DECLARAÇÃO PARA MEMÓRIA FUTURA
ADVERTÊNCIA DO ARTº 134º DO CPP
SUSPEITO
Sumário

I–A única questão a decidir é a de saber se, realizada diligência de tomada de declarações para memória futura em processo no qual ainda não foi constituído Arguido, deverá a testemunha ser advertida da faculdade de não depor concedida pelo art.º 134.º do Código de Processo Penal, dada a sua relação pessoal com o suspeito já identificado.

II–Nos presente autos, o suspeito denunciado está claramente identificado pela queixosa e o seu paradeiro é conhecido.
III–O regime criado por este artigo visa, por um lado, a protecção da testemunha, desobrigando-a do dever de depor, seja para sua protecção, seja para defesa daquele que lhe é próximo.
IV–Porém, o regime fixado na lei também se destina à salvaguarda do Arguido. E o Arguido beneficia desta prerrogativa consagrada na lei e que é, manifestamente, uma excepção ao regime geral de depoimento de testemunhas, assistentes e partes civis, todos eles obrigados aos deveres colaboração com a Justiça e de verdade quando ouvidos em juízo.
V–O acto não será nulo nem inútil, ainda que não haja lugar à pretendida advertência pois, no momento em que é praticado, inexiste obrigação legal de advertência da testemunha e porque desse testemunho resultarão informações que o Ministério Público poderá usar na sua investigação e, quiçá, recolher outros meios de prova que confirmem o teor do relato feito, demonstrando-o mesmo sem necessidade de ao mesmo recorrer aquando do julgamento.
VI–O Ministério Público, ao recorrer à tomada de declarações para memória futura antes da constituição de Arguido deverá ponderar a utilidade de tal diligência, não a solicitando sem prévia avaliação e ponderada fundamentação.

(Sumário da responsabilidade do relator)

Texto Integral

Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


RELATÓRIO


No Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa, J1, da Comarca de Lisboa em sede de tomada de declarações para memória futura, foi proferido despacho, com o seguinte teor:

«“O entendimento do Ministério Público que antecede não merece a nossa concordância, por entendermos que destinatários da faculdade de recusar depoimento são apenas as pessoas elencadas no art. 134.º, n.º 1, als. a) e b) do Código de Processo Penal, ligadas por um vínculo familiar ou análogo a quem é arguido e não mero suspeito.
Apenas os familiares e afins do arguido ou as pessoas que com este conviverem em união de facto têm a faculdade de se recusarem a depor como testemunhas, não abrangendo tal direito de recusa os familiares, afins e pessoas que convivam em união de facto com um mero suspeito, assistente ou partes civis.
A possibilidade de recusa tem como parâmetros a posição relativa ocupada pelo arguido e aquele cuja recusa se configura, pelo que a circunstância de a testemunha ter um vínculo familiar ou análogo a quem é um mero suspeito não constitui fundamento legal de recusa a prestar depoimento – neste sentido, cfr. António Gama e Luís Lemos Triunfante, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, Livraria Almedina, 2021, 3.ª ed.ª, pp. 131, § 15.
O legislador pronunciou-se em termos precisos e adequados, não sendo por isso curial interpretar a norma em análise como abrangendo também os familiares dos suspeitos
neste sentido, cfr. M. Simas Santos e M. Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, I Volume, Editora Rei dos Livros, 1999, 2.ª edição, pps. 731 e 732.
Como se enfatiza no Código de Processo Penal, Comentários e notas práticas, Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Coimbra Editora, 2009, pp. 359, transcrevendo o Ac. RL, de 21/02/2007, proc. 9335/2006-3, “Porque constitui excepção ao princípio geral da obrigatoriedade de prestar depoimento ínsito no art. 131.º, n.º 1 do CPP, não pode o art. 134.º do mesmo Código ser alargado, extensiva ou analogicamente, a outras situações que não estejam ali expressamente previstas”.
A este propósito, pode ler-se no recente acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de 06/02/2024, relatado pelo Exm.º Sr. Desembargador Rui Coelho, proferido na sequência de um recurso intentado pelo Ministério Público de um despacho nosso em que se entendeu não dever ser dado cumprimento à advertência prevista no artigo 134.º, n.º 2 do Cód. Processo Penal, com o fundamento de não existir arguido constituído (processo com o NUIPC 541/23.1SXLSB), ser “manifesto que o regime fixado se destina à salvaguarda do Arguido. E só o arguido beneficia desta prerrogativa consagrada na lei e que é, manifestamente, uma excepção ao regime geral de depoimento de testemunhas, assistentes e partes civis, todos eles obrigados aos deveres de colaboração com a Justiça e de verdade quando ouvidos em juízo”.
Sendo o Ministério Público a autoridade judiciária competente no decurso da fase processual de inquérito (arts. 1.º, al. b), 53.º, n.º 2, al. b) e 263.º, n.º 1, Cód. Processo Penal), no deferimento do requerido, dou sem efeito a presente diligência de tomada de declarações para memória futura, e determino a devolução dos autos ao DIAP, para os efeitos tidos por convenientes.
Notifique, procedendo às respectivas desconvocações».

