VERIFICAÇÃO
PRESSUPOSTOS
RECURSO
ACORDÃO FUNDAMENTO
Sumário


I- A montante do requisito de oposição de julgados, em recurso para Uniformização de Jurisprudência apenas há que mencionar um acórdão fundamento, transitado em julgado e não 2 ou mais, ainda que aparentemente similares, por um dos quais em momento algum o recorrente optou, mesmo após notificação para se pronunciar sobre parecer do MP onde a questão era expressamente colocada e não obstante a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, bem conhecida, vir entendendo que, neste tipo de recurso, não se pode indicar mais do que um acórdão fundamento, por força da própria letra da lei (elemento literal) - ex vi dos artigos 437.º, n.º 1 e 2 e 438.º, n.º 2, do C.P.P.

II- O recurso para fixação de jurisprudência é inadmissível, nos termos do disposto no artigo 441.º, n.º 1, 1ª parte, do C.P.P., quando haja sido indicado mais de um acórdão fundamento, ainda que aparentemente similares, não cabendo a este STJ escolher um entre os indicados . Não tendo o recorrente mencionado por qual deles optaria não há que o convidar a fazê-lo, pelo que deve ser rejeitado o recurso ex vi das disposições conjugadas dos artigos 440.º, n.º 3 e 4, e 441.º, n.º 1, 1ª parte, do C.P.

Texto Integral






Acordam em Conferência na 5ª Secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça


I-RELATÓRIO

1. No processo n.º 6270/22.6T9LSB-A.L1, AA, arguido nesses autos, interpôs recurso extraordinário, para fixação de jurisprudência, do acórdão de 21 de Dezembro de 2023 do Tribunal da Relação de Lisboa, transitado em julgado no dia 5 de Janeiro de 2024,


alegando que a questão de direito que aí foi decidida está em oposição com a apreciada e dirimida nos acórdãos:


-de 11.09.2019 e 16.03.2022, publicados e transitados, ambos também do Tribunal da Relação de Lisboa, proferidos nos processos n.º 133/19.0SHLSB-A.L1 e 887/21.3SGLSB-A.L1-3, respectivamente.


Interpôs tal recurso mediante requerimento apresentado a 30 de Janeiro de 2024, dizendo (transcrição, sem destaques):


“1- O presente recurso tem por objecto a fixação de jurisprudência, por parte do Supremo Tribunal de
Justiça, nos seguintes termos:


Qual a consequência jurídica para a aplicação, em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, da medida de coacção de prisão preventiva, quando o despacho que lhe subjaz não refere, por escrito, a factualidade que sustenta os perigos que se invocam, e nem sequer faz uma análise devidamente redigida e fundamentda, de quais as medidas de coacção aplicáveis, de molde a excluir todas, menos aquela pela qual o Tribunal optou, independentemente de ser determinada a sua transcrição, aquando da subida do recurso ao Tribunal Superior competente.

2. - Sinaliza-se que o âmago do presente pedido de uniformização de jurisprudência foca-se no despacho que aplicou a medida de coação de prisão preventiva ao arguido/recorrente, em sede de primeiro interrogatório judicial, em 19/9/2023.

3. - Cumpre salientar que a oposição de julgados, que se explicitará infra, e cuja jurisprudência se pretende ver fixada, não contende com a posterior transcrição por parte do Tribunal de 1a Instância, antes da subida do recurso ao Tribunal superior. NA MEDIDA EM QUE A QUESTÃO SE COLOCA A MONTANTE, OU SEJA, AQUANDO DA PROLAÇÃO DO DESPACHO QUE APLICA A MEDIDA DE COAÇÃO, E NOS TERMOS FORMAIS EM QUE O FAZ!


- Com efeito, aquando da aludida determinação da transcrição pelo Tribunal de Ia Instância, em sede de acórdão recorrido, o recurso do recorrente sobre o despacho que lhe aplicou a prisão preventiva já tinha sido interposto!


5 - DO TEOR DO ACÓRDÃO RECORRIDO, conforme aludido em II.I, emerge da decisão proferida
pelos Srs. Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa, 9a Secção, em 21/12/2023, em
sede de dispositivo, o seguinte:


"Pelo exposto, acordam os Juízes na ... Secção Criminal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando-se integralmente a decisão recorrida."


