ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
PROJECTO DE DECISÃO
ASSINATURA DA DECISÃO APENAS PELO PRESIDENTE
JUÍZES ADJUNTOS
CONFERÊNCIA
ASSINATURA
VALIDADE
Sumário

I - O acórdão do Tribunal da Relação, em que a assinatura do juiz desembargador relator foi aposta na véspera e as assinaturas dos juízes desembargadores adjuntos foram apostas no dia da conferência, não padece de qualquer vício processual que o invalide.
II - A remessa do projecto de acórdão aos vistos, a que se refere o artigo 418º nº 1 do Código de Processo Penal, para além de se poder fazer pela transmissão de um documento físico ou por correio electrónico, pode, no processo electrónico, fazer-se, também, pela inserção do respectivo documento no sistema CITIUS, a qual só é tecnicamente possível com a assinatura electrónica do juiz desembargador relator. Com esse acto, os juízes desembargadores adjuntos passam a ter acesso ao projecto. Tal documento, que não é acessível aos sujeitos processuais e pode ser objecto de modificações, até ao momento em que, na conferência, for assinado pelos juízes desembargadores adjuntos, e a partir daí disponibilizado aos sujeitos processuais, não é a decisão do recurso mas apenas o projecto de acórdão submetido à conferência.

Texto Integral

Processo nº 816/17.9GALSD.P1
Comarca do Porto Este
4ª Secção do Juízo Central Criminal de Penafiel

Acórdão deliberado em Conferência

1. Relatório

O recorrente arguiu a inexistência ou nulidade do acórdão proferido na fase de recurso do presente processo em 14 de Junho de 2023, invocando, em resumo, os seguintes fundamentos:

- O acórdão é inexistente, ou pelo menos nulo, visto ter sido assinado pelo relator na véspera da conferência e pelos adjuntos no dia desta. Consequentemente, o acórdão foi publicitado na véspera, como decisão singular, subscrita apenas pelo relator, quando o deveria ter sido no dia da conferência, por todos os membros do tribunal, como decisão colegial.

- O acórdão é nulo, por omissão de pronúncia, por não ter analisado e decidido a impugnação da matéria de facto invocada no recurso, com base numa interpretação formalista e restritiva do ónus de alegação previsto no artigo 412º nºs 3 e 4 do CPP (referem-se a este código todos os preceitos sem outra indicação).

- O referido artigo 412º nºs 3 e 4, se interpretado daquela maneira formalista e restritiva, é inconstitucional, por violação do artigo 32º nº 1 da CRP, dado que posterga os reais direitos de defesa.

- O acórdão é ainda nulo por omissão de pronúncia, pois mesmo que o recorrente não tivesse cumprido o ónus de alegação dos factos e provas para impugnar a decisão da matéria de facto, ainda assim, oficiosamente, o tribunal de recurso deveria ter considerado não escritos os factos considerados provados em primeira instância, que são meramente conclusivos ou inócuos.

- Em consequência, considerados não escritos os factos relevantes para o preenchimento dos elementos objectivos do tipo de crime, deveria ter sido proferida decisão concluindo de maneira diferente quanto à matéria de direito, por verificação do vício do artigo 410º al. b).

2. Fundamentação

2.1. Vício do acórdão por causa da assinatura do relator

Analisamos em primeiro lugar o alegado vício de inexistência ou nulidade, por o acórdão ter sido assinado pelo relator na véspera da conferência.

Diz o recorrente que o acórdão que decidiu o recurso foi assinado pelo relator no dia 13 de Junho de 2023 e pelos dois juízes desembargadores adjuntos no dia seguinte, data em que se realizou a conferência. Consequentemente, conclui, o acórdão foi publicitado como decisão singular antes da data da conferência e é por isso inexistente ou nulo. Não indica as normas que considera aplicáveis.