- do recurso -

Inconformado, recorreu o Ministério Público formulando as seguintes conclusões:
«1–No presente inquérito investigam-se factos susceptíveis de integrarem a prática do crime de violência doméstica, sendo vítima AA e suspeito o seu ex-companheiro BB com o qual aquela viveu em união de facto de Maio de 2022 a Dezembro de 2023.
2–Em cumprimento do disposto no artigo 33.º, n.º 1 da Lei n. º 112/2009, de 16 de Setembro e no artigo 271.º do Código de Processo Penal, o Ministério Público promoveu a tomada de declarações à vítima e fê-lo sem que, previamente, o suspeito tivesse sido constituído arguido (por razões de discricionariedade táctica na investigação),
3–Mais requereu o Ministério Público ao Mmo Juiz de Instrução Criminal a quo a nomeação de defensor ao suspeito e a sua notificação para estar presente no acto, nos termos do disposto 'no artigo 64.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal, com vista ao cabal exercício do direito ao contraditório.
4–O Mmo. Juiz de Instrução, a quo, deferiu a tomada de declarações para memória futura da vítima AA, promovida em momento anterior à constituição como arguido, do suspeito BB, e, na data agendada para a realização da diligência, determinou a nomeação de defensor o qual esteve presente.
5–Toda via, no início da tomada de declarações para memória futura da vítima AA, encontrando-se presente o Ministério Público e o defensor do suspeito BB, embora se verificassem as qualidades previstas no artigo 134.º, n.º 1 alínea b) do Código de Processo Penal, o Mmo. Juiz de Instrução não procedeu à advertência do n.º2 do mesmo dispositivo legal, com o fundamento da lei prever que tal obrigação apenas deve ser cumprida quando exista arguido e não denunciado/ suspeito, como acontece no caso concreto.
6–Salvo o devido respeito, que é muito, o Ministério Público não entende, desde logo, porque motivo o Mmo. Juiz de Instrução a quo, procedeu (e bem) à nomeação de defensor ao denunciado/suspeito, embora a lei preveja "arguido" e no que respeita à advertência nos termos do artigo 134.º, n.º 2 do Código de Processo Penal não o fez, com o argumento de não haver arguido constituído, mas apenas denunciado/ suspeito.
7–Por outro lado, a realização da diligência em causa, com a omissão voluntária da advertência nos termos do disposto no artigo 134.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, e com a advertência expressa, de obrigação de prestar declarações, sob pena de incorrer na prática do crime de falsidade de depoimento, tem a consequência das declarações prestadas nestes moldes não poderem ser utilizadas como prova (nulidade), mostrando-se inevitável pelo menos, que, para poderem ser valoradas, a vítima seja, novamente, chamada em sede de audiência de julgamento, a fim de colmatar tal falta, o que, com as declarações para memória futura promovidas, de todo, se pretendeu evitar.
8–Em nosso entendimento, o Mmo. Juiz de Instrução a quo ao não dar cumprimento à advertência prevista no artigo 134.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, com o fundamento de não existir arguido constituído, devia tê-lo feito, porquanto, as Declarações para Memória Futura trata-se de uma antecipação do julgamento e uma forma de evitar que a testemunha tenha de estar presente no julgamento, ou caso tenha de estar que, tal, ocorra excepcionalmente, o que a proceder nos moldes praticados pelo Mmo Juiz de Instrução Criminal a quo, será sempre indubitavelmente necessário, pois, o suspeito, será sempre arguido com a acusação (ainda que não tenha sido formalmente, cfr. art. 57.º do Código de Processo Penal )
10– A falta de advertência, nos termos do disposto no artigo 134.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, como se verifica na situação em crise, consubstancia uma nulidade processual respeitante a uma prova admissível relativamente à qual se verificou o incumprimento de formalidades legais, porquanto a obrigação de esclarecimento da vítima ex-companheira do suspeito (ainda não constituído arguido), quanto à possibilidade de se recusar a depor, constitui uma formalidade cuja inobservância redunda em nulidade, não podendo, em consequência, o depoimento obtido em violação dessa norma processual ser utilizado, sem ser sanada a formalidade.
12–Razão pela qual deve ser agendada nova data para a tomada de Declarações para Memória Futura à vítima AA e, nessa altura, ser aquela advertida nos termos e para os efeitos previstos no n. 0 1 do artigo 134.0 do Código de Processo Penal, por se tratar de ex-companheira do suspeito BB (ainda não constituído arguido, na data da diligencia mas que sempre será em audiência de julgamento) a fim de serem as declarações validamente valoradas sem necessidade de a vítima ser chamada a depor..»

Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, em separado e com efeito suspensivo.

Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido de assistir razão à tese recursória impondo-se a substituição decisão por outra que determine a comunicação judicial da faculdade à depoente em não depor.

Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

Cumpre decidir.

OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]

Desta forma, tendo presentes tais conclusões, a única questão a decidir é a de saber se, realizada diligência de tomada de declarações para memória futura em processo no qual ainda não foi constituído Arguido, deverá a testemunha ser advertida da faculdade de não depor concedida pelo art.º 134.º do Código de Processo Penal, dada a sua relação pessoal com o suspeito já identificado.

FUNDAMENTAÇÃO

Como nota prévia, tem este Tribunal da Relação de Lisboa conhecimento da pendência de recurso de uniformização de jurisprudência, junto do Supremo Tribunal de Justiça, relativamente à questão em apreço. Porém, e até que venha a ser decidido tal recurso, cumpre conhecer e decidir, nos presentes autos.

Conforme enunciado, no recurso que ora nos ocupa, não está posta em causa a admissibilidade da diligência de tomada de declarações para memória futura. O Juiz de Instrução deferiu a pretensão do Ministério Público, reconhecendo utilidade, pertinência e legalidade na fundamentação que lhe foi presente.

Porém, ao realizar tal diligência, e apesar de para tanto ter sido apresentado requerimento pelo Ministério Público, entendeu o Juiz de Instrução que não competia advertir a testemunha nos termos do art.º 134.º do Código de Processo Penal, porquanto tal apenas se exige quando esteja em causa a relação do depoente com um Arguido constituído no processo no qual são tomadas as declarações.

Nos presente autos, o suspeito denunciado está claramente identificado pela queixosa e o seu paradeiro é conhecido.

Nada impede a sua constituição de Arguido, nos termos dos art.º 57.º e 58.º do Código de Processo Penal. Porém, o Ministério Público, usando do princípio da oportunidade que lhe é concedido pela efectiva direcção do inquérito que lhe compete, escolheu, de acordo com a sua estratégia processual, retardar essa constituição de Arguido para momento posterior à tomada de declarações da vítima.

Não estando em causa a admissibilidade da diligência, repete-se, pois o Juiz de Instrução admitiu-a, será caso para dizer que foi o Ministério Público quem determinou a ordem dos actos processuais do inquérito. Tivesse constituído o denunciado como Arguido e não estaríamos a ter a presente discussão.

Porém, aqui chegados, a questão que cumpre responder é se o regime definido pelo art.º 134.º do Código de Processo Penal deverá ser aplicado aos casos em que inexiste Arguido constituído nos autos.