6 - Para tanto, e da competente fundamentação do acórdão mencionado em 5, no que releva, destaca-
se o seguinte:


(....)


Da leitura conjugada destes preceitos, é manifesto que o depoimento prestado pelo arguido em sede de interrogatório judicial, não tem que ser reduzido a escrito. E o despacho proferido?


A jurisprudência nos tribunais superiores tem sido divergente.


Parece-nos ser esta última corrente jurisprudencial aquela que melhor se adequa às normas do


Código de Processo Penal.


Efectivamente, o despacho que aplica as medidas de coacção deve ser reduzido a escrito e consignado


no auto, porquanto é essa a exigência legal em matéria de decisões orais, excepcionando o legislador


as situações em que tal exigência é dispensada, como acontece nos processos sumário e abreviado


(artigos 389°-A e 391-F, ambos do Código de Processo Penal).


A não redução a escrito do despacho tal como resulta da lei, não se traduz em qualquer falta de


fundamentação ou de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. A fundamentação


existe tal como a matéria de facto que suporta o despacho, como se pode constatar do registo áudio.


O que que inexiste é a sua transcrição, tal como exige a norma legal.


(...)


Como se pode ver o que inexiste no auto é apenas e tão só, a não transcrição do despacho que aplicou


a medida de coacção.


ORA, A OMISSÃO DE UMA FORMALIDADE LEGAL DE NATUREZA PROCESSUAL, TRADUZ-SE


NUMA MERA IRREGULARIDADE, a qual deveria ter sido arguida no prazo previsto no artigo 123°


do Código de Processo Penal (...).


Em resumo, não tendo sido arguida no acto a irregularidade cometida, a mesma considera-se sanada.


7 - POR SEU TURNO, EM SEDE DE ACÓRDÃOS FUNDAMENTO, proferidos pela 3a Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, nos Proc. n.°s 133/19.0 SHLSB-A.L1, de 11/9/2019 e n.° 887/21.3
SGLSB-A.L1-3, de 16/3/2022, aludidos em II.II, exsurge o seguinte dispositivo:


A verificação do vício determina nos termos do disposto no art.° 426° do C.P.P., o reenvio do processo à 1a instância para que a mesma Srª Juíza supra os apontados vícios, a saber refira quais os factos indiciados, fundamente tal afirmação, refira qual a imputação feita aos arguidos, quais os


perigos que entende existirem e quais as medidas de coacção que entende correctas e adequadas e


porquê.


8 - Sobressai, da respectiva fundamentação dos acórdãos fundamentos, citados em 6., para a


apreciação da questão que se coloca a este o Tribunal Superior, as seguintes considerações:


No auto de interrogatório consta ainda no final do despacho:


Tudo conforme registado no sistema de gravação áudio em uso neste Tribunal, (...).


Como é óbvio aquilo que consta do despacho em papel não corresponde ao registo áudio, o qual está,


diga-se, no sistema citius/Media Studio.


A primeira questão com que nos deparamos é a de se é aceitável que um despacho que determina a


imposição de medidas de coacção se mostre registado apenas em ficheiro áudio ou se, ao invés,


necessita de ser reduzido a escrito.


A redução a escrito de um acto tem uma razão clara e objectiva.


O suporte papel confere uma maior segurança ao acto.


Confere a segurança de uma ponderação no conteúdo (por via de regra o que fica escrito é mais


ponderado), confere a certeza de que o que se quis dizer está incorporado na escrita e no papel,


confere a segurança de que a perda do documento é mais difícil do que num suporte digital (amiúde


mais efémero que o suporte papel).


(...)


Num mundo massificado, a tarefa morosa de reduzir a escrito as declarações do arguido não se


compagina com a necessidade de celeridade e com a dinâmica de pergunta-resposta que caracteriza


um interrogatório.


Mas tal é válido apenas e só para o interrogatório, isto é, para o segmento em que existe o acto de


confrontar o arguido com os factos, de conhecer a sua personalidade e suas motivações.


O acto de decidir, de afirmar a indiciação dos factos, de referir os fundamentos da medida de


coacção e de, por fim, escolher qual a medida aplicável tem de ser reduzido a escrito e não está


contemplado no supra citado n° 7 (art.° 141.°).


Na verdade, em sede de interrogatório judicial não existe norma equivalente à do art° 389°-A do


C.P.P. que refere que a sentença é proferida oralmente para a acta, só não o sendo nos casos em que é aplicável uma pena privativa da liberdade ou em casos em que as circunstâncias o reputem como


necessário.