Vejamos primeiro os factos processuais relevantes, documentados no processo:

- Em 9/6/2023, o juiz relator proferiu o despacho a que se refere o artigo 418º nº 1, remetendo o processo a visto ao juiz presidente da secção e aos dois juízes adjuntos e determinando a inscrição do processo em tabela para a conferência do dia 14/6/2023;

- Em 9/6/2023 o processo foi inscrito em tabela para a conferência do dia 14/6/2023;

- O juiz primeiro adjunto assinou o visto em 9/6/2023 e os juízes presidente e segunda adjunta em 12/6/2023;

- Em 14/6/2023 realizou-se a conferência a que se refere o artigo 419º, em cuja acta conta o seguinte:

Em 14-06-2023 às 11:00, neste Tribunal da Relação desta cidade de Porto, deu-se início à sessão presidida pelo Excelentíssimo Senhor Juiz Desembargador Presidente da Secção, Dr. Borges Martins, comigo Escrivã Auxiliar AA, tendo sido apresentados os autos de Recurso Penal acima identificados, a fim de se proceder à respetiva conferência, os quais são provenientes do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este e em que são:

Recorrente: BB

Recorrido: Ministério Público e outro(s)...

Realizada a conferência, pelo Excelentíssimo Senhor Juiz Desembargador Relator, Dr. Manuel Henrique Ramos Soares, foi entregue via citius o antecedente acórdão, por ele assinado e pelos Juízes Adjuntos, os Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores Dr. José Francisco Mota Ribeiro e Dra. Elsa Paixão.

A presente ata foi integralmente revista e por mim, AA, elaborada.

- O acórdão contém a assinatura electrónica do juiz relator, com a data de 13/6/2023, e dos juízes adjuntos, com a data de 14/6/2023.

A questão controvertida é a de saber se ocorre algum vício processual por o acórdão ter sido assinado pelo juiz relator na véspera da data da conferência.

O primeiro ponto que importa assinalar é que a lei regula diferentemente o processo de deliberação da decisão colegial e de redacção e assinatura do acórdão no julgamento em primeira instância e no recurso.

Em primeira instância, encerrada a audiência de discussão e julgamento, os três juízes (e os jurados, quando é o caso) reúnem-se para discutir e votar cada um dos pontos relevantes para a determinação da culpabilidade e da pena por ordem de antiguidade (artigos 365º a 369º). Concluída a deliberação e votação, o juiz presidente (ou o mais antigo dos que fizeram vencimento, se o presidente ficar vencido) redige o acórdão, de acordo com as posições que tiverem feito vencimento na deliberação, o qual é, em seguida, assinado por todos os juízes (e jurados, se os houver) e depois lido publicamente (artigo 372º). Isto significa que a colegialidade da deliberação em primeira instância é assegurada pela presença e participação simultânea de todos os juízes. Há uma discussão completa e simultânea, prévia à deliberação e ao acórdão, que é depois redigido pelo relator e assinado pelos adjuntos de acordo com o sentido do que acabou de ser decidido.

Em recurso, tal como a lei a prevê, a intervenção dos juízes, relator e adjuntos, no processo de deliberação colegial é sucessiva e não simultânea. O processo é primeiro concluso ao relator para exame preliminar. Esse exame é individual e pode levar (i) a um convite para o aperfeiçoamento das conclusões; (ii) à prolação de decisão sumária singular; (iii) à alteração do regime do recurso ou à (iv) renovação da prova (artigo 417º). Entendendo o relator, ainda individualmente, que o recurso está em condições de ser decidido por tribunal colectivo em conferência[1], elabora um projecto de acórdão que remete, conjuntamente com o processo, a visto do presidente e dos juízes adjuntos (artigo 417º nº 9 e 418º). Os juízes adjuntos, com o visto do processo e do projecto, inteiram-se do objecto do recurso e da proposta de decisão do relator, que é depois objecto de discussão e votação em conferência. Votação essa que será de adesão ou de rejeição do projecto, sendo finalmente o acórdão assinado, favoravelmente ou desfavoravelmente, com ou sem declaração de voto (artigos 419º e 374º nº 3 al. e), ex vi artigos 97º nº 2 e 380º nº 3) [2].

