma imperativa, a qual constitui, do ponto de vista adjectivo – com repercussões igualmente no domínio substantivo –, uma condição objectiva de procedibilidade. Por analogia, na busca do lugar paralelo, este vício encaixa no regime jurídico das excepções dilatórias, embora in casu seja de natureza atípica, sendo que, apelando à filosofia, intenção e objectivos legais, o mesmo não admite o respectivo suprimento da falta de pressupostos processuais, dado que se se trata de uma irregularidade insanável e sujeita a disciplina directiva e de carácter excepcional. Porém, tal não obsta a que a entidade bancária venha a interpor nova acção executiva tendente à satisfação do seu crédito, uma vez cumpridas as exigências específicas contidas no diploma sub judice.”
Não se descortinam razões jurídicas válidas para divergir deste entendimento, que surge inteiramente justificado e fundamentado à luz dos normativos convocados e que tem vindo a ser reiterado na jurisprudência dos tribunais superiores, conforme se afere do conteúdo dos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 7-06-2018, relator Pedro Martins, processo n.º 144/13.9TCFUN-A-2; do Tribunal da Relação de Évora de 8-03-2018, processo 2267/15.0T8ENT-A.E1; do Supremo Tribunal de Justiça de 9-02-2017, já referido e de 19-02-2019, relator Fernando Samões, processo n.º 144/13.9TCFUN-A.L1.S1.
Entendida a falta de integração do cliente bancário no PERSI como uma excepção dilatória inominada, a jurisprudência tem vindo a reconhecer a possibilidade do seu conhecimento oficioso, aplicando o regime decorrente dos art.ºs 576º, n.ºs 1 e 2 e 578º do CPC, de tal modo que, tal como sustentam os recorrentes, a sua invocação não está sujeita à preclusão decorrente do decurso integral do prazo para deduzir embargos de executado, tal como resulta da ressalva prevista no art. 573º, n.º 2, in fine do CPC, para além do que o conhecimento de excepções dilatórias pode sempre ter lugar até ao primeiro acto de transmissão dos bens penhorados – cf. art.ºs 726º, n.º 2, b) e 734º do CPC.
Veja-se, neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28-06-2018, relator Mata Ribeiro, processo n.º 2791/17.0T8STB-C.E1:
“Por isso, havemos de concluir estarmos perante uma exceção dilatória inominada - preterição de sujeição do devedor ao PERSI - de conhecimento oficioso, e como tal a sua invocação pela parte, ou a sua apreciação oficiosa, está subtraída ao prazo concedido para apresentação da defesa, regendo, por isso, a última parte do n.º 2 do artº 573º que descarta a aplicação do princípio da preclusão.
Efetivamente o regime das exceções dilatórias, quer elas sejam nominadas ou inominadas, no que respeita ao seu conhecimento oficioso só tem as exceções indicadas expressamente na lei, conforme decorre do disposto no artº 578º do CPC, sendo, por tal, na generalidade, de conhecimento oficioso.
Deste modo, estando em causa uma exceção dilatória inominada, o Julgador podia conhecer dela no âmbito do processo executivo […]”
Em idêntico sentido pronunciaram-se os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 8-03-2018, relatora Conceição Ferreira, processo n.º 2267/15.0T8ENT-A.E1, de 16-05-2019, relator José Manuel Barata, processo n.º 4474/16.9T8ENT-A.E1, de 31-01-2019 e de 21-05-2010, relator Tomé de Carvalho, processos n.º 832/17.0T8MMN-A.E1 e n.º 715/16.1T8ENT-B.E1; acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9-05-2019, relatora Judite Pires, processo n.º 21609/18.0T8PRT-A.P1; e acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-01-2020, relatora Ana Lucinda, processo n.º 4097/14.8TBMTS.P1, referindo-se, neste último: “E o certo é que a execução não poderia ter sido instaurada sem ter ocorrido previamente o dito Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI). Do prisma do demandante este era uma condição de acção. Mais precisamente uma específica condição de acção cuja inexistência conduz à carência da acção, causa de extinção do processo sem julgamento de mérito.
