RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
DANO BIOLÓGICO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Sumário

I - Na relação de instrumentalidade existente entre o procedimento cautelar e a acção principal, a decisão proferida naquele não faz caso julgado material nem se configura com prejudicialidade relativamente à pretensão reclamada na acção principal, não condicionando a decisão a proferir nesta.
II - Desta forma, do teor do decidido no âmbito da providência cautelar, seja em termos de fixação da matéria de facto, seja na integração jurídica desta, não é susceptível de extrair quaisquer efeitos de caso julgado material aplicáveis ao processo principal, ou seja, o teor do decidido nos autos cautelares não exerce qualquer efeito sobre a acção principal, assumindo a decisão proferida no procedimento cautelar uma natureza precária, pois assenta em factores de menor solidez de fiabilidade, não devendo, assim, influenciar a apreciação a efectuar no âmbito da acção definitiva.
III - O dano biológico pode assumir-se como patrimonial e/ou não patrimonial, traduz-se, nuclearmente, num handicap físico-emocional que, ainda que não implique perda remuneratória, torna mais penosa a realização das tarefas quotidianas, profissionais e pessoais, e é, decisivamente, calculado via juízo ex quo.
IV - A compensação a atribuir, pelo dano biológico, quando não interfere com a capacidade de ganho do lesado, não tem de ter uma relação directa com a sua actividade profissional, antes se posicionando como um dano permanente e interferindo em todos os aspectos da vida do lesado e na sua qualidade de vida, pelo que o ponto de partida para o cálculo da indemnização pelo dano biológico deve ser o mesmo para todos, em obediência ao princípio da igualdade.
V - Quando as sequelas decorrentes do evento lesivo são compatíveis com o exercício da profissão do lesado mas implicam esforços suplementares dada a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, deve considerar-se o dano biológico fonte de previsíveis perdas patrimoniais, indemnizáveis, pois, como dano patrimonial, sem prejuízo da compensação dos danos não patrimoniais do mesmo dano biológico derivados.
VI - Na falta de uma referência médico-legal que, por exemplo, mediante a atribuição de pontos ao “rebate profissional”, permita uma mais adequada quantificação das perdas patrimoniais previsíveis mas não determináveis, na atribuição de indemnização por perda de capacidade geral de ganho, segundo um juízo equitativo, devem ponderar-se os contornos do caso concreto, à luz dos padrões da jurisprudência mais actualista, tendo, nomeadamente, em conta a idade do lesado, a sua expectativa de vida (e não apenas a sua expectativa de vida activa), o seu grau de incapacidade geral permanente e, em particular, a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da respectiva actividade profissional habitual.
VII - Tal fixação assume necessariamente alguma dificuldade e subjectividade, sendo por isso importante o recurso a um elemento mais objectivo, para o que, para o dano biológico, podemos partir da Tabela Nacional para a Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil aprovada pelo DL 352/2007 de 23 de Outubro, sem prejuízo de se levarem igualmente em conta outras circunstâncias que se apuram relativas ao caso concreto e que permitem estabelecer o valor indemnizatório mais de acordo com a equidade.
VIII - Considerando que no âmbito da Tabela referida o legislador faz interferir, a par da idade do lesado e da dimensão da incapacidade, o salário como elemento fundamental no cálculo da indemnização, temos como mais correto que se pondere para o efeito o valor do salário médio nacional e não a remuneração mínima mensal garantida.
IX - Deve ser subtraído, porém, o benefício respeitante ao recebimento antecipado de capital, efectuando uma dedução correspondente à entrega imediata e integral do capital e a taxa de juro que o Autor capitalizará sobre os montantes a receber, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado à custa alheia.
X - Como “lenitivo com a virtualidade de o fazer esquecer ou, pelo menos, mitigar o havido sofrimento moral”, a indemnização por danos não patrimoniais tem de assumir um papel significativo, não se compadecendo com a atribuição de valores meramente simbólicos.
XI - Sendo a lesão da integridade física e psicológica, máxime se com sequelas futuras, um dano muito grave, ele merece adequada compensação, pelo que a actual doutrina e jurisprudência defendem, justamente, o abandono de compensações, por danos não patrimoniais, minudentes e quase miserabilistas.
XII - A indemnização por danos não patrimoniais, a fixar por equidade, visa, além compensar o dano sofrido, reprovar a conduta culposa do autor da lesão. Tal compensação deve traduzir a ponderação da extensão e gravidade dos danos causados, do grau de culpa do lesante, da situação económica deste e a do lesado e das demais circunstâncias relevantes do caso, nomeadamente, a idade do lesado, as desvantagens que este tenha sofrido e os critérios e valores usuais na jurisprudência em casos similares, nos termos do nº4, do art. 496º e art. 494º, ambos do Código Civil.
XIII - Numa interpretação actualista da lei, para efeito da fixação da compensação com recurso à equidade, merecem ser destacados, nos parâmetros gerais a ter em conta, a progressiva melhoria da situação económica individual e global, a nossa inserção no espaço político, jurídico, social e económico mais alargado correspondente à União Europeia, o maior relevo que vem sendo dado aos direitos de natureza pessoal, tais como o direito à integridade física e à qualidade de vida, sem se esquecer que o contínuo aumento dos prémios de seguro se deve também repercutir no aumento das indemnizações, que, no entanto, deve ser proporcional e adequada.

Texto Integral

Recurso de Apelação - 3ª Secção
ECLI:PT:TRP:2024:2937/19.4T8VNG.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
AA, residente na Rua ..., ..., ..., Santa Maria da Feira, instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra A..., S.A., cuja denominação actual é A... Compañia de Seguros Y Reaseguros, S.A. - Sucursal em Portugal, com sede na Avenida ..., n.º ..., 11º andar, ... Lisboa, onde concluiu pedindo a condenação da Ré no pagamento:
a) da indemnização que se vier a liquidar nos presentes autos e, ou, em ulterior incidente, a título de danos corporais e incapacidade;
b) da indemnização que se vier a liquidar nos presentes autos e/ou, em ulterior execução de sentença a título de danos materiais no que exceda os infra liquidados;
c) da indemnização decorrente da perda do veículo no montante de € 20.502,47 e de € 400,00, decorrente da perda do capacete;
d) da indemnização decorrente do prejuízo sofrido em consequência da venda do imóvel habitacional por valor inferior em € 30.000,00 e decorrente da incapacidade económica em que ficou o Autor na sequência das lesões e sequelas de que ficou afectado por via do acidente a que se reportam os presentes autos;
e) tudo acrescido de juros calculados ao dobro da taxa legal em conformidade com o disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 38º do Decreto-Lei n.º 291/07 de 21 de Agosto.
Alega, em síntese, que no dia 15 de Junho de 2018, pelas 17h20, quando circulava na EN nº ..., na Rua ..., frente ao nº ..., na localidade de .../..., conduzindo o motociclo de matrícula ..-RJ-.., de sua propriedade, foi embatido pelo veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula ..-..-QM, propriedade da sociedade comercial B..., Lda. e conduzido por BB, na execução de tarefas determinadas pela referida sociedade.
Mais alegou, que o embate ocorreu quando circulava no sentido norte sul, pela metade direita da via, a uma velocidade não superior a 50Km/hora e a uma distância de 80cm da berma direita.
Acrescentou que, nesse local, a faixa de rodagem da EN..., por onde circulava o Autor, atento o seu sentido de trânsito, possui, ao centro e devidamente demarcada, uma faixa destinada ao trânsito que pretenda mudar de direcção para a esquerda ou aceder aos estabelecimentos comerciais que no local estão implantados do lado esquerdo da via.
Por seu turno, a condutora do QM pretendia entrar na EN... pela solução de continuidade que permite o acesso e saída de baía de estacionamento, onde se encontrava, pretendendo passar a circular no sentido sul-norte da EN....
Mais alegou, que quando o Autor se encontrava a escassos 5 a 10 metros do local que dá acesso da baía de estacionamento à EN..., foi subitamente surpreendido pela intromissão do QM no espaço livre e visível à sua frente, por não ter aquela condutora percepcionado a sua presença e apesar de tentar travar não conseguiu evitar o acidente, imputando-lhe assim a responsabilidade pelo embate ocorrido, cujos riscos inerentes à circulação do referido veículo perante terceiros estavam transferidos para a Ré.
Alegou, ainda, que do acidente decorreram danos de natureza patrimonial e não patrimonial cuja reparação pretende.

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O Autor precedeu a propositura desta acção da instauração de um procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória, proposto a 21.11.2018, no qual, por decisão já transitada em julgado, foi aquela condenada a pagar a renda mensal de € 650,00, até ao dia 8 de cada mês, a título de reparação provisória do dano, até ao trânsito em julgado da sentença a proferir no processo principal, devendo proceder ao pagamento das rendas vencidas desde 1 de Dezembro de 2018 com a renda de Março de 2019.
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Por requerimento de 23.04.2019, veio o Instituto de Segurança Social, I.P. deduzir pedido de reembolso dos valores pagos a título de subsidio de doença, no período compreendido entre 15.06.2018 a 16.04.2019, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 5.872,68, acrescida de juros de mora, contados desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento, pedido a que a Ré se opôs por requerimento datado de 28.05.2019.
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Citada, a Ré contestou.
Alegou, no essencial, imputar ao Autor a responsabilidade pela eclosão do acidente, afirmando que este, no momento em que ocorreu o sinistro ocupava a faixa de rodagem central, destinada ao trânsito dos veículos que pretendiam mudar de direcção à esquerda, quando pretendia seguir em frente, e que caso tivesse respeitado a orientação de trânsito que lhe era imposta o acidente não se teria verificado.
Mais alegou, que no momento do acidente, o Autor imprimia ao motociclo que tripulava uma velocidade superior a 100Km/hora.
Colocou, ainda, em causa o vencimento do Autor à data do sinistro, por ter sido alterado cerca de um mês antes do mesmo, sendo este filho do gerente da sociedade que é a sua entidade patronal.
Invocou, ainda, a excessiva onerosidade na reparação do motociclo, por se tratar de uma perda total, impugnando os demais danos invocados pelo Autor.
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Foi proferido despacho saneador, fixado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.
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Na sequência do requerimento apresentado pela Ré em 14.06.2021, dando nota da pendência de uma acção especial para cumprimento de obrigações emergentes de contrato, que lhe foi movida pelo Centro Hospitalar ..., EPE, com sede na Rua ..., ..., cujos termos corriam no J1 do Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia, com o número de processo 3951/21.5T8VNG, visando a cobrança das despesas hospitalares relativas aos tratamentos médicos prestados ao aqui Autor na sequência do acidente de viação objecto da presente ação, foi determinada a apensação da referida acção aos presentes autos.
Nessa acção peticiona o Autor Centro Hospitalar ..., EPE a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 12.509,69, acrescida de juros de mora, ascendendo os vencidos a € 1.083,72, bem como nos vincendos até efectivo e integral pagamento.
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Em 20.06.2023 veio o Autor requerer a liquidação do pedido deduzido, nos termos do disposto nos artigos 358º e segs, e 609º, nº 2 do Código de Processo Civil para o montante de € 466.271,25.
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A Ré deduziu oposição ao incidente, reiterando a culpa do Autor na ocorrência do acidente, e acrescentando que o mesmo actualmente exerce funções de empregado de armazém, impugnando a invocada impossibilidade para o exercício da sua profissão habitual e a indemnização liquidada a esse título, bem como os demais valores liquidados.
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Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades legais.
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Após julgamento, foi proferida sentença julgando a acção parcialmente procedente, nos seguintes termos:
A) QUANTO AO PROCESSO N.º 2937/19.4T8VNG
Julgo a ação parcialmente procedente e, em consequência, decido:
a) Condenar a Ré no pagamento da quantia de € 267.569,08, ao qual serão deduzidos os valores liquidados a título de rendas mensais ao abrigo do procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória até ao trânsito em julgado da presente decisão, a qual será acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento.
b) Condenar a Ré no pagamento da quantia de € 60.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a presente data e até efetivo e integral pagamento.
c) Condenar a Ré no pagamento das quantias que se vierem a liquidar em sede incidental relativas ao valor do capacete, até ao montante máximo de € 400,00, bem como nos valores despendidos pelo Autor com deslocações de e para hospitais, serviços de fisioterapia, consultas médicas e despesas medicamentosas, até ao montante máximo de € 2.000,00;
d) Condenar a Ré no pagamento ao Instituto da Segurança Social, IP da quantia de € 5.872,68, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a data da notificação do pedido de reembolso e até efetivo pagamento.
e) Absolver, no mais, a Ré do pedido;
B) QUANTO AO PROCESSO N.º 3951/21.5T8VNG
Julgo a ação procedente e, em consequência, decido condenar a Ré no pagamento da quantia de € 12.509,69, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos, no montante de € 1.083,72, bem como nos vincendos, desde a data da propositura da ação e até efetivo e integral pagamento
*
Não se conformando com a decisão proferida, a recorrente A..., S.A., veio interpor recurso de apelação, em cujas alegações conclui da seguinte forma:
I.O Autor intentou acção contra A..., S.A., tendo alegado as circunstâncias em que o acidente terá ocorrido, as lesões de que ficou a padecer e as despesas que terá suportado.

II. A ora Recorrente, para além de ter impugnado a versão apresentada na petição, invocou que o acidente ocorreu por culpa única e exclusiva do Autor por este circular em velocidade excessiva, não inferior a 100 kms/hora e por, no momento em que se deu o acidente, o Autor estar a ocupar a faixa de rodagem central, exclusivamente destinada à mudança de direcção à esquerda, quando, na realidade, pretendia seguir em frente no sentido norte-sul, tendo por isso recusado a responsabilidade pela reparação dos danos, impugnado as lesões sofridas pelo Autor, bem como o montante das compensações devidas.

III. A sentença proferida concluiu que a Ré não logrou demonstrar o contributo do Autor para o acidente e, por outro lado, que não resultou qualquer facto imputável ao Autor do qual se possa concluir que o acidente podia ter sido por este evitado.

IV. Nesse sentido, por existir culpa presumida do condutor do veículo seguro, e porque, à data do acidente, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros resultantes da circulação do veículo seguro se encontrava transferida para a Recorrente, ficou a A... constituída na obrigação de proceder à reparação dos danos causados ao Autor.

V. Relativamente ao Processo n.º 2937/19.4T8VNG, a sentença recorrida julgou a acção parcialmente procedente e, nesse sentido:
5.1 - condenou a Ré no pagamento da quantia de € 267.569,08, ao qual serão deduzidos os valores liquidados a título de rendas mensais ao abrigo do procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória até ao trânsito em julgado da decisão, a qual será acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento;
5.2 - condenou a Ré no pagamento da quantia de € 60.000,00 acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a presente data e até efetivo e integral pagamento;
5.3 - condenou a Ré no pagamento das quantias que se vierem a liquidar em sede incidental relativas ao valor do capacete, até ao montante máximo de € 400,00, bem como nos valores despendidos pelo Autor com deslocações de e para hospitais, serviços de fisioterapia, consultas médicas e despesas medicamentosas, até ao montante máximo de € 2.000,00;
5.4 - condenou a Ré no pagamento ao Instituto de Segurança Social, IP da quantia de € 5.872,68, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a data da notificação do pedido de reembolso e até efectivo pagamento.

VI. Relativamente ao Processo n.º 3951/21.5T8VNG, a sentença recorrida julgou a acção procedente e, em consequência, condenou a Ré no pagamento da quantia de € 12.509,69, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos, no montante de € 1.083,72, bem como nos vincendos, desde a data da propositura da acção e até efectivo e integral pagamento.

VII. A Recorrente não se conforma com a sentença recorrida, porquanto, por um lado, entende que houve um concurso de causas para o acidente devendo, por isso, ser atribuída contribuição causal ao Autor na produção do sinistro sub judice e, por outro lado, entende que a responsabilidade terá de ser atribuída com base na culpa e não com base na presunção de culpa que recai sobre a condutora do veículo seguro na Recorrente.

VIII. A Recorrente entende, por um lado, que é inequívoco o contributo do Autor para o acidente e, por outro lado, é do entendimento que o Autor podia ter evitado este acidente se tivesse adoptado outros comportamentos, nomeadamente se tivesse respeitado as regras estradais que se aplicavam.

IX. Atenta a prova produzida, é igualmente inequívoco que houve também contribuição da condutora do veículo seguro para o acidente.

X. O desrespeito de regras estradais por ambos os condutores foi causal da colisão que se verificou.

XI. O Autor, antes da propositura da presente ação, instaurou contra a Ré procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória, no qual, por decisão já transitada em julgado, foi aquela condenada a pagar a renda mensal de € 650,00, até ao dia 8 de cada mês, a título de reparação provisória do dano, até ao trânsito em julgado da sentença a proferir no processo principal.

XII. O Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia, que julgou a providencia cautelar, deu como (indiciariamente) provado que o Autor circulava com velocidade excessiva atenta a violência do embate, pois se o Autor circulasse a uma velocidade adequada para o local, ter-se-ia apercebido da manobra que a condutora da carrinha começou a fazer, tanto mais que o local configurava uma recta.

XIII. O Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia deu como (indiciariamente) não provado que o Autor circulava na faixa direita, atento o seu sentido de marcha, pois quando embateu na carrinha, a carrinha já estava a fazer o movimento de flexão à esquerda para virar para sul.

