ARGUIDO
TAXA DE JUSTIÇA
CONDENAÇÃO
PRESSUPOSTOS
DIREITO DE DEFESA
INCIDENTE
LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
INAPLICABILIDADE
TAXA SANCIONATÓRIA EXCEPCIONAL
APLICABILIDADE
REQUISITOS
Sumário

I – Na vigência da redacção originária do artigo 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), o arguido era responsável pelo pagamento de taxa de justiça, além do mais, quando ficasse vencido em incidente que requeresse ou a que fizesse oposição.
II – Porém, após a alteração de redacção introduzida a esse preceito pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26-02, pelo qual foi aprovado o Regulamento das Custas Processuais (RCP), o arguido só é responsável por custas / taxa de justiça “quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso.”
III – Além do teor literal inequívoco desta norma do CPP, a responsabilidade pelo pagamento de taxa de justiça por parte do arguido encontra-se regulamentada no artigo 8.º, n.º 9, do RCP, não sendo aplicável o disposto no artigo 8.º do mesmo Regulamento, o qual somente se reporta às acções de natureza cível e respectivos incidentes, não tendo o mesmo aplicação a “incidentes” ou “procedimentos” no âmbito do processo penal.
IV – Com a alteração da redacção daquela norma processual, o legislador reduziu substancialmente as situações em que o arguido é responsável pelo pagamento de taxa de justiça, com o que pretendeu certamente não impedir ou limitar, através da aplicação de custas, o exercício dos direitos de defesa e ao recurso por parte do mesmo, bem como o pleno exercício do contraditório, todos com consagração constitucional (art. 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa).
V – Desde então, deixou de haver fundamento legal para a condenação do arguido em custas de incidente que tenha requerido ou a que tenha feito oposição, não sendo, por isso, permitida tal penalização tributária.
VI – De igual modo, não é admitida a condenação como litigante de má-fé, pois que se trata de um instituto de natureza exclusivamente civilística, conforme previsto no artigo 542.º do Código de Processo Civil (CPC), sem aplicação subsidiária ao processo penal.
VII – Resta, assim, a possibilidade de condenação no pagamento de taxa sancionatória excepcional, nos termos do artigo 521.º, n.º 1, do CPP, com remissão para o artigo 531.º do CPC, a fixar pelo juiz entre 2 UC e 15 UC, como previsto no artigo 10.º do RCP.
VIII - Contudo, tal sancionamento reveste natureza excepcional e pressupõe um despacho fundamentado do juiz, somente devendo ser aplicado quando a conduta do sujeito processual revelar, de forma clara e inequívoca, o frontal desrespeito pelas regras da prudência ou diligência que lhe eram exigíveis, contrariando ostensiva e injustificadamente a legalidade da marcha do processo, não sendo o mero exercício dos direitos de defesa, incluindo o recurso, por parte do arguido que podem motivar tal condenação, mesmo que os argumentos apresentados não colham minimamente.

Texto Integral

Proc. n.º 266/05.0IDPRT-J.P1



Relator: Raul Cordeiro.
Adjuntos: Francisco Mota Ribeiro e José António Rodrigues da Cunha.


SUMÁRIO:
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I

Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

        No Processo Comum Colectivo n.º 266/05.0IDPRT,[1] pendente no Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 5, foi proferido despacho, em 21-11-2023, pelo qual, renovando-se o teor do despacho anterior, se decidiu indeferir o requerimento formulado pelo arguido AA para obtenção de cópias / certidão de documentos dele integrantes, condenando-se o mesmo em custas pelo incidente, com fixação pelo mínimo legal (ref.ªs 454065078 e 454162766).


*

         Não se conformando com tal decisão, na parte em que o sancionou em custas, dela interpôs recurso o arguido AA, tendo apresentado a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

I.

         Vem o presente recurso interposto da, aliás douta, decisão proferida nos autos que condenou o arguido no pagamento de custas do incidente conforme despacho com a Ref.ª 454273203, de 23/11/2023.

II.

Condenação com a qual o arguido não se conforma por entender e sustentar que os requerimentos por si apresentados em juízo e que originaram a decisão aqui sindicada, limitaram-se exclusivamente a requerer elementos do processo, algo que a lei, mormente, o artigo 89.º, n.º 1, do CPP e artigo 12.º-A da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto, lhe concede.