Reza tal preceito que:
«Artigo 134.º
Recusa de depoimento
1Podem recusar-se a depor como testemunhas:
a)-Os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os afins até ao 2.º grau, os adoptantes, os adoptados e o cônjuge do arguido;
b)-Quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação.
c)-O membro do órgão da pessoa coletiva ou da entidade equiparada que não é representante da mesma no processo em que ela seja arguida.
2–A entidade competente para receber o depoimento adverte, sob pena de nulidade, as pessoas referidas no número anterior da faculdade que lhes assiste de recusarem o depoimento.» (negrito nosso).

O regime criado por este artigo visa, por um lado, a protecção da testemunha, desobrigando-a do dever de depor, seja para sua protecção, seja para defesa daquele que lhe é próximo. Desta forma, não só o regime aqui estabelecido se destina à testemunha que é vítima, como à testemunha que, pela sua proximidade, tem conhecimento de factos incriminatórios mas que, pela sua relação com o Arguido, não quererá prejudica-lo.

É, pois, manifesto que o regime fixado na lei também se destina à salvaguarda do Arguido. Logo, é o Arguido um dos beneficiários desta prerrogativa consagrada na lei e que é, manifestamente, uma excepção ao regime geral de depoimento de testemunhas, assistentes e partes civis, todos eles obrigados aos deveres colaboração com a Justiça e de verdade quando ouvidos em juízo.

Tanto assim é que as relações da testemunha com os demais sujeitos processuais não concede idêntica faculdade de recusa de depor.

Não obstante, tem sido admitido pela jurisprudência que a tomada de declarações para memória futura seja realizada sem que exista Arguido constituído no processo, como forma de salvaguarda do interesse na realização da justiça e da descoberta da verdade [vd. ECLI:PT:TRL:2023:604.22.0PAVFX.A.L1.9.65; ECLI:PT:TRG:2023:330.21.8JAVRL.G1.21; ECLI:PT:TRP:2021:132.20.9PHVNG.C.P1.1F; ECLI:PT:TRP:2006:0515949.F9], nomeadamente quando este não esteja identificado ou localizado, esteja ausente ou, ainda que mais discutível, por razões de estratégia processual do titular do inquérito. É este último o caso dos autos.

De qualquer modo, dizemos, tal não sustenta uma total alteração do regime geral estabelecido para a produção de prova consagrado no Código de Processo Penal. Em particular, o alargamento do âmbito de aplicação de uma norma que estabelece um regime excepcional porque, segundo o Ministério Público, só assim se prevenirá a prática de actos inúteis.

Aqui se centra a divergência de entendimento com o recorrente.

O acto (tomada de declarações para memória futura) não será nulo nem inútil, ainda que não haja lugar à pretendida advertência. Em primeiro lugar, não é nulo pois, no momento em que é praticado, inexiste obrigação legal de advertência da testemunha.

Não é inútil, pois desse testemunho resultarão informações que o Ministério Público poderá usar na sua investigação e, quiçá, recolher outros meios de prova que confirmem o teor do relato feito, demonstrando-o mesmo sem necessidade de ao mesmo recorrer aquando do julgamento.

Mas, mesmo aqui, se impõe esclarecer que o Tribunal não está impedido de valorar tal depoimento, desde que, chamada a julgamento, então com o Arguido devidamente constituído e no pleno exercício dos seus direitos de defesa, a testemunha seja advertida nos termos do art.º 134.º, declare que pretende depor e se remeta para aquilo que anteriormente testemunhou. E poderá fazê-lo livremente, socorrendo-se o Tribunal, se necessário, de medidas de protecção da vítima vulnerável, como seja o depoimento por vídeo-conferência ou na ausência do Arguido que, para o efeito, poderá ser removido da sala.

Aliás, sempre se acrescentará que, com ou sem advertência do art.º 134.º, oficiosamente ou a requerimento do Arguido, poderá o Tribunal decidir ouvir uma testemunha que tenha sido anteriormente ouvida em declarações para memória futura. E esta, em julgamento, tendo o direito, poderá recusar-se a depor, não obstante o ter feito em momento anterior do processo, impedindo assim que seja valorado tal depoimento pretérito – neste sentido, Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 09.11.2022, Desembargador José Eduardo Martins, segundo o qual «I– Só após a produção da prova em audiência de julgamento deve o tribunal ponderar a necessidade de ouvir quem antes prestou declarações para memória futura, porquanto estas constituem prova pré-constituída, visando, justamente, evitar que a vítima volte a ser inquirida.
II– Se a vítima comparece em audiência e se, legalmente, recusa a prestação de depoimento, fica vedada a valoração do que antes dissera em sede de declarações para memória futura.» [ECLI:PT:TRC:2022:712.21.5PCAMD.C1.F0].