XIV. O Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia, atento os factos indiciariamente provados e não provados, concluiu que o caso deveria ser resolvido com base na concorrência de culpas na produção do acidente, tendo graduado a culpa em 60% para a condutora do veículo seguro e 40% para o Autor.

XV. Relativamente à DINÂMICA DO ACIDENTE, a Recorrente não pode aceitar que o Tribunal “a quo” tenha dado como provado que “o Autor conduzia o RJ pela EN nº ..., no sentido norte-sul, na metade da direita da via” [ponto 4) dos factos provados], pois quando o veículo tripulado pelo Autor embateu na carrinha QM, a carrinha já estava a fazer o movimento de flexão à esquerda para virar para o sentido sul-norte.

XVI. Ademais, o motociclo embateu com a parte frontal na cava da roda dianteira esquerda da carrinha, na lateral esquerda e no vidro pára-brisas frontal (do lado da condutora) e os veículos ficaram imobilizados, após o embate, na faixa central, cerca de 4,30 metros após a sinalização STOP existente no pavimento, no sentido norte-sul.

XVII. Estes factos evidenciam, de forma bastante verosímil, que o Autor em vez de seguir na faixa da direita, como concluiu o Tribunal “a quo”, estaria a circular na faixa central, destinada exclusivamente ao trânsito que pretenda mudar de direcção à esquerda, atento esse sentido de marcha.

XVIII. A acrescer, a condutora do QM que se encontrava parada na solução de continuidade para poder aceder à EN nº ..., apenas iniciou a manobra de acesso à EN nº ... quarenta e oito segundos após ter imobilizado o seu veículo na solução de continuidade para esse efeito.

XIX. Razões pelas quais a Recorrente entende que o facto n.º 4 [“No indicado dia, hora e local, o Autor conduzia o RJ pela EN nº ..., no sentido norte-sul, na metade da direita da via”] deve ser retirado da matéria dada como assente e transitar para a matéria de facto dada como não provada.

XX. Relativamente à VELOCIDADE imprimida pelo Autor, a Recorrente não pode aceitar que o Tribunal “a quo” tenha dado como provado que (o Autor) “Circulava a uma velocidade não concretamente apurada” [ponto 6) dos factos provados], pois atenta a violência do embate, demonstrada, nomeadamente, pelas lesões sofridas pelo Autor e pelos danos provocados nos veículos intervenientes, é inegável que o motociclo RJ seguia em velocidade excessiva.

XXI. Para se fazer um juízo adequado quanto à velocidade a que seguia um veículo não é necessário fazer um uso de um velocímetro.

XXII. O apuramento da velocidade deve ser efectuado em função de considerações retiradas da conjugação de vários elementos probatórios, como a prova testemunhal, as características da via e dos veículos intervenientes, as trajectórias seguidas pelos veículos, os vestígios existentes na faixa de rodagem, os danos produzidos em cada um dos veículos intervenientes, entre outros elementos probatórios relevantes – cfr. Manuel de Andrade, Rev. Leg. Jur., Ano 88º-301 e Vaz Serra, Bol.M.J. 110º-82

XXIII. Em sede de prova, não está em causa uma certeza matemática, mas uma certeza empírica, relativa, histórica, que é suficiente para as necessidades da vida e que se reconduz a um alto grau de probabilidade, não precisando o julgador de ter uma certeza absoluta do facto a provar, mas apenas um grau de probabilidade tão elevada que baste para as necessidades da vida.

XXIV. As filmagens constantes do cd que constitui o documento n.º 2 anexo à petição inicial, elemento no qual o Tribunal “a quo” se baseou para fundamentar a sua convicção, evidenciam, com um grau de probabilidade bastante elevado, que o Autor circulava em velocidade excessiva.

XXV. Ademais, comparando a velocidade de todos os veículos que são visualizados na vídeo-gravação n.º 2, é evidente que a velocidade imprimida pelo Autor ao motociclo, no momento que antecede o embate, é manifestamente superior à velocidade imprimida pelos demais condutores aos seus veículos.

XXVI. Razões pelas quais a Recorrente entende que o facto n.º 6 [“Circulava a uma velocidade não concretamente apurada”] deve ser rectificado, passando a ter a seguinte redacção: “O Autor circulava em velocidade excessiva, não concretamente apurada, numa via com grande intensidade de trânsito”

XXVII. Relativamente à VISIBILIDADE, a Recorrente não pode aceitar que o Tribunal “a quo” tenha dado como provado que “à frente do Autor, e a uma distância superior a 50 metros, não circulava qualquer outro veículo” [ponto 9) primeira parte dos factos provados]

XXVIII. E também não pode aceitar que tenha sido dado como provado que “a respectiva faixa de rodagem encontrava-se livre e desimpedida, com total visibilidade, nomeadamente para quem, como o QM, pretendesse entrar na referida EN nº ... pela solução de continuidade que permite o acesso e saída da baia de estacionamento” [ponto 9) segunda parte dos factos provados].

XXIX. O acidente apenas terá sido visualizado pelos seus intervenientes.

XXX. O Autor não consegue descrever o acidente, por força da amnésia que para o episódio apresenta e a condutora do veículo seguro na Recorrente reconheceu não ter visto o Autor (apenas ouviu o “barulho” do motociclo).

XXXI. O Tribunal “a quo” teve de basear a sua convicção na visualização das imagens do acidente constantes das vídeo-gravações que estavam no cd que constitui o documento n.º 2 anexo à petição inicial.

XXXII. Na vídeo-gravação n.º 2, o veículo seguro na Recorrente é visível desde o início do vídeo, tendo iniciado a sua marcha no minuto 17:19:11 [que corresponde ao minuto 0:46 do vídeo]

XXXIII. No minuto 17:19:31 [que corresponde ao minuto 1:06 do vídeo] o veículo QM está parado na solução de continuidade que permite a saída da baia de estacionamento e o acesso à EN nº ....

XXXIV. Apenas no minuto 17:20:19 [que corresponde ao minuto 1:54 do vídeo], ou seja, quarenta e oito (!!) segundos após ter parado na solução de continuidade, a condutora do QM vê uma oportunidade para aceder à EN nº ... e inicia a manobra que permite sair da baia de estacionamento e aceder à EN nº ... sentido sul-norte.

XXXV. Neste período de 48 segundos [entre o minuto 17:19:31 e o minuto 17:20:19 que corresponde ao período compreendido entre os minutos 1:06 e 1:54 do vídeo], passaram 9 veículos na EN nº ... sentido norte-sul, o que equivale a um veículo por cada 5,33 segundos.

XXXVI. De igual forma, nesse mesmo período de 48 segundos, passaram 14 veículos na EN nº ... sentido sul-norte, o que equivale a um veículo por 3,42 segundos.

XXXVII. Dado que a condutora do QM pretendia aceder à EN nº ... sentido sul-norte, teria de atravessar os dois sentidos da EN, pelo que passaram 23 veículos nesses 48 segundos, o que equivale – em média – a um veículo por 2,08 segundos.

XXXVIII. Naquele dia (15.06.2018), àquela hora (cerca das 17h20m), naquele local (na EN nº ..., na Rua ..., ..., na localidade de .../...) havia grande intensidade de trânsito automóvel.

XXXIX. Ambas as vias de trânsito (sentido norte-sul e sentido sul-norte) tinham vários veículos automóveis pelo que é inverosímil que a faixa de rodagem se encontrasse livre e desimpedida e, por conseguinte, com total visibilidade para a condutora do veículo seguro na Recorrente.

XL. Apenas 3 (três) segundos antes do embate, passou pelo veículo QM, que ainda estava parado na solução de continuidade, um automóvel ligeiro, modelo familiar, de cor preta, pelo que, em termos de dinâmica, é manifestamente impossível que à frente do Autor, e a uma distância superior a 50 metros, não circulasse qualquer outro veículo.

XLI. Razões pelas quais a Recorrente entende que o facto n.º 9 [“À frente do Autor, e a uma distância superior a 50 metros, não circulava qualquer outro veículo pelo que a respectiva faixa de rodagem encontrava-se livre e desimpedida, com total visibilidade, nomeadamente para quem, como o QM, pretendesse entrar na referida EN nº ... pela solução de continuidade que permite o acesso e saída da baia de estacionamento”] não pode constar na matéria de facto provada devendo, antes, ser incluído na matéria de facto dada como não provada.

XLII. A Recorrente não pode aceitar que o Tribunal “a quo” tenha dado como provado que “A condutora do QM não percepcionou a presença do motociclo do Autor a circular na via” [ponto 14) dos factos provados], pois a própria condutora do QM, no depoimento que prestou em audiência de julgamento, mais do que uma vez referiu que ouviu o barulho do motociclo e depois deu-se o embate.

XLIII. Razões pelas quais a Recorrente entende que o facto n.º 14 deve ser rectificado, passando a ter a seguinte redacção:
43.1“A condutora do QM, apesar de não ter visualizado, ouviu o barulho do motociclo do Autor”.

XLIV. A decisão de facto omite qualquer referência à tipologia de contacto e de danos sofridos pelos veículos, bem como às concretas partes embatidas, sendo que essa factualidade, resultante da instrução da causa, é instrumental ou probatória, pois dela depende o julgamento da dinâmica do acidente, e pode ser considerada pelo julgador nos termos do artigo 5º, n.º 2 do CPC.

XLV. A Recorrente é do entendimento que devem ser aditados aos factos provados os pontos de facto 15-A e 15-B, com as seguintes redacções:
45.1 - “15-A: O Autor embateu com a parte frontal do motociclo na cava da roda dianteira esquerda da carrinha, na lateral esquerda e no vidro pára-brisas frontal (do lado da condutora)”;
45.2 - “15-B: Em resultado do contacto referido no número anterior, o veículo RJ sofreu danos cuja reparação foi orçamentada em € 24.271,20, o que motivou a situação de perda total, e o veículo QM sofreu avultados danos na cava da roda dianteira esquerda da carrinha, na lateral esquerda e no vidro para-brisas frontal”

XLVI. A decisão de facto omite as infracções rodoviárias cometidas pelo Autor, devendo esta concreta matéria de facto também constar da matéria dada como assente.

XLVII. Nesse sentido, propõe-se o aditamento aos factos provados do ponto de facto 15-C, com a seguinte redacção:
47.1 - “15-C: Ao circular na faixa central, o Autor violou o dever especial de cuidado previsto no artigo 13º, nº ... do Código da Estrada que impõe que “A posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes.”

XLVIII. Ao circular em excesso de velocidade e não sendo capaz de fazer parar o seu veículo no espaço livre e visível à sua frente, o Autor violou o disposto nos artigos 24º, n.º 1 e 27º, n.º 1, ambos do Código da Estrada.

XLIX. Ao não moderar especialmente a velocidade, numa via marginada por edificações, o Autor violou o disposto no artigo 25º, n.º 1, al. c) do Código da Estrada.

L. Ao não moderar especialmente a velocidade, num entroncamento, o Autor violou o disposto no artigo 25º, n.º 1, al. h) do Código da Estrada.

LI. Ao não moderar especialmente a velocidade, numa zona de grande intensidade de trânsito, o Autor violou o disposto no artigo 25º, n.º 1, al. m) do Código da Estrada.

LII. Circulando na faixa central e não tendo efectuado a mudança de direcção à esquerda, o Autor não respeitou a marca orientadora M15a que se encontrava sinalizada no pavimento, tendo violado o disposto no artigo 63º, n.º 1 do Regulamento de Sinalização de Trânsito.

LIII. Pelo que propõe-se ainda o aditamento o aos factos provados do ponto de facto 15-D, com a seguinte redacção:
53.1 - “15-D: O Autor não respeitou a seta de selecção M15a que se encontrava sinalizada no pavimento”

LIV. Em 30.03.2023, no seguimento dos esclarecimentos que foram solicitados ao IML, a Recorrente foi notificada que o Sr. Perito alterou a desvalorização para de 41,12 para 40,52 pontos.

LV. Razões pelas quais a Recorrente entende que o facto n.º 69 [“O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica é fixável em 41 pontos”] deve ser rectificado, passando a ter a seguinte redacção:
55.1 - “O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica é fixável em 40,52 pontos”

LVI. A sentença recorrida violou, desconsiderou ou aplicou indevidamente os artigos 13º, n.º 1, 24º, n.º 1, 25º, n.º 1, als. c), h) e m), 27º, n.º 1, todos do Código da Estrada, bem como o artigo 63º, n.º 1 (Marca M15a) do Regulamento de Sinalização de Trânsito.

LVII. A esperada procedência da impugnação da decisão de facto, na parte em que visa a transposição para os factos não provados da matéria dos pontos 4 e 9 dos factos provados, a alteração dos pontos 6, 14 e 69 dos factos provados, o aditamento a estes dos pontos 15-A, 15-B, 15-C e 15-D conduzirá, quase automaticamente, à procedência da apelação e à atribuição de contribuição causal ao Autor na produção deste sinistro.

LVIII. Nesse sentido, a responsabilidade terá de ser atribuída com base concorrência de culpa de ambos os condutores e não com base na presunção de culpa que recai sobre a condutora do veículo seguro na Recorrente.

LVIX. Face aos elementos apurados, aceita-se que a conduta da carrinha seja mais criticável do que a conduta do Autor, já que conduzia um veículo ligeiro de mercadorias, que oferece mais perigosidade do que um motociclo.

LX. Nesse sentido, aceita-se a graduação de culpa em 60% para a condutora do QM e 40% para o motociclista, ora Autor, tal como já havia concluído o Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia que julgou o procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória.

LXI. O dano perda salarial pelo défice funcional total e parcial temporário não deve ser valorado em mais de € 25.779,08, a suportar pela Recorrente na proporção de 60% – € 15.467,44.

LXII. A perda total do motociclo não pode ser valorada em mais de € 11.790,00, a suportar pela Recorrente na proporção de 60% - € 7.074,00.

LXIII. O STJ tem lançado mão de um conjunto de fatores que devem ser considerados na fixação do “quantum” indemnizatório pelo dano biológico que são: as circunstâncias concretas da situação do lesado, designadamente, o grau do défice funcional de que ficou a padecer e a sua repercussão em todos os atos da sua vida e ao longo desta; a esperança média de vida do lesado à data do seu nascimento; a remuneração a ter em conta para efeitos do cálculo da indemnização não é a auferida pelo lesado, como nas situações de perda efetiva de rendimentos, mas a sua remuneração média mensal nacional do nível profissional do lesado que vigorava à data da cura, de forma a assegurar a igualdade entre os cidadãos; o recurso a fórmulas matemáticas para determinação do capital passível de repor ao lesado os rendimentos perdidos, sem enriquecimento ilegítimo, ainda que com função meramente auxiliar e orientadora; a necessidade de uniformização mínima de critérios e de decisões quanto ao arbitramento de indemnizações fixadas com recurso à equidade, por imposição dos princípios gerais e constitucionais de aplicação uniforme do Direito e da igualdade entre os cidadãos.

LXIV. Respeitando estes critérios, e tendo em conta os factos provados atendíveis (de acordo com o supra alegado e concluído) no presente caso para fixação da quantia indemnizatória pelo dano biológico, a situação fáctica que se apresenta é a seguinte: o Autor ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 40,52 pontos; as sequelas apresentadas não são compatíveis com o exercício da actividade profissional habitual de motorista de pesados mas são compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico profissional; à data da cura, 03.09.2020, o Autor tinha 37 anos; a remuneração média mensal dos motoristas de pesados, em 2020, data da cura, era de € 951,20; a esperança média de vida do Autor à nascença era de 68,9 anos.

LXV. A fórmula que vem sendo usada pela jurisprudência, ainda que a título meramente auxiliar, para alcançar um capital produtor de rendimento que substitua a perda pelo lesado e que se extinga no fim da sua vida provável, com redução de ¼ desse resultado, por antecipação do capital, pode ser um recurso orientador para determinação do valor indemnizatório máximo para o caso dos presentes autos.

LXVI. O resultado dessa operação ([€ 951,20 x 14] x 40,52% x 32 anos - [1/4]) é de € 129.503,21.

LXVII. O dano biológico não deve ser valorado em mais de € 129.503,21, a suportar pela Recorrente na proporção de 60% - € 77.701,92.

LXVIII. A este valor deverão ser deduzidos os valores que foram liquidados a título de rendas mensais ao abrigo do procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória que, na presente data, ascendem a € 38.350,00 (trinta e oito mil e trezentos e cinquenta euros).

LXIX. Os danos não patrimoniais não devem ser valorados em mais de € 40.000,00, a suportar pela Recorrente na proporção de 60% – € 24.000,00.

LXX. Ponderando os valores peticionados, a Recorrente apenas poderá ser condenada, em incidente de liquidação de sentença relativas ao valor do capacete, bem como nos valores despendidos pelo Autor com deslocações de e para os hospitais, serviços de fisioterapia, consultas médicas e despesas medicamentosas, na proporção de 60% – € 240,00 e € 1.200,00.

LXXI. O pedido de reembolso do ISS, no montante de € 5.872,68, deverá ser suportado pela Recorrente na proporção de 60% – € 3.523,60.