Senão vejamos,

III.

Da condenação do arguido/recorrente em custas, por incidente anómalo, ao abrigo do artigo 7.º, n.º 8, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela II anexa.

IV.

Sobre a responsabilidade do arguido por custas e por encargos regem, respetivamente, os artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal, dispondo, por sua vez, o artigo 524.º do mesmo diploma legal, ser subsidiariamente aplicável o disposto no Regulamento das Custas Processuais.

V.

E o artigo 7.º do Regulamento das Custas Processuais, sob a epígrafe “regras especiais”, disposição legal que serve de sustento a ambos os despachos recorridos, dispõe, no que aqui releva, o seguinte:

4 - A taxa de justiça devida pelos incidentes (…), pelos procedimentos anómalos (…) é determinada de acordo com a tabela II, que faz parte integrante do presente Regulamento. (…)

8 - Consideram-se procedimentos ou incidentes anómalos as ocorrências estranhas ao desenvolvimento normal da lide que devam ser tributados segundo os princípios que regem a condenação em custas.” [negrito nosso].

VI.

Conforme elucida Salvador da Costa,[2]são pressupostos dos referidos incidentes ou procedimentos a extraneidade ao desenvolvimento normal da lide, isto é, que seja suscitada uma questão descabida no quadro da sua dinâmica”. [negrito nosso]

O não cabimento na tramitação normal do processo significa a sua desconexão com a finalidade da forma de processo envolvente, e o requerimento autónomo é a forma normal de formulação de pretensões, ao que acresce ser o cumprimento do contraditório uma exigência normal, prevista no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.”[3]

VII.

Ou, conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 20/01/2015,[4] “…parece-nos que o critério definidor do caráter anómalo da actividade processual causada pelo sujeito ou outro interveniente processual dever centrar-se nas ideias enfatizadas por Salvador da Costa. A lei exigirá que o processado se apresente como estranho ao que seja o desenvolvimento do processo, ou seja, tal como ditado pela sequência processual expressamente traçada na lei de processo ou pelo que deva considerar-se decorrer do exercício dos direitos dos sujeitos e outros intervenientes face à dinâmica da própria lide. Por outro lado, a atividade processual desencadeada deve assumir autonomia e relevância face ao normal processado da causa, pois este está abrangido pela tributação que é própria do processo.”

VIII.

Assim, cfr. se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 20-03-2019, e que aqui trazemos à colação pela sua similitude:

I - Anómalo, estranho ao desenvolvimento da lide, a justificar tributação autónoma, é o requerimento que se distancie da normalidade da tramitação, dando corpo a uma actividade ou conduta processual entorpecedora da acção da justiça.

II - Ao invés, as questões que surjam no seio da dinâmica normal do processo e que não revistam um “carácter descabido” devem ser consideradas abrangidas na tributação específica da causa.

III - O requerimento de arguição de nulidade, apresentado no momento processual apropriado, sem que seja descabido ou dilatório, não dando causa a um acréscimo anormal da actividade processual, tão pouco a uma excessiva demora na tramitação do processo, não constitui uma ocorrência estranha ao desenvolvimento da lide, não sendo, em razão disso, tributável como incidente anómalo”.

IX.

No caso em apreço, conforme resulta dos autos, o arguido requereu certidão de elementos constantes dos autos para efeitos de junção e prova noutro processo que não o dos presentes autos.

X.

Uma vez indeferida a emissão de certidão, requereu de harmonia com o vertido no artigo 89.º, n.º 1, do CPP e artigo 12.º-A da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto, a autuação e inserção dos elementos cuja certidão havia sido requerida na plataforma citius para efeitos de ulterior emissão de certidão e/ou consulta de tais elementos.

XI.

Ora, o que o arguido fez foi usar de um direito que a lei que concede.

XII.

Nesse circunstancialismo, não conseguimos descortinar como é que os requerimentos formulados pelo arguido, a insistir que lhe fosse cumprida a lei, mormente, a emissão de certidão ou a autuação e inserção dos elementos requeridos na plataforma citius de harmonia com o artigo 89.º, n.º 1, do CPP e artigo 12.º-A da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto, possa ser considerado um incidente anómalo, suscetível de consubstanciar uma ocorrência estranha ao desenvolvimento normal da lide, determinante de perturbação assinalável do normal andamento do processo.