É, pois, bom de ver que a regra é a redução a escrito dos actos sendo a oralidade a excepção no que


respeita a actos decisórios.


Aliás, se a condenação em processo sumário em pena de prisão implica a redução a escrito de um


acto que, por regra, é oral, por identidade de razão se dirá que um despacho que ordena medida


cautelar privativa de liberdade terá de ser igualmente reduzido a escrito.


Mas a verdade, é que a obrigatoriedade da redução a escrito abrange não só a prisão preventiva


(como é o caso) mas todas as medidas de coacção pois que o despacho que as determina não pode ser


oral (art° 141° n° 7 do C.P.P. a contrario).


Ademais, dispõe o art° 99° do C.P.P. que o auto é o instrumento destinado a fazer fé quanto aos


termos em que se desenrolaram os actos processuais a cuja documentação a lei obrigar e aos quais


tiver assistido quem o redige, bem como a recolher as declarações, requerimentos, promoções e actos


decisórios orais que tiverem ocorrido perante aquele.


Ora, o art° 96° n° 4 do C.P.P. é claro e cristalino: Os despachos e sentenças proferidos oralmente


são consignados no auto.


No caso destes autos o que foi consignado no auto foi o que acima se transcreveu e o que acima se


transcreveu não constitui base para a prisão de quem quer que seja.


Na verdade, não se diz qual a factualidade que se mostra indiciada, porque é que está indiciada, NÃO


SE REFERE QUAL A FACTUALIDADE QUE SUSTENTA O PERIGO QUE SE INVOCA E NEM


SEQUER SE FAZ UMA ANÁLISE DE QUAIS AS MEDIDAS DE COACÇÃO APLICÁVEIS DE


MOLDE A EXCLUIR TODAS MENOS AQUELA QUE SE ESCOLHEU.


(...)


A CONDUTA DO TRIBUNAL RECONDUZ-SE AO VÍCIO DA INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO


DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA, PREVISTO NO ART. 410.°, N ° 2, ALÍNEA A), DO CÓDIGO


DE PROCESSO PENAL.


Este vício consiste numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro


das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura


de direito, sobre a mesma.


No fundo, é algo que falta para uma decisão de direito, seja a proferida efectivamente, seja outra, em


sentido diferente, que se entenda ser a adequada ao âmbito da causa.


9 - Ora, aqui chegados cumpre postular que se encontram observados todos os pressupostos formais
exigidos processualmente para o presente recurso seja apreciado, quais sejam,:

1. O presente recurso do acórdão recorrido, para uniformização de jurisprudência, é interposto tempestivamente, no prazo de 30 dias desde o trânsito em julgado deste, e por quem tem legitimidade, cfr. art.° 437.°, n.° 5 e 438.°, n.° 1 do CPP.

2. O recorrente identificou devidamente o acórdão recorrido e os acórdãos fundamento que estão em oposição, devidamente transitados em julgado, não sendo admissível recurso ordinário dos mesmos, cfr. Pontos II.I e II.II, e art. °s 437. °, n.° 2 e 438.°, n.° 2 do CPP.


10 - Por outro lado, em sede substantiva, afiguram-se reunidos os respectivos pressupostos, nos
termos do art.° 437.°, n.° 2 do CPP.


Com efeito,

3. Quer o acórdão fundamento aludido em III (Conclusão 5), quer os acórdãos fundamento referidos em II.II (Conclusão 7), foram prolatados no domínio da mesma legislação processual penal, não tendo ocorrido qualquer alteração significativa/relevante para a temática do presente recurso, vide art.°s 96.°, n.° 4, 97°, n.° 4, 99°, n.° 1, 101.°, n.°s 1 e 4, 123.°, 141.°, n.° 7 e 410.°, n.° 2, al. a) do CPP, tudo conforme o art. ° 437.°, n.° 3 do CPP.