LXXII. Provada que está a assistência prestada, no montante de 12.509,69, acrescida de juros de mora vencidos no montante de € 1.083,72, deverá a mesma ser suportada pela Recorrente na proporção de 60% – € 8.156,04

LXXIII. O valor da indemnização devida pela Recorrente ao Autor, atento o supra exposto e tendo em consideração a graduação de culpa de 60% para a condutora da carrinha QM e 40% para o Autor, é de € 85.893,36 (oitenta e cinco mil oitocentos e noventa e três euros e trinta e seis cêntimos).
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Foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
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2. Factos
2.1 Factos provados
O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos:
1.No dia 15.06.2018, cerca das 17h20m, na EN nº ..., na Rua ..., frente ao nº ..., na localidade de .../... ocorreu um acidente de viação.
2. No qual foram intervenientes o motociclo de matrícula ..-RJ-.., propriedade e tripulada pelo Autor, e o veículo ligeiro de mercadorias ..-..-QM, propriedade da sociedade comercial B..., Lda. e conduzida por BB.
3. A referida condutora conduzia por conta da sua entidade patronal, a referida sociedade B..., Lda., executando tarefas por esta determinadas.
4. No indicado dia, hora e local, o Autor conduzia o RJ pela EN nº ..., no sentido norte - sul, na metade da direita da via.
5. O tempo estava bom.
6. Circulava a uma velocidade não concretamente apurada.
7. A condutora do veículo QM pretendia entrar na referida EN nº ... pela solução de continuidade que permite o acesso e saída da baia de estacionamento que, no local, ladeia a EN nº ... do lado direito - atento o sentido de marcha do Autor - e dela separada por separador físico arborizado.
8. No local, sempre atento o sentido de marcha do Autor, a via desenvolve-se em sentido ascendente e em reta, com extensão superior a 200.
9. À frente do Autor, e a uma distância superior a 50 metros, não circulava qualquer outro veículo pelo que a respetiva faixa de rodagem encontrava-se livre e desimpedida, com total visibilidade, nomeadamente para quem, como o QM, pretendesse entrar na referida EN nº ... pela solução de continuidade que permite o acesso e saída da baia de estacionamento.
10. No local, a faixa de rodagem da EN nº ..., por onde circulava o Autor, possui, ao centro e devidamente demarcada, uma faixa destinada ao trânsito que pretenda mudar de direção para a esquerda ou aceder aos estabelecimentos comerciais que no local estão implantados do lado esquerdo da via, atento o sentido de marcha do Autor.
11. Faixa essa devidamente assinalada, no pavimento, com a sinalização STOP.
12. Quando o Autor se encontrava a uma distância não concretamente da supra referida solução de continuidade que dá acesso da baia de estacionamento à EN nº ..., mas já próximo, foi subitamente surpreendido pela intromissão do QM.
13. O qual, pretendendo passar a circular no sentido sul-norte da EN nº ..., saiu da baia de estacionamento e, tendo em conta o sentido de marcha do Autor, invadiu obliquamente a faixa de rodagem destinada ao trânsito no sentido norte-sul, e parcialmente, a faixa central, já após a zona de sinalização STOP existente no pavimento.
14. A condutora do QM não percecionou a presença do motociclo do Autor a circular na via.
15. O Autor, no momento em que se deu o sinistro ocupava a faixa de rodagem central, exclusivamente destinada à mudança de direção à esquerda, quando, na realidade, pretendia seguir em frente no sentido norte – sul.
16. A condutora do QM, após o embate, prosseguiu a sua marcha durante cerca de um metro.
17. Ambos os veículos ficaram imobilizados na faixa central, cerca de 4,30m após a sinalização STOP existente no pavimento, no sentido norte – sul.
18. Após o acidente, o Autor foi assistido no local, onde lhe foi colocado um dreno torácico à direita.
19. Tendo-lhe sido ainda ministrado 10mg de Morfina e 250 mcg de Fentanil.
20. De seguida, foi transportado de urgência, em viatura do INEM, para o Hospital ... em Vila Nova de Gaia.
21. À chegada ao serviço de urgência do Hospital ..., apresentava o Autor acentuada perda sanguínea para a cavidade torácica.
22. Foi colocado dreno torácico adicional à direita, com drenagem total de 2200 centímetros cúbicos (hemática), e dreno à esquerda com 200 centímetros cúbicos (hemática).
23. Face a essas perdas hemáticas, teve necessidade de transfusão de glóbulos rubros, plaquetas e plasma.
24. Apresentava o Autor fraturas dos 2° ao 5ª e 10ª arcos costais à direita, da omoplata direita ao nível da espinha, corpo e acrómio, com luxação acrómio-clavicular, contusão pulmonar bilateral e fratura dos ossos do antebraço direito e fratura-luxação de Galeazzi à esquerda.
25. Apresentava ainda laceração occipital, laceração na região torácica, desluvamento do joelho direito, com exposição óssea, e escoriações dispersas por todo o corpo.
26. Entrou em paragem cardio-respiratória durante a observação, com recuperação após três ciclos para TV com pulso.
27. Tendo ficado internado em tal unidade hospitalar.
28. Inicialmente foi admitido na Unidade de Cuidados Intensivos de Cirurgia Torácica (ICICT), por falta de vagas na Unidade de Cuidados Intensivos Polivalentes (UCIP), tendo sido às 12 horas sido transferido para a UCI tendo, posteriormente, sido transferido para Ortopedia.
29. Permanecendo em coma por um período não inferior a três semanas.
30. No internamento na Unidade de Cuidados Intensivos Polivalentes apontaram-se os seguintes problemas:
a) Politrauma com choque hemorrágico e PCR intrahospitalar", com trauma torácico, trauma de membros;
b) TCE - edema cerebral difuso (pós PCR??)" - sendo apontadas lesões isquémicas córtico-subcorticais podendo enquadrar-se no contexto de choque hipovolémico (e interpretadas por Neuroricurgia como "provável relação com PCR; sem medidas a propôr"), e hematoma epicraniano de predomínio parietal;
c) Infeção respiratória nosocomial por S. aureus;
d) Choque séptico com provável ponto de partida em infeção associada ao CVC;
e) Anemia normocítica e normocrómica.
31. Durante o internamento foi observado por Psiquiatria do mesmo Hospital, por apresentar períodos de agitação psicomotora, desorientação e delírio, com alucinações visuais.
32. Foi observado por Medicina Física e de Reabilitação, por suspeita de lesão do plexo braquial a direita.
33. No período de internamento hospitalar foi operado aos dois membros superiores por Ortopedia em 1.07.2018, tendo sido feita redução cruenta e osteossíntese com placa no rádio e cúbito à direita, e, à esquerda, efetuada redução cruenta e osteossíntese com placa de rádio e estabilização rádio cubital com 2 fios de K.
34. Durante o internamento, foi observado por Neurocirurgia e Oftalmologia do mesmo Hospital.
35. Durante o internamento, desenvolveu úlcera de pressão na região nadegueira, tendo sido observado por Cirurgia Plástica do mesmo Hospital e, após a alta, efetuou cuidados de penso no CH... e no Centro de Saúde (de ...), tendo sido avaliado pela última vez a 17.09.2018.
36. Teve alta hospitalar em 20.07.2018, com suspensão braquial e drenagem postural dos membros superiores, orientado para consulta de Cirurgia Plástica, Oftalmologia e Psiquiatria, bem como a recomendação de solicitar consulta de Ortopedia no hospital da área de residência.
37. Em setembro de 2018 efetuou exames complementares de diagnóstico e cinesioterapia respiratória.
38. Em finais de outubro de 2018, iniciou tratamentos de Medicina Física e de Reabilitação (MFR) no Centro Hospitalar 1... (CH 1...), que manteve na Clínica ..., por conta própria.
39. Interrompeu os tratamentos de fisioterapia por causa das dores do membro superior direito, tendo efetuado Consulta de Cirurgia Vascular do CH... para, em 21 de fevereiro em 2020, ser orientado para Consulta Externa de Ortopedia do Hospital 1....
40. Em 4.12.2018, realizou ressonância magnética do ombro direito.
41. E em 28.3.2019 realizou ressonância magnética cerebral.
42. Foi, ainda, o Autor submetido a estudo do sistema superficial e profundo do membro superior direito com sonda linear de alta resolução, utilizando doppler pulsoado e a cores, tendo-se verificado eixos venosos permeáveis.
43. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 3.09.2020.
44. O Défice Funcional Temporário Total situou-se entre os dias 15.06.2018 e 20.07.2018, sendo fixável num período de 36 dias.
45. O Défice Funcional Temporário Parcial situou-se entre 21.07.2018 e 3.09.2020, sendo fixável num período 776 dias.
46. A Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total situou-se entre 15.06.2018 e 3.09.2020, sendo fixável num período total de 812 dias.
47. Como causa direta e necessária do acidente, o Autor apresenta, atualmente, ao nível do membro superior direito, atrofia marcada do músculo deltoide, mais visível na mobilização do ombro contra resistência.
48. Apresenta, ainda, ao nível do membro superior direito, limitação marcada da mobilidade permitindo levar a mão à face posterior do pescoço, vértex, ombro contralateral e linha média lombar, mais evidente nos movimentos de abdução, flexão e rotação (externa e interna) do ombro, na flexão e extensão do punho e na adução do 5° dedo.
49. Apresenta discreta diminuição da força muscular do membro de modo global (grau 3/5).
50. Tem incapacidade de imponência pulpo-pulpar entre os 1° e 5° dedos da mão direita.
51. E alterações de sensibilidade na mão.
52. Apresenta diminuição da força do membro superior direito.
53. E reflexos diminuídos em comparação com contralateral.
54. Apresenta alterações de sensibilidade (hipossensibilidade) na face medial do membro superior direito, de modo mais expressivo distalmente ao cotovelo e nos 1.° e 5.° dedos da mão direita.
55. Decorrente destas sequelas, resultou para o Autor incapacidade em dormir ao decúbito lateral direito, por dores e adormecimento do membro superior direito;
56. E ligeira dificuldade em executar tarefas que exijam motricidade fina com a mão direita;
57. Apresenta dificuldade na manipulação de carga com o membro superior direito para objetos com mais de 5kg, principalmente, para níveis mais próximos do ombro (mais elevados);
58. Ao nível do membro superior esquerdo, apresenta discreta limitação da mobilidade do membro, mais evidente no ombro e punho;
59. Mas a força muscular do membro está globalmente preservada (grau 5 em 5).
60. O Autor, logo após o acidente, apercebeu-se de alterações visuais, quando, ainda em ambiente de Cuidados Intensivos olhou para o ecrã duma TV e notou que não conseguia ver com clareza e necessitava de mexer o pescoço para encontrar a imagem completa.
61. Reportou as suas queixas visuais à equipa médica, sendo por isso que passou a ter acompanhamento por Oftalmologia no CH....
62. O Autor teve e tem perceção de “pontos mortos” na sua visão desde que acordou do coma.
63. No decurso dos inúmeros exames de diagnóstico a que foi submetido, na especialidade de oftalmologia, foi realizada uma perimetria estática computorizada o qual demonstrou a presença de escotoma central bilateral, mais marcado à direita, e hemianopsia esquerda bilateral.
64. Pelos dados imagiológicos pós-traumáticos tornou-se plausível correlacionar os sintomas (escotomas positivos) e os defeitos campimétricos com as lesões neurológicas identificadas.
65. Como sequela traumática apresenta escotoma bilateral, de natureza irreversível condicionando, na fixação visual, o constante movimento de procura;
66. Esta sequela - escotoma bilateral -, que implicou a alteração da acuidade visual dos dois olhos, faz com que o Autor não consiga ler e tenha dificuldade para escrever.
67. Acresce ainda, que esta sequela de caráter irreversível implicou que o mesmo deixasse de poder conduzir veículos pesados, sendo certo que tal dificuldade se reflete, negativamente, mesmo na condução de veículos ligeiros.
68. O Autor não consegue saltar por não ter noção da profundidade.
69. O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica é fixável em 41 pontos.
70. As sequelas apresentadas pelo Autor, não o afetando em termos de autonomia, independência, são incompatíveis com o exercício da atividade profissional habitual de motorista de pesados;
71. Mas são compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico profissional;
72. Por essa razão, teve de abandonar a condução de camião e passou a efetuar trabalho como empregado de armazém, pese embora as suas dificuldades em pegar em objetos pesados.
73. No pescoço, o Autor apresenta cicatriz do tipo cirúrgica, vertical, de coloração rosada, levemente irregular e hipertrófica, sensível a palpação, localizada no terço médio da face ântero-lateral direita do pescoço, com 2,5 cm por 0,8 cm de maiores dimensões, sugestiva da colocação de catéter para tratamento cirúrgico.
74. No tórax: observam-se três cicatrizes pós-cirúrgicas, irregulares, hipopigmentadas, ténues, não dolorosas a palpação, localizadas na face anterior do hemotórax direito:
a) Uma subclavicular, oblíqua, com 7 cm por 1 cm de maiores dimensões;
b) Outra, localizada na região peitoral no seu quadrante supero externo medindo 10 cm por 1 cm de maiores dimensões (apresentando na sua extremidade lateral, um componente mais róseo e ligeiramente hipertrófico, no quadrante supero-interno, medindo 1,5 cm por 1 cm de maiores dimensões)
c) E outra na região perimamilar com 2 cm por 0,5 cm de maiores dimensões;
75. Apresenta ainda, ao nível do tórax, outras duas cicatrizes pós-cirúrgicas localizadas na linha anterior axilar:
a) A direita com 2,5 cm por 1,5 cm e com 2 cm por1 cm de maiores dimensões;
b) Outra na linha anterior axila esquerda com 3 cm por 2cm de maiores dimensões ao nível do 5º espaço intercostal, relacionadas com colocação de drenos;
76. Apresenta ainda, ao nível do tórax, três cicatrizes levemente acastanhadas com vestígios de pontos de sutura:
a) À direita, duas na face anterolateral do terço distal do tórax, sensivelmente sobre a linha axilar média, a mais superior hiperpigmentada e ligeiramente hipertrófica com quarenta por trinta milímetros de maiores dimensões, e a inferior com vinte e cinco por vinte milímetros de maiores dimensões;
b) À esquerda, uma na face anterolateral na transição do terço médio para o distal, sensivelmente sobre a linha axilar anterior, com trinta e cinco por vinte milímetros de maiores dimensões;
77. Ao nível do membro superior direito, apresenta duas cicatrizes de tipo cirúrgico, rosadas, lineares, verticais, nos dois terços distais do antebraço, referidas como dolorosas à palpação:
a) Uma na sua face anterolateral com 14 cm por 1,5 cm;
b) A outra na sua face posteromedial, com 10 cm por 1 cm de maiores dimensões; área cicatricial irregular no bordo cubital da mão com 1,5 cm de diâmetro, com diminuição da sensibilidade local;
78. Ao nível do membro superior esquerdo: apresenta uma cicatriz de tipo cirúrgico, de coloração rosada, irregular, vertical, dolorosa à palpação e aderente aos planos subjacentes, localizada nos dois terços distais do antebraço na sua face anterolateral com 12 cm por 1 cm de maiores dimensões; uma cicatriz irregular na face posterior do terço médio do antebraço com 1,5 cm por 1 cm de maiores dimensões e duas cicatrizes punctiformes no bordo cubital do punho;
79. Ao nível do membro inferior direito: observa-se área cicatricial irregular na face anterior do terço médio da perna, de diâmetro pericentimétrico;
80. Ao nível do membro inferior esquerdo: observa-se área cicatricial violácea, com ligeira perda de tecido e retração a planos subjacentes, nos quadrantes mediais da nádega, com 8 cm por 3 cm de maiores dimensões, com referência a alteração da sensibilidade local; duas áreas cicatriciais irregulares, uma na face anterior do joelho e a outra na face anterior do terço médio da perna, ambas de diâmetro pericentimétrico;
81. O dano estético permanente é fixável no grau 3, numa escala de 7 graus de gravidade crescente.
82. Como consequência direta das lesões, dos tratamentos a que foi submetido e das suas sequelas, o Autor sofreu e sofre dores;
83. Sente fenómenos dolorosos constantes no membro superior direito;
84. Sente dor referida à palpação das regiões acromial, escapular e articulação acrémio-clavicular;
85. Apresenta dor à palpação da região temporal direita.
86. O quantum doloris é fixável no grau 5, numa escala de 7 graus de gravidade crescente.
87. Foi observado pelos serviços clínicos da Ré, pela primeira vez, cerca de cinco meses após o sinistro, em 25 de outubro de 2016.
88. O Autor antes do acidente praticava boxe, corrida e ginásio, não tendo ainda conseguido, com exceção da corrida, retomar nenhuma daquelas atividades.
89. A Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 2, numa escala de 7 graus de gravidade crescente.
90. O Autor, durante um período não concretamente apurado, ficou totalmente dependente de terceiros para os atos do dia a dia, nomeadamente para os cuidados de higiene e para se vestir e despir.
91. Anteriormente ao sinistro, era uma pessoa saudável, sociável, paciente e tolerante prezando os prazeres da vida e convívio com familiares e amigos.
92. Atualmente, sente-se desgostoso, porque as sequelas ao nível da visão o impedem de ler e, consequentemente, acompanhar as filhas nas suas atividades escolares e lúdicas.
93. O facto de ter que deixar a profissão de motorista de pesados causou e causa profundo e enorme desgosto, angústia e frustração ao Autor, por adorar aquela profissão, que sempre exerceu e, na qual era profundamente feliz.
94. À data do acidente, o agregado familiar do Autor era integrado por sua esposa e duas filhas menores;
95. Verificando-se então a situação de desemprego do seu cônjuge.
96. O Autor, que ficou privado do seu salário, tinha de suportar todos os encargos da vida familiar;
97. No que se incluía o valor da prestação mensal de €198,80 decorrente do empréstimo para aquisição da habitação;
98. Bem como a prestação mensal de €320,17 emergente do contrato de financiamento celebrado com a Banco 1... para aquisição do motociclo interveniente no acidente.
99. O Autor vendeu a fração autónoma de que era proprietário no dia 20 de setembro de 2018, pelo preço de €115.000,00.
100. Ainda em consequência do descrito acidente, o motociclo do Autor, adquirido cerca de um ano antes pelo valor de €20.05,00, ficou totalmente destruído.
101. O valor venal do veículo do Autor à data do acidente foi estimado em €14.500,00.
102. O valor do salvado foi fixado em €2.710,00, com IVA incluído.
103. O valor necessário para a reparação do veículo do Autor foi orçado em €24.271,20.
104. Da mesma forma ficou danificado o capacete de que era portador o Autor no momento do acidente, de valor não concretamente apurado.
105. O Autor suportou despesas com deslocações de e para os hospitais, serviços de fisioterapia, consultas médicas e bem assim com medicamentos, em montante não concretamente determinado.
106. À data do acidente, o Autor exercia a profissão principal de motorista de pesados de mercadorias por conta e ordem da sociedade C..., Lda., de que o seu pai é gerente;
107. Auferindo o vencimento mensal de €1.450,00, acrescido do subsídio de alimentação de €100,17, tudo perfazendo um rendimento mensal líquido de €1.169,67.
108. Entre 1 de janeiro de 2018 e 30 de abril de 2018, o Autor auferiu o vencimento mensal de €900,00.
109. O Autor nasceu no dia 28 de abril de 1983 (cfr. documento n.º 1, anexo ao requerimento de 20.06.2023).
110. A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo de matrícula ..-..-QM achava-se transferida para a Ré, através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ..., válido e em vigor na data do acidente.
111. No âmbito do procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória foi a Ré condenada a pagar ao Autor a renda mensal de €650,00, até ao dia 8 de cada mês, a título de reparação provisória do dano, até ao trânsito em julgado da sentença a proferir no processo principal, devendo proceder ao pagamento das rendas vencidas desde 1 de dezembro de 2018 com a renda de março de 2019, que a Ré se encontra a cumprir.
112. Em consequência das lesões sofridas pelo Autor, o Instituto da Segurança Social pagou o montante de €5.872,68 a título de subsídio de doença, no período decorrido entre 15.06.2018 a 16.04.2019.
113. Como supra se referiu, de 15.06.2018 a 20.07.2018, o Autor recebeu tratamento no Centro Hospitalar ... E.P.E.consistentes na utilização de meios auxiliares de diagnóstico e respetivos procedimentos, tendo ficado internado.
114. Os encargos dos tratamentos prestados ao Autor importaram em €12.509,69.
115. A Ré foi interpelada para proceder ao pagamento da quantia a que se alude no facto anterior através da plataforma Faturação Hospitalar às Seguradores (FHS) no dia 19.02.2019.
*
2.2. Factos não provados
O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:
a) O Autor, no indicado dia, hora e local em que ocorreu o acidente, circulava a uma velocidade superior a 50km/h;
b) O Autor no indicado dia, hora e local em que ocorreu o acidente, circulava a uma distância de cerca de 80 cm da berma direita, atento o seu sentido de marcha;
c) Perante a eminência do embate e em manobra de recurso, o Autor travou;
d) A condutora do QM, após o embate, arrastou o motociclo tripulado pelo Autor pelo menos 3 a 4 metros, o qual invadiu dessa forma a faixa de rodagem central e destinada à mudança de direção à esquerda;
e) No momento do acidente, o trânsito encontrava-se parado no sentido norte-sul, em virtude de ter sido cedida a passagem à condutora da viatura QM, n.º 2, que aguardava para entrar na Rua ... sentido sul-norte, quando surgiu o motociclo a efetuar ultrapassagem às viaturas paradas no trânsito e com alguma velocidade;
f) Ao Autor foi-lhe retirada a carta de pesados,
g) As dores de que o Autor padece impedem-no de dormir e provocam-lhe stress permanente;
h) O que lhe causa angústia e nervosismo exacerbados, tornando-o numa pessoa impaciente, intolerante e mesmo irascível, quer para com o seu agregado familiar, quer com as pessoas com quem se relaciona;
i) Na decorrência das descritas lesões e intervenções cirúrgicas carece o Autor de, num futuro próximo, vir a ser submetido a novas cirurgias, seja de correção, de plástica e bem assim para retirada do material de osteossíntese;
j) O Autor careceu de estar permanentemente acompanhado por terceira pessoa pelas frequentes tonturas e perturbação de visão e equilíbrio de que é acometido.
k) Fruto da situação de incapacidade laboral e decisiva redução dos seus rendimentos consequentes ao acidente, viu-se o Autor obrigado a alienar o imóvel habitacional de que, com o seu cônjuge era proprietário, por manifesta incapacidade de manter o cumprimento da obrigação de amortização do empréstimo da respetiva aquisição, no montante mensal de €198,80;
l) Como forma de evitar entrar em incumprimento das amortizações mensais e subsequente processo executivo, foi o Autor, em consequência das lesões e sequelas decorrentes do acidente, constrangido a vender tal imóvel com urgência;
m) O valor real do imóvel era, e é, não inferior a €150.000,00 tendo sido apenas pela urgência que o Autor foi obrigado a proceder à sua alienação por valor inferior ao real;
n) As dores que o Autor sente condicionam e perturbam o trato sexual.
*
3. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar:
Das conclusões formuladas pela recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões a resolver prendem-se com saber:
- da impugnação da matéria de facto;
- do grau de responsabilidade;
- da valorização dos danos.
*
4. Conhecendo do mérito do recurso
4.1 Da impugnação da matéria de facto
A apelante em sede recursiva manifesta-se discordante da decisão que apreciou a matéria de facto, quanto aos factos provados sob os n.ºs 4, 6, 9, 14 e 69.
Defende que os factos provados sob os n.ºs 4 e 9 passem a constar da matéria que foi dada como não provada.
Pretende que o ponto de facto n.º 6 passe a ter a seguinte redacção:“O Autor circulava em velocidade excessiva, não concretamente apurada”.
Defende que o ponto de facto n.º 14 passe a ter a seguinte redacção: “A condutora do QM, apesar de não ter visualizado a presença do Autor, ouviu o barulho do motociclo”.
Pretende, ainda, que o ponto de facto n.º 69 passe a ter a seguinte redacção:
“O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica é fixável em 40,52 pontos”.
Defende, ainda, que sejam aditados à matéria dada como provada os seguintes pontos de facto:
“15-A: O Autor embateu com a parte frontal do motociclo na cava da roda dianteira esquerda da carrinha, na lateral esquerda e no vidro para-brisas frontal (do lado da condutora)”;
“15-B: Em resultado do contacto referido no número anterior, o veículo RJ sofreu danos cuja reparação foi orçamentada em € 24.271,20, o que motivou a situação de perda total, e o veículo QM sofreu avultados danos na cava da roda dianteira esquerda da carrinha, na lateral esquerda e no vidro para-brisas frontal”;
“15-C: Ao circular na faixa central, o Autor violou o dever especial de cuidado previsto no artigo 13º, n.º 1 do Código da Estrada que impõe que “A posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes.”;
“15-D: O Autor não respeitou a seta de selecção M15a que se encontrava sinalizada no pavimento”.