XIII.

Quando, na verdade, é o Tribunal a quo quem incumpre os seus deveres funcionais ao não emitir a requerida certidão e ao não dar cumprimento ao estabelecido no artigo 89.º, n.º 1, do CPP e artigo 12.º-A da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto

XIV.

Pese embora tenham sido indeferidos todos requerimentos apresentados pelo arguido nos autos, nenhum deles pode ser considerado inapropriado, totalmente descabido e muito menos dilatório; surgindo, todos eles, devidamente fundamentados.

XV.

Os requerimentos apresentados pelo arguido, não deram causa a um acréscimo anormal da atividade processual e, muito menos, a uma excessiva demora na tramitação processual.

XVI.

Todos os requerimentos apresentados pelo arguido integram o decurso da tramitação processual normal e não configuram qualquer desvio acentuado e injustificado à tramitação regular e adequada do processo, não podendo, por isso, ser considerados como incidentes anómalos para efeitos da impugnada tributação.

XVII.

É verdade que foram, todos eles, indeferidos, mas tal circunstância, por si só, também não é suficiente para catalogar tais requerimentos como incidentes anómalos, capazes de desencadear a tributação decorrente do artigo 7.º, n.º 8, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela II anexa.

XVIII.

Aqui chegados, ressalvado o respeito devido, entendemos inexistir qualquer fundamento de facto e de direito que motive a condenação em custas do incidente do arguido.

XIX.

Ao decidir de modo diverso, a decisão sindicada violou o conjunto normativo integrado pelos artigos 89.º, n.º 1, do CPP e artigo 12.º-A da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto, e artigo 7.º, n.º 8, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela II anexa.

TERMOS EM QUE, Concedendo provimento ao recurso e revogado a douta decisão recorrida, farão Vossas Excelências a acostumada JUSTIÇA!” (ref.ª 37587430).


*

         Admitido tal recurso, respondeu ao mesmo a Exm.ª Magistrada do Ministério Público, sustentando, em síntese, que bem andou o Tribunal a quo ao tributar o agora recorrente em custas, por incidente anómalo, atentos os sucessivos requerimentos pelo mesmo apresentados, não fazendo caso dos despachos proferidos a indeferir-lhe, fundamentadamente, a sua pretensão, como deles consta, sendo tais requerimentos, em face disso, descabidos, repetidos e dilatórios, dando causa a um acréscimo anormal de actividade processual, configurando um desvio injustificado à tramitação regular e adequada do processo, pelo que o recurso não merece provimento, devendo manter-se a decisão recorrida, a qual não violou os indicados normativos legais (ref.ª 38085520).

*

         Remetidos os autos respectivo a este Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no qual, em síntese, manifestou concordância com os argumentos vertidos na resposta ao recurso junto da 1.ª Instância, concluindo que o recurso não merece provimento, devendo manter-se a decisão recorrida (ref.ª 17798570).

*

         Foi proferido despacho liminar e depois colhidos os vistos, com decisão em conferência.

II

         As conclusões formuladas, resultado da motivação apresentada, delimitam o objeto do recurso (art. 412.º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso que pudessem suscitar-se, como é o caso dos vícios indicados no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo Código, mesmo quando o recurso verse apenas sobre matéria de direito (cfr. Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, in DR I, de 28-12-1995).

Na ausência de outras que devam conhecer-se, passa a apreciar-se a questão submetida pelo recorrente à apreciação este Tribunal, qual seja a de saber se existe ou não fundamento legal para a referida condenação em “custas pelo incidente”.

Vistos os autos, constata-se que, na sequência de outros tantos requerimentos formulados pelo arguido AA a solicitar elementos dos autos, para juntar a outro processo, inicialmente sob a forma de certidão e depois pedindo a inserção na plataforma citius, por forma a permitir a consulta e obtenção de cópias, foram sendo sucessivamente proferidos os seguintes despachos pela Exm.ª Juíza:

a) Em 11-10-2023, com o seguinte teor (ref.ª 452479466):

“Req. com a ref.ª 36838481:

Considerando o extenso volume do processo, que ocupa parte de uma sala deste edifício e a correspondente inviabilidade de se emitir tal certidão, consigna-se que os documentos a que alude o requerimento estão disponíveis em suporte físico neste Tribunal, para qualquer consulta que venha a ser necessária.