4. É inquestionável que perante a mesma situação factual o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu decisões/acórdãos divergentes e contraditórios, chamando à colação os mesmos preceitos. Explicitando,


11 - No âmago de descortinar a consequência jurídica para a aplicação, em sede de primeiro
interrogatório judicial de arguido detido, da medida de coacção de prisão preventiva, quando o
despacho que lhe subjaz não refere, por escrito, qual a factualidade que sustenta os perigos que se
invocam, e nem sequer faz uma análise devidamente redigida de quais as medidas de coacção
aplicáveis, de molde a excluir todas, menos aquela pela qual o Tribunal optou, foi decidido,
independentemente do aludido em 1.:


No acórdão recorrido, tratar-se de UMA MERA IRREGULARIDADE, p e p. pelo art. ° 123. ° do CPP,


considerando-se sanada se não for arguida pelo interessado no prazo legal para o efeito, pelo que


manteve o arguido sujeito à medida de coacção de prisão preventiva.


Enquanto que.


Nos acórdãos fundamento, decidiu-se ANULAR A DECISÃO RECORRIDA, POR INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO, nos termos do art.° 410.°, n.° 2, al. a) do CPP, e determinar o reenvio do processo à 1ª instância a fim de ser proferida nova decisão, pelo mesmo Tribunal e Juiz, a fim de suprir os apontados vícios, refira, por escrito, quais os factos indiciados, fundamente tal afirmação, refira qual a imputação feita ao arguido, quais os perigos que entende existirem e porquê e quais as medidas de coacção que entende correctas e adequadas e porquê, tudo conforme o disposto no art.° 97° n.° 4 do C.P.P.


Nessa sequência determinou que se emitem-se mandados de libertação dos arguidos, os quais aguardarão a decisão a proferir sujeitos a TIR a prestar aquando do cumprimento dos mandados.

12. - É notório, que, mediante a mesma situação factual - despacho de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva em que não se reduz a escrito os pressupostos de facto e de direito em que se legitima a respectiva aplicação - se extrai a discordância jurisprudencial gritante da qualificação do pertinente vício e das respectivas consequências.

13. - Note-se a relevância para a estabilização jurisprudencial do que se pretende deste Venerando Tribunal atendendo às repercussões que tem, e teve, os entendimentos divergentes dos acórdãos supra mencionados - prisão (irregularidade, dependente de arguição tempestiva por parte do interessado) vs liberdade (insufíciência da matéria de facto do despacho que aplicou a medida e coação de prisão preventiva, de conhecimento oficioso).


NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE SER ADMITIDO O PRESENTE RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA, POR ESTAREM VERIFICADOS OS RESPECTIVOS PRESSUPOSTOS FORMAIS E SUBSTANTIVOS DOS QUAIS O MESMO DEPENDE, NOS TERMOS DOS ART °S 437.°, N.° 2 E 438.° DO CPP, SEGUINDO-SE OS SEUS ULTERIORES TERMOS, DEVENDO SER FIXADA JURISPRUDÊNCIA NO SENTIDO QUE, OPORTUNAMENTE, SE PUGNARÁ EM SEDE DE ALEGAÇÕES. DESSA FORMA, SERÁ FEITA A TÃO PEDAGÓGICA JUSTIÇA.


A questão que o recorrente coloca é, tal como a apresenta, a de saber Qual a consequência jurídica para a aplicação, em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, da medida de coacção de prisão preventiva, quando o despacho que lhe subjaz não refere, por escrito, a pertinente factualidade que sustenta os perigos que se invocam, e nem sequer faz uma análise devidamente redigida de quais as medidas de coacção aplicáveis, de molde a excluir todas, menos aquela pela qual o Tribunal optou, independentemente de ser determinada a sua transcrição aquando da subida do recurso ao Tribunal Superior competente.


1.2 - O MPº no Tribunal da Relação de Lisboa respondeu, nos termos do disposto no artigo 439.º, n.º 1, do C.P.P., emitindo opinião no sentido de dever ser verificada a oposição de julgados e o recurso prosseguir para fixação de jurisprudência.


1.3 - Admitido o recurso e remetido a este Supremo Tribunal de Justiça, o MºPº emitiu parecer no sentido da rejeição, com o fundamento da indevida indicação não de apenas um mas de dois acórdãos fundamento.


No essencial, argumentou que:


(…) Na situação em apreço, é de entender que o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência em presença não se reveste dos requisitos legalmente estabelecidos.


Desde logo, porque referencia não um, mas dois acórdãos fundamento.


Ora, a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que, no recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, não se pode indicar mais do que um acórdão fundamento.