Vejamos, então.
No caso vertente, mostram-se minimamente cumpridos os requisitos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto previstos no artigo 640.º, do Código de Processo Civil, nada obstando a que se conheça da mesma.
Entende-se actualmente, de uma forma que se vinha já generalizando nos tribunais superiores, hoje largamente acolhida no artigo 662.º do Código de Processo Civil, que no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (artigo 655.º do anterior Código de Processo Civil e artigo 607.º, n.º 5, do actual Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efectivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efectiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece.
Como refere A. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, págs. 224 e 225, “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”.
Importa, pois, por regra, reexaminar as provas indicadas pela recorrente e, se necessário, outras provas, máxime as referenciadas na fundamentação da decisão em matéria de facto e que, deste modo, serviram para formar a convicção do Julgador, em ordem a manter ou a alterar a referida materialidade, exercendo-se um controlo efectivo dessa decisão e evitando, na medida do possível, a anulação do julgamento, antes corrigindo, por substituição, a decisão em matéria de facto.
Reportando-nos ao caso vertente, constata-se que a Senhora Juiz a quo, após a audiência e em sede de sentença, motivou a sua decisão sobre os factos nos seguintes meios de prova:
“A prova dos factos 1º a 3º e 110º fundou-se no acordo das partes.
A prova do facto 99º fundou-se no teor do documento n.º 15 anexo à petição inicial.
A prova do 109º fundou-se no teor da certidão de nascimento do Autor, documento anexo ao requerimento de 20.06.2023.
Quanto ao facto 111º a sua prova resultou da consulta dos autos de procedimento cautelar apensos aos presentes, bem como do teor do documento junto aos autos em 26.06.2023.
A prova do facto 112º fundou-se no teor da certidão anexa ao pedido de reembolso deduzido pelo I.S.S., I.P. (requerimento de 23.04.2019).
Relativamente à dinâmica do acidente (factos 4º a 17º e a) a e) da matéria não provada) o tribunal fundou a sua convicção na visualização das imagens do acidente, constantes do cd que constitui o documento n.º 2 anexo à petição inicial, que se conjugaram com o auto de participação de acidente de viação (documento n.º 1 anexo à contestação, valorando-se este por estar acompanhado do registo fotográfico), cujo teor foi confirmado pelo depoimento da testemunha CC, agente da GNR que o elaborou, tendo ainda o tribunal recorrido quanto às caraterísticas do local aos elementos disponíveis no Google Earth.
As filmagens foram obtidas das câmaras de vigilância do estabelecimento D... Lda., identificado no Google e como referido pela testemunha DD, cuja presença (no primeiro filme) na área descoberta que antecede o portão foi possível confirmar.
As imagens que constituem os filmes foram seguramente captadas do topo da parte de cor branca do edifício que nesse estabelecimento existe e uma câmara está apontada na direção do portão aí existente, que estando aberto permite captar o ocorrido na zona da faixa de rodagem onde ocorreu o acidente, e a outra para o lado direito.
Não é possível dessas imagens ver quaisquer marcas no pavimento.
Contudo, é possível ver que o motociclo se imobilizou no local do embate e que o veículo ligeiro, na sequência do embate, dá um solavanco, que se calculou ser de um metro, tal como referido pela testemunha EE, proprietário do estabelecimento de frutaria que no local existe (no gaveto da EN nº ... com a Rua ...), dando-se assim por provado o facto 16º.
Assim, acolheu-se o local provável do embate constante do croquis elaborado pelo Sr. Agente de Autoridade.
Dessas filmagens foi possível verificar que no sentido norte-sul, antes da condutora iniciar a manobra de mudança de direção não passaram veículos durante vários segundos.
Por outro lado, a condutora do QM assinalou que apenas viu um veículo a duzentos metros, desconhecendo-se porque razão não visualizou o motociclo, dadas as boas condições de visibilidade.
Na respetiva proporção, e por defeito, no sentido de que havia pouco trânsito naquele momento, deu-se por provado o facto 9º, incluindo a distância de cinquenta metros.
Não sendo possível determinar qual a velocidade a que seguia o Autor, por as imagens o não permitirem, nem haver prova credível que a demonstrasse – as únicas testemunhas que sobre tal depuseram foi a testemunha FF, cujo depoimento mereceu muitas reservas (daí a prova do facto 6º e a não prova da alínea a), certo é que se visualiza que a condutora do QM executa a manobra de forma rápida e súbita até ao momento do embate, sem que se vissem sinais de paragem na faixa central (contrariando o que afirmou a própria condutora BB).
E não restando dúvidas, face ao local em que se imobilizaram os veículos, nos termos assinalados no croqui que o Autor seguia, no exato momento do embate, na faixa central destinada ao trânsito que pretende mudar de direção para a esquerda, porque o motociclo aí se quedou e não há quaisquer indícios de ter sido arrastado pelo ligeiro (daí a não prova das alíneas b) e d), e sendo certo que pretendia seguir em frente, porque tinha já passado o local próprio para mudar de direção à esquerda, ou seja, antes do STOP assinalado no pavimento (provando-se assim o facto 15º), não deixa de merecer perplexidade que o Autor por aí seguisse.
Com efeito, e como se assinalou, na faixa reservada ao trânsito que pretendia seguir em frente não circulava nenhum veículo, não resultando por isso demonstrada a execução de quaisquer manobras de ultrapassagem por parte do Autor (daí a não prova da alínea e).
Por outro lado, saindo o QM da zona de estacionamento, executando a manobra de forma rápida e súbita, a primeira faixa a ser invadida foi a destinada ao trânsito que pretendia seguir em frente.
Note-se que o acidente apenas foi completamente visualizado pelos seus intervenientes, já que o depoimento da testemunha FF, mesmo na versão apresentada em julgamento, resultou totalmente contrariada pelas imagens visualizadas, ao que acrescem as contradições intrínsecas ao próprio depoimento, motivo pelo qual não pode, de todo, ser acolhido.
Para além disso, o Autor não consegue descrever o acidente, por força da amnésia que para o episódio apresenta, restando assim apenas a versão da condutora do QM, a testemunha BB.
Questionamo-nos assim, e as imagens não o permitem confirmar, se não terá havido alguma “manobra de recurso” por parte do Autor que determinasse que, em vez de circular na via destinada ao trânsito que pretendia seguir em frente, passasse a circular na destinada ao trânsito que pretendia virar à esquerda, o que seria atribuído à súbita manobra executada pela condutora do QM que expressamente reconheceu não ter visto o Autor (daí a prova do facto 14º), pese embora as excelentes condições de visibilidade de que o local dispõe.
Relativamente à marcha de trânsito do Autor, às boas condições atmosféricas, à proveniência do veículo QM (que não estava estacionado na baía de estacionamento existente no local porque provinha do parque de estacionamento de um estabelecimento aí existente mas saiu pelo local que à baía de estacionamento dá acesso) ponderou-se o teor das imagens visualizadas (factos 5º a 7º).
Foi a visualização das imagens, com a ajuda do Google, que permitiu a prova dos factos 12º e 13º.
Com efeito, vê-se claramente que a manobra do QM é executada de forma rápida e súbita e que o Autor é por ela surpreendido.
Não foi possível apurar a distância a que se encontrava o Autor do local.
E, face a tal, deram-se por provados os factos 12º e 13º, com a restrição que deles constam.
Quanto ao sentido ascendente da via, tomando por referência o sentido de marcha do Autor, referiram-no várias testemunhas (GG, que referiu que chegou logo a seguir e que vinha a descer, ou seja, no sentido contrário, e a testemunha FF, praticamente único ponto em que o seu depoimento foi acolhido),
Relativamente à extensão da reta, referiu-o a testemunha BB, ao afirmar que viu um carro claro do seu lado esquerdo, a 200metros do local onde se encontrava.
Daí a prova do facto 8º.
Quanto às demais caraterísticas da via tomou-se por referência o auto de participação dando-se por provados os factos 10º e 11º e tendo-se acolhido o local assinalado como sendo o do embate, deu-se por provado o facto 17º.
Relativamente às lesões, tratamentos e sequelas sofridas, teve o tribunal em consideração o teor dos registos clínicos constantes dos autos (juntos em 19.07.2019, 12.09.2019, 17.09.2019, 3.10.2019, 10.05.2021, 24.05.2021, 26.05.2021, 4.06.2021, 11.06.2021, 14.06.2021, 20.07.2021, 11.04.2022, 19.10.2022, 23.01.2023 e dos relatórios periciais elaborados pelo I.N.M.L.C.F. de avaliação do dano corporal, quer intercalar, quer o final, juntos aos autos em 22.04.2021 (intercalar) e 24.02.2023 (final), os esclarecimentos prestados (juntos aos autos em 29.03.2023) quer o relatório de Psiquiatria, junto aos autos em 3.08.2020, Ortopedia, junto aos autos em 2.10.2020, e Oftalmologia, junto aos autos em 2.02.2022 (intercalar) e 4.10.2022 (final) os quais permitiram, em conjugação com os demais documentos constantes dos autos e depoimentos das testemunhas HH, GG, amigos do Autor, sendo que o segundo revelou conhecê-lo há muitos anos, II e JJ, seus primos, que revelaram conhecê-lo e as alterações que resultaram após o acidente, dar como provados os factos 18º a 71º, 73º a 86º, 88º a 89º.
Não se retirou dos elementos clínicos supra identificados, nem dos relatórios periciais que apresentasse o Autor desarticulação do 2º dedo da mão direita, as especificas dificuldades no sono alegadas e as consequências daí resultantes (alíneas g) e h), a necessidade de realizar cirurgias no futuro (alínea i), as tonturas ocorridas durante o período de recuperação (alínea j), nem quaisquer perturbações ao nível sexual, sendo que neste ponto o relatório pericial final as não refere (alínea n).
Quanto ao período em que se manteve em coma, não foi possível determinar a sua exata duração, sendo que durante o período de internamento o Autor foi transferido para a unidade de Ortopedia, tendo sido intervencionado a 1.07., motivo pelo qual se fixou aproximadamente três semanas (facto 28º).
Relativamente ao período, após a alta, em que se manteve o Autor totalmente dependente da ajuda de terceiros, ainda que não fosse possível definir a sua duração, ponderou-se o depoimento da testemunha, que o ajudou nesse período na prestação de cuidados, tendo igualmente a testemunha II, sua prima, descrito o estado do Autor nesses primeiros tempos. Daí a prova do facto 90º.
Resultou quer do relatório pericial, quer do depoimento das testemunhas supra identificadas que o Autor teve que abandonar a profissão de motorista GG, II e JJ, o gosto que tinha em tal profissão, o que o próprio manifestou nas suas declarações de parte, a sua atual profissão de empregado de armazém, que exerce com dificuldades por causa das limitações que lhe advieram (facto 72º), os desgostos sentidos com as sequelas de que ficou a padecer (factos 91º a 93º).
Relativamente à perda da carta de pesados, convencendo-se o tribunal que tal ocorrerá na próxima renovação, dada a impossibilidade do Autor conduzir por causa das limitações na visão de que ficou a padecer, o que será detetado aquando da submissão a exame médico para renovação, certo é que essa situação ainda se não verificou, como o reconheceu o Autor nas suas declarações de parte, motivo pelo qual se deu por não provada a alínea f).
Depuseram os seus primos sobre a composição do agregado familiar, o desemprego da esposa do Autor (o que se conjugou com os documentos n.ºs 9 a 12 anexos à petição inicial e a repercussão para a atividade profissional que lhe foi fixada), os encargos com a prestação do crédito à habitação e do crédito contraído para aquisição do motociclo (o que se conjugou com os documentos n.ºs 13 e 14, anexos à petição inicial e informações remetidas pelo Banco 2... aos autos) e as naturais dificuldades surgidas.
Nesse circunspecto, deram-se por provados os factos 94º a 98º.
Do que o tribunal não se convenceu é que a venda do apartamento de que o Autor era proprietário tenha ocorrido por causa dessas dificuldades, em contexto de urgência e, acima de tudo, abaixo do valor de mercado, face à fragilidade e insuficiente prova produzida.
Por essa razão, resultaram não provadas as alíneas k) a m).
Relativamente ao valor de aquisição do motociclo interveniente no acidente, ponderou-se o já identificado documento n.º 14 anexo à petição inicial, sendo que quanto ao seu estado as partes convergiram, dando-se assim por provado o facto 99º.
Porque não impugnados, sopesou o tribunal os documentos n.ºs 3 (relatório de perda total) e 4 anexos à contestação para a prova dos factos 101º a 103º.
Quanto à perda do capacete, matéria sobre a qual apenas o Autor depôs, considerou-se que, dada a violência do embate e até por questões de segurança, ficou danificado.
Contudo, não foi possível apurar o seu valor à data do acidente, motivo pelo qual se deu por provado o facto 104º, com as limitações dele constantes.
É indiscutível que o Autor suportou despesas de transporte nas deslocações a consultas e tratamentos,
Relativamente ao valor auferido pelo Autor à data do acidente resultou da prova produzida que este trabalhava e trabalha numa pequena empresa familiar, de que é gerente o seu pai, e de que o Autor, juntamente com o seu irmão é sócio, à semelhança das muitas que constituem o tecido empresarial português, e pese embora a coincidência temporal no aumento do salário, que o próprio contextualizou, não subsistiram razões para duvidar que efetivamente ocorreu, até porque não foi feita prova que abalasse o acervo documental aportado para os autos, que assim se acolheu.
Por essa razão, deram-se por provados os factos 107º e 108º.
A prova dos factos 113º a 115º fundou-se no teor dos documentos anexos à ação nº 3951/21.5T8VNG, cuja apensação aos presentes autos foi determinada, que se concatenaram com o depoimento da testemunha KK, funcionária do Centro Hospitalar ... que confirmou o seu teor e descreveu os procedimentos levados a cabo para obter o pagamento do valor em causa.
Para além do já mencionado, a não prova dos demais factos deveu-se a insuficiência de prova (alínea c).”.
Tendo presentes estes elementos probatórios e demais motivação, vejamos então se, na parte colocada em crise, a referida análise crítica corresponde à realidade dos factos ou se a matéria em questão merece, e em que medida, a alteração pretendida pela apelante.
Insurge-se a Recorrente contra tal decisão por entender que o Tribunal a quo valorou erradamente a prova oferecida nos segmentos fácticos em causa.
Entendemos, todavia, que a Senhora Juiz a quo fundamentou a sua decisão de forma rigorosa, bem sistematizada, não contornando as questões que se colocavam, invocando sempre com ponderação as regras da experiência comum e o juízo lógico-dedutivo, sem prejuízo da rectificação a operar quanto ao ponto 69.
Com efeito, a convicção expressa pelo tribunal a quo tem razoável suporte naquilo que a gravação das provas e os demais elementos dos autos lhe revela.
Isto porque salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Contudo a livre apreciação da prova, não se confunde, de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios de experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Dentro destes pressupostos se deve portanto colocar o julgador ao apreciar livremente a prova.
A livre apreciação da prova tem de se traduzir numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma real motivação da decisão: com a exigência de objectivação da livre convicção poderia pensar-se nada restar já à liberdade do julgador, mas não é assim: a convicção do julgador há-de ser sempre uma convicção pessoal, mas há-de ser sempre uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros em termos de racionalidade e perceptibilidade.
Não esqueçamos, ainda, que a formação da convicção do juiz não pode resultar de partículas probatórias, mas tem necessariamente de provir da análise global do conjunto de toda a prova produzida.
A actividade dos Juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o Juiz necessariamente aceite esse sentido ou essa versão. Os Juízes têm necessariamente de fazer uma análise crítica e integrada dos depoimentos com os documentos e outros meios de prova que lhes sejam oferecidos.
No caso vertente, questiona a Apelante ter sido dado por provada a matéria de facto elencada nos factos provados sob os nºs 4, 6, 9, 14, 69, propondo o aditamento de outros pontos.
Desde logo importa aqui salientar que a fundamentação dos factos dados por provados pelo Tribunal a quo é clara e inquestionável, sendo que a decisão proferida em sede da providência cautelar de arbitramento provisório formula mero juízo indiciário e não constitui qualquer caso julgado para a acção principal.
Com efeito, na relação de instrumentalidade existente entre o procedimento cautelar e a acção principal, a decisão proferida naquele não faz caso julgado material nem se configura com prejudicialidade relativamente à pretensão reclamada na acção principal, não condicionando a decisão a proferir nesta.
Desta forma, do teor do decidido no âmbito da providência cautelar, seja em termos de fixação da matéria de facto, seja na integração jurídica desta, não é susceptível de extrair quaisquer efeitos de caso julgado material aplicáveis ao processo principal, ou seja, o teor do decidido nos autos cautelares não exerce qualquer efeito sobre a acção principal, assumindo a decisão proferida no procedimento cautelar uma natureza precária, pois assenta em factores de menor solidez de fiabilidade, não devendo, assim, influenciar a apreciação a efectuar no âmbito da acção definitiva.
Transpondo tal argumentação ao caso sub júdice, constatamos que a decisão proferida no âmbito do procedimento cautelar apenso em nada pode/deve influenciar a decisão a proferir em sede dos presentes autos principais.
Vejamos então ponto por ponto.
- Do ponto 4 da matéria de facto provada
Consta como provado:
“4) No indicado dia, hora e local, o Autor conduzia o RJ pela EN nº ..., no sentido norte - sul, na metade da direita da via”.
Pugna a Apelante que o referido facto seja considerado não provado.
Relativamente a este facto, importa salientar que, tal como inquestionado, consta da fundamentação que o acidente apenas foi completamente visualizado pelos seus intervenientes pelo que, não logrando o Autor descrevê-lo, por força da amnésia que para o episódio apresenta, resta a versão da condutora do veículo seguro na Recorrente, bem como as filmagens do acidente.
Assim e quanto a tal versão da interveniente – cfr registo áudio ficheiro 20230627142925_15427407_2871606 aos minutos 02.56 e 11.46 – refere a condutora:
“Quando chego à faixa do meio o que me recordo é ouvir um barulho grande e sentir uma pancada, nem sabia o que é que me tinha batido”
e
“Eu só ouvi o barulho quando senti o embate, a embatida, nem sabia o que é que me tinha embatido”
Ou seja, a condutora do veículo seguro na Apelante nem sequer viu o motociclo do Autor a circular na via onde aquela pretendia entrar, sendo certo que nenhuma testemunha referiu que o Autor não circulava pela respectiva faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha de Norte para Sul.
De resto, alegando a Recorrente, em sede de contestação, que o Autor circulava pela faixa de rodagem central, destinada ao trânsito dos veículos que pretendia mudar de direcção à esquerda, quando pretendia seguir em frente e que, caso tivesse respeitado a orientação de trânsito que lhe era imposta, o acidente não se teria verificado, em obediência ao ónus de prova - artigo 342.º do Código Civil -, sempre competiria à mesma a prova do referido facto, o que não logrou.
Além disso, atenta a visualização das imagens captadas pelas câmaras de segurança da empresa situadas em frente ao local do embate, não nos é possível concluir pela demonstração da versão dada pela Recorrente.
De resto, em conformidade com as regras de experiência comum, da lógica e do normal acontecer, afigura-se idóneo que o Autor, perante a súbita intromissão do veículo seguro na recorrente no seu espaço livre e visível à sua frente, tenha, em manobra de recurso e fuga ao perigo eminente, flectido à esquerda e em direcção à referida faixa central, onde veio a ocorrer o embate.
Aliás, quanto a este conspecto bem se refere na fundamentação dos factos provados que:
“Questionamo-nos assim, e as imagens não o permitem confirmar, se não terá havido alguma “manobra de recurso” por parte do Autor que determinasse que, em vez de circular na via destinada ao trânsito que pretendia seguir em frente, passasse a circular na destinada ao trânsito que pretendia virar à esquerda, o que seria atribuído à súbita manobra executada pela condutora do QM que expressamente reconheceu não ter visto o Autor (daí a prova do facto 14º), pese embora as excelentes condições de visibilidade de que o local dispõe”.
Acrescentando,
“Com efeito, vê-se claramente que a manobra do QM é executada de forma rápida e súbita e que o Autor é por ela surpreendido”
Afigura-se, por isso, ser de manter a resposta dada ao referido ponto da matéria de facto provada.