Por tal motivo, decide-se indeferir a emissão da certidão nos termos requeridos.”

b) Em 25-10-2023, com o seguinte teor (ref.ª 452846135):

“Req.s com a ref.ª 36958897 e 36929769:

Veio novamente o arguido AA, no requerimento sob a ref.ª 36958897, requerer que se ordene a autuação de tais elementos e, em face disso, proceda à inserção do mesmo na plataforma Citius por forma a permitir a consulta e obtenção de cópias do processo por parte do arguido, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 89.º do CPP.

Veio, ainda, no requerimento junto sob a ref.ª 36929769, requerer a emissão de novas certidões de elementos que constam dos caixotes existentes nos autos (que rondam cerca de 80 caixotes de documentos, o que é do conhecimento dos arguidos).

O presente processo encontra-se no Tribunal da Relação para serem apreciados os recursos interpostos, pelo que se impõe aguardar que o processo baixe à Primeira Instância, a título definitivo.

Por essa razão e pelos demais fundamentos apostos no nosso anterior despacho (ref.ª 452479466), em que se indeferiu a emissão de uma certidão – de todos os documentos constantes dos caixotes -, e que teve em conta a extensão dos documentos, por ora, decide-se indeferir o requerido.

Sem custas pelo incidente, atenta a simplicidade e relativamente a ambos os requerimentos”.

c) Em 07-11-2023, com o seguinte teor (ref.ª 453607398):

“Req. Junto com a ref.ª 37175277:

O arguido AA tem vindo reiteradamente requerer a numeração dos documentos identificados nos vários requerimentos, entre os quais o último, identificado em epígrafe.

Neste momento o processo encontra-se em recurso no Tribunal da Relação do Porto, sendo inoportuno, pelos meios que exige tal operação, apreciar da necessidade de tão complexa operação.

Assim, pela última vez se adverte o arguido que os autos deverão aguardar que o processo baixe da Relação a fim de aquilatar da necessidade de tal operação.

Com efeito, caso o arguido persista no peticionado, será considerado pelo Tribunal como requerimento impertinente e o incidente será tributado nos termos previstos na Lei.”

d) Em 17-11-2023, com o seguinte teor (ref.ª 454065078):

“Ref.ª 37270017:

Vem, reiterada e novamente, o arguido AA, no requerimento identificado em epígrafe, requerer cópias/certidão de documentos que se encontram nas instalações deste Tribunal.

Como é conhecido do arguido tais documentos, pela sua extensão, não podem ser objecto de cópias, sendo certo que, conforme já foi dito em anteriores despachos e agora se reitera, tais documentos estão à disposição do Ilustre Mandatário no Tribunal.

Na verdade, a pretensão do arguido implicaria a afectação de todos os funcionários da secção por tempo indeterminado, tarefa hercúlea e, neste momento, inoportuna. Note-se que o processo encontra-se em fase de recurso no Tribunal da Relação.

Por essa razão, decide-se indeferir o requerido.

Adverte-se o arguido que se voltar a formular o mesmo requerimento perante o Tribunal, será considerado impertinente e taxado como incidente.”

e) Em 21-11-2023, com o seguinte teor (ref.ª 455086151) – despacho recorrido:

Req. com a ref.ª 37326095:

Quanto ao requerido, renova-se o nosso anterior despacho.

Custas pelo incidente, que se fixam pelo mínimo legal.

Notifique.”


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            Apreciando.

O Tribunal da Relação conhece de facto e de direito (art. 428.º do CPP), sendo que os recursos representam um meio de impugnação das decisões judiciais, cuja finalidade consiste na eliminação dos erros, defeitos ou lapsos das mesmas através da sua análise por outro órgão jurisdicional, desse modo constituindo um instrumento processual de consagração prática dos princípios constitucionais de acesso ao direito e de garantia do duplo grau de jurisdição (arts. 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP).