O Ministério Público assumiu uma estratégia. Não pode, porém, socorrer-se de um regime que não foi pensado para acudir aos direitos de determinada pessoa que nem sequer é, ainda, sujeito processual. Tanto mais que, sendo um princípio geral estruturante do processo penal português que a prova deverá ser produzida em audiência (art.º 355.º do Código de Processo Penal), a opção por soluções diferentes deverá respeitar os preceitos especificamente criados para cada uma das excepções. Ou seja, a norma em apreço é excepcional pelo que não deverá o intérprete aplica-la de acordo com uma interpretação analógica ou extensiva.

No caso das declarações para memória futura nenhuma previsão determina que a advertência prevista no art.º 134.º do Código de Processo Penal, criada para salvaguarda dos direitos do Arguido, seja alargada para salvaguarda dos direitos do “suspeito”.

Aliás, este termo “suspeito”, fértil na linguagem policial, está presente quando as vítimas se dirigem ao órgão de polícia criminal para apresentar a sua queixa. A partir da declarações recolhidas nesse acto, desenvolve-se o inquérito e são tomadas medidas para a recolha da prova, sem que o seu conteúdo venha a ser valorado em julgamento ainda que tenham sido advertidas nos termos do art.º 134.º já citado.

De igual modo, o Ministério Público, ao recorrer à tomada de declarações para memória futura antes da constituição de Arguido e ciente da existência de uma circunstância que determine a aplicação do art.º 134.º do Código de Processo Penal quando venha a existir Arguido nos autos, deverá ponderar a utilidade de tal diligência, não a solicitando sem realizar uma prévia avaliação uma vez que requerer a diligência automaticamente e sem ponderada fundamentação não é solução admissível, como se aponta no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.04.2023, Desembargador Manuel Advínculo Sequeira: «A possibilidade de tomada de declarações para memória futura sem que haja arguido constituído, é excepção às correspondentes regras, designadamente à que prevê o contraditório pleno.
Como assim, o requerimento da respectiva diligência terá de ser, sob pena de indeferimento, fundamentado caso a caso e com factos concretos que justifiquem a necessidade e proporcionalidade do procedimento.
Por isso é inadmissível que, seja por que forma for, se constitua em regra geral nos processos por crime de violência doméstica, ou em qualquer outro, tal como a obrigatoriedade de tomada de declarações para memória futura.
Nesta conformidade e quanto a esta matéria, a Directiva 5/2019 da PGR é ilegal.» [ECLI:PT:TRL:2023:813.22.2SXLSB.A.L1.5.86]

Da mesma forma, não se vislumbra como a interpretação de que o art.º 134.º do Código de Processo Penal deve ser aplicado, apenas no caso de existir uma demonstrada relação entre o depoente/declarante e o Arguido, como tal constituído nos autos, nos temos que acima enunciámos, ponha em causa as garantias de defesa do Arguido, nomeadamente violando o disposto no art.º 32.º/2 da Constituição da República Portuguesa o qual consagra «2.– Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.», ou seja, uma norma desenhada para a protecção do Arguido, e não do “suspeito”.

Finalmente se dirá que a presença de um Defensor Oficioso que não tem, sequer, oportunidade para comunicar com o “suspeito”, seguramente estará limitado na sua capacidade de assegurar a plena defesa do futuro Arguido. Desconhecendo o “outro lado” dos factos, a outra versão, apenas poderá garantir o cumprimento das formalidades e dos direitos, seja pelo Tribunal, seja pelo Ministério Público.

Por tudo o já exposto, outra conclusão não poderá ser alcançada que não seja a da correcção do despacho impugnado e da improcedência do recurso.

DECISÃO

Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar improcedente o recurso do Ministério Público, mantendo inalterado o despacho impugnado.
Sem custas.


Lisboa, 07 de Maio de 2024


Rui Coelho
(Relator)
João Ferreira
(1.º Adjunto)
Manuel Ramos da Fonseca
(2.º Adjunto)