- Do ponto 6 da matéria de facto provada
Consta como provado que:
“6) Circulava a uma velocidade não concretamente apurada;”
Pugna a apelante que o referido facto seja considerado provado nos seguintes termos:
“O Autor circulava em velocidade excessiva, não concretamente apurada”
Vejamos, então.
No âmbito da vigência do Código de Processo Civil, a decisão sobre a matéria de facto deve estar expurgada de afirmações genéricas, conclusivas ou que comportem matéria de direito.
Destarte, sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, o mesmo deve ser eliminado.
Assim, consabido que o conceito de velocidade excessiva mais não representa do que um mero juízo conclusivo e, como tal, não deve constar dos factos a enumerar em sede de sentença, afigura-se ser, igualmente, de manter-se inalterado o ponto 6 da matéria de facto provada.

- Do ponto 9 da matéria de facto provada
Consta como provado que:
“9) À frente do Autor, e a uma distância superior a 50 metros, não circulava qualquer outro veículo pelo que a respetiva faixa de rodagem encontrava-se livre e desimpedida, com total visibilidade, nomeadamente para quem, como o QM, pretendesse entrar na referida EN nº ... pela solução de continuidade que permite o acesso e saída da baia de estacionamento;”.
Pugna a apelante que o referido facto seja considerado não provado.
Vejamos, então.
Analisadas as imagens recolhidas no local em vídeo - CAM 1 - ao minuto00.15 (17h20m17s) constata-se a circulação de um veículo automóvel, mod. 190 de cor escura, sendo que à sua rectaguarda não circula qualquer outro veículo até surgir o motociclo do Autor.
Afigura-se-nos, assim, que o cálculo efectuado pela Sr.ª Juiz a quo não merece censura, estando em sintonia com as referidas imagens.
Acresce que a intensidade do trânsito que no momento se verificava é, exactamente, a que consta das imagens recolhidas nos vídeos, pelo que a argumentação da Apelante não merece acolhimento.
Afigura-se, por isso, ser de manter, igualmente, inalterada a resposta dada a este facto.

- Do ponto 14 da matéria de facto provada
Consta como provado que:
“14) A condutora do QM não percecionou a presença do motociclo do Autor a circular na via;”
Pugna a Apelante que o referido facto seja considerado provado nos seguintes termos:
“A condutora do QM, apesar de não ter visualizado a presença do Autor, ouviu o barulho do motociclo”
Vejamos, então.
Conforme atrás já referimos, foi declarado em audiência pela condutora do veículo segura na Recorrente:
- registo áudio ficheiro 20230627142925_15427407_2871606 aos minutos 02.56 e 11.46 – refere a condutora:
“Quando chego à faixa do meio o que me recordo é ouvir um barulho grande e sentir uma pancada, nem sabia o que é que me tinha batido”
e
“Eu só ouvi o barulho quando senti o embate, a embatida, nem sabia o que é que me tinha embatido”.
Assim, atento o referido, bem como o atrás vertido entendemos, igualmente, dever manter-se inalterado este facto dado por provado.

- Do ponto 69 da matéria de facto provada
Consta como provado que:
“69. O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica é fixável em 41 pontos;”
Pugna a Apelante que o referido facto seja considerado provado nos seguintes termos:
“69. O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica é fixável em 40,52 pontos;”
Vejamos, então.
Resulta da análise dos autos que, em 30.03.2023, no seguimento dos esclarecimentos que foram solicitados ao IML, a Apelante foi notificada que o Sr. Perito alterou a desvalorização de 41,12 para 40,52 pontos, pelo que o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica deve ser rectificado, passando a ter a seguinte redacção: “O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica é fixável em 40,52 pontos”.