Na situação presente trata-se de um recurso de direito, impondo a lei que, nesses casos, sejam indicadas, além do mais, “as normas jurídicas violadas” e “o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela deveria ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada” (als. a) e b) do n.º 2 do art. 412.º do CPP).

Efectivamente, está em causa a legalidade ou não da tributação em custas de incidente em virtude do indeferimento da pretensão do arguido AA.

Como é sabido, a razão de ser das custas processuais prende-se com a não gratuitidade da actividade dos tribunais.

Já o Professor José Alberto dos Reis ensinava que “os litigantes têm de pagar certas taxas para que se ponha em marcha a máquina da justiça e têm de satisfazer, no fim do processo, as quantias de que o tribunal não se haja embolsado por meio de adiantamento.”[5]

Também o Professor José Lebre de Freitas refere que “as custas têm, grosso modo, a natureza de taxa paga pelo utilizador do aparelho judiciário, assim diminuindo o encargo resultante do seu funcionamento para o Orçamento Geral do Estado.”[6]

Doutro passo, escreveu-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26-02, pelo qual foi aprovado o Regulamento das Custas Processuais - RCP, que a taxa de justiça é “o valor que cada interveniente deve prestar por cada processo como contrapartida da prestação de um serviço.” (§ 14.º).

Ainda que ambos os referidos Professores se reportem às custas em processo civil, tal enquadramento serve também para o processo penal.

As normas centrais da responsabilidade dos sujeitos processuais por custas encontram consagração no Código de Processo Penal - CPP (arts. 513.º a 523.º), sendo subsidiariamente aplicável o disposto no Regulamento das Custas Processuais - RCP (art. 524.º).

E a respeito da responsabilidade do arguido por custas, estabelece o n.º 1 do artigo 513.º do CPP que “Só há lugar ao pagamento da taxa quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso.”

Esta redacção foi introduzida pelo dito Decreto-Lei n.º 34/2008, que aprovou o RCP, pois que anteriormente a mesma norma, na sua versão originária (Decreto-Lei n.º 78/87, de 17-02, que aprovou o CPP), estabelecia que “É devida taxa de justiça pelo arguido quanto for condenado em 1.ª instância, decair, total ou parcialmente, em qualquer recurso ou ficar vencido em incidente que requerer ou a que fizer oposição.”

É manifesto que, com a alteração da redacção de tal preceito, o legislador reduziu substancialmente as situações em que o arguido é responsável pelo pagamento de taxa de justiça, com o que pretendeu certamente não impedir ou limitar, através da aplicação de custas, o exercício dos direitos de defesa e ao recurso por parte do mesmo, bem como o pleno exercício do contraditório, todos com consagração constitucional (art. 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP). 

E desde então deixou de estar legalmente previsto o sancionamento do arguido em taxa de justiça por “ficar vencido em incidente que requerer ou a que fizer oposição”, mantendo-se tal responsabilidade somente para os casos de ser condenado em 1.ª instância e de decair totalmente em recurso.

Ou seja, os incidentes a que o arguido der causa ou a que fizer oposição deixaram de ser tributados em custas / taxa de justiça. Cremos que tal conclusão não suscita quaisquer dúvidas, até pela forma como se inicia a redacção desse n.º 1 do artigo 513.º - “ há lugar…”

No que respeita ao RCP, a responsabilidade pelo pagamento de taxa de justiça no âmbito do processo penal - e contra-ordenacional - encontra-se regulamentada no seu artigo 8.º, quer relativamente à constituição como assistente (n.º 1), quer relativamente à abertura da instrução por parte deste (n.º 2), sendo que nos demais casos, incluindo a que seja da responsabilidade do arguido, “a taxa de justiça é paga a final, sendo fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela III” (n.º 9).

         Sendo este o único preceito do RCP que dispõe relativamente à taxa de justiça em processo penal, daí também não resulta qualquer responsabilidade do arguido por custas e taxa de justiça relativamente a incidentes, nem tão pouco se encontra enunciado qualquer acto processual dessa natureza na Tabela III, a que se referem os n.ºs 7 e 9 do dito artigo 8.º do RCP.

É verdade que o artigo 7.º do mesmo RCP, mencionado pelo recorrente, reporta-se no seu n.º 4 à taxa de justiça devida pelos “procedimentos anómalos”, entre outros, estabelecendo-se no n.º 8 que “Consideram-se procedimento ou incidentes anómalos as ocorrências estranhas ao desenvolvimento normal da lide que devam ser tributadas segundo os princípios que regem a condenação em custas.”