Quer isto dizer que, na fase do recurso, numa interpretação mais “legalista” das normas, não haveria uma discussão aberta sobre todos os pontos relevantes, prévia à deliberação e redacção da decisão, com a participação em simultâneo de todos os juízes. A análise das diversas questões a decidir seria feita singularmente pelo juiz relator e a discussão colegial apenas ocorreria em momento posterior, com base num projecto de decisão, quase fechado, a que os juízes adjuntos poderiam aderir ou não, de forma sucessiva.

No entanto, a verdade é que na prática o processo de deliberação colegial é mais participado. Nada na lei impede que o juiz relator, depois do exame preliminar do processo, quando o recurso houver de ser julgado em conferência, discuta previamente com os juízes adjuntos as questões que considere relevantes e procure obter uma posição unânime ou maioritária antes de elaborar o projecto formal de decisão, já em conformidade com o sentido dessa discussão prévia. Esta maior colegialidade do processo de decisão não suscita qualquer problema de aplicação das normas nem de violação de garantias e direitos de defesa.

Nestas situações, que são as mais comuns, quando as questões a decidir tiverem sido previamente discutidas e o projecto de acórdão reflectir o assim consensualizado e não sofrer qualquer modificação em resultado da discussão na conferência, a remessa aos vistos destina-se a formalizar o envio do projecto e a permitir que o presidente da conferência e os adjuntos verifiquem e confirmem a conformidade do projecto com a referida discussão prévia sobre o sentido da deliberação. Porém, a deliberação só se finaliza no momento da conferência, uma vez que nesta há lugar a uma discussão que pode ainda levar à alteração do texto final. Só com a assinatura do acórdão nos termos previamente deliberados, finalizada na conferência, se constitui e declara a decisão colegial.

As normas aplicáveis à deliberação em recurso foram inicialmente concebidas para um processo físico impresso em papel, em que não existiam, sequer, possibilidades complementares de comunicação entre juízes por meios electrónicos. O processo que “vai a visto” “acompanhado do projecto de acórdão” para “ir à conferência” (artigo 418º), remete-nos para um processo em papel que circula fisicamente entre gabinetes de juízes.

Porém, com a utilização generalizada de meios de comunicação à distância, tornou-se prática comum o relator enviar ao presidente da conferência e aos adjuntos o projecto de decisão, normalmente em simultâneo com a formalização da decisão de remessa do processo a visto e à conferência. Esta solução permite a abertura de canais de discussão colegial sobre os pontos relevantes para a decisão do recurso em momento anterior à conferência. Trata-se de uma prática que vai além da lei, mas não a contraria, na medida em que assegura de forma mais perfeita o princípio da colegialidade da decisão, que melhor assegura as garantias do processo penal.

A desmaterialização em suporte electrónico do processo do recurso nas Relações, introduzida pela Portaria 280/13, de 26 de Agosto (artigos 15º e 19º nº 1), trouxe modificações na tramitação e na forma da assinatura, que passou a ser electrónica (autorizada, também, pelo artigo 94º nº 3), mas não alterou as possibilidades práticas, já então correntes, de antecipar a discussão para momento anterior à conferência.

A remessa de um projecto de acórdão anexo ou inserido no próprio processo desmaterializado (no programa CITIUS) ao presidente da conferência e aos adjuntos deixou de ser tecnicamente possível. O sistema informático de suporte à actividade processual não dispõe de uma funcionalidade que permita enviar de documentos não assinados nem inseridos na respectiva base de dados. Portanto, a transmissão do projecto de acórdão entre o relator e os adjuntos far-se-á, em regra, pelos meios complementares de comunicação à distância, nomeadamente o correio electrónico. Essa transmissão, prévia à conferência, todavia, continua a poder ser complementada com o envio, no processo electrónico, de um projecto escrito de acórdão, para análise dos juízes adjuntos. Só que para isso ser tecnicamente possível, o relator terá de inserir o documento no CITIUS e de lhe apor a sua assinatura electrónica (se não assinar, o documento não é carregado). No entanto, quando assim suceda, o documento, embora assinado pelo relator, mesmo que reflectindo o resultado da discussão prévia, não passará ainda de um projecto. Se não for aprovado, será convertido em documento de trabalho (em formato word editável) e alterado na conferência, em função da discussão que aí ocorrer, nunca chegando o projecto, na sua versão original, a ser objecto de conhecimento dos sujeitos processuais. Aprovado, com ou sem alterações, fica finalizado como deliberação colegial quando é assinado por todos os juízes que integram o tribunal e só depois se torna acessível aos sujeitos processuais, depois da concluída e publicada a acta da conferência. O facto de o documento estar assinado pelo relator não lhe retira, portanto, a natureza de projecto nem impede a sua alteração na conferência.