- Pugna, ainda, a Apelante pelo aditamento dos seguintes factos à matéria de facto provada, com a seguinte redacção:
- “15-A: O Autor embateu com a parte frontal do motociclo na cava da roda dianteira esquerda da carrinha, na lateral esquerda e no vidro pára-brisas frontal (do lado da condutora)”;
- “15-B: Em resultado do contacto referido no número anterior, o veículo RJ sofreu danos cuja reparação foi orçamentada em € 24.271,20, o que motivou a situação de perda total, e o veículo QM sofreu avultados danos na cava da roda dianteira esquerda da carrinha, na lateral esquerda e no vidro para-brisas frontal”;
- “15-C: Ao circular na faixa central, o Autor violou o dever especial de cuidado previsto no artigo 13º, n.º 1 do Código da Estrada que impõe que “A posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes.”
- “15-D: O Autor não respeitou a seta de selecção M15a que se encontrava sinalizada no pavimento”.
Afigura-se-nos, no entanto, que os novos factos além de não terem sido alegados pela Apelante, não se afiguram relevantes à boa decisão da causa.
Ademais, conforme atrás referimos, no âmbito da vigência do actual Código de Processo Civil, a decisão sobre a matéria de facto deve estar expurgada de afirmações genéricas, conclusivas ou que comportem matéria de direito. Assim, sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, o mesmo deve ser eliminado e, por conseguinte, não deve previamente ser admitido.
Afigura-se-nos, por isso, não existirem motivos que justifiquem a alteração, devendo manter-se as respostas dadas aos referidos pontos da matéria de facto provada, com excepção da rectificação do ponto 69.
Em face do que vem de ser exposto, improcede o recurso sobre a decisão da matéria de facto, com excepção da rectificação do ponto 69 da matéria de facto nos termos atrás referidos.
*
A matéria de facto que fica em definitivo julgada provada é assim fixada em 1ª instância, com excepção da rectificação do ponto 69 nos termos seguintes:
“O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica é fixável em 40,52 pontos”.
*
4.2 Do grau de responsabilidade pela ocorrência do acidente
A apelante A..., S.A. clama pela parcial revogação da sentença de que recorre pugnando que a responsabilidade pela ocorrência do acidente deverá ser repartida de outra forma pelos intervenientes no acidente, ou seja, 40% para o A. e 60% para a condutora do veículo seguro na Ré.
Afigura-se-nos, todavia, que o Tribunal a quo fez correcta interpretação e aplicação do direito quanto à responsabilidade na eclosão do acidente ajuizado, porquanto não há fundamento para concluir que a aludida responsabilidade deverá ser diversa daqueloutra sentenciada.
Vejamos.
Como é consabido, o acidente de viação não é uma estática mas uma dinâmica, daí que os factos adquiridos processualmente devam ser interpretados numa perspectiva critica para se apurar, seleccionar, surpreender aqueles que tiveram a virtualidade de, só por si, desencadearem todo o nexo causal e necessário ao evento.
Estamos no domínio da responsabilidade civil extra-contratual, no campo dos acidentes de viação onde vigora o princípio geral do artigo 483º do Código Civil, com a especialidade de que de acordo com o artigo 487º do citado diploma é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.
Não sofre dúvidas que a lei distingue, no campo mais geral da responsabilidade extracontratual, entre responsabilidade civil por factos ilícitos - artigos 483º e seguintes do Código Civil - e responsabilidade pelo risco - artigos 499º a 510º do mesmo diploma - sem prejuízo de, na regulamentação desta, fazer frequentes apelos à culpa, como acontece nos artigos 500º, n.º 3, 503º, n.º 3, e 506º todos do Código Civil, e de mandar cumprir, na parte aplicável e na falta de preceitos legais em contrário, as disposições que regulam a responsabilidade por factos ilícitos - artigo 499º, do Código Civil.
A responsabilidade por factos ilícitos, com base na culpa, é a regra, na medida em que só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei - artigo 483º, n.º 2, do Código Civil.
Aqui, reiteramos, é ao lesado que incumbe provar todos os pressupostos fixados no n.º 1, do artigo 483° do Código Civil, designadamente, a culpa, salvo quando haja presunção legal de culpa - artigo 487° n.º 1 do Código Civil - pois é sabido que quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz - artigo 350º, n.º 1 do Código Civil.
Na falta de outro critério legal, a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso - artigo 487º, n.º 2 do Código Civil.
O elemento básico da responsabilidade é o facto do agente - um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana - pois só quanto a factos dessa índole têm cabimento a ideia da ilicitude, o requisito da culpa e a obrigação de reparar o dano nos termos em que a lei a impõe, neste sentido, Antunes Varela, in, Das Obrigações em Geral, I, 9ª edição, página 545, mas, fundamental na responsabilidade por factos ilícitos, por culpa, além da ilicitude (elemento objectivo, o autor agiu objectivamente mal), é essencial concluir que a conduta do lesante se pode considerar reprovável, censurável.
Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo, neste sentido, Antunes Varela, in, Das Obrigações em Geral, I, 9ª edição, página 582.
Culpa efectiva, provada, e culpa presumida são uma e a mesma coisa, designadamente para afastar a indemnização devida pela responsabilidade pelo risco, pois, as presunções, enquanto “ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido” (art.º 349° do Código Civil) - podem resultar tanto da lei (art.º 350º do Código Civil) como das regras da experiência e da vida do julgador (art.º 351º do Código Civil), reconhecendo-se que a prova da inobservância de leis ou regulamentos faz presumir a culpa na produção dos danos dela decorrentes, dispensando a concreta comprovação da falta de diligência.
A questão trazida em apelação contende com a ilicitude e com o nexo de imputação do facto ao agente, ou seja, da infracção e da culpa.
A ilicitude é sempre algo contrário ao direito, neste sentido, Pessoa Jorge, in, Pressupostos, página 61.
Integram-na, por isso, todos e quaisquer actos ou omissões, que violem disposições da lei, do interesse e ordens públicas, ou normativos destinados a proteger interesses de terceiros.
Perante a facticidade demonstrada haverá que proceder à necessária análise sobre a responsabilidade civil.
No caso em apreço, provou-se que no dia 15.06.2018, cerca das 17h20m, na EN nº ..., na Rua ..., frente ao nº ..., na localidade de .../... ocorreu um embate, no qual foram intervenientes o motociclo de matrícula ..-RJ-.., propriedade e tripulada pelo Autor, e o veículo ligeiro de mercadorias ..-..-QM, propriedade da sociedade comercial B..., Lda. e conduzida por BB.
Provou-se, ainda, que a referida condutora conduzia por conta da sua entidade patronal, a referida sociedade B..., Lda., executando tarefas por esta determinadas.
Mais se provou, que no indicado dia, hora e local, o Autor conduzia o RJ pela EN nº ..., no sentido norte - sul, na metade da direita da via, a uma velocidade não concretamente apurada.
Provou-se, ainda, que a condutora do veículo QM pretendia entrar na referida EN nº ... pela solução de continuidade que permite o acesso e saída da baía de estacionamento que, no local, ladeia a EN nº ... do lado direito - atento o sentido de marcha do Autor - e dela separada por separador físico arborizado.
Mais se provou, que no local, atento o sentido de marcha do Autor, a via desenvolve-se em sentido ascendente e em recta, com extensão superior a 200 metros e que à frente do Autor, e a uma distância superior a 50 metros, não circulava qualquer outro veículo, pelo que a respectiva faixa de rodagem encontrava-se livre e desimpedida, com total visibilidade, nomeadamente para quem, como o QM, pretendesse entrar na referida EN nº ... pela solução de continuidade que permite o acesso e saída da baía de estacionamento.
Provou-se, ainda, que no local, a faixa de rodagem da EN nº ..., por onde circulava o Autor, possui, ao centro e devidamente demarcada, uma faixa destinada ao trânsito que pretenda mudar de direcção para a esquerda ou aceder aos estabelecimentos comerciais que no local estão implantados do lado esquerdo da via, atento o sentido de marcha do Autor, faixa essa devidamente assinalada, no pavimento, com a sinalização STOP.
Mais se provou, que quando o Autor se encontrava a uma distância não concretamente apurada da atrás referida solução de continuidade que dá acesso da baía de estacionamento à EN nº ..., mas já próximo, foi subitamente surpreendido pela intromissão do QM, o qual, pretendendo passar a circular no sentido sul-norte da EN nº ..., saiu da baía de estacionamento e, tendo em conta o sentido de marcha do Autor, invadiu obliquamente a faixa de rodagem destinada ao trânsito no sentido norte-sul, e parcialmente, a faixa central, já após a zona de sinalização STOP existente no pavimento.
Provou-se, ainda, que a condutora do QM não percecionou a presença do motociclo do Autor a circular na via.
Mais se provou, que o Autor, no momento em que se deu o sinistro ocupava a faixa de rodagem central, exclusivamente destinada à mudança de direcção à esquerda, quando, na realidade, pretendia seguir em frente no sentido norte – sul.
Provou-se, ainda, que a condutora do QM, após o embate, prosseguiu a sua marcha durante cerca de um metro e que ambos os veículos ficaram imobilizados na faixa central, cerca de 4,30m após a sinalização STOP existente no pavimento, no sentido norte – sul.
Ora, dispõe o artigo 503.º, nº 3 do Código Civil que aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte.
No caso vertente, a condutora do QM, no momento do acidente, conduzia o veículo por conta e ordem da sua entidade patronal, presumindo-se, assim, a sua culpa.
Vejamos, então, se a logrou afastar.
Estabelece o artigo 3.º, n.º 2 do Código da Estrada que as pessoas devem abster-se de atos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança, a visibilidade ou a comodidade dos demais utilizadores das vias.
Dispõe o artigo 31.º, n.º 1, alínea a) do referido diploma que deve sempre ceder a passagem o condutor que saia de um parque de estacionamento, de uma zona de abastecimento de combustível ou de qualquer prédio ou caminho particular.
Preceitua o n.º 1, do artigo 35º que “O condutor só pode efetuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito.”
No caso vertente, sobre a condutora do QM, que pretendia entrar na EN nº ... provinda de uma zona de estacionamento, recaía um dever de cedência de passagem sobre todos os veículos que circulavam na via.
Para além disso, a referida condutora pretendia executar uma manobra de mudança de direcção para a sua esquerda, o que envolvia ter que atravessar a via por onde se desenrolava o trânsito no sentido norte-sul, tendo em conta o sentido de marcha do Autor.
Ora, resultou provado que executou a manobra de forma súbita e que, tão pouco, se apercebeu da presença do veículo que o Autor tripulava, apesar do local apresentar excelentes condições de visibilidade.
Consideramos, ainda, que no caso vertente, não logrou a Ré/Apelante demonstrar o contributo do Autor para o acidente ou, até, que caso aquele seguisse pela via mais à direita, na faixa destinada ao trânsito que pretendia seguir em frente, este teria sido evitado. Ademais, da prova produzida e contrariamente àquilo que a ré pretendeu demonstrar, nenhuma evidência resultou que o autor circulasse a uma velocidade superior ao limite legal estabelecido naquela via de trânsito ou com velocidade excessiva.
Assim, não se pode concluir que há concurso de culpas entre os dois condutores na ocorrência do acidente.
Ou seja, não resulta da factualidade provada qualquer facto imputável ao Autor do qual se possa concluir que o acidente pudesse ter sido por si evitado.
Assim, da descrita conduta estradal e em sintonia com a análise do Tribunal a quo, pode concluir-se que existindo culpa presumida do condutor do veículo seguro, e porque, à data do acidente, se encontrava transferida para a Ré a responsabilidade civil por danos causados a terceiros resultantes da circulação do referido veículo, mediante contrato de seguro, fica a mesma constituída na obrigação de proceder à reparação dos danos causados ao Autor.
Afigura-se-nos, por isso, ser de imputar a responsabilidade pela ocorrência do embate ao condutor do veículo segurado na Recorrente Companhia de Seguros A..., S.A.
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4.3 Da valorização dos danos
No caso vertente, a Apelante/ré considera desajustado o montante fixado pelo Tribunal a quo para indemnização do dano biológico (€230.000,00) e do dano não patrimonial (€60.000,00), pugnando que a quantificação do dano biológico se cifre em € 129.503,21, e que a indemnização por danos não patrimoniais seja reduzida ao valor de € 40.000,00.
Pretende, ainda, a alteração dos demais valores com base na alegada repartição de culpas.
Impõe-se, assim, apurar e valorizar os referidos danos.
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4.3.1 Do quantum indemnizatório do dano biológico
A título indemnizatório pelo dano biológico, entende a ré Apelante que tal montante deve ser fixado em € 129.503,21, ao invés da quantia fixada pelo Tribunal a quo.
Cumpre apreciar e decidir.
Conforme se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de 4.10.2005, proferido no Processo nº 05A2167 e publicado in www.dgsi.pt., tem vindo a integrar o conceito de dano biológico a existência de lesões geradoras de incapacidades permanentes, com ou sem repercussão na esfera patrimonial do lesado, também denominadas défice funcional.
Este conceito aparece legalmente consagrado no sentido de ofensa à integridade física e psíquica, independentemente de dela resultar perda de capacidade de ganho, no artigo 3.º, alínea b) da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, sendo a mesma realidade designada também por dano corporal, por contraposição a dano material, como acontece no artigo 51.º, n.º 1 do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.
O chamado dano biológico ou corporal, adquiriu autonomia, estando na sua origem o direito à saúde, concretizado numa situação de bem-estar físico e psíquico, enquanto direito fundamental de cada indivíduo, constitucionalmente consagrado nos artigos 24.º, n.º 1 e 25.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa que estabelecem o carácter inviolável da vida e integridade física e moral da pessoa humana e no artigo 70.º do Código Civil que protege a ofensa ilícita à personalidade física ou moral de cada um.
Este “direito à saúde” quando afectado, enquanto direito fundamental de cada um, dá lugar à obrigação de indemnizar que não pode ser limitada aos casos em que as lesões se repercutem sobre a capacidade de ganho do lesado, no que tem sido a posição unânime defendida pela nossa jurisprudência.
Verifica-se que a incapacidade que integra o chamado dano biológico, umas vezes interfere com a actividade profissional do lesado, com incidência na sua remuneração ou capacidade de ganho e outras vezes não. Nesta medida, o dano biológico pode vir a determinar a indemnização por danos de natureza patrimonial e/ou não patrimonial, conforme os casos.
Isto significa, apenas, que da mesma lesão que constitui um défice funcional, podem resultar em simultâneo danos patrimoniais e não patrimoniais ou morais. O dano patrimonial é aquele que se repercute no património do lesado, seja a título de danos emergentes, seja de lucros cessantes. O dano não patrimonial reporta-se à ofensa de bens que não se integram no património da vítima, como é o caso da vida, saúde, liberdade ou beleza, com uma impossibilidade de reposição do lesado na situação anterior, sendo, por isso, apenas susceptível de uma compensação.
Diverge a jurisprudência quanto à classificação, ou melhor, à natureza do chamado dano biológico (o decorrente da incapacidade permanente sem reflexo profissional): se um dano meramente patrimonial, se um dano moral, se um tertium genus. E procuram os vários arestos, cada um à sua maneira, justificar o quantum indemnizatório arbitrado para estes danos geradores de incapacidade permanente que se não repercutam directamente na capacidade de ganho do lesado (na medida em que não implicam uma diminuição da retribuição, embora implicando esforços acrescidos, ou, então, porque o lesado está fora do mercado de trabalho, como ocorre com desempregados, crianças, reformados).
Assim, o dano biológico tem suscitado especiais perplexidades na relação com a dicotomia tradicional da avaliação de danos patrimoniais versus danos não patrimoniais, por poder incidir numa, noutra ou em ambas as vertentes.
Este dano vem sendo entendido como dano-evento, reportado a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com tradução médico-legal, ou como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, independentemente de dele decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais - cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20.05.2010, Processo n.º 103/2002.L1.S1; e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26.01.2012, Processo n.º 220/2001-7.S1, in www.dgsi.pt..
É um prejuízo que se repercute nas potencialidades e qualidade de vida do lesado, susceptível de afectar o seu dia-a-dia nas vertentes laborais, sociais, sentimentais, sexuais, recreativas. Determina perda das faculdades físicas e/ou intelectuais em termos de futuro, perda essa eventualmente agravável em função da idade do lesado. Poderá exigir do lesado, esforços acrescidos, conduzindo-o a uma posição de inferioridade no mercado de trabalho - cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02.12.2013, in http://www.dgsi.pt.. Ou, por outras palavras, é um dano que se traduz na diminuição somático-psíquica do indivíduo, com natural repercussão na vida de quem o sofre.
Ora, o dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como pode ser compensado a título de dano moral; tanto pode ter consequências patrimoniais como não patrimoniais.
Ou seja, depende da situação concreta sob análise, a qual terá de ser apreciada casuisticamente, verificando-se se a lesão originará, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida, e por si só, uma perda da capacidade de ganho ou se se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, sem prejuízo do natural agravamento inerente ao decorrer da idade. Tem a natureza de perda ‘in natura’ que o lesado sofreu em consequência de certo facto nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar - cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/10/2009, in http://www.dgsi.pt.
Como quer que seja visto ou classificado este dano, o certo é que o mesmo é sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou do dano não patrimonial. É indemnizável em si mesmo, independentemente de se verificarem consequências para o lesado em termos de diminuição de proventos.
No caso vertente, com interesse para a apreciação desta questão ficou provado que como causa direta e necessária do acidente, o Autor apresenta, actualmente, ao nível do membro superior direito, atrofia marcada do músculo deltoide, mais visível na mobilização do ombro contra resistência.
Provou-se, ainda, que apresenta ao nível do membro superior direito, limitação marcada da mobilidade permitindo levar a mão à face posterior do pescoço, vértex, ombro contralateral e linha média lombar, mais evidente nos movimentos de abdução, flexão e rotação (externa e interna) do ombro, na flexão e extensão do punho e na adução do 5° dedo, apresenta discreta diminuição da força muscular do membro de modo global (grau 3/5), tem incapacidade de imponência pulpo-pulpar entre os 1° e 5° dedos da mão direita e alterações de sensibilidade na mão.
Apresenta, igualmente, diminuição da força do membro superior direito e reflexos diminuídos em comparação com contralateral, bem como apresenta alterações de sensibilidade (hipossensibilidade) na face medial do membro superior direito, de modo mais expressivo distalmente ao cotovelo e nos 1.º e 5.º dedos da mão direita.
Provou-se, ainda, que decorrente destas sequelas, resultou para o Autor incapacidade em dormir ao decúbito lateral direito, por dores e adormecimento do membro superior direito e ligeira dificuldade em executar tarefas que exijam motricidade fina com a mão direita.
Mais se provou, que apresenta dificuldade na manipulação de carga com o membro superior direito para objectos com mais de 5kg, principalmente, para níveis mais próximos do ombro (mais elevados).
Ao nível do membro superior esquerdo, apresenta discreta limitação da mobilidade do membro, mais evidente no ombro e punho, mas a força muscular do membro está globalmente preservada (grau 5 em 5).
Provou-se, ainda, que o Autor, logo após o acidente, apercebeu-se de alterações visuais, quando, ainda em ambiente de Cuidados Intensivos olhou para o ecrã duma TV e notou que não conseguia ver com clareza e necessitava de mexer o pescoço para encontrar a imagem completa.
Mais se provou, que o Autor teve e tem percepção de “pontos mortos” na sua visão desde que acordou do coma e no decurso dos inúmeros exames de diagnóstico a que foi submetido, na especialidade de oftalmologia, sendo que foi realizada uma perimetria estática computorizada o qual demonstrou a presença de escotoma central bilateral, mais marcado à direita, e hemianopsia esquerda bilateral.
De resto, pelos dados imagiológicos pós-traumáticos tornou-se plausível correlacionar os sintomas (escotomas positivos) e os defeitos campimétricos com as lesões neurológicas identificadas.
Provou-se, ainda, que como sequela traumática apresenta escotoma bilateral, de natureza irreversível condicionando, na fixação visual, o constante movimento de procura.
Esta sequela - escotoma bilateral -, que implicou a alteração da acuidade visual dos dois olhos, faz com que o Autor não consiga ler e tenha dificuldade para escrever.
Acresce ainda, que esta sequela de carácter irreversível implicou que o mesmo deixasse de poder conduzir veículos pesados, sendo certo que tal dificuldade se reflecte, negativamente, mesmo na condução de veículos ligeiros.
Mais se provou que o Autor não consegue saltar por não ter noção da profundidade e que o défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica é fixável em 40,52 pontos.