Do ponto de vista da defesa do demandado é uma excepção dilatória, isto é, uma circunstância que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância. Uma excepção de cunho eminentemente processual visto o moderno entendimento da autonomia entre o processo e o direito material. Ela opera no plano da eficácia: não intenta extinguir a pretensão exercida mas apenas neutralizá-la ou retardá-la.”»
Verifica-se, pois, que ao contrário do entendimento plasmado na decisão recorrida, podia e devia o tribunal de 1ª instância ter apreciado a verificação da excepção dilatória inominada em referência, mesmo que então já se mostrasse ultrapassado o prazo para a dedução de embargos de executado, podendo fazê-lo no âmbito da própria execução, porquanto ao momento ainda não tinha ocorrido qualquer acto de transmissão do bem penhorado.
Porque se trata de questão de conhecimento oficioso que o tribunal recorrido não apreciou (...) e dado que os autos fornecem os elementos necessários para tanto, considerando que o[s] recorrente[s] pugna[m] nas suas alegações, precisamente, pela verificação dos pressupostos para a sua integração no PERSI, questão suscitada nos requerimentos em apreço e sobre a qual a exequente/recorrida teve oportunidade de se pronunciar (...), não tendo (...) apresentado contra-alegações, passa-se a conhecer de tal questão, tendo presente o estatuído no art. 665º, n.º 2 do CPC.»
Retornando ao caso concreto, como se assinalou:
- O M, credor hipotecário, citado para o efeito, no dia 8 de janeiro de 2019 reclamou os créditos garantidos por hipoteca que detinha sobre CM e ML.
- No dia 2 de outubro de 2019, o credor hipotecário foi notificado da decisão de extinção da execução.
- No dia 11 de outubro de 2019, o credor hipotecário requereu a renovação da execução nos termos do art. 850.º, n.º 2.
No dia 21 de janeiro de 2020, foi proferida decisão nos autos de incidente de habilitação de cessionário, que constituem o apenso B), a julgar a sociedade PJ, S.A., habilitada a ocupar, na ação principal, a posição de exequente, que então, após o requerimento de 11 de outubro de 2019, era ocupada pelo M, depois de este lhe ter cedido, no dia 12 de julho de 2019, dos créditos por este reclamados no dia 8 de janeiro de 2019.
- ML foi citada no dia 9 de março de 2022, mediante contacto pessoal através do Consulado de Portugal em Paris, para se opor à habilitação do adquirente/cessionário e ainda nos termos e para os efeitos do artigo 54.º n.º 2.
- No dia 23 de junho de 2002 foi lavrado, nos autos principais, auto de penhora, do direito a ½ de que ML é titular na fração “A”.
- Essa penhora foi registada na mesma data, figurando no registo, como sujeito ativo, PJ, S.A., e, obviamente, como sujeito passivo, a referida ML.
Assente que estamos perante uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, dela cumprindo conhecer em qualquer fase da instância executiva e enquanto esta não se mostre extinta ou enquanto não se formar caso julgado que já não o permita, nomeadamente quando suscitada a questão pelo interessado na mesma (arts. 573.º, nº. 2, 576.º, n.ºs. 1 e 2, 577.º e 578.º), reiterando que a mesma nem sequer necessitava de ser invocada pela interessada ML, será que ela procede no caso concreto?
A resposta, desde já o adiantamos, é afirmativa, apesar das peculiaridades que o caracterizam.
O M, em primeiro lugar:
O M, credor hipotecário, citado para o efeito na ação executiva instaurada pelo BPPF, reclamou créditos.
A reclamação de créditos destina-se a que o credor que beneficie de alguma garantia real sobre um bem penhorado possa peticionar o reconhecimento desse crédito de modo a que, vendido o bem, não veja dissipar essa mesma garantia por força do disposto no art.º 824.º, n.º 2, do CC.
Ao reconhecer-se o seu crédito, o que se reconhece é que há um valor que deve ser pago por força do bem objeto da garantia real e por uma determinada ordem, mas não que o crédito esteja definitivamente reconhecido.
O que é definitivo é a conclusão de que tem uma garantia real sobre o bem penhorado e a posição em que deve ser pago, mas não se forma caso julgado quanto à verificação dos créditos[3].
Reconhecido o crédito, a execução que dá origem à reclamação não pode ser entendida como visando satisfazer o seu crédito.