(…)


Verifica-se, assim, a inadmissibilidade legal do presente recurso, com a sua consequente rejeição, sem que haja lugar ao convite a aperfeiçoamento, já que, como decorre do artigo 440.º do C.P.P., não se encontra prevista essa possibilidade.


Pelo exposto, entende-se que o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência deverá, em conferência, ser rejeitado, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 440.º, n.º 3 e 4, e 441.º, n.º 1, 1ª parte, do C.P.P.


1.4- Notificado deste parecer, veio o recorrente responder, mantendo no essencial a posição assumida, sem que na resposta mencione directamente a questão levantada pelo MPº quanto à dupla indicação dos acórdãos fundamento.


1.5- Após exame preliminar e vistos legais foram remetidos os autos à Conferência, cumprindo agora explicitar a deliberação tomada.


II- Os pressupostos do RFJ e o caso concreto


2.1- Resulta dos dados certificados nos autos que o acórdão recorrido transitou em julgado no dia 5 de Janeiro de 2024, que o requerente foi arguido no processo, sendo-lhe favorável uma decisão em caso de procedência do recurso e que a interposição deste ocorreu a 30 de Janeiro de 2024, portanto dentro do prazo de 30 dias após aquele trânsito.


Verifica-se deste modo que estão preenchidos os pressupostos processuais formais atinentes à legitimidade, ao interesse em agir e à tempestividade – cfr decorre do disposto nos artigos 437.º, n.º 5, e 438.º, n.º 1, do C.P.P.


São ainda indicados 2 (dois) acórdãos fundamento e não apenas um, questão que adiante desenvolveremos quanto às consequências processuais dessa plúrima referência. Tais acórdãos, do mesmo Tribunal da Relação, também estão identificados e publicados.


2.2. Dispõe o artigo 437.º do C.P.P (cujo nº2 e 4 infra em sublinhado se aplicam e incidem mais em particular no presente caso):


1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois
acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso,
para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.

2. - É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3. - Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4. - Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

5. - O recurso previsto nos n.os 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.


E o artigo 438.º, do mesmo diploma legal, preceitua:

1. - O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

2. - No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.


O recorrente explicitou neste recurso extraordinário a existência de, em sua opinião, uma efectiva oposição de soluções sobre a mesma questão de direito (que identifica) de um acórdão do TRL (acórdão recorrido) perante duas outras decisões anteriores do mesmo Tribunal da Relação, transitadas em julgado.


2.3- Quanto aos pressupostos de natureza substantiva:


Decorre dos artigos 437.º, n.º 1, 2 e 4, e 438.º, n.º 2, do C.P.P., já transcritos, que devem ser enunciadas com clareza todas as condições para verificação de uma verdadeira oposição de julgados.


E esta ocorre sempre que:


a) - As asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito;


b) - As decisões em oposição sejam expressas;


c) - As situações de facto e o respetivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticos.


Assim, um dos requisitos substanciais, deveras o mais importante e decisivo, é precisamente a oposição expressa de julgamento relativamente à mesma questão de direito.


A este propósito, diremos de antemão que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem consolidando o entendimento de que a existência de decisões antagónicas pressupõe, para além de julgados expressos, a identidade das situações de facto base das decisões de direito antitéticas ou conflituantes.


Tem sido salientado neste Supremo Tribunal de Justiça verificar-se oposição de julgados quando os acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito, as decisões em oposição sejam expressas, não bastando que a oposição se deduza de posições implícitas e, quer as situações de facto quer o respetivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticos.


Tal expressão «soluções opostas» significa que nos dois acórdãos seja idêntica a situação de facto, em ambos havendo expressa resolução de direito e que a oposição respeite às decisões e não aos fundamentos. Sendo diferente a situação de facto de cada caso, não se pode afirmar a existência de oposição de acórdãos para os efeitos do n.º 1 do artigo 437.º do C.P.P. cfr Ac STJ de 7.4.22 (Eduardo Loureiro) no procº 538/19.6JACBR.C1-A (1)


Portanto, a oposição de julgados pressupõe decisões contraditórias sobre a mesma questão de direito, proferidas no domínio da mesma legislação.


A problemática da questão de direito não pode ser decidida sem a conexão com a base factual sobre a qual incida e o sucesso do recurso de fixação de jurisprudência exige que estejam em causa soluções de direito ligadas a situações de facto idênticas.