De resto, as sequelas apresentadas pelo Autor, não o afectando em termos de autonomia e independência, são incompatíveis com o exercício da actividade profissional habitual de motorista de pesados, mas são compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico profissional.
Provou-se, ainda, que por essa razão, teve de abandonar a condução de camião e passou a efectuar trabalho como empregado de armazém, pese embora as suas dificuldades em pegar em objectos pesados.
Assim, no caso vertente, o dano biológico sofrido pelo autor/recorrente, corporizado num défice funcional permanente de 40,52 pontos, com implicação ao nível físico e psíquico, determinará sempre um esforço acrescido por parte do mesmo, não só para o exercício da sua actividade profissional, bem como para qualquer outra actividade doméstica ou de lazer, implicando, diríamos nós, um enorme esforço pessoal suplementar para “viver”.
Assim, há que ter em conta o anexo IV da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, alterada pela Portaria n.º 679/2008, de 25 de Junho, que dispõe sobre a compensação devida pela violação do direito à integridade física e psíquica, designado por dano biológico, com base em pontos e na idade do lesado à data do acidente.
Tem sido jurisprudência uniforme, quer nos Tribunais da Relação, quer no Supremo Tribunal de Justiça, como já se referiu, o entendimento de que a diminuição da capacidade de ganho não é requisito necessário da verificação do dano biológico susceptível de ser indemnizado. A mera afectação da pessoa do ponto de vista funcional, isto é, sem traduzir perda de rendimento de trabalho releva para efeitos indemnizatórios, como dano biológico, porque determinante de consequências negativas ao nível da actividade geral do lesado.
Assim sendo, nesta perspectiva, entende-se que a compensação a atribuir, pelo dano biológico, quando não interfere com a capacidade de ganho do lesado, não tem de ter uma relação directa com os seus rendimentos ou com a sua actividade profissional, antes se posicionando como um dano permanente e interferindo em todos os aspectos da vida do lesado, seja no lazer, nas actividades domésticas diárias e também podendo ser o caso, no exercício da actividade profissional.
Nesta medida, tendo um âmbito alargado, consideramos que a sua referência para efeitos de cálculo da indemnização não tem de ser o salário auferido pelo lesado, nem tão pouco o salário mínimo nacional.
Considera-se, por isso, que estando em causa o mesmo tipo de dano, o ponto de partida para o cálculo da indemnização pelo dano biológico deve ser o mesmo para todos, em obediência ao princípio da igualdade.
A jurisprudência autonomizou, antes da Portaria n.º 377/2008, de 26/05, o dano biológico e maioritariamente qualificou-o como de cariz patrimonial - cfr. Acórdãos da Relação do Porto de 04.03.08, proc. 0724890 e de 04.04.06, proc.062059 e os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, neste citados, designadamente, de 27.04.2004, no proc. 04A1182 e de 06.07 2004, no proc. n.º 04B2084. Esta Portaria adoptou, como salienta o seu preâmbulo, o “princípio de que só há lugar à indemnização por dano patrimonial futuro quando a situação incapacitante do lesado o impede de prosseguir a sua actividade profissional habitual ou qualquer outra.”.
Porém, por outro lado, refere-se na Portaria que “ainda que não tenha direito à indemnização por dano patrimonial futuro, em situação de incapacidade permanente parcial o lesado terá direito à indemnização pelo seu dano biológico, entendido este como ofensa à integridade física e psíquica.”.
Nessa orientação, o artigo 4º da referida Portaria integra entre os denominados danos morais complementares o dano biológico.
No entanto, é entendimento pacífico que as normas da referida Portaria n.º 377/2008, de 26/05, alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, não são vinculativas para a fixação, pelos Tribunais, de indemnizações por danos decorrentes de responsabilidade civil em acidentes de viação, devendo «os valores propostos ( ... ) ser entendidos como o são os resultantes das tabelas financeiras disponíveis para a quantificação da indemnização por danos futuros, ou seja, como meios auxiliares de determinação do valor mais adequado, como padrões, referências, factores pré-ordenados, fórmulas em forma abstracta e mecânica, meros instrumentos de trabalho, critérios de orientação, mas não decisivos, supondo sempre o confronto com as circunstâncias do caso concreto e, tal como acontece com qualquer outro método que seja a expressão de um critério abstracto, supondo igualmente a intervenção temperadora da equidade, conducente à razoabilidade já não da proposta, mas da solução, como forma de superar a relatividade dos demais critérios. Os valores indicados, sendo necessariamente objecto de discussão acerca da sua razoabilidade entre o lesado e a entidade que deverá pagar, servirão apenas como uma referência, um valor tendencial a ter em conta, mas não decisivo», assumindo um carácter instrumental - cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.02.2009, Raul Borges, Processo n.º 3459/08, in www.dgsi.pt.
Portanto, na determinação dos montantes indemnizatórios aos lesados em acidentes de viação - como ocorre no presente caso -, os tribunais não estão obrigados a aplicar as tabelas contidas na citada Portaria, antes ali se estabelecem padrões mínimos, a cumprir pelas seguradoras, na apresentação aos lesados de propostas sérias e razoáveis de regularização dos sinistros, indemnizando o dano corporal - cf. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.01.2014, proc. 1269/06.2TBBCL.G1.SI.
Seguindo a posição maioritária da jurisprudência, dado que o dano biológico é distinto do dano não patrimonial (artigo 496.º do Código Civil) que se reconduz à dor, ao desgosto, ao sofrimento de uma pessoa que se sente diminuída fisicamente para toda a vida, entendemos ser de autonomizar, igualmente, como dano patrimonial futuro esse maior esforço que a Autora/Apelada terá de efectuar ao longo da sua vida activa.
Por sua vez, não sendo possível determinar o valor exacto do dano ora em causa, tal avaliação terá de ser efectuada recorrendo à equidade, nos termos do artigo 566º, n.º 3 do Código Civil.
Isto é, a equidade terá de ser sempre um elemento essencial no cálculo do dano aqui sob apreciação, independentemente de se considerar o dano biológico numa vertente meramente patrimonial, mais ou menos patrimonial ou como um tertium genus.
É certo que o nosso legislador não definiu o conceito de equidade, deixando a sua densificação para os aplicadores do Direito.
Nas palavras sábias de Pires de Lima e Antunes Varela, in Noções Fundamentais de Direito Civil, 6.ª edição, 104, nota 2, a equidade é a justiça do caso concreto. Julgar pela equidade é procurar a justiça do caso concreto "limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal" - cfr. Dário Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 1980, págs.103/104.
Ou, como diz Ana Prata, in Dicionário Jurídico, 4ª Edição, 2005-499 "julgar segundo a equidade significa dar a um conflito a solução que parece mais justa, atendendo apenas às características da situação e sem recurso à lei eventualmente aplicável. A equidade tem, consequentemente, conteúdo indeterminado, variável de acordo com as concepções da justiça dominantes em cada sociedade e em cada momento histórico".
Do que se trata, portanto, é de encontrar a solução mais equilibrada no contexto da prova disponível.
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem defendido que o recurso à equidade “não afasta a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso. O não afastamento, pela sindicância do juízo equitativo, da necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade, ilustra a tendencial uniformização de critérios na fixação judicial dos montantes indemnizatórios, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto – cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Maio de 2019 (Maria dos Prazeres Beleza), proc. n.º 2476/16.5T8BRG.G1.S2; de 8 de Junho de 2017 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), Proc. n.º 2104/05.4TBPVZ.P1.S2 e ainda acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Dezembro de 2017 proc. n.º 559/10.4TBVCT.G1.S1; de 28 de Janeiro de 2016, proc. n º 7793/09.8T2SNT.L1.S1; de 6 de Abril de 2015, proc. n.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, com remissão para os acórdãos de 28 de Outubro de 2010, proc. n.º 272/06.7TBMTR.P1.S1, e de 5 de Novembro de 2009, proc. n.º 381-2002.S1, estes in www.dgsi.pt.
Porém, como já acima ficou dito, o dano biológico não pode ser indemnizado por obediência a tabelas rígidas, de forma que a uma mesma pontuação em pessoas de idade aproximada tenha de corresponder necessariamente a fixação do mesmo valor ressarcitório. É que, se assim fosse, então, em vez de se dar abrigo ao princípio constitucional da igualdade que a adopção dos referidos critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados consubstancia, estaríamos precisamente a violar esse mesmo princípio, dado que o mesmo impõe que a situações desiguais se dê tratamento desigual.
Ou seja, tudo depende da situação concreta sob análise, a qual terá de ser apreciada casuisticamente, verificando-se se a lesão originará, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida, e por si só, uma perda da capacidade de ganho ou se se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, sem prejuízo do natural agravamento inerente ao decorrer da idade.
Assim, seguindo um critério de equidade e de ponderação das regras de experiência, devem ser atendidas, globalmente, mas de forma casuística, todas as circunstâncias envolventes, designadamente as actividades exercidas pelo lesado, os rendimentos patrimoniais que lhe proporcionam, assim como a idade e tempo de vida activa.
Como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6-12-17, Proc. 1509/13, em www.dgsi.pt (Tomé Gomes) “o dano biológico abrange um espetro alargado de prejuízos incidentes na esfera patrimonial do lesado, incluindo a frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer atividades ou tarefas de cariz económico, mesmo fora da atividade profissional habitual, bem como os custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas atividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expetáveis”.
Escreveu-se na motivação deste aresto, designadamente, que “a jurisprudência, com particular destaque para a do STJ, tem vindo a reconhecer o chamado dano biológico como dano patrimonial, na vertente de lucros cessantes, na medida em que respeita a incapacidade funcional, ainda que esta não impeça o lesado de trabalhar e que dela não resulte perda de vencimento, uma vez que a força de trabalho humano sempre é fonte de rendimentos, sendo que tal incapacidade obriga a um maior esforço para manter o nível de rendimento anteriormente auferido. E que, em sede de rendimentos frustrados, a indemnização deverá ser arbitrada equitativamente, de modo a corresponder a um capital produtor do rendimento que o lesado não irá auferir, que se extinga no fim da sua vida provável e que é suscetível de garantir, durante essa vida, o rendimento frustrado”.
Esta orientação colhe-se, designadamente, do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-10-2020, relatado pela Relatora Maria da Graça Trigo, em cujo sumário se refere, nomeadamente, que “de acordo com a jurisprudência do STJ, a atribuição de indemnização por perda de capacidade geral de ganho, segundo um juízo equitativo, tem variado, essencialmente, em função dos seguintes factores: a idade do lesado; o seu grau de incapacidade geral permanente; as suas potencialidades de aumento de ganho - antes da lesão -, tanto na profissão habitual, como em profissão ou atividade económica alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações e competências. A que acresce um outro factor: a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da atividade profissional habitual do lesado, assim como de actividades profissionais ou económicas alternativas (tendo em conta as qualificações e competências do lesado)”.
Para além disso, neste e noutros casos, como é jurisprudencialmente pacífico, não poderão deixar de ser considerados as sequelas das lesões sofridas na realização de todas as tarefas, pois também aí se revela uma maior dificuldade na sua execução que encontra a sua causa principal no acidente de viação.
A que acresce um outro factor, igualmente a ponderar, como se observa no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.11.2021 (Abrantes Geraldes): o grau de culpa do condutor do veículo a que as normas que regulam a responsabilidade civil e a fixação de indemnizações atribuem relevo.
Em sintonia com o referido supra, escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.01.2022: «Na linha do tratamento da questão da indemnização por perda de capacidade geral de trabalho realizado pelos acórdãos do Supremo Tribunal de 20/10/2011 (proc. n.º 428/07.5TBFAF.G1.S1), de 10/10/2012 (proc. n.º 632/2001.G1.S1), de 07/05/2014 (proc. n.º 436/11.1TBRGR.L1.S1), de 19/02/2015 (proc. n.º 99/12.7TCGMR.G1.S1), de 04/06/2015 (proc. nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1), de 07/04/2016 (proc. n.º 237/13.2TCGMR.G1.S1), de 14/12/2016 (proc. n.º 37/13.0TBMTR.G1.S1), de 16/03/2017 (proc. n.º 294/07.0TBPCV.C1.S1), 25/05/2017 (proc. n.º 2028/12.9TBVCT.G1.S1), de 09/11/2017 (proc. n.º 2035/11.9TJVNF.G1.S1), de 01/03/2018 (proc. n.º 773/07.0TBALR.E1.S1) e de 29/10.2020 (proc. n.º 111/17.3T8MAC.G1.S1), todos consultáveis em www.dgsi.pt, entende-se que:
- De acordo com o regime do n.º 3 do art. 566.º do Código Civil, não podendo ser averiguado o valor exacto dos danos, a indemnização deve ser fixada equitativamente dentro dos limites que o tribunal tiver como provados (art. 566.º, n.º 3, do Código Civil);
- Não existindo, como sucede no caso dos autos, limites de danos que o tribunal tenha dado como provados, a equidade constitui o único critério legalmente previsto para a fixação da indemnização devida;
- A atribuição de indemnização por perda de capacidade geral de trabalho, segundo um juízo equitativo, tem variado, essencialmente, em função dos seguintes factores:
(i) A idade do lesado (a partir da qual se pode determinar a respectiva esperança média de vida à data do acidente);
(ii) O seu grau de incapacidade geral permanente;
(iii) As suas potencialidades de aumento de ganho, antes da lesão, tanto na profissão habitual, como em profissão ou actividades económicas alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações e competências;
(iv) A conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, assim como de actividades profissionais ou económicas alternativas (também aqui tendo em conta as suas qualificações e competências).
- Esclarece-se que se deve atender à esperança média de vida do lesado (à data do acidente) e não à sua previsível idade de reforma, na medida em que a afectação da capacidade geral tem repercussões negativas ao longo de toda a vida do lesado, tanto directas como indirectas (…)».
E, se é certo que a sindicância do juízo equitativo não afasta a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade (ut art. 13º da Constituição e art. 8º, nº 3, do Código Civil), é claro que um juízo comparativo incidente sobre montantes indemnizatório apenas poderá ser realizado em relação a decisões não apenas temporalmente próximas, mas também em que estejam em causa situações fácticas essencialmente similares.
Como tal, «Pretender indemnizar a perda da capacidade geral mediante recurso a comparações com outros casos decididos pelos tribunais, tendo designadamente em conta a idade do lesado à data do sinistro, o índice de incapacidade funcional e o valor indemnizatório fixado, mas esquecendo a referida exigência de ponderação das potencialidades de ganho e de aumento de ganho do lesado, anteriores à lesão, tanto na profissão habitual, como em profissão ou actividades económicas alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações e competências, assim como de avaliação da conexão entre as lesões psicofísicas sofridas e as exigências próprias de actividades profissionais ou económicas do lesado, compatíveis com as suas habilitações ou preparação técnica, constitui, a nosso ver, uma grave falha nos pressupostos do juízo equitativo porque leva a comparar entre si situações factuais não comparáveis..». - Conselheira Maria da Graça Trigo, in «O conceito de dano biológico como concretização jurisprudencial do princípio da reparação integral dos danos - Breve contributo», Revista Julgar, n.º 46, em curso de publicação, pág. 268.
Ademais, a jurisprudência tende a ser mais actualista e evolutiva. Assim, numa interpretação actualista da lei, para efeito da fixação da compensação com recurso à equidade, merecem ser destacados, nos parâmetros gerais a ter em conta, a progressiva melhoria da situação económica individual e global, a nossa inserção no espaço político, jurídico, social e económico mais alargado correspondente à União Europeia, o maior relevo que vem sendo dado aos direitos de natureza pessoal, tais como o direito à integridade física e à qualidade de vida, sem se esquecer que o contínuo aumento dos prémios de seguro se deve também repercutir no aumento das indemnizações.
Chegados aqui coloca-se a questão de saber qual é o valor que deve ser ponderado como ponto de partida para se fazer o cálculo da indemnização, sendo certo que a Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio faz consignar o montante da remuneração mínima mensal garantida como valor para efectuar o cálculo do dano biológico.
Ora, considerando que o legislador faz interferir o salário como elemento fundamental para o cálculo da indemnização, temos como mais correcto que se pondere, para o efeito, o valor do salário médio nacional e não a remuneração mínima mensal garantida, em conformidade com o já defendido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13 de Outubro de 2016, proferido no processo n.º 628/14.1TBOAZ.P1, desta Secção, onde o aqui relator foi 1º adjunto.
Com efeito, a retribuição mínima mensal garantida é apenas um ponto de partida, pelo que o salário médio do país será o mais adequado para encontrar o valor do dano biológico, devido ao facto deste valor médio reflectir de forma mais coincidente com a realidade a situação económica global do país onde as indemnizações aqui em causa também de inserem.
Ora, a informação estatística da base de dados Pordata, indica que o ordenado médio mensal dos trabalhadores/homem por conta de outrem no ano de 2021 (não há valores para os anos posteriores) foi de € 1.152,20 que não é muito diferente neste caso do valor auferido pela vítima.
Este valor é, então, um dos elementos a ponderar para o cálculo da indemnização do dano biológico, havendo também que considerar a idade do lesado que era de 14 anos à data do acidente e o grau de desvalorização ou incapacidade de que ficou a padecer que é de 40,52 pontos.
Ora, a Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, foi actualizada pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho que, no seu anexo IV, dispõe sobre os valores de compensação do dano biológico - compensação devida pela violação do direito à integridade física e psíquica. Na mesma é estabelecido um valor por cada ponto de desvalorização, ponderando a idade do lesado.
À luz da situação factual vertida nos autos, a tabela do anexo IV dá-nos, para uma desvalorização entre 41 a 45 pontos, os valores de € 1505,00 a € 1580,00 por ponto, quando a vítima tenha 35 anos de idade, pelo que havendo uma desvalorização equivalente a 41(40,52) pontos, a indemnização pelo dano biológico deverá situar-se entre os € 61.705,00 e os € 64.780,00.
Contudo, tais valores da portaria são encontrados com referência à remuneração mínima mensal garantida em 2007 que, na altura, era de € 403,00 (nota 1 ao anexo IV), que é menos de metade da remuneração média nacional.
Assim, se considerarmos a remuneração base média nacional de € 1.152,20 e observando uma regra matemática de três simples, chegamos a um valor compensatório entre € 176.418,10 e € 185.209,70 de acordo com a tabela em questão, para um dano biológico traduzido num défice funcional de 41,00 (40,52) pontos.
Todavia, como se referiu, tal constitui apenas mais um elemento a considerar pelo tribunal na determinação da indemnização equitativa a fixar, pelo que ponderando, ainda, as circunstâncias concretas do caso já evidenciadas e atrás exaustivamente enunciadas, nomeadamente a circunstância da remuneração tida em consideração se reportar ao ano de 2021, a subida da taxa de inflação, a atualização constante dos salários em função da referida taxa de inflação, a idade do lesado, o deficit funcional apurado e as repercussões graves das lesões no dia a dia do autor durante toda a vida, bem como o vencimento efetivo do autor à data do acidente, considera-se adequado fixar em € 250.000,00 a indemnização a atribuir ao autor a título de compensação pelo dano biológico. Com efeito, provou-se que à data do acidente, o Autor exercia a profissão principal de motorista de pesados de mercadorias por conta e ordem da sociedade C..., Lda., de que o seu pai é gerente, auferindo o vencimento mensal de € 1.450,00, acrescido do subsídio de alimentação de € 100,17, montante largamente superior à remuneração média mensal garantida tida em consideração.
No entanto, deve-se, ainda, subtrair o benefício respeitante ao recebimento antecipado de capital, de efectuar uma dedução correspondente à entrega imediata e integral do capital e a taxa de juro que o Autor capitalizará sobre os montantes a receber, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado à custa alheia. (cf. acórdão desta Relação do Porto de 15.06.2023, proferido no processo 13390/18.0T8PRT.P1).
Assim, sendo o referido montante recebido de uma só vez deverá ser ajustado para o montante de € 230.000,00.
Afigura-se-nos, por isso, que a indemnização fixada pelo Tribunal a quo a título de compensação pelo dano biológico se afigura adequada.
Improcede, por isso, neste segmento o recurso da ré, embora com fundamentação diversa.