O credor «só» pede a verificação e graduação do crédito porque tem de o fazer sob pena de deixar de obter o privilégio no seu pagamento.
Conforme Lebre de Freitas[4] os credores são admitidos, não para satisfazer o seu direito de crédito, mas para garantir a desoneração do bem penhorado (…) só sendo convertidos em partes principais na execução quando acionado o mecanismo previsto no art. 850.º, n.º 2, prosseguindo, então, a execução com a venda do bem sobre o qual tem garantia real, assumindo a posição de exequente (n.º 3 do mesmo artigo).
Na altura em que o M reclamou créditos, nem sequer havia falta de pagamento por parte dos mutuários pelo que, não fosse a necessidade de reclamação, certamente não iria propor uma ação executiva.
Só quando a execução passa a correr sob o impulso processual do credor reclamante, detentor de garantia real, para pagamento do seu crédito, então já vencido, é que se pode considerar que há o exercício de um ato que demonstra a intenção de exercer o direito.
Significa isto que, quando no dia 11 de outubro de 2019, o M requereu, ao abrigo do disposto no art. 850.º, n.º 2, a renovação da execução, que entretanto havia sido declarada extinta, para pagamento dos seus créditos sobre CM e ML, deveria ter demonstrado nos autos que anteriormente já havia encetado o PERSI, pois já então se encontravam, necessariamente, vencidas as prestações a que os mutuários se encontravam obrigados.
No momento em que o M apresentou o requerimento para renovação da instância executiva, ao abrigo do art. 850.º, n.º 2, assumiu-se, a partir de então, como exequente no processo.
Por conseguinte, deveria, antes disso, ter encetado o PERSI; melhor, ao apresentar o requerimento de renovação da execução extinta devia ter, nesse exato momento, demonstrado ter anteriormente encetado o PERSI.
Expliquemo-nos!
Estando o M obrigado a demonstrar o cumprimento do PERSI caso tivesse sido ele a iniciar a ação executiva (sobre M recaía, obviamente, o ónus da prova do cumprimento do estabelecido no Dec. Lei n.º 227/2012, de 25.10 (art. 342.º, nº. 1, do CC), seria absurdo que, tendo nela reclamado créditos, e requerendo, mais tarde a renovação da instância executiva, nos termos e para os efeitos do art. 850.º, n.º 2, para ser pago do seu crédito, na sequência do que se tornou, ele próprio, o exequente, aproveitando-se, portanto, de uma execução pendente instaurada por terceiro, ficasse desonerado do dever de demonstração daquele cumprimento.
Aliás, tivesse o M acionado o PERSI, como devia, e automaticamente ficaria impedido de ceder à PJ, S.A., ou a quem quer que fosse, a totalidade ou apenas parte dos créditos aqui reclamados (al. c) do n.º 1 do art. 18.º do referido diploma).
A PJ, S.A., em segundo lugar:
No dia 12 de julho de 2019, o M cedeu à PJ, S.A., os créditos que detinha sobre CM e ML.
No dia 21 de janeiro de 2020, foi proferida decisão nos autos de incidente de habilitação de cessionário, que constituem o apenso B), a julgar a sociedade PJ, S.A., habilitada a ocupar, na ação principal, a posição de exequente, que então, após o requerimento de 11 de outubro de 2019, era ocupada pelo M, depois de este lhe ter cedido, no dia 12 de julho de 2019, dos créditos por este reclamados no dia 8 de janeiro de 2019.
No dia 23 de junho de 2002, foi lavrado nos autos principais, auto de penhora, do direito a ½ de que ML é titular na fração “A”;
Essa penhora foi registada na mesma data, figurando no registo, como sujeito ativo, PJ, S.A., e, obviamente, como sujeito passivo, a referida ML.
O “manto” do PERSI estende-se, naturalmente, também a esta situação; ou seja, e de outra forma dizendo, a PJ não escapa, também ela, à obrigatoriedade de atuação do PERSI.
Tal como se escreve no Ac. da R.L. de 24.11.2022, Proc. n.º 21397/17.1T8SNT-A.L1-2 (Inês Moura), in www.dgsi.pt, «é certo (...) que nada impõe, nem decorre da lei, que quando do contrato de cessão de créditos as entidades cessionárias verifiquem se os créditos a ceder estavam ou não integrados no PERSI, a questão é que se não o fizerem correm o risco de só mais tarde constatar que tal procedimento possa não ter sido cumprido quanto a algum devedor relativamente ao qual era obrigatório, com os efeitos inerentes de impedir que seja intentada ação judicial contra o devedor.