Chegados a este ponto, não tendo mais sentido útil um processo deliberação que consistisse apenas na remessa do processo ao visto do juiz presidente e dos juízes adjuntos, acompanhado de um projecto de acórdão, que, só depois, em conferência, fosse discutido e deliberado, a única forma prática de observar as finalidades da tramitação prevista na lei e garantir materialmente a colegialidade da decisão, é antecipar o momento da discussão sobre o sentido da deliberação para momento anterior à conferência.

Foi isso exactamente o que ocorreu no caso em apreço. Sem entrarmos nos detalhes da deliberação, que é secreta, a discussão colegial do objecto do recurso e do sentido da decisão, a seguir ao exame preliminar, iniciou-se com o envio de um projecto por correio electrónico no mesmo momento em que se determinou, no processo, a remessa do processo para visto e o seu agendamento na conferência (momento do despacho de 9/6/2023). Feita essa primeira discussão, e em resultado dela, o documento inserido no CITIUS na véspera da conferência, necessariamente com assinatura electrónica (de outro modo não seria tecnicamente possível), foi apenas um projecto, precisamente para permitir ao presidente e juízes adjuntos, não só a discussão a que ainda houvesse lugar em conferência, mas também a verificação da conformidade entre o sentido da deliberação consensualizada e o texto então submetido para assinatura.

Na sessão da conferência, como consta na respectiva acta, depois do momento da discussão, foi entregue via citius o antecedente acórdão, por ele assinado [na véspera] e pelos Juízes Adjuntos, os Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores Dr. José Francisco Mota Ribeiro e Dra. Elsa Paixão [no próprio dia]. A acta não refere que a assinatura do relator ocorreu no momento da conferência (nem podia referir porque isso seria falso), não refere, igualmente, que o documento tinha sido inserido e assinado pelo relator na véspera (nem tinha de referir porque isso fica devidamente assinalado no documento PDF mais tarde acessível aos sujeitos processuais), nem refere, por fim, que o documento a que alude não é mais do que o resultado da discussão colegial prévia anteriormente referida.

Assim, ao contrário do afirmado pelo recorrente, o documento assinado na véspera pelo juiz relator não foi o acórdão mas sim o projecto de acórdão, anteriormente discutido e consensualizado, que veio a obter confirmação e voto favorável dos juízes adjuntos, voto esse que se formalizou com as respectivas assinaturas.

Por outro lado, também ao contrário do afirmado pelo recorrente, não houve qualquer acórdão “publicitado” na véspera como decisão singular, porque o documento só se tornou acessível aos sujeitos processuais, já na forma de acórdão finalizado, depois da assinatura dos adjuntos e depois de publicada a acta da conferência. Só quando se completaram as assinaturas electrónicas dos três juízes que integraram o colectivo que julgou o recurso se formalizou a deliberação colegial contida no acórdão.

Sendo assim, torna-se evidente que não ocorreu o vício pretendido pelo recorrente.

2.2. Nulidade por omissão de pronúncia – o não conhecimento da impugnação dos factos provados

Afirma o recorrente que o acórdão é nulo por omissão de pronúncia, por não ter analisado e decidido a impugnação da matéria de facto invocada no recurso, com base numa interpretação formalista e restritiva do ónus de alegação previsto no artigo 412º nºs 3 e 4.

Como dissemos no acórdão agora posto em crise, face ao disposto no artigo 412º nºs 3 e 4, é necessário que o recorrente indique especificamente os factos que considera mal julgados e as provas que considera relevantes para sustentar o erro que aponta à decisão recorrida. Estando tais provas orais gravadas, a indicação faz-se por referência ao que está na acta do julgamento, com indicação concreta e expressa das passagens dos depoimentos ou os dos documentos em que se funda a impugnação, bastando para tal, tratando-se de depoimentos orais, remeter para os respectivos momentos do registo áudio ou transcrevê-los.

O que é essencial, numa interpretação adequada da lei processual, é que o recurso permita perceber, sem qualquer dúvida, exactamente que factos provados ou não provados se impugnam e com base em que provas concretas, para que o tribunal, sem desvirtuar o objecto do recurso, isto é, sem ter de procurar vícios que não lhe são apontados, possa decidir, com base na análise dessas provas e de outras que tenha por relevantes.

O ónus assim imposto ao recorrente não constitui uma formalidade sem razões substanciais ponderosas. Os poderes de cognição do tribunal de recurso não são ilimitados. A impugnação da matéria de facto não faculta ao recorrente a substituição do julgamento de primeira instância por um novo julgamento em segunda instância, com uma reapreciação completa e nova de todas as provas.

O sistema de recursos instituído baseia-se como que numa presunção de maior fidedignidade da apreciação da prova em primeira instância, que decorre da regra da imediação, que possibilita uma relação de contacto pessoal e directo entre o julgador e as provas. O juiz assiste pessoalmente à recolha de toda a prova na audiência, pode analisar provas diferentes das que lhe foram apresentadas, examina directa e pessoalmente os depoimentos das testemunhas e, salvo casos excepcionais, só pode formar a sua convicção em provas que foram produzidas ou analisadas diante de si em audiência. Ao contrário, em segunda instância, a reapreciação da matéria de facto faz-se, em regra, sem imediação, com a audição e visualização do registo das provas sugeridas no recurso e apenas se renovando provas sob impulso dos sujeitos processuais (artigos 412º nºs 3 a 6 e 417º nº 7 al. b) do CPP).

Estas diferentes formas de procedimento, na primeira instância com imediação e completude, e na segunda instância com mediação e fragmentação, justificam que, em recurso, a reapreciação da prova não possa ser entendida como um segundo julgamento. O que a lei garante à parte vencida é apenas possibilidade de obter do tribunal superior a fiscalização e controlo de eventuais erros da decisão da matéria de facto.

Por outro lado, no que respeita ao modo como o juízo probatório se forma, é importante ter em conta que o julgamento da matéria de facto está balizado pelo princípio da livre apreciação (artigo 127º do CPP), que confere ao julgador uma ampla margem de discricionariedade para valorar as provas, embora sujeita a um exame crítico, vinculado a critérios objectivos jurídico-racionais e às regras da lógica, da ciência e da experiência comum. Por isso, na fundamentação da sentença o tribunal deve explicitar o percurso intelectual do seu exame crítico e as razões das conclusões a que chegou.

Portanto, à luz destas regras, para sindicar com êxito a decisão condenatória sob recurso, não basta ao recorrente manifestar discordância em relação ao juízo de culpa formulado pelo tribunal recorrido, limitando-se a afirmar genericamente que as provas deviam ter sido interpretadas de outra maneira. Tem de demonstrar que a verdade que o tribunal deu como demonstrada é implausível ou, ao menos, duvidosa – com o sentido do princípio in dúbio pro reu. Quando o artigo 412º nº 3 al. b) dispõe que o recorrente tem de “especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida” (sublinhado nosso), isso significa que não basta dizer que não concorda; tem de mostrar que a decisão do tribunal está errada porque as provas em que se baseou, de acordo com a motivação que explicitou na sentença, não a suportam.

Vejamos então se o recorrente cumpriu devidamente o ónus de especificação das provas das quais resulta que houve erro de julgamento da matéria de facto em primeira instância (todos os sublinhados são nossos).

Afirmou-se no recurso que o tribunal “não fez prova bastante para considerar provados todos os factos pelos quais o arguido veio acusado” e que “a acusação baseou-se no seu essencial em suposições”.

Afirmou-se também, a propósito das fotos recolhidas nas diligências, externas de fls. 207 a 230 do primeiro volume e de fls. 263 a 348 do segundo volume, que “em nenhuma fotografia se verifica o arguido a trocar droga por dinheiro” e que “a restante prova, assenta em escutas telefónicas e SMS através das redes sociais, que também nada demonstram

E, ainda em relação às fotos, escutas e SMS, diz-se que são meramente indiciárias e que têm de ser confirmadas em tribunal, “ou pelas declarações do arguido, o que não aconteceu, ou por outra prova testemunhal bastante para validar as provas indiciárias”, que “nenhum militar da GNR em julgamento afirmou ter presenciado o tráfico de estupefacientes em concreto”, que “todos os militares da GNR sem excepção referiram que supostamente tratava-se de tráfico de estupefacientes”, “mas, em concreto, nunca viram rigorosamente nada” e que “o mesmo aconteceu nas escutas telefónicas e SMS, que são apenas suposições”.

Por fim, refere-se que, relativamente a “todas as outras testemunhas sem excepção referiram que o arguido nunca lhes vendeu nada” e que “apenas referiram que o arguido lhes cedeu canábis mas que em outros momentos seria o contrário”.

É por demais evidente que esta forma de contrariar a decisão do tribunal recorrido, que nem sequer consta nas conclusões do recurso, não especifica nem os factos impugnados nem as provas que alegadamente os contrariam. O recorrente tinha de indicar exactamente que factos considera mal julgados, não bastando dizer que são todos, pois isso não é especificar, como a lei determina.

Por outro lado, tinha também, ao indicar as provas das quais, no seu entendimento, resultava que os factos foram erradamente dados como provados, de dizer com precisão a que documentos se quis referir e que segmentos dos depoimentos das testemunhas relevavam para o fim pretendido. Não basta dizer que são as fotos, as escutas, os SMS e os depoimentos dos militares da GNR. Isso não corresponde minimamente ao dever de especificação previsto na lei.

Este é, aliás, um exemplo típico do recurso em que se pede que o tribunal faça uma nova avaliação global da prova, apenas por se discorda do julgamento em primeira instância, sem se circunscrever o objecto da impugnação aos factos e às provas relevantes. Ou seja, o que se pretende é que o tribunal de recurso encontre erros de julgamento que não foram invocados.

Não se verifica, portanto, qualquer omissão de pronúncia na decisão do recurso, na medida em que o seu objecto foi fixado nas respectivas conclusões e nem nestas nem na motivação o recorrente cumpriu o ónus de alegação a que se refere o artigo 412º nºs 3 e 4. Como decorre do disposto no artigo 431º al. b), a matéria de facto fixada na decisão recorrida apenas poderia ser modificada se a impugnação tivesse observado aqueles requisitos.

2.3. Inconstitucionalidade do artigo 412º nºs 3 e 4

Alega-se que o referido artigo 412º nºs 3 e 4, aplicado como no acórdão posto em crise, é inconstitucional, por violação do artigo 32º nº 1 da CRP, dado que posterga os reais direitos de defesa.

Começamos por fazer notar que a questão aqui colocada difere de outra já julgada com força obrigatória geral no acórdão do Tribunal Constitucional nº 320/2002, de 9/07 (DR, IS, de 7/10/02), segundo a qual as normas em questão são inconstitucionais, por violação do direito a um processo equitativo e do direito ao recurso, na interpretação de que o incumprimento do ónus ali fixado, por ausência das especificações nas conclusões do recurso, conduz à sua rejeição sem possibilidade de aperfeiçoamento. Aqui, no caso que estamos a analisar, a omissão do cumprimento do ónus de especificação dos factos e das provas está na própria motivação do recurso e não apenas nas conclusões. Um convite ao aperfeiçoamento não resolveria a omissão, na medida em que o recorrente não poderia corrigir as conclusões colocando lá o que não tinha alegado na motivação, dado o impedimento previsto no artigo 417º nº 4.

A questão de inconstitucionalidade que nos é posta é mais funda. O que se afirma é que a fixação daquele ónus de especificação dos factos e das provas previsto no artigo 412º nºs 3 e 4 viola a norma da constituição que estabelece que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

Não subscrevemos essa tese.

A indicação especificada dos factos considerados mal julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, feita nos termos previstos no artigo 412º nºs 3 e 4, é um requisito essencial para a delimitação do objecto do recurso e fixação dos poderes de cognição do tribunal. Sem tal especificação, o recurso carece de objecto suficiente para poder levar a uma reapreciação que culmine na modificação da decisão (artigo 431º al. b)).

O que está em causa, na perspectiva do recorrente, acaba por ser, assim, a inconstitucionalidade da norma que determina que o recurso de impugnação da matéria de facto tem de ter um objecto preciso para que a Relação o possa julgar; ou seja, dito de outra forma, a proceder a tese do recorrente, a norma do artigo 32º nº 1 da CRP imporia que a garantia do direito ao recurso seria assegurada mesmo nas situações em que o recurso não tivesse objecto.

Esta interpretação da constituição não pode colher. Ela põe em causa, até, a estrutura acusatória do processo penal, estatuída no artigo 32º nº 5 da Constituição. O juiz penal tem de estar colocado numa posição de total independência em relação às partes e estas entre si, na fase do julgamento, têm de ter uma posição equivalente no processo. Se a constituição impusesse a apreciação em recurso da impugnação da decisão da matéria de facto que não observasse os requisitos do artigo 412º nºs 3 e 4, isso implicaria que o juiz de recurso se teria de substituir ao recorrente, indo à procura de erros que o mesmo não invocou.

Por outro lado, não estamos na presença de um ónus de especificação de factos e provas excessivo. O arguido esteve representado no julgamento por advogado, tem acesso fácil a toda a prova produzida em audiência, mesmo àquela que ficou registada em formato áudio, e tem em seu poder a decisão que pretende impugnar, que fixa os factos provados e indica a motivação do tribunal recorrido. Não há qualquer obstáculo à invocação no recurso dos factos impugnados e das provas em que se baseia a impugnação.

Pelas razões expostas, não procede a objecção de inconstitucionalidade do artigo 412º nºs 3 e 4.

2.4. Nulidade por omissão de pronúncia – a não desconsideração oficiosa dos factos provados meramente conclusivos ou inócuos.

Alega o recorrente que o acórdão é ainda nulo por omissão de pronúncia, pois mesmo que o recorrente não tivesse cumprido o ónus de alegação dos factos e provas para impugnar a decisão da matéria de facto, ainda assim, oficiosamente, o tribunal de recurso deveria ter considerado não escritos os factos considerados provados em primeira instância, que são meramente conclusivos ou inócuos.

E que factos provados que se devia ter considerado não escritos são esses?

Factos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 12 e14: Descrevem, genericamente, a actividade de tráfico, no que respeita ao período em que ocorreu, à forma como se preparava a droga, à autoriza, quantidades, modo e locais das vendas. O recorrente diz que são meramente conclusivos. Não tem razão. Seriam conclusivos se nos outros pontos da matéria de facto provada não constassem os factos dos quais se extraem aquelas imputações. Mas têm conteúdo factual e, conjugados com os demais, permitem perfeitamente a delimitação factual do objecto do julgamento e do exercício dos direitos de defesa.

Factos 15, 18, 19, 20, 21, 22, 29, 31, 32 e 35: referem-se a actos de venda de produto estupefaciente em datas precisas, com determinação do local e hora e por vezes da matrícula da viatura automóvel dos compradores. O recorrente diz que são conclusivos porque não ficou determinado o tipo de droga, a quantidade, o valor da venda e/ou a identidade do comprador. Volta a não ter razão. A circunstância de num determinado acto de venda não se conseguirem apurar todos os elementos factuais do tipo, não implica que a imputação tenha conteúdo factual. Não estamos aqui a analisar se devia ter sido dado como provado ou não, pois isso seria assunto para a impugnação da matéria de facto. Estamos apenas a dizer que a afirmação tem conteúdo factual: no dia tantos do tal, às tantas horas, A vendeu a B substâncias estupefacientes.

Factos 17 e 24: Descrevem os factos de o recorrente ter sido visto a sair de um veículo automóvel à porta de casa, de ter chegado a determinado local num automóvel conduzido pelo co-arguido e ter retirado um objecto volumoso da bagageira. O recorrente considera o facto inócuo. Tem razão. Os factos não relevam para a determinação da culpabilidade ou da pena. Porém, o recurso deve ter na base um legítimo e o tribunal de recurso deve actuar de acordo com um princípio geral de utilidade dos actos. Teria sido absolutamente inconsequente para a decisão do recurso e para a posição do arguido terem-se considerado não escritos facto do qual o tribunal recorrido não extraiu qualquer consequência, nem para o preenchimento do tipo legal do crime nem para a determinação da pena. O recorrente não tem, sequer, interesse digno de tutela jurídica na pretensão de ver tido como não escritos facto totalmente irrelevantes para a decisão do recurso.

Factos 42, 43, 44 e 45: Referem-se à prova da actuação livre, voluntária e deliberada, com o propósito de traficar produtos estupefacientes. O recorrente questiona o conteúdo factual e relevância daqueles segmentos da matéria de facto provada com as seguintes interrogações: “quais estupefacientes?” “prova ???”. Não tem razão. Os estupefacientes a que se referem estes factos são aqueles que o tribunal deu como provado terem sido vendidos pelo arguido. Não se apurou a natureza do produto em alguns casos, mas noutros apurou-se – cfr. factos provados 11, 21, 30 e 38. Uma vez mais, não se está aqui a ver se os factos foram dados como provados bem ou mal, mas apenas se são conclusivos ou inócuos. E não são.

É verdade que factos irrelevantes, por serem conclusivos ou inócuos, ainda que contidos na acusação ou na contestação ou revelados na audiência, não podem considerar-se como fazendo parte do objecto do julgamento, por força do disposto nos artigos 368º nº 2 e 369º nº 2 e do princípio geral da utilidade dos actos processuais, consagrado a contrario no artigo 130º do CPC, segundo o qual “não é lícito realizar no processo actos inúteis”. Uma imputação em que a indicação da sequência de acontecimentos do evento histórico que constitui o crime é substituída por afirmações conclusivas, que não permitem ao acusado contrariar de forma efectiva a imputação, não respeita as exigências da determinação precisa do objecto factual do julgamento.

Porém, como vimos e explicámos, ao contrário do afirmado na arguição de nulidade do acórdão, os segmentos da matéria de facto provada postos em causa não são, nuns casos, conclusivos e, noutros, sendo-o, não tinham de ser considerados não escritos por absoluta irrelevância para o sentido da decisão do recurso e para o interesse do recorrente.

Como tal, improcede a arguida nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, pois o tribunal não deixou de se pronunciar sobre matéria que devesse ter decidido.

2.4. Alteração da decisão de direito

Invoca o recorrente, por fim, que , tendo-se por não escritos os factos relevantes para a determinação da tipicidade, deveria ter sido proferida decisão concluindo de maneira diferente quanto à matéria de direito.

A pertinência desta questão está prejudicada pela decisão acabada de referir quanto ao ponto anterior.

2.5. Conclusão

Improcede totalmente a arguição de nulidade do acórdão.

São devidas custas pelo incidente, nos termos do artigo 513º nº 1, do CPP, 8º do RCP e sua tabela anexa III, entre 1 e 3 UC.

3. Decisão

Pelo exposto, acordamos em indeferir a arguição de nulidade.

Custas pelo recorrente com 2 UC de TJ.


Porto, 15 de Novembro de 2023
Manuel Soares
Francisco Mota Ribeiro
Elsa Paixão
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[1] Não tratamos aqui do caso da decisão do recurso em audiência, por ser irrelevante para a decisão em apreciação.
[2] Veremos já de seguida que o modelo prático consolidado de deliberação em recurso – que o legislador conhece – assegura melhor o princípio da colegialidade da decisão do que o modelo que resultaria de uma interpretação estrita e positivista das normas legais referidas.