4.3.2 Danos não patrimoniais
A titulo indemnizatório pelos danos não patrimoniais, entende a ré Apelante que tal montante deve ser fixado em € 40.000,00, ao contrário do valor de € 60.000,00 fixado pelo Tribunal a quo.
Cumpre apreciar e decidir.
Conforme já referimos a indemnização por danos não patrimoniais cuja gravidade merece a tutela do direito (artigo 496.º do Código Civil) deve, nos termos do n.º 4, primeira parte deste preceito, ser fixada segundo juízos de equidade, tendo em conta as demais circunstâncias do caso (artigo 494.º do Código Civil).
A indemnização destes danos não tem por objecto a reposição da situação em que o lesado estaria se não tivesse sofrido o dano (artigo 566º, nº 2, do Código Civil) mas apenas dar-lhe algo que possa constituir uma compensação do dano sofrido, contribuindo para aliviar ou reduzir o seu sofrimento e a sua perda. Por isso mesmo, a indemnização tem de ser fixada com base na mera equidade (artigo 496.º, n.º 4, do Código Civil), levando em linha de conta as circunstâncias do caso.
Com a cláusula de equidade, prevista em geral no artigo 4.º e permitida, no que ora interessa, nos artigos 496.º, n.º 3 e 566.º, n.º 3, do Código Civil, o tribunal resolverá o litígio ex aequo et bono e não ex jure stricto.
Ora, o juízo ou critério equitativo corresponde ao “prudente arbítrio do julgador”.
José Tavares, in Princípios Fundamentais do Direito Civil, vol. I, pág. 50, ensinava que a função característica da equidade era “tomar na devida consideração as circunstâncias especiais do caso concreto, e não aplicar a norma geral na sua rigidez”. “A equidade é, pois, a expressão da justiça num dado caso concreto”.
Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, volume I, pág. 54, ao decidir segundo a equidade, o julgador não está subordinado aos critérios normativos fixados na lei. E a fls. 501, referem: “Quando se faz apelo a critérios de equidade, pretende-se encontrar aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa: a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias) em oposição à justiça meramente formal. Por isso se entende que a equidade é sempre uma forma de justiça. A equidade é a resposta àquelas perguntas em que está em causa o que é justo ou o que é mais justo. E funciona em casos muito restritos, algumas vezes para colmatar as incertezas do material probatório; noutras, para corrigir as arestas de uma pura subsunção legal, quando encarada em abstracto. (…) A equidade é uma justiça de proporção, de adequação às circunstâncias, de equilíbrio”. Concluem: “Em síntese, a proporção, a adaptação às circunstâncias, a objectividade, a razoabilidade e a certeza são as linhas de força da equidade quando opera, com os ditames da lei, na análise e compreensão e solução do caso concreto”.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.10.1980, in BMJ n.º 300, pág. 386, referia-se que ao exercício da aequitas associa-se sempre a prática dum “prudente arbítrio” atentas as circunstâncias do caso.
Ou seja, equidade é a expressão da justiça no caso concreto, consistindo em atender ao condicionalismo de cada caso concreto, com vista a alcançar a solução equilibrada e justa, havendo que ter presentes as regras da boa prudência, do bom senso, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, bem como os padrões de indemnização adoptados pela jurisprudência.
Assim se compreende que a actividade do juiz no domínio do julgamento à luz da equidade, não obstante se veja enformada por uma importante componente subjectiva, não se reconduza ao puro arbítrio. Sendo que para o cálculo do respectivo montante, ponderará, entre outros factores, o grau de culpa do autor da lesão, as condições económicas deste e do lesado, as flutuações da moeda - cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., 1987, p. 501.
Não deve ser descurada a Doutrina e a Jurisprudência de onde vêm soprando sempre novos ventos de justiça sobre este campo indemnizatório, nomeadamente, o anunciado sentimento de que “a indemnização ou compensação deverá constituir um lenitivo para os danos suportados, não devendo, portanto, ser miserabilista” – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.07.2002, in CJ cit., pág. 134..
Neste particular, tem sido salientado que o dano não patrimonial não se reconduz a uma única figura, tendo vários componentes e assumindo variados modos de expressão, abrangendo:
(i) o chamado quantum (pretium) doloris, que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária, com tratamentos, intervenções cirúrgicas, internamentos, a analisar através da extensão e gravidade das lesões e da complexidade do seu tratamento clínico;
(ii) o “dano estético” (pretium pulchritudinis), que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima;
(iii) o “prejuízo de distracção ou passatempo”, caracterizado pela privação das satisfações e prazeres da vida, vg., com renúncia a actividades extra-profissionais, desportivas ou artísticas;
(iv) o “prejuízo de afirmação social”, dano indiferenciado, que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar, profissional, sexual, afectiva, recreativa, cultural, cívica), integrando este prejuízo a quebra na “alegria de viver”;
(v) o prejuízo da “saúde geral e da longevidade”, em que avultam o dano da dor e o défice de bem estar, e que valoriza as lesões muito graves, com funestas incidências na duração normal da vida;
(vi) os danos irreversíveis na saúde e bem estar da vítima e o corte na expectativa de vida;
(vii) o prejuízo juvenil “pretium juventutis”, que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a chamada primavera da vida, privando a criança das alegrias próprias da sua idade;
(viii) o “prejuízo sexual”, consistente nas mutilações, impotência, resultantes de traumatismo nos órgãos sexuais;
(ix) o “prejuízo da auto-suficiência”, caracterizado pela necessidade de assistência duma terceira pessoa para os actos correntes da vida diária, decorrente da impossibilidade, de se vestir, de se alimentar - cf., Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.11.2009, proferido no processo 397/03.0GEBNV.S1, www.dgsi.pt.
Presente neste domínio deverá estar a consideração do melindre que a “quantificação”/valoração de tais danos sempre acarreta, procurando traduzir-se em quantia certa de coisa fungível (a mais fungível das coisas), o que por natureza é insusceptível de mensuração e de redução a uma expressão numérica, não tendo cabimento uma reparação por equivalente, encerrando óbvias dificuldades a tradução em números do que por definição não tem tradução matemática, procurando ter-se em conta todo o cortejo de dores e sofrimentos padecidos, por vezes, o corte abrupto dos sonhos e das ambições, dos projectos de vida, bem como o reflexo, o rebate da perda de autonomia de vida em diversos aspectos, com todas as consequentes limitações, sob múltiplas formas, da vivência do demandante e os efeitos imediatos e mediatos de todas as sequelas das lesões sofridas.
Neste campo, em que não entram considerações do “ter” ou “possuir”, “perder”, ou “ganhar”, mas do “ser”, “sentir”, ou “sonhar”, não rege a teoria da diferença, nem faz sentido o apelo ao conceito de dano de cálculo, pois que a indemnização/compensação do dano não patrimonial não se propõe remover o dano real, nem há lugar a reposição por equivalente.
Efectivamente, em bom rigor, a única condição de compensabilidade dos danos não patrimoniais é a sua gravidade, o que lhes confere um carácter algo indeterminado e de difícil quantificação. Seria, por isso, em vão que se tentaria apurar o respectivo quantum compensatório com base em factores aparentemente objectivos, devendo reconhecer-se ao julgador margem para valorar segundo critérios subjectivos (na perspectiva do lesado), isto é, “à luz de factores atinentes à especial sensibilidade do lesado [como] a doença, a idade, a maior vulnerabilidade ou fragilidade emocionais” - cfr. Maria Manuel Veloso, “Danos não patrimoniais”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, volume III - Direito das Obrigações, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pág. 506.
A equidade é aqui, em rigor, o único recurso do julgador, ainda que não descurando as circunstâncias que a lei manda considerar (cfr. artigo 496.º, n.º 4, do Código Civil).
Dito isto e voltando ao caso concreto sub judice, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, não deixando de trazer à colação e analisar várias decisões, mais ou menos semelhantes, quer das Relações, quer do Supremo Tribunal de Justiça, no fito de procurar que a indemnização atribuída estivesse em sintonia com o cumprimento de um regime jurisprudencial de segurança e igualdade na realização da justiça equitativa (artigo 496º, nºs 1 e 4 do Código Civil).
No caso em apreço, atenta a factualidade provada entre os pontos 18 a 93 da matéria de facto dada como provada atrás enunciada é manifesto que o valor defendido pela Ré/Recorrente, para compensar o Autor, aqui Recorrido, pelo dano não patrimonial sofrido é manifestamente escasso.
Com efeito, importa atender à idade do Autor à data do acidente (35 anos), ao período de défice funcional temporário total de 36 dias, ao período de défice temporário parcial de 776 dias, ao período de repercussão temporária na actividade profissional parcial de 812 dias, à natureza dos ferimentos e sua repercussão dos mesmos no dia-a-dia do Autor, ao período de internamento hospitalar, ao número de cirurgias a que foi submetido, às consultas, e aos tratamentos a que foi submetido, à dependência de auxílio de terceira pessoa, durante vários meses, para a execução das tarefas normais da sua vida e às actividades de lazer das quais ficou privado durante meses.
Importa, ainda, atentar na circunstância de ter sido atribuído ao Autor, o grau 5 de quantum doloris, o grau de 3 de dano estético e o grau 2 de repercussão nas actividades desportivas e de lazer.
Destarte, estamos perante um homem jovem, ainda em pleno vigor da vida que se viu reduzido a um incapacitado permanente e impedido de continuar a exercer a sua profissão habitual, que foi sujeito a penosa e prolongada clausura hospitalar, sujeito a sucessivas intervenções cirúrgicas e dolorosos períodos de reabilitação, que continua a ver-se condicionado na sua vida diária, pelas dores, pelas dificuldades na manipulação de carga e outras que se demonstraram, mas sobretudo pelas graves sequelas sofridas ao nível da visão. Além disso, sofreu dores, no momento do acidente e no decurso do seu tratamento, que foi muito prolongado até atingir a consolidação, sendo que as dores o acompanharão até ao fim dos seus dias, de tal forma que o quantum doloris foi fixado em 5 pontos numa escala de sete graus de gravidade crescente, o que se revela muito elevado.
O dano estético permanente foi fixado no grau 3, numa escala de sete graus de gravidade crescente, sentindo o Autor natural desgosto pelas alterações físicas sofridas.
De restou, sofreu pesado desgosto devido à circunstância de ter que deixar a sua profissão habitual de motorista de pesados, que adorava.
Além disso, era praticante de boxe, corrida e ginásio, actividades que deixou de praticar no período da sua convalescença, sendo que, actualmente, apenas recuperou o hábito da corrida.
Essa limitação foi grave, tendo sido fixado no grau 2, numa escala de 7 graus de gravidade crescente, a Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer.
De resto, as limitações de que o Autor ficou a padecer transformaram-lhe completamente a vida, já que aos 35 anos, no auge da idade de uma vida muito activa, passou a ser portador de sequelas de que não recuperará, sobretudo ao nível da visão, e cujo impacto na sua vida diária é e será impactante.
Em face ao exposto parece-nos adequado o valor de € 60.000,00 fixado pelo Tribunal a quo.
Conforme já referimos, a indemnização, a título de danos não patrimoniais, deverá, como sabemos, compensar o lesado pelos danos físicos e morais sofridos e a sofrer.
Também aqui inexistem critérios “exactos”, fixados por lei, determinando esta que, à míngua desses critérios, a indemnização seja arbitrada com base na equidade.
Assim, aplicando as regras da equidade, deve in casu, atender-se às consequências físicas e morais que para o recorrido resultaram do acidente, atrás reproduzidas.
Ora, da factualidade dada como provada vê-se que foram muito graves as consequências do acidente no estado físico e moral do autor/recorrido.
As incapacidades, as dores e as consequências que ficam dos acidentes de viação constituem, em geral, para os lesados o fim de uma vida saudável e são ofensas ilícitas à personalidade física e moral das pessoas, direito fundamental consagrado constitucionalmente, pelo que o quantum indemnizatório deve constituir uma contrapartida digna e justa.
Todavia, uma vez definida autonomamente a compensação devida pelo dano biológico causado ao lesado, o montante indemnizatório devido pelos danos não patrimoniais ou morais complementares não pode ter em conta os factores que estiveram na origem da definição da compensação decorrente daquele dano biológico.
Todavia, como “lenitivo com a virtualidade de o fazer esquecer ou, pelo menos, mitigar o havido sofrimento moral”, a indemnização por danos não patrimoniais tem de assumir um papel significativo, não se compadecendo com a atribuição de valores meramente simbólicos, sendo que numa interpretação actualista da lei, para efeito da fixação da compensação com recurso à equidade, merecem ser destacados, nos parâmetros gerais a ter em conta, a progressiva melhoria da situação económica individual e global, a nossa inserção no espaço político, jurídico, social e económico mais alargado correspondente à União Europeia, o maior relevo que vem sendo dado aos direitos de natureza pessoal, tais como o direito à integridade física e à qualidade de vida, sem se esquecer que o contínuo aumento dos prémios de seguro se deve também repercutir no aumento das indemnizações.
Entendemos, assim, como adequado o montante de 60.000,00€ fixado pelo Tribunal a quo à luz dos critérios da jurisprudência dominante.
Impõe-se, por isso, também neste segmento a improcedência do recurso interposto pela ré.
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Por sua vez, não se tendo concluído pela repartição da culpa entre os condutores dos veículos intervenientes no acidente impõe-se manter os montantes fixados quanto às demais parcelas da indemnização, sem a redução pretendida pela Apelante em 40%.

Impõe-se, por isso, a improcedência do recurso interposto pela Ré.
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Sumariando, em jeito de síntese conclusiva:
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5. Decisão
Nos termos supra expostos, acordamos neste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso interposto pela ré, confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas do recurso a cargo da apelante.
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Notifique.

Porto, 04 de Abril de 2024
Os Juízes Desembargadores
Paulo Dias da Silva
Isoleta de Almeida Costa
Judite Pires

(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinatura electrónica e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)