Também neste conspecto, trata-se de um recurso excepcional, com tramitação especial e autónoma, visando a estabilização e a uniformização da jurisprudência como aliás se salientou também desde logo no ac. do STJ n.º 5/2006, publicado no DR I-A Série de 6.06.20, “(…) tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito.» Por isso se lhe atribui carácter normativo (…)” eliminando o conflito originado por duas decisões contrapostas a propósito da mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação.2


Dessa excepcionalidade retira-se um especial grau de exigência na apreciação da respectiva admissibilidade, “compatível com tal incomum forma de impugnação, em ordem a evitar a vulgarização, a banalização dos recursos extraordinários.” (Idem Ac STJ citado no § anterior)


Também no Ac STJ de 08-06-2022 (Teresa Almeida) no procº 173/19.9IDPRT-AC.P1-A.S1 em sintetização do sentido da jurisprudência do STJ, e com reporte ao acórdão de 29-10-2020, proferido no processo n.º 6755/17.6T9LSB.L1-A.S1, se considerou que “ a natureza extraordinária deste recurso exige a verificação particularmente exigente dos requisitos formais, fundada, por sua vez, numa interpretação que respeite as restrições associadas à respetiva dimensão excecional”


Porém, a montante do requisito de oposição deverá a indicação referir-se apenas a um acórdão fundamento, transitado em julgado. Aqui, é incontornável termos de salientar que o recorrente indicou 2 acórdãos fundamento, ainda que aparentemente similares,3 por um dos quais em momento algum optou e não obstante a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, bem conhecida, vir entendendo que, neste tipo de recurso, não se pode indicar mais do que um acórdão fundamento , por força da própria letra da lei (elemento literal) - ex vi dos artigos 437.º, n.º 1 e 2 e 438.º, n.º 2, do C.P.P.-


Por outo lado, da própria natureza do recurso extraordinário decorre que através dele se pretende decidir o sentido de uma determinada norma jurídica, pressupondo seja identificada claramente a respectiva fonte normativa com a questão a determinar a oposição de julgados, de modo unitário e já não múltiplo ou complexo.


Na verdade, a exigência da invocação de um só acórdão fundamento não é espúria porquanto visa “(...) delimitar, com toda a minúcia, o âmbito da questão jurídica a dirimir, o que, em princípio, só se alcançará quando colocados defronte, apenas, de dois pontos de vista exactos, cada um deles expresso no respectivo aresto, sempre suposta uma mesma situação de facto e identidade de legislação", na expressão do acórdão de 08.04.2010 do S.T.J. (Processo n.º 311/09.0 YFLSB, Sumários de Acórdãos do STJ )


Igualmente, no mesmo patamar de perspectiva, como aliás bem referenciado no parecer do MPº, vejam-se os acórdãos de 24.03.2021, igualmente do S.T.J., proferido no processo n.º 64/15.2IDFUN.L1-A.S1e de 31.05.2023 (processo n.º 3381/16.0T9VNG.P2-A.S1, da 3ª secção) também este reportando-se ao Acórdão de 29.06.2011, no proc. n.º 372/07.6TAALB.C1.A.S1, e, por todos, com indicação exaustiva de jurisprudência e doutrina, ao já citado Acórdão de 30.10.2019, no proc. n.º 2701/11.9T3SNT.L1-A.S1, Rel Raúl Borges.)- salientando a unanimidade da jurisprudência nesta visão do problema exigindo a indicação singular do acórdão fundamento”(…) sem o que se “(…) inviabiliza a análise, em concreto, da oposição de julgados, que terá de fazer-se a partir da apreciação da matéria de facto, da sua motivação de direito e do próprio teor de cada decisão, (…)desvirtuando a natureza normativa do recurso e não habilitando o decisor a confrontar duas situações de facto idênticas com aplicação divergente de uma questão de direito.