Só que o estabelecido no artigo 7.º do RCP diz somente respeito às causas de natureza cível, não tendo o mesmo aplicação a “incidentes” ou “procedimentos” no âmbito do processo penal. Não se nos suscitam igualmente dúvidas a tal respeito, para o que apontamos os seguintes argumentos:

   a) O referido preceito do RCP estabelece “Regras especiais” de tributação, sendo que o artigo 6.º, que o antecede, dispõe sobre as “Regras gerais”, dispondo depois o artigo 8.º especificamente sobre a “Taxa de justiça em processo penal e contra-ordenacional”. Aqueles dois reportam-se às Tabelas I e II e o último somente à Tabela III, todas elas anexas a esse Diploma. Além da alusão nos artigos 6.º e 7.º sucessivamente a “causa”, “causas”, “acções”, “processos especiais”, especificando até alguns deles, nas Tabelas I e II são frequentemente enunciados os “valores” da acção, procedimento ou incidente. Tudo isso é próprio das causas cíveis e não do processo criminal.

b) A classificação como procedimentos ou incidentes anómalos, estabelecida no referido n.º 8 do artigo 7.º do RCP, pressupõe, para a sua tributação autónoma, que os mesmos “devam ser tributados segundo os princípios que regrem a condenação em custas”. Ora, como já se disse, o compêndio adjectivo penal, base da responsabilidade tributária, não prevê a tributação dos incidentes que o arguido tenha requerido - dado causa - ou a que tenha feito oposição (n.º 1 do art. 513.º), sendo que o Código de Processo Civil (CPC) prevê a condenação em custas na “acção” e “incidentes” (n.º 1 do art. 527.º). Tal diferenciação leva a concluir que aquele artigo 7.º do RCP é apenas aplicável à jurisdição cível.

c) A opção do legislador com a publicação do referido Decreto-Lei n.º 34/2008, que aprovou o RCP, revogando o Código das Custas Judiciais (CCJ), e alterou o CPP, foi claramente a de reduzir as situações de penalização do arguido, não só retirando a tributação dos incidentes e o decaimento parcial em recurso, mas também reduzindo muito significativamente os montantes das taxas de justiça, desde logo por condenação em 1.ª instância, pois que antes, na vigência do CCJ (última versão), oscilava entre 4 e 50 UC para o processo com intervenção de tribunal colectivo ou de júri e entre 2 e 30 UC para o processo com intervenção de juiz singular, podendo ser elevadas, nos casos de excepcional duração ou complexidade do processo, até 200 UC e 100 UC, respectivamente (art. 85.º, n.ºs 1, als. a) e b), e 2, do CCJ), e agora está prevista para o processo comum a taxa de 2 a 6 UC (art. 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa).

d) No actual artigo 8.º do RCP, único relativo à taxa de justiça em processo penal, não está prevista, como se disse, a tributação de incidentes, nem tão pouco na Tabela III anexa, sendo que no CCJ tal tributação, relativa a questões “legalmente configuradas como incidentes” e nas “ocorrências estanhas ao desenvolvimento normal do processo”, encontrava-se prevista no seu artigo 84.º, com taxa de justiça “entre 1 UC e 5 UC” (art. 84.º), tendo tal tributação incidental sustentação no referido n.º 1 do artigo 513.º do CPP então em vigor (antes da alteração do referido Decreto-Lei n.º 34/2008).

Em síntese, actualmente a lei não prevê e, como tal, não permite a tributação do arguido por incidente que tenha requerido ou a que tenha deduzido oposição, atento o disposto nos artigos 513.º, n.º 1, do CPP, e 8.º do RCP, sendo que o artigo 7.º deste mesmo Regulamento não se aplica aos processos criminais, mas somente às causas cíveis.[7]

Excluída está, igualmente, a condenação do arguido como litigante de má-fé, pois que se trata de um instituto de natureza exclusivamente civilística, conforme previsto no artigo 542.º do CPC, sem aplicação subsidiária ao processo penal.[8]

Resta a possibilidade de condenação, seja do arguido ou de outros sujeitos processuais, no pagamento de taxa sancionatória excepcional, nos termos do artigo 521.º, n.º 1, do CPP, com remissão para o artigo 531.º do CPC, a fixar pelo juiz entre 2 UC e 15 UC, como previsto no artigo 10.º do RCP.

Contudo, tal sancionamento pressupõe requisitos apertados.

Com efeito, dispõe o referido artigo 531.º do CPC que “Por decisão fundamentada do juiz, pode ser excepcionalmente aplicada uma taxa sancionatória quando a acção, oposição, requerimento, recurso, reclamação ou incidente seja manifestamente improcedente e a parte não tenha agido com a prudência ou diligência devida.” 

A taxa sancionatória excepcional foi introduzida na legislação processual pelo já citado Decreto-Lei n.º 34/2008 (que aprovou o RCP), tendo, então, sido aditado ao Código de Processo Civil o artigo 447.º-B, com a seguinte redacção:

Por decisão fundamentada do juiz, e em casos excepcionais, pode ser aplicada uma taxa sancionatória aos requerimentos, recursos, reclamações, pedidos de rectificação, reforma ou de esclarecimento quando estes, sendo considerados manifestamente improcedentes:

a) Sejam resultado exclusivo da falta de prudência ou diligência da parte, não visem discutir o mérito da causa e se revelem meramente dilatórios; ou

b) Visando discutir também o mérito da causa, sejam manifestamente improcedentes por força da inexistência de jurisprudência em sentido contrário e resultem exclusivamente da falta de diligência e prudência da parte.”

No preâmbulo desse Decreto-Lei n.º 34/2008 escreveu-se, a respeito a taxa sancionatória excepcional, que se criou “um mecanismo de penalização dos intervenientes processuais que, por motivos dilatórios, «bloqueiam» os tribunais com recursos e requerimentos manifestamente infundados.” (§ 12.º).

Ainda que este primitivo preceito relativo ao instituto em análise seja mais detalhado nos seus contornos, de ambas as normas resulta claro que tal sancionamento reveste natureza excepcional e pressupõe um despacho fundamentado do juiz para a sua aplicação.

O legislador teve a preocupação de consagrar expressamente a necessidade de fundamentação da decisão que aplique taxa sancionatória excepcional, ainda que a obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais resultasse já do disposto no artigo 205.º, n.º 1, da CRP e dos artigos 97.º, n.º 5, do CPP e 154.º do CPC.

Por outro lado, apenas as condutas dos sujeitos processuais - ou partes - que se revelem especialmente censuráveis, porque contrárias à legislação aplicável e/ou à jurisprudência obrigatória e sedimentada, merecerão esse sancionamento. Na verdade, somente a dedução de pretensões - substantivas ou processuais -, incidentes, reclamações ou recursos manifestamente improcedentes, em que se evidencie que o sujeito processual não agiu com a prudência ou diligência devida, devem conduzir à condenação em taxa sancionatória.

A actividade processual a que foi dada causa deve mostrar-se inútil e claramente atentatória dos princípios da boa-fé e da cooperação processual a que todos os intervenientes estão sujeitos no exercício e defesa dos seus direitos (arts. 7.º e 8.º do CPC).

Para merecer tal sancionamento, a conduta do sujeito processual deve revelar, de forma clara e inequívoca, o frontal desrespeito pelas regras da prudência ou diligência que lhe eram exigíveis, contrariando ostensiva e injustificadamente a legalidade da marcha do processo, como tem vindo a ser entendido pela jurisprudência.[9]

Nessa medida, não será o mero exercício dos direitos de defesa, incluindo o recurso, por parte do arguido que podem motivar tal condenação, mesmo que os fundamentos invocados não colham. Daí a natureza excepcional da penalização e a necessidade de fundamentação da decisão que a aplica.

No caso sub judice o despacho recorrido não fundamentou o sancionamento tributário, apenas dele constando “Custas pelo incidente, que se fixam pelo mínimo legal.”

Ademais, não se indicou sequer qualquer norma a tal respeito, ficando, por isso, sem se perceber o suporte legal que esteve na mente da Exm.ª Juíza, designadamente se pretendeu penalizar o arguido em taxa sancionatória excepcional, nos termos dos indicados artigos 521.º, n.º 1, do CPP, 531.º do CPC e 10.º do RCP.