Segue-se aqui o entendimento já defendido no Acórdão do TRG de 30 de janeiro de 2020 no proc. 5520/18.8T8VNF-A.G1 in www.dgsi.pt: “Com efeito, de outro modo estaria encontrada uma via expedita para as instituições de crédito se subtraírem à obrigatória sujeição ao regime decorrente do Dec. Lei n.º 227/2012, bastando para o efeito que, em violação do estatuído no citado diploma legal, se abstivessem de integrar obrigatoriamente o cliente bancário no PERSI e cedessem o seu crédito a um terceiro que não é uma instituição de crédito, o que permitiria que este (cessionário) não ficasse sujeito às proibições ou impedimentos elencados no art.º 18º e pudesse obter de imediato a satisfação do crédito cedido, sendo-lhe, por isso, lícito, sem quaisquer restrições, resolver de imediato o contrato de crédito com fundamento em incumprimento (art.º 18.º, n.º 1, al. a)), intentar ações judiciais contra o mutuário, tendo em vista a satisfação dos respetivos créditos (al. b)), ceder a terceiros uma parte ou a totalidade do crédito em causa (al. c)) ou transmitir a terceiro a sua posição contratual (al. d)). Tal representaria, fácil é de ver, uma autêntica fraude à lei, na medida em que frustraria por completo os objetivos que presidiriam à consagração daquele especial regime que visa tutelar as situações dos clientes bancários que se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, solução essa que deve ser rejeitada. Ora, como se salienta no Ac. da RE de 06/10/2016 (relator José Tomé de Carvalho), in www.dgsi.pt., estamos perante “incumprimento de norma imperativa, a qual constitui, do ponto de vista adjetivo - com repercussões igualmente no domínio substantivo -, uma condição objetiva de procedibilidade” da própria pretensão, que deve ser enquadrada “com as necessárias adaptações, no regime jurídico das exceções dilatórias. E isto porque, em termos finalísticos, atendendo ao respetivo resultado, a referida falta de condição objetiva de procedibilidade conduz à absolvição da instância e não se reporta ao mérito da causa”, não sendo o vício decorrente de tal omissão sanável no âmbito da ação judicial (execução), conforme emerge com clareza e contundência da própria letra da lei (vg. art.º 18º do Dec. Lei 227/2012)”.”
Também o Acórdão do TRC de 15 de dezembro de 2021 no proc. 930/20.3T8ACB-A. C1 in www.dgsi.pt refere a este propósito: “É certo que decorre do figurino legal que o mesmo é apenas diretamente aplicável às instituições de crédito. Sucede que – como bem se sublinhou na decisão recorrida! – representaria uma fraude à lei não considerar que existia nessa circunstância um impedimento legal a que a instituição de crédito, credora mutuante, cedesse o seu crédito a quem não era uma instituição de crédito, na medida em que frustraria por completo os objetivos que presidiriam à consagração daquele especial regime. (…) Com efeito, de outro modo estaria encontrada uma via expedita para as instituições de crédito se subtraírem à obrigatória sujeição ao regime decorrente do Dec. Lei n.º 227/2012, bastando para o efeito que, em violação do estatuído no citado diploma legal, se abstivessem de integrar obrigatoriamente o cliente bancário no PERSI e cedessem o seu crédito a um terceiro que não é uma instituição de crédito, o que permitiria que este (cessionário) não ficasse sujeito às proibições ou impedimentos elencados no art.º 18º (…) Tal representaria, fácil é de ver, uma autêntica fraude à lei, na medida em que frustraria por completo os objetivos que presidiriam à consagração daquele especial regime que visa tutelar as situações dos clientes bancários que se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, solução essa que deve ser rejeitada”.