2.4- Verifica-se, assim, a inadmissibilidade legal do presente recurso, com a sua consequente rejeição por motivo de indicação e mais de um acórdão fundamento:


E não se diga que seria possível um convite a aperfeiçoamento pois decorre do artigo 440.º do C.P.P. não se encontrar prevista essa possibilidade seguindo-se aqui o já decidido em ampla jurisprudência (v.g como se encontra na citada referência ao Ac STJ de 30.10.2019 (Raúl Borges) :”(…) a lei prevê apenas a possibilidade de tal “convite” no caso de a petição de recurso não conter conclusões ou não fazer as indicações referidas nos n.ºs 2 a 5 do art. 412 º do CPP, conforme dispõe o art. 417. º, n. º 3, do mesmo diploma(…)”


Em igual sentido e concordância, vide Simas Santos e Leal Henriques na obra Recursos Penais, 9.ª edição, 2020, Editora Rei dos Livros, págs. 204 e 205: “(…)Tendo o requerimento como único escopo o estabelecimento da oposição relevante dos dois acórdãos (fundamento e recorrido), já se concluiu que o incumprimento das regras da sua elaboração não se traduz numa falha menor, mas na sua falência total. Donde que tenha o STJ decidido que «no recurso extraordinário para fixação de jurisprudência há de o recorrente satisfazer os seguintes requisitos de índole formal: indicar um só acórdão fundamento;(…) E não cabe a este STJ um convite à correção do requerimento, porque a lei não contempla a hipótese, de resto, numa atitude de rigor, típica dos interesses específicos do processo penal, associada à ideia reinante no nosso ordenamento jurídico-processual penal de rejeição de tudo quanto seja contemporizar com as atitudes das partes que se traduzam numa subtracção ao compromisso do esforço que lhes é pedido, com as quais se não condescende (aqui, com a referência ao Ac STJ de 06-01-2018, proc. n.º 4120/05).


2.5- Consequentemente por inadmissibilidade legal, nos termos do disposto no artigo 441.º, n.º 1, 1ª parte, do C.P.P., tendo sido indicado mais de um acórdão, não cabendo a este STJ escolher entre eles nem tendo o recorrente indicado por qual deles optaria e, muito menos ainda, convidá-lo a aperfeiçoamento, rejeita-se o recurso ex vi das disposições conjugadas dos artigos 440.º, n.º 3 e 4, e 441.º, n.º 1, 1ª parte, do C.P.P.


III- DECISÃO


3.1 - Pelo exposto, rejeita-se o recurso por inadmissibilidade legal, ex vi do disposto nos artigos 440.º, n.º 3 e 4, e 441.º, n.º 1, 1ª parte, do C.P.P.


3.2 - Taxa de justiça a cargo do recorrente em 3 UC (Tabela III do RGC e artº 513º do CPP)


STJ, 9 de Maio de 2024


(texto elaborado em suporte informático , revisto e rubricado pelo relator – (artº 94º do CPP)


Agostinho Torres- (Relator)


Albertina Pereira-(1ª adjunta)


Leonor Furtado (2ª adjunta)


Helena Moniz (Presidente)





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1. Reportando-se ao sentido do Ac STJ de 2 de Outubro de 2008, proc n.º 08P2484.↩︎

2. (cfr,. entre outros, o Acórdão do STJ de 30.10.2019, processo nº 2701/11.9 T3SNT.L1-A.S1.)↩︎

3. Nem sequer cabendo ao Supremo Tribunal ter de ir ler um e outro para descortinar se acontece ou não uma exacta similitude para ultrapassar a argumentação da eventual inexistência de disparidades mínimas entre eles e afastar a regra da unicidade de indicação. Na linha do decidido já no Tribunal Constitucional ( AC TC nº 502/96 20 de Março de 1996, embora em matéria civil/laboral), diremos do mesmo modo, que :

“(…) Assim, sendo manifesto que a oposição tem de ser alegada, é o recorrente que tem de optar sobre o acórdão a indicar como fundamento do recurso, sob pena de vir a recair sobre o próprio tribunal aquilo que é incumbência da parte recorrente: a demonstração da oposição. Se se admitisse a junção de mais de um acórdão para comprovar a oposição, teria o tribunal de examinar todos quantos fossem indicados, complementando assim, por forma oficiosa, o requerimento de interposição do recurso, para poder decidir a questão da alegada oposição de julgados, não sendo exigível impor ao tribunal tal tarefa, que de alguma forma ultrapassaria os limites do princípio do dispositivo que, no processo em geral, e no processo civil muito em particular, exprime ainda exigências da autonomia da vontade dos particulares e se coaduna com as notas características da função jurisdicional. Pode, por isso, concluir-se que a indicação de vários acórdãos para demonstrar a existência de oposição, equivale à não identificação de oposição pelo que, em tal hipótese, se tem de considerar como não cumprido o pressuposto de admissibilidade do recurso.(…)”

↩︎