Em todo o caso, não nos parece que assim tenha pretendido, atenta a terminologia usada, pois que se refere a “Custas”, o que é coisa diferente da taxa sancionatória excepcional.

A percepção que fica da sequência de despachos é que a penalização teria sido a título de incidente anómalo, dada a sequência de requerimentos formulados pelo arguido e sucessivos despacho proferidos, sendo que no penúltimo e antepenúltimo já aquele havia sido advertido para essa possibilidade (vide despachos mencionados em c) e d) supra).

Daí que o recorrente deduza que a Exm.ª Juíza se baseou no artigo 7.º, n.ºs 4 e 8, do RCP, tanto mais que invoca os referidos Acórdãos das Relações de Évora e Coimbra, acima mencionados, em apoio da sua pretensão recursiva. Só que, como se referiu, tal normativo não tem aplicação no processo penal, designadamente para sancionar o arguido.

E não estando em causa a legalidade da pretensão do recorrente de obter elementos do processo, designadamente por cópia ou certidão, nos termos dos artigos 89.º, n.º 1, do CPP, e 12.º-A da Portaria n.º 280/2013, de 26-08, o que também não foi invocado no despachos proferidos como fundamento do seu indeferimento, restaria ao Tribunal a quo, caso entendesse que a persistente conduta do arguido preenchia os respectivos pressupostos para tal, condená-lo em taxa de justiça excepcional, fundamentando a respectiva decisão em conformidade, com base no disposto nos artigos 521.º, n.º 1, do CPP, 531.º do CPC e 10.º do RCP.

Só que isso não foi o decidido pelo Tribunal a quo, não estando, como tal, submetido à apreciação deste Tribunal.

 Assim, não sendo admissível a condenação do arguido por custas de incidente, tem de proceder o recurso interposto.

III

         Pelo exposto, decide-se julgar o recurso procedente, revogando-se o despacho recorrido na parte em que condenou o arguido AA em custas pelo incidente.  

Sem custas (art. 513.º, n.º 1, do CPP, à contrário).


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Notifique.

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Porto, 03-04-2023.

Raúl Cordeiro
Francisco Mota Ribeiro
José António Rodrigues da Cunha

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[1] Sendo que ao Processo autonomizado para o recurso cabe o n.º 266/05.0IDPRT-J.P1.
[2] In As Custas Processuais – Análise e Comentário, Almedina, 2017, 6.ª Edição, pág. 143.
[3] In Regulamento das Custas Processuais, 2011, 3.ª Edição, Almedina, pág. 218.
[4] Processo n.º 43/11.9TANIS-A.E1, consultável em www.dgsi.pt.
[5] In Código de Processo Civil anotado, Volume II, 3.ª Edição – Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 199.
[6] In Código de Processo Civil anotado, Volume 2.º, Coimbra Editora, 2001, pág. 176.
[7] Nessa medida, não concordamos com o constante dos Acs. da RE de 20-01-2015 – Proc. 43/11.9TANIS-A.E1, e da RC de 20-03-2029 – Proc. 171/16.4GASEI-A.C1, disponíveis em www.dgsi.pt, mencionados pelo recorrente, na parte em que parecem admitir a aplicação ao processo penal do disposto no artigo 7.º, n.ºs 4 e 8, do RCP.
[8] Cfr. Acs. do STJ de 26-06-2002, CJ STJ II, pág. 227, da RC de 14-03-2007, CJ II, pág. 42, e da RE de 07-02-2006 – Proc. n.º 2334/05-1, in jurisprudencia.pt.
[9] Vejam-se, entre outros, os Acs. do STJ de 22-02-2022 – Proc. n.º 103/06.8TBMNC-E.G1.S1; da RC de 09-11-2021 – Proc. n.º 2466/20.3T8VIS-F.C1, de 19-12-2018 – Proc. n.º 16/16.5GDIDN.C1, e de 04-05-2016 – Proc. n.º 12/14.7TBCLD.C1; da RP de 25-01-2017 – Proc. n.º 4405/15.4T9PRT.P1, todos disponíveis em jurisprudencia.pt – “taxa sancionatória excepcional”.