Refira-se ainda que o crédito que é transmitido quando da cessão de créditos é o mesmo que existe na titularidade do cedente. Se o crédito já estava em incumprimento quando da cessão de créditos e o cedente estava limitado no exercício do seu direito por força do regime do PERSI, designadamente por estar obrigado a integrar o devedor no PERSI, não podendo intentar contra ele ações judiciais com vista à cobrança coerciva do seu crédito até à extinção deste procedimento, nos termos previstos no art.º 18.º n.º 1 al. b) do diploma em questão, o direito de crédito que o mesmo transmitiu à cessionária não pode deixar de ter esta mesma limitação, veja aliás o regime geral da transmissão de créditos, que de acordo com o disposto no art.º 585.º do C.Civil, admite que o devedor venha a opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, com a única ressalva daqueles que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão.
Esta garantia ou proteção do devedor está também contemplada no Decreto Lei 453/99 de 5 de novembro, diploma que estabelece o regime jurídico das operações de transmissão de créditos com vista à subsequente emissão, pelas entidades adquirentes, de valores mobiliários destinados ao financiamento das referidas operações, que logo no seu preâmbulo refere: “Quanto aos legítimos direitos dos devedores, especialmente dos consumidores de serviços financeiros, consagram-se normas que visam a neutralidade da operação perante estes. É o que sucede, nomeadamente, no que respeita à manutenção, pela instituição financeira cedente, de poderes de gestão dos créditos e das respectivas garantias. Com efeito, em relação aos devedores, a titularização dos créditos não implica a diminuição de nenhuma das suas garantias, continuando aqueles, no que ao sector financeiro respeita e não obstante a ausência de notificação da cessão, a manter todos os seus direitos e todo o seu relacionamento com a instituição financeira cedente.”.
Sobre os efeitos da cessão de créditos e na matéria que agora nos interessa, estabelece o art.º 6.º deste diploma nos seus n.ºs 6 e 7:
“6 - Dos meios de defesa que lhes seria lícito invocar contra o cedente, os devedores dos créditos objecto de cessão só podem opor ao cessionário aqueles que provenham de facto anterior ao momento em que a cessão se torne eficaz entre o cedente e o cessionário.
7 - A cessão de créditos para titularização respeita sempre as situações jurídicas de que emergem os créditos objecto de cessão e todos os direitos e garantias dos devedores oponíveis ao cedente dos créditos ou o estipulado nos contratos celebrados com os devedores dos créditos, designadamente quanto ao exercício dos respectivos direitos em matéria de reembolso antecipado, de renegociação das condições do crédito, cessão da posição contratual e sub-rogação, mantendo estes todas as relações exclusivamente com o cedente, caso este seja uma das entidades referidas no nº 4.”.
Resta dizer que não impondo a lei (...) que as entidades cessionárias verifiquem se os créditos a ceder estavam ou não integrados no PERSI, se não o fizerem correm o risco de poder ser confrontadas mais tarde com as limitações legais que a instituição bancária cedente tinha ao exercício da cobrança coerciva do seu direito, por não ter cumprido o seu dever, o que lhes pode ser oposto.
Conclui-se por isso pela improcedência do recurso, confirmando-se a sentença recorrida.»
Concorda-se e sufraga-se na íntegra este entendimento.
Retornando ao caso sub judice, não tendo, nem o M, nem a PJ, demonstrado, ou sequer alegado, a integração de CM e de ML, no PERSI, outra coisa não resta do que julgar verificada a exceção dilatória inominada que tal falta consubstancia, nos termos atrás evidenciados, com as inerentes consequências legais daí decorrentes.
*
IV – DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, na procedência da apelação procedente:
- em revogar o despacho recorrido;
- em julgar verificada a exceção dilatória inominada consistente na falta de integração dos executados CM e ML, no PERSI, em consequência do que os absolvem da instância executiva, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 278.º, 1, al. e), 573.º, nº. 2, 576.º, nºs 1 e 2, 577º e 578º, do CPC.
As custas da apelação, na vertente de custas de parte, são a cargo da recorrida.

Lisboa, 7 de maio de 2024
José Capacete
Ana Cristina Maximiano
Carlos Oliveira
_______________________________________________________
[1] Doravante referida apenas por “M”.
[2] Doravante referida apenas por “fração A”.
[3] Lebre de Freitas, A ação executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª Edição, GestLegal, 2017, pp. 374-375, e Ac. do S.T.J. de 22/06/2010, www.dgsi.pt.
[4] Ob. cit., p. 166.