IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CRIMES DE NATUREZA SEXUAL
DANO
INDEMNIZAÇÃO
Sumário

I–Não impugna correctamente a matéria de facto o que recorrente que indica os concretos pontos da matéria de facto que considera terem sido mal julgados, mas que se limita a pôr em causa a credibilidade do depoimento da assistente, sem indicar qual a versão dos factos que, no seu entender, se devia ter dado como provada, nem indicar outros meios de prova que sustentassem tal versão.

II–No que concerne aos crimes de natureza sexual, a figura do crime continuado ou de “trato sucessivo” não tem aplicação, quer pela natureza eminentemente pessoal do bem jurídico protegido pelas normas, quer pela atitude resolutiva do agente na execução do ilícito.
III–Havendo hiatos temporais entre a prática de cada um dos crimes de abuso sexual pelo arguido na pessoa da sua filha, formas de actuação diferentes e locais diferentes, verifica-se que de cada vez que o arguido abordou a vítima para a prática de um acto sexual, renovou a sua resolução criminosa, traduzindo-se cada resolução numa nova lesão do bem jurídico protegido e num aumento gradual da culpa do agente.
IV–O dano indemnizável deve ser um dano de tal modo grave que mereça a tutela do direito e justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado, não relevando para efeitos de indemnização os simples incómodos ou contrariedades.
V–Derivando o ressarcimento dos danos não patrimoniais da violação de direitos fundamentais, deve-se abandonar-se um critério miserabilista no que respeita à fixação dos respetivos montantes, à luz de uma visão moderna, atualista e europeísta.

(Sumário da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


1–Relatório


No processo nº 271/19.9PFOER do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Central Criminal de Cascais - Juiz 1, por acórdão datado de 23/05/2023, foi o arguido AA condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de:
-13 (treze) crimes de abuso sexual de criança agravados, p. e p. pelos arts.º 171º, nº 1 e 177º, nºs 1, alínea a), 7 e 8 do Cód. Penal, cada um deles na pena de 3 (três) anos de prisão;
- 1 (um) crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelo arts.º 171º, nºs 1 e 2 e 177º, nºs 1, alínea a), 7 e 8 do Cód. Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão.
Em cúmulo de penas, foi o arguido condenado na pena única de 10 (dez) anos de prisão.
Foi ainda condenado no pagamento de uma compensação indemnizatória à vítima, BB, no valor de € 50.000,00 (cinquenta mil euros).
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Inconformado com a decisão condenatória, veio o arguido interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
A)-Foi o Arguido condenado pela prática de 13 crimes de abuso sexual de criança agravados, p.e p. no Art. 171º, nº 1 e 177º, nº 1), alínea a), e nºs 7 e 8, do Código Penal e um crime de abuso sexual de criança agravado, p.e p. no Art. 171º, nº 1 e 2 e 177º, nº 1), alínea a), e nºs 7 e 8, do Código Penal.
B)-Porém, da prova produzida, nomeadamente das declarações da Assistente prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento no dia 20.03.2023, não resulta a descrição autonomizada de catorze ocorrências diferentes que pudessem ver consubstanciadas em igual número de crimes.
C)-O Tribunal a quo fez uma errada apreciação da prova produzida, nomeadamente do depoimento da Assistente, já que, no mesmo, a Assistente relatou apenas oito episódios individualizados em circunstâncias de tempo, modo e local, e desses, apenas três são subsumíveis aos factos vertidos na acusação.
D)-O Tribunal a quo errou ao considerar que não se verifica uma situação de crime continuado, nos termos do disposto no Art. 30º, nº 2, do Código Penal (adiante CP), já que se trata da realização plúrima do mesmo tipo de crime executada de forma homogénea.
E)-Ou, caso assim não entendesse, no mínimo, sempre teria o Tribunal a quo de ter considerado tratar-se de uma situação de crime de trato sucessivo. Assim, violou o acórdão recorrido os Arts. 30º, nº 2 e 3, 77º e 79º, todos do CP.
F)-Errou, ainda, o Tribunal a quo no que se refere à determinação da concreta medida da pena a aplicar ao Arguido, ao condenar o mesmo, em cúmulo jurídico, a uma pena única de 10 anos de prisão efetiva, violando o disposto nos Arts. 40º, 71º e 77º, todos do CP.
G)-Igualmente a indemnização em cujo pagamento o Arguido foi condenado demonstra ser excessiva e desproporcional face ao comportamento do Arguido, à sua real e efetiva situação patrimonial e económica, tanto mais que a mesma foi arbitrada nos termos previstos no Art. 82º-A, do CPP, não tendo a Assistente formulado nos autos qualquer pedido de indemnização cível.
H)-O Tribunal a quo deu como provados catorze momentos factuais distintos vertidos nos pontos 7), 9), 10), 11), 12) e 13) dos factos dados como provados, referindo que: “A acusação refere serem 13 circunstâncias e mais uma circunstância, portanto 14 crimes no total, (…)”, mais referindo que “A ofendida confirma isto, retirando-se tal número das suas declarações.”
I)-Porém, tal não corresponde à realidade, pois do depoimento da Assistente não resulta a identificação de catorze ocorrências, mas apenas oito episódios, e mesmo esses oito episódios não correspondem às catorze ocorrências imputadas ao Arguido em sede de acusação e dadas como provadas no acórdão recorrido.
J)-No referido depoimento a Assistente refere, como sendo o primeiro episódio ocorrido, um episódio alegadamente ocorrido na casa do avô materno, sita em ..., no ..., quando teria cerca de 7 anos de idade (minuto 7:53 ao minuto 12:41 do depoimento de dia 20.03.2023) descrevendo o seguinte: “Lembro-me que estávamos no quarto (…) íamos dormir a sesta (…) Eu estava a roçar-me e o meu pai dizia: “Mas não tens força suficiente? “E ele roçava-se a mim (…) No mesmo depoimento, a Assistente identificou um segundo episódio ocorrido na supra referida casa do avô materno sita em ..., no ..., relatando que tal episódio teria ocorrido na casa de banho de tal habitação (minuto 18:38 ao minuto 19:36 do depoimento de dia 20.03.2023):“Acho que ele não se chegou a roçar por assim dizer, aí ele assim fazia mesmo festinhas (…) ele fazia-me festinhas no peito e no rabo, como se me tivesse a lavar e lembro-me que punha (…) o pénis dele no meu rabo dentro das minhas nádegas (…) mas dessa vez não me lembro dele se roçar (…)”
K)-Mais referiu a Assistente que nesta casa (casa de ..., no ...) apenas ocorram estes dois episódios (minuto 19:40 ao minuto 19:42 do depoimento de dia 20.03.2023): “Nessa casa só me lembro dessas duas instâncias”
L)-No ponto 11) dos factos dados como provados do acórdão recorrido o Tribunal a quo deu como provado que, na casa de ..., ocorreram “(…) pelo menos quatro ocasiões nas quais o Arguido “(…) colocou-se em cima dela, friccionou o seu corpo contra o dela e apalpou-lhe os seios, a vagina e nádegas, por dentro e por fora da roupa”. Mas, do depoimento acima transcrito da Assistente não resulta que tenham ocorrido, nesse local, outras ocorrências que não as duas que a mesma relatou e esta afirmou claramente que naquela casa, referindo-se à casa do seu avô materno em ..., apenas ocorreram os dois episódios acima referidos.
M)-E, os dois episódios acima referidos e como foram descritos pela Assistente, não têm exata correspondência com a factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo no ponto 11) dos factos provados, já que um dos episódios foi num quarto e outro na casa de banho e não ambos “na cama” como refere a acórdão no ponto 11) dos factos provados, e, mesmo o episódio relatado pela Assistente que ocorreu num quarto da referida habitação não ocorreu quando a Assistente estava “a sós” com o Arguido nessa cama, como se lê no ponto 11) dos factos provados, mas sim quando a Assistente estava com o Arguido e com a sua mãe, como a própria referiu no depoimento acima referido (minuto 7:53 ao minuto 12:41 do depoimento de dia 20.03.2023).
N)-Assim, nenhum dos únicos dois episódios relatados pela Assistente que a mesma indica que ocorreram na referida casa de ... correspondem à descrição dos factos dados como provados no ponto 11) dos factos provados do acórdão.
O)-Da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente do depoimento da Assistente acima referido resulta que terão ocorrido apenas dois episódios na casa do avô materno, sita em ..., e não quatro episódios como deu como provado o Tribunal no ponto 11) dos factos provados.
P)-Pelo que, não foi produzida prova da ocorrência dos quatro episódios que o Tribunal a quo localiza na casa de ... e referidos no ponto 11) dos factos provados, pelo que os quatro crimes imputados ao Arguido na acusação deveriam ter sido dados como não provados, sendo o Arguido absolvido dos mesmos.
Q)-O episódio descrito pela Assistente que se terá passado na casa de ..., na cama, terá ocorrido quando a mãe desta estaria presente. E, esse foi o único episódio relatado pela Assistente que terá ocorrido na presença da sua mãe, estando esta a dormir. (minuto 7:53 ao minuto 51:36 do depoimento de dia 20.03.2023).
R)-No ponto 7) dos factos provados, deu como provados “pelo menos duas ocasiões” nas quais o Arguido terá colocado as mãos nos seios e nádegas da Assistente. Porém, tal descrição dos factos não corresponde, nem em número, nem no modo, ao relato acima referido feito pela Assistente (minuto 7:53 ao minuto 12:41 do depoimento de dia 20.03.2023) que corresponde à única ocasião por esta relatada em que a mãe estaria presente, ainda que a dormir.
S)-As duas ocorrências referidas no ponto 7) dos factos provados não têm exata correspondência aos factos relatados pela Assistente, pelo que, não poderiam ter sido dados como provados e deveria o Arguido ter sido absolvido de tais crimes.
T)-No ponto 9) dos factos provados o Tribunal a quo deu como provado outro episódio que teria ocorrido no banho, sem, contudo, referir em que localização (das três localizações referidas no ponto 5) dos factos provados) tal episódio teria ocorrido.
U)-Esse episódio dado como provado (ponto 9) dos factos provados) da forma como está descrito no acórdão, não têm correspondência com o que foi relatado pela Assistente no seu depoimento.
V)-A Assistente relata três episódios que terão ocorrido no banho, na casa de ... (minuto 39:00 ao minuto 47:59 do depoimento de dia 20.03.2023), mas em nenhum desses episódios a Assistente relata que o Arguido tenha ejaculado, como o Tribunal deu como provado no ponto 9) dos factos provados.
W)-Da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente do depoimento da Assistente acima referido não resulta que tenha ocorrido qualquer episódio, no banho, em que o Arguido tenha ejaculado, como deu como provado o Tribunal no ponto 9) dos factos provados, motivo pelo qual deveria o facto aí vertido ter sido dado como não provado.
X)-Em conclusão, não foi produzida prova da ocorrência episódio descrito no ponto 9) dos factos provados, pelo que tal crime imputado ao Arguido na acusação deveria ter sido dados como não provado, o que se requer, sendo o Arguido absolvido desse crime que lhe era imputado.
Y)-No ponto 11) dos factos provados, o Tribunal a quo deu como provado a verificação de cinco ocorrências na casa de ... fazendo corresponder às mesmas a mesma descrição factual, referindo que todas essas cinco ocorrências se desenvolveram no seguinte contexto: “(…) aproveitando-se do facto de estar a sós na cama com a BB (…)”
Z)-Porém, no seu depoimento já acima referido, a Assistente refere apenas quatro episódios ocorridos na casa de ..., e não cinco, e apenas um desses episódios relatados pela Assistente terá ocorrido na cama (minuto 31:43 ao minuto 47:59 do depoimento de dia 20.03.2023), os restantes três episódios relatados terão ocorrido no banho (minuto 39:00 ao minuto 47:59 do depoimento de dia 20.03.2023).
AA)-Ou seja, não foi produzida prova da ocorrência dos cinco episódios que o Tribunal a quo localiza na casa de ... e referidos no ponto 11) dos factos provados, mas apenas de um episódio, pelo que quatro dos crimes imputados ao Arguido na acusação deveriam ter sido dados como não provados, o que se requer, sendo o Arguido absolvido desses crimes que lhe eram imputados.
BB)-Em suma, resulta que o Tribunal a quo fez uma incorreta apreciação da prova produzida, em especial do depoimento da Assistente (minuto 7:53 ao minuto 47:59 do depoimento de dia 20.03.2023), nos concretos momentos de prova de tal depoimento todos atrás devidamente identificados, pois do mesmo não resultam identificados catorze episódios como o Tribunal a quo deu como provados nos pontos 7), 9) 10) e 11), dos factos provados, mas apenas oito episódios.
CC)-E, desses oito episódios relatados pela Assistente, apenas três desses episódios têm correspondência com os factos vertidos nos pontos 7), 9) 10) e 11), dos factos provados, a saber: i) Episódio vertido no ponto 6) dos factos provados; ii) Episódio ocorrido na casa do ... vertido no ponto 11) dos factos provados; iii) Um episódio ocorrido na casa de ... vertido no ponto 11), dos factos provados, o qual corresponde ao facto dado como provado e vertido nos pontos 12) e 13).
DD)-Pelo que, deveria o Tribunal a quo ter absolvido o Arguido de onze dos crimes que lhe eram imputados em sede de acusação, por não ter sido produzida prova quanto aos mesmos, já que o Tribunal a quo fundamentou a prova dos factos no depoimento da Assistente acima referido e, como se demonstrou, no mesmo, não é feita referência a estes onze crimes tal como os mesmos se encontram descritos e circunstanciados em sede de acusação.
EE)-À data dos factos não estava em vigor a atual redação do nº 3, do Art. 30º, do CP, a qual impede a aplicação do crime continuado ao tipo de ilícito aqui em discussão. Antes sim, estava em vigor da redação anterior da norma que admitia tal aplicação, caso estivesse em causa a mesma vítima em cada uma das situações em apreço.
FF)-Tendo os factos ocorrido antes da entrada em vigor do normativo vertido no nº 3, do Art. 30º, do CP, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 40/2010, de 3 de setembro, que entrou em vigor a 03.10.2010 e sendo a nova lei inaplicável a situações ocorridas anteriormente à sua entrada em vigor, por ser esta mais desfavorável ao Arguido, é passível de aplicar ao caso em apreço a figura do crime continuado.
GG)-Motivo pelo qual, errou o Tribunal a quo ao afastar a aplicação de tal figura ao caso em apreço, por aplicação do disposto no nº 3, do Art. 30º, do CP, na sua redação atualmente em vigor.
HH)-No caso em apreço verificam-se preenchidos os requisitos previstos no nº 2, do Art. 30º, do CP: i) O tipo de crime em causa é o mesmo, ii) A vítima é a mesma. iii) A execução é homogénea já que as situações ocorrem sempre ou no banho (já que era habitual pai e filha tomarem banho juntos desde sempre) ou no quarto (já que era habitual pai e filha dormirem juntos porque esta não conseguia dormir sozinha e a mãe da menor abandonava o leito conjugal, onde deixava a filha com o pai, e ia dormir para o quarto da filha). E verifica-se um dolo continuado que pode ser reconduzido à repetição da atividade típica sempre que a ocasião se proporcionasse.
II)-Como resulta da prova produzida, e foi dado como provado pelo Tribunal (vide pontos 6) e 8) dos factos provados) na dinâmica familiar existente entre o Arguido, a mãe da Assistente e a Assistente o normal era que a Assistente dormisse na cama com os pais e não no seu quarto sozinha, as sestas eram feitas com o pai, as noites eram dormidas com o pai já que a mãe ia dormir para o quarto da filha, o banho era sempre dado pelo pai.
JJ)-Assim, resulta da prova produzida que não foi o Arguido quem criou um esquema para cometer os crimes, mas antes deparou-se com uma situação exterior que facilitou a sua atuação. Ou seja, mesmo que se considere que a conduta do Arguido não obedeceu a uma só motivação dolosa, sempre será de considerar que a sua conduta foi executada num quadro externo que estimulou o agente à sua repetição.
KK)-Os relatos feitos pela Assistente não demonstram que o Arguido tenha ardilosamente criado os momentos propícios à sua conduta ou tenha criado o ambiente propício a tal. O que tais relatos demonstram é que os episódios terão sempre ocorrido, no âmbito das já habituais dinâmicas familiares, que aconteciam desde sempre, e ocorreram no contexto destas.
LL)-No caso em preço, verifica-se essa repetição de uma mesma situação exterior, não criada pelo Arguido propositadamente, mas que facilita a sua conduta.
MM)-Assim, deveria ter o Tribunal a quo ter aplicado o disposto no nº 2, do Art. 30º, do CP, já que a redação atual do seu nº 3 não é de aplicar ao caso concreto, e consequentemente ter considerado verificar-se um crime continuado, com a consequente diminuição das penas aplicadas ao Arguido. Violou assim o acórdão recorrido o disposto no Art. 30º, nºs 2 e 3, do CP.
NN)-Caso assim não se entenda, sempre se dirá que, pelo menos, deveria ter sido aplicado ao caso vertente a figura do crime de trato sucessivo, já que se verifica a existência de um único momento volitivo que faz desencadear todas as condutas, permitindo aglutinar todas as ocorrências.
OO)-Errou o Tribunal a quo ao condenar o Arguido pela prática de catorze crimes de abuso sexual de criança agravado, devendo, ao invés ter aplicado a figura do trato sucessivo e condenar o Arguido por um único crime de trato sucessivo.
PP)-Para a determinação da medida da pena, o Tribunal não relevou, como deveria, a prevenção especial ao limitar-se a dar como reproduzidas as condições pessoais do Arguido e a sua situação económica, ou o facto de o Arguido não ter antecedentes criminais sem as valorizar.
QQ)-Como resulta dos factos provados (pontos 21 e 22) e da fundamentação do acórdão recorrido, o Arguido não tem antecedentes criminais, é pessoa social, profissional e familiarmente inserido, não lhe são conhecidos comportamentos de natureza idêntica em data posterior aos factos constantes da acusação (sobre os quais já decorreram cerca de onze anos), e não foi identificado qualquer tipo de desajuste relativamente ao seu desenvolvimento e orientação sexual.
RR)-O Tribunal a quo valorou sobretudo os aspetos de prevenção geral não dando a devida relevância às exigências decorrentes do fim preventivo especial ligadas à reinserção social do agente.
SS)-Na determinação da medida concreta da pena deveria ter sido considerado que o Arguido não tem antecedentes criminais, está integrado social, profissionalmente familiarmente e certamente não será a convivência com o mundo prisional que resolverá as características do Arguido que terão motivado a eventual pratica dos crimes que lhe foram imputados.
TT)-Em suma, é o Arguido do entendimento de que a pena concreta a aplicar, nos termos do disposto no Art. 77º, do CP sempre deveria situar-se no limite mínimo da mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes imputados ao Arguido.
UU)-O acórdão recorrido viola o disposto nos Arts.30º, 40º, 71º, e 77º, todos do CP, e deve ser revogada, sendo a pena aplicada ao Arguido reduzida para o limite mínimo da mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes imputados ao Arguido.
VV)-A indemnização arbitrada e na qual o Arguido foi condenado é excessiva, face à situação económica do Arguido e face às exigências de proteção da Assistente.
WW)-O Arguido possui “medianas posses económicas”, como resulta do relatório social, auferindo o Arguido um salário base de “450 euros mensais”, como resulta provado no ponto 22) dos factos provados. Já no que se refere à Assistente, a mesma é já maior de idade e nas declarações que prestou no âmbito dos presentes autos referiu dar aulas de ... a crianças. Assim, ponderados estes dois vetores é forçoso concluir que a indemnização em que o Arguido foi condenado peça por ser excessiva e desproporcional.
XX)-Ademais, a redução substancial, para 1/4 dos crimes imputados ao Arguido, como no presente recurso se requer, terá, obviamente, de se refletir no quantum da indemnização atribuída à Assistente, devendo a mesma ser reduzida em conformidade e na mesma proporção.
YY)-Por outro lado, e mesmo atendendo a que a Assistente poderá necessitar de ajuda especializada com uma frequência elevada, digamos semanal, a indemnização ora arbitrada é suficiente para garantir a mesma por mais de uma década. O que nos parece manifestamente excessivo face ao objeto dos autos, às situações relatadas, às situações cuja prova foi alcançada (não mais do que três), ao lapso de tempo em que as mesmas terão ocorrido, ao tempo já decorrido desde a última ocorrência (mais de dez anos).
ZZ)-Face ao supra exposto, deve ser revogado o acórdão proferido também no que se refere à indemnização arbitrada e ser reduzida a mesma para valor nunca superior a 10.000,00 (dez mil euros).
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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O Ministério Público apresentou resposta ao recurso do arguido, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção do acórdão recorrido e formulando as seguintes conclusões:
1.–Inconformado com a condenação decidida por douto acórdão nestes autos datada de 23.05.2023, dela veio o arguido interpor recurso, delimitado aos seguintes pontos que constituem o objecto do recurso: Impugnação da matéria de factos, nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal; Violação do disposto nos artigos 30.º, n.ºs 2 e 3, 77.º e 79.º, todos do Código Penal; Arbitramento da indemnização, incluindo a prevista no artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal; Medida da Pena.
2.–Diversamente do que entende o recorrente, temos por líquido que da conjugação das declarações do arguido, declarações para memória futura da vítima com o seu depoimento prestado em sede de audiência de julgamento, declarações das testemunhas e relatórios periciais, não é o que o recorrente pretende mas o que foi dado como provado na decisão recorrida que corresponde à verdadeira versão dos factos e ao número de episódios que efectivamente teve lugar, acompanhando-se a motivação da decisão da matéria de facto, tal como a mesma vem fundamentada no douto acórdão condenatório.
3.–O douto acórdão recorrido não merece reparos e não se vislumbra qualquer erro de julgamento ou violação do princípio livre apreciação da prova, como pretende o recorrente (cfr. artigo 127.º, do Código de Processo Penal).
4.–O ponto essencialmente focado pelo recorrente é de facto o n.º de crimes imputado ao arguido, referindo que a vítima, nas suas declarações, não confirma pelo menos 11 (onze) das situações que constam da acusação e que portanto foram incorrectamente dadas como provadas.
5.–Ora bem, temos que discordar do recorrente, acompanhando integralmente o raciocínio realizado na douta decisão recorrida.
6.–Antes de mais, dir-se-á que a vítima não prestou apenas declarações em sede de audiência de julgamento.
7.–Havia já prestado declarações em sede de declarações para memória futura, declarações essas valoráveis.
8.–Num e noutro depoimento contou a sua história de vida, bem como os episódios de que foi vítima ao longo dos anos, precisando que não se recorda do n.º exacto de vezes em que os episódios sucederam, recorrendo à expressão “pelo menos”.
9.–Se algo ficou por provar cabalmente, não foi por excesso, mas por defeito, isto é, as ocasiões em que os abusos tiveram lugar terão sido até superiores às relatadas pela vítima, mas esses sim, que poderão até nem constar dos factos imputados na acusação, ficaram por provar.
10.–Relativamente à consideração das condutas ilícitas do arguido como um crime continuado, para efeitos do disposto no artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal, até por lhe ser mais favorável e por aplicação da lei no tempo, entendemos que não assiste qualquer razão ao recorrente.
11.– Se é certo que, como alega o recorrente, à data da prática de alguns dos factos em apreço não se mostrava ainda em vigor o n.º 3 daquele preceito, bem como que a redacção actual só foi introduzida com a entrada em vigor da Lei n.º 40/2010, de 03/09, também não é menos certo que de todo o modo não se mostravam verificados os restantes pressupostos do crime continuado, de modo a aproveitar ao arguido.
12.–Desde logo porque os factos não foram de todo praticados “no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.
13.–Como também se destacou no douto acórdão recorrido, o arguido criou mesmo ardilosamente as situações para permanecer a sós o máximo tempo possível com a vítima, de modo a praticar os factos.
14.–O que resulta da prova produzida é que o arguido criava propositadamente a situação do banho, para dar um exemplo – ter que dar banho à sua filha logo por causa dos piolhos, que na verdade nunca chegava a tratar, nem sequer a usar produtos próprios. E então sim, nesse contexto criado pelo próprio, perpetrou os factos contra a vítima confinado na privacidade da casa de banho horas a fio.
15.–Por outro lado, também a hipótese de condenação a prática de um crime único, na doutrina do trato sucessivo, foi devidamente afastada na fundamentação do douto acórdão recorrido e não merece ter lugar no caso judicando.
16.–Em cada conduta praticada e como se retira dos factos, renovou-se a resolução criminosa do arguido, assim claudicando a aplicação desta doutrina ao caso em apreço.
17.–Ora, até pela forma como foram ocorrendo ao longo das várias fases de crescimento e formação de personalidade da vítima, cada um destes episódios diferenciados teve um concreto e único impacto no desenvolvimento emocional e psicológico da vítima e por isso de lesão do concreto bem jurídico em cada momento.
18.–Ora, precisamente, a doutrina do trato sucessivo após considerar o primeiro crime praticado, desvaloriza os sucessivos crimes seguintes, desvalorizando-os, quando, na verdade, cada crime lesa o bem jurídico de forma intensa e distinta. Cada abuso sexual do arguido sobre a sua filha menor não perde relevância apenas porque se sucede a um anterior. Até pelo contrário.
19.–Muito embora a vítima seja actualmente adulta, conforme refere o recorrente, certo é que a actuação danosa do arguido repercutiu-se negativamente na formação da sua personalidade e nas patologias do foro psicológico e psiquiátrico que lhe foram diagnosticadas (stress pós-traumático e perturbação depressiva), com repercussões para o resto da sua vida e que aliás se mostram bem destacadas no relatório pericial junto aos autos.
20.–Se é certo que o montante fixado a título de compensação indemnizatória potenciará a cobertura de custos de acompanhamento psicológico da vítima pelo menos durante uma década, também não é menos certo que os danos emocionais e psicológicos causados pelo arguido na vítima foram de tal envergadura que a acompanharão para o resto da vida, assim como o acompanhamento associado de que a vítima carecerá.
21.–Assim, bem andou uma vez mais o Tribunal, pois que se mostram integralmente preenchidos não apenas os pressupostos previstos no artigo 483.º, do Código Civil, mas igualmente do artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal.
22.–Pelo contrário, bem andou o douto Tribunal a quo, permitindo a atribuição da indemnização no montante de € 50.000,00, não se revelando desproporcional, nem se justificando a fixação em montante inferior.
23.–Conforme se retira desde logo da mera leitura do douto acórdão recorrido e contrariamente ao pretendido nas suas conclusões das alegações de recurso apresentadas, o douto Tribunal a quo ponderou devidamente e em conjunto, bem como de modo fundamentado, os factos e a personalidade do arguido recorrente no que concerne à medida da pena.
24.–Acresce que, como vimos, havia mais factores negativos a ponderar (v.g. o grau de ilicitude gravosa, o n.º de crimes, a culpa num nível muito elevado, as exigências de prevenção geral e especial) do que factores positivos (a ausência de antecedentes criminais; e a boa inserção familiar, social e profissional).
25.–Assim sendo, concordamos em pleno com a decisão ora em crise, porquanto nos parece ter aplicado de forma correcta, bem fundamentada e justa os artigos 40.º e 71.º, do Código Penal, não merecendo, por isso, qualquer censura antes, pelo contrário, integral confirmação.
26.–Existem razões sérias para duvidar da capacidade do arguido de não cometer novos crimes, sobretudo da mesma natureza, se ficar em liberdade pelo que a pena de prisão deverá ser mantida como efectiva.”
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A assistente também apresentou resposta ao recurso do arguido, pugnando pela improcedência do mesmo e pela manutenção do acórdão recorrido e formulando as seguintes conclusões:
A.–O Recorrente foi condenado, pela prática de 13 crimes p. e p. pelo art.º 171.º, n.º 1 e art.º 177.º, n.º 1, al. a), 7 e 8 do Código Penal e 1 crime p. e p. pelo art.º 171.º, n.º 1 e 2, e art.º 177.º, n.º 1, al. a), 7 e 8 do CP, a uma pena única de 10 anos de prisão.
B.–Apesar de não impugnar o sentido da decisão, na medida em que jamais coloca em causa a autoria de crimes de abuso sexual de menores agravados, o Recorrente, quanto à decisão recorrida (i) impugna a matéria de facto dada como provada (nos termos do art.º 412.º, n.º 3 do CPP); (ii) impugna a matéria de direito, por considerar que foi, indevidamente, aplicada disposição legal que não podia ser aplicada (apesar de não ter dado, na ótica da Assistente, cumprimento ao ónus previsto no n.º 2 do art.º 412.º do CPP); (iii) impugna a medida da pena aplicada; e (iv) impugna o montante arbitrado pelo Tribunal a quo, nos termos do art.º 82.º-A do CPP.
C.–A Assistente não concorda com as conclusões extraídas pelo Recorrente, razão pela qual apresenta a presente resposta ao recurso.
D.–Num primeiro momento, e porquanto a não verificação do cumprimento do ónus previsto no art.º 412.º, n.º 2 do CPP importa a rejeição do recurso, nos termos consagrados no art.º 420.º, n.º 1, b) e 414.º, n.º 2, ambos do CPP, importa notar que o Recorrente, ao contrário do que lhe cumpria fazer, não (i) indicou a norma jurídica alegadamente violada pelo Tribunal a quo (al. a) do n.º 2 do art.º 412.º do CPP); nem (ii) identificou qual a norma jurídica, na sua ótica, aplicável (al. b) do n.º 2 do art.º 412.º do CPP).
E.–O Recorrente alega, em suma, que o Tribunal a quo aplicou, erradamente, o art.º 30.º, n.º 3 do CP, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 40/2010, de 3 de setembro e que tal não poderia ter-se verificado porquanto, à data dos factos, não seria essa a Lei em vigor, sendo que a mesma não se mostra mais favorável ao Recorrente, razão pela qual não poderia ser aplicada.
F.–Quanto ao facto de não ter o Tribunal a quo invocado qualquer disposição legal para o afastamento da figura do crime continuado (ou do crime único/trato sucessivo), mas apenas determinado, na decisão recorrida, que não os aplicaria ao caso, a Assistente reserva as suas considerações para exposição que fará infra.
G.–No entanto, mesmo admitindo, a benefício de raciocínio, que o Tribunal a quo aplicou uma norma que, na ótica do Recorrente, foi incorretamente aplicada, não se localiza, no recurso interposto, qualquer referência à norma jurídica que, na ótica do Recorrente, foi violada pelo Tribunal a quo.
H.–Nem sequer a norma que deveria ter sido aplicada – o Recorrente apenas refere que a norma (alegadamente) aplicada pelo Tribunal a quo não o poderia ter sido, porquanto, no seu entender, a redação atual de tal norma não é mais favorável à sua posição, afirmando depois que o Tribunal a quo deveria, sem mais, ter aplicado o n.º 2 do art.º 30.º do CP.
I.–No entanto, uma vez que já havia afirmado que a redação trazida pela Lei n.º 40/2010, de 3 de setembro não se lhe é de aplicar, cabia ao Recorrente indicar qual a redação do n.º 2 do art.º 30.º do CP seria de aplicar ao presente caso: o Recorrente considera que, como esta redação do n.º 3 não lhe é favorável, será de aplicar o n.º 2 do art.º 30.º da redação trazida pela Lei n.º 40/2010, de 3 de setembro? Ou, por outro lado, uma vez que esta redação não lhe é favorável, considera ser de aplicar, sem mais, o n.º 2 na redação anterior (e qual das redações?) apesar de assumir, ao mesmo tempo, que a redação anterior do n.º 3 (e qual das redações?) é que devia ser aplicada?
J.–Ora, pelo exposto, ficou o Recorrente por cumprir, nos termos previstos nas als. a) e c) do n.º 2 do art.º 412.º do CPP, o ónus a que estava obrigado, razão pela qual, nos termos conjugados dos arts. 420.º, n.º 1, al. b) e 414.º, n.º 2 do CPP, deve o recurso, sem mais, ser rejeitado.
K.–Já num segundo momento, caso o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa julgue não ser de rejeitar o recurso do Recorrente, nos termos acima expostos, importa responder aos concretos pontos que consubstanciam a motivação do Recorrente, uma vez que, quanto a esses (e como se demonstrará) a decisão deverá ser de total e manifesta improcedência.
Vejamos,
L.–O Recorrente alega – sem nunca contestar ser autor da prática de crimes de abuso sexual de criança agravados – que não poderia o Tribunal a quo ter dado como provados todos os pontos da matéria de facto dada como provada, porquanto o relato realizado pela Assistente nas declarações por si prestadas não têm total correspondência com aqueles pontos da matéria de facto.
M.–O Recorrente começa por afirmar que a Assistente, nas suas declarações perante o Tribunal a quo, apenas identificou 8 (oito) situações subsumíveis a crimes de abuso sexual de criança; mais – que dessas oito situações relatadas pela Assistente, apenas 3 corresponderiam ipsis verbis ao texto da acusação pública e, consequentemente, aos pontos da matéria de facto provada, conforme fixados pelo Tribunal a quo.
N.–Destas – erradas – conclusões, o Recorrente extraiu uma consequência: deveria o Recorrente ter sido absolvido de 11 (onze) dos 14 (catorze) crimes por que foi condenado, com fundamento na falta de concordância entre os relatos da Assistente, sua filha e vítima de abuso sexual, e as exatas palavras descritas no acórdão recorrido.
O.–Antes de mais, importa sublinhar que a Assistente não prestou apenas declarações perante o Tribunal a quo (cfr. ata de audiência de julgamento de 20.03.2023, a fls… dos autos), tendo prestado, em momento anterior, declarações para memória futura, perante uma Mma. Juiz de Instrução Criminal (cfr. auto de declarações para memória futura de 09.02.2022). Ora, o Recorrente não relevou as declarações para memória futura prestadas pela Assistente (o que importa relevar, nos termos do art.º 217.º do CPP).
P.–É que apenas do conjunto de todas as declarações prestadas pela Assistente (seja nessa qualidade, seja enquanto ofendida) é possível extrair o núcleo essencial do comportamento imputado ao arguido e só do cruzamento de todas é possível extrair os factos tal e qual como ocorreram.
Q.–As discrepâncias, entre as declarações da Assistente e a matéria de facto fixada, apontadas pelo Recorrente, decorrem elas mesmas de discrepâncias pontuais entre as declarações prestadas: tais discrepâncias são normais e expectáveis (conforme resulta vastissimamente da literatura existente sobre os depoimentos de vítimas de abuso sexual); o que não seria normal e expectável é que a Assistente, ao longo do tempo e perante pessoas diferentes, repetisse sempre o mesmo discurso ipsis verbis, com todos os pormenores de tempo, lugar, modo…
R.–Isto porque “[é] da experiência comum que quanto mais vezes uma testemunha fala sobre o mesmo facto, mais dele se afasta, pela reelaboração mental que consciente ou inconscientemente, vai fazendo (…) [é] normal que a vítima deixe de ser exata ao nível dos seus relatos quando recorda factos passados. As crianças que foram vítimas de abuso sexual, à semelhança do que se passa com os adultos, têm muitas vezes grande relutância em relatar acontecimentos embaraçosos,…”, que é normal, comum que não consigam “situar os detalhes no tempo, manifestando, não raras vezes, dificuldade em recordar o número de ocorrências; que a experiência repetida de um acontecimento ao aumentar a capacidade para recordar detalhes comuns a todas as ocorrências, se traduz numa maior resistência das crianças à influência de informação sugestiva ou sugestionante relativamente a esses detalhes.” e que “os erros que as crianças cometem quando lhes é pedido que recordem uma de cárias situações ocorridas repetidamente são erros de intrusão de detalhes de outras ocorrências.”; mais, “os relatos de detalhes que não ocorreram de todo (intrusões externas) são invulgares e muito menos frequentes quando se tenha vivenciado acontecimentos repetidos (…) não devem ser interpretados como uma evidência de contaminação do relato.” (Vide, ref.ª a 1991, cit. In Gordon, Schoeder, Ornstein e Baker – Ward, 1995, realizada no Ac. do TRE de 15.03.2011, Proc. 156/08.4TASLV.E1, Rel: Fernando Ribeiro Cardoso, disponível em www.dgsi.pt)
S.–Posto isto, e assente que está que é comum e expectável que o relato de vítima de abuso sexual – como é o caso da aqui Assistente – possa revelar desencontros de pormenor ao longo do tempo (o que, no caso, teve como consequência a omissão ou aditamento de circunstâncias de modo, tempo ou lugar nas diversas declarações prestadas) e que tal não deve ser relevado ao ponto de não se dar por verificadas as situações conforme relatadas em momentos anteriores, veja-se quantos factos foram, efetivamente, identificados pela Assistente nas suas declarações para memória futura e nas declarações perante o Tribunal a quo, em sede de audiência de julgamento.
T.–A Assistente sempre identificou a primeira situação como tendo ocorrido na casa do seu avô, em Lagos, quando teria perto de sete anos, tendo o Recorrente nessa ocasião encostado a sua zona genital à parte traseira (rabo) da Assistente, pedindo que ela se roçasse a ele e perguntando se “ela não tinha mais força”, pedindo desse modo que ela friccionasse o seu corpo contra o dele, para sua satisfação sexual (cfr. auto de declarações para memória futura de 09.02.2022, e respetivas declarações prestadas pela Assistente, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, inseridas no ficheiro de origem 20220209104820_4542111_2873337, aos minutos 00h10m04s a 00h11m40s; e ata de audiência de julgamento de 20.03.2023, e respetivas declarações prestadas pela Assistente, gravadas através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, inseridas no ficheiro de origem 20230320101231_4597213_2871334, aos minutos 00h07m35s a 00h09m35s; 00h10m30s a 00h12m05s; 00h14m40s a 00h17m20s).
U.–A descrição desses factos corresponde aos pontos n.º 7 e/ou 11 da matéria de facto provada.
V.–A benefício de compreensão transcreve-se o relato da Assistente perante o Tribunal a quo “[Assistente]: Lembro-me que estávamos a dormir a sesta, ou a preparar para dormir a sesta, e comecei a enroscar nele. Mas…. Pronto. Eu sou uma rapariga e ele é um homem. Ou seja: a zona do meu rabo, a roçar em conchinha… roça na zona genital dele. E depois, pronto eu agora sinto-me ridícula a falar do assunto, mas eu não tinha noção o que é que estava a acontecer, mas para mim era como se fosse um jogo. Porque eu estava a roçar-me e o meu pai depois ria-se e dizia ‘ah, não tens força suficiente’. Depois eu roçava com mais força, depois ele roçava-se a mim. (…) Depois lembro-me que ele puxou as minhas cuecas para o lado e pôs o pénis dele no meio do meu rabo e depois começou a roçar-se dessa maneira a mim… e… e… lembro-me perfeitamente que ele disse “então, mas não tens força?”, como se tivesse sido tudo uma brincadeira ou um jogo. No fundo é disso que me lembro.”(Minutos 00h07m50s, do ficheiro de origem 20230320101231_4597213_2871334, correspondentes às declarações da Assistente, com início às 10h20m e termo pelas 11h50m, cf. ata de audiência de julgamento de 20.03.2023, a fls… dos autos.); “[Mma. Juiz]:
Enquanto havia esse roçar de que está a falar, havia mais alguma coisa? Nessa primeira vez… houve passar a mão no seu corpo… houve… [Assistente]: Sim! Mas isso… não… isso nem conto como se fosse… primeira vez porque ele fazia isso antes. Isso é mesmo… não consigo dizer qual é a primeira vez que me lembro, por ele… adormecer mesmo… mesmo que estivéssemos na cama (…) E isso é que não consigo dizer qual é que foi a primeira vez porque ele sempre foi assim comigo…”(Minutos 00h14m40s e 00h14m53s, do ficheiro de origem 20230320101231_4597213_2871334, correspondentes às declarações da Assistente, com início às 10h20m e termo pelas 11h50m, cf. ata de audiência de julgamento de 20.03.2023, a fls… dos autos.
W.–Apesar de não conseguir localizar no tempo, a Assistente também sempre relatou duas situações em que, estando a tomar duche com o Recorrente, seu pai, este ter aproveitado o facto de a Assistente testar despida e de costas, para colocar o pénis ereto no meio das nádegas da Assistente, tendo apalpado o seu corpo; estas duas situações ocorreram quer na casa do seu avô, em ..., quer na sua casa de ..., onde coabitava com o Recorrente e a mãe (cfr. auto de declarações para memória futura de 09.02.2022, e respetivas declarações prestadas pela Assistente, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, inseridas no ficheiro de origem 20220209104820_4542111_2873337, aos minutos 00h21m12s a 00h22m30s; e ata de audiência de julgamento de 20.03.2023, e respetivas declarações prestadas pela Assistente, gravadas através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, inseridas no ficheiro de origem 20230320101231_4597213_2871334, aos minutos 00h17m35s a 00h19m05s; 00h37m34s a 00h42m40s).
X.–A descrição dos factos corresponde ao ponto n.º 9 da matéria de facto dada como provada (que determina que “pelo menos numa ocasião”, o que naturalmente comporta a ocorrência de mais de uma situação como a descrita, o que se verifica).
Y.–E nem se diga que não poderá subsumir-se àquele ponto da matéria de facto por não ter a Assistente referido que o Recorrente ejaculou! Em primeiro lugar, porque tal circunstância é totalmente irrelevante para o preenchimento do tipo; em segundo lugar, porque a Assistente também nunca disse que o Recorrente não ejaculou… tendo, no entanto dito que roçou o seu pénis no interior das nádegas da Assistente… sabendo um pouco de biologia e partindo para presunções permitidas…
Z.–A benefício de compreensão transcreve-se o relato da Assistente perante o Tribunal a quo “[Assistente]: Eu lembro-me de vezes… não me lembro da ordem (…) Eu sei que aconteceu várias vezes, mas não consigo dizer quantas. (…) [00:18:35] Nessa casa… na… lembro-me da casa de banho. (…) Sim. Acho que ele não se chegou a roçar, por assim dizer, mas aí… ele fazia mesmo festinhas nas… porque eu tomava banho com ele (…) E nós tomávamos duche juntos, ele fazia-me festinhas, no peito… no rabo…como se não estivesse a lavar. Lembro-me que punha, não sei, como se tivesse… piada, ou ganhasse alguma coisa com isso, o pénis dele no meu rabo. Dentro das nádegas. Mas dessa fez não me lembro de ele se roçar… era só isso.”; [00:37:45] A mesma situação do banho, da casa de ... sucedeu ao estar a tomar banho nesta casa… .... (…) [00:38:37] … acho que foi aí que comecei a achar que a culpa era minha. (…) E estávamos os dois nus. Ele estava à frente da água e eu depois… o gel de banho estava à frente dele, no início da banheira. Eu fui buscar o gel de banho para me lavar… é ridículo, eu não sei porque é que tomava banho com ele! Mas… lembro-me que fui, fui para a zona da água. Depois virei-me, com o rabo para a água, ou seja, estava a cair água do chuveiro e ele estava virado para o chuveiro (…) água a cair para cima de mim. Ele achou que foi uma provocação e quando eu virei o rabo para ele, ele pegou no pénis dele e pôs no meio do meu rabo, como se fosse eu a provocá-lo. (…) Tenho ideia de ele me dar festinhas impróprias, mas, lá está: ele dava-me sempre festinhas impróprias, estando eu vestida, estando eu nua…” (Minutos 00h17m42s a 00h18m00s; 00h18m35s a 00h19m15s; 00h37m35s a 00h40m00s, do ficheiro de origem 20230320101231_4597213_2871334, correspondentes às declarações da Assistente, com início às 10h20m e termo pelas 11h50m, cf. ata de audiência de julgamento de 20.03.2023, a fls… dos autos.)
AA.– A Assistente descreve ainda um episódio em que, estando a tomar banho de imersão com o Recorrente, na sua casa de ..., o mesmo se sentou de pernas abertas e encostou a cara da Assistente na sua zona genital, enquanto acariciava o corpo da Assistente, sua filha; apesar de não conseguir localizar esta ocorrência no tempo, a Assistente afirma que tem ideia de já ser mais “crescida”, talvez uns 10 ou 11 anos! (cfr. auto de declarações para memória futura de 09.02.2022, e respetivas declarações prestadas pela Assistente, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, inseridas no ficheiro de origem 20220209104820_4542111_2873337, aos minutos 00h21m49s a 00h22m02s; e ata de audiência de julgamento de 20.03.2023, e respetivas declarações prestadas pela Assistente, gravadas através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, inseridas no ficheiro de origem 20230320101231_4597213_2871334, aos minutos 00h42m27s a 00h46m05s).
BB.–A descrição dos factos corresponde ao ponto n.º 10 da matéria de facto provada.
CC.–A benefício de compreensão transcreve-se o relato da Assistente perante o Tribunal a quo “[Assistente]: Estávamos, eu não sei se ele tinha acabado de tomar um banho de imersão ou se nós estávamos a tomar um banho de imersão, só me lembro da imagem de ele estar na banheira de pernas abertas e de haver um nível de água. (…) Eu lembro-me que estava a tomar banho nessa água que existia, à frente dele. Ele estava nu e eu estava nua. Lembro-me de ser mais crescida… já era mais crescida porque, também já não me sentia tão pequenina em relação a ele. (…) … pronto, já era mais crescidinha. Isto foi por essa altura, ou até depois.
Acho que quando andava no quinto ano, tinha uns onze anos, por volta…. Estava na banheira e, para lavar o cabelo, em vez de abrir a água do duche, pôs a minha cabeça à frente, para lavar o cabelo com a água que havia na banheira. E lembro-me da minha cara, a minha boca, todo o meu ser, estava pertíssimo da genitália dele (…) mas depois dava-me festinhas e lavava-me (…) só me lembro disso… de festinhas e de me estar a lavar o cabelo com a cara mesmo à frente do pénis dele, ele todo aberto, e eu à frente dele.” (Minutos 00h43m51s a 00h47m00s do ficheiro de origem 20230320101231_4597213_2871334, correspondentes às declarações da Assistente, com início às 10h20m e termo pelas 11h50m, cf. ata de audiência de julgamento de 20.03.2023, a fls… dos autos.)
DD.–Existe ainda um outro episódio que a Assistente relatou sempre de forma clara e precisa: estando deitada na cama com o Recorrente, seu pai, na casa do seu avô em ...), num quarto que fazia paredes meias com a zona exterior da casa onde se encontravam vários familiares, o Recorrente, seu pai, colocou o pénis ereto no meio das nádegas e vulva da Assistente, tendo a mesma cruzados as pernas para fazer pressão no órgão genital do Recorrente (cfr. auto de declarações para memória futura de 09.02.2022, e respetivas declarações prestadas pela Assistente, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, inseridas no ficheiro de origem 20220209104820_4542111_2873337, aos minutos 00h14m27s a 00h15m20s; e ata de audiência de julgamento de 20.03.2023, e respetivas declarações prestadas pela Assistente, gravadas através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, inseridas no ficheiro de origem 20230320101231_4597213_2871334, aos minutos 00h22m04s a 00h28m00s).
EE.–A situação relatada tem total correspondência com o ponto da matéria de facto provada n.º 11.
FF.–A benefício de compreensão transcreve-se o relato da Assistente perante o Tribunal a quo “[00:22:23] [Assistente]: Lá está, só me lembro de quando acontece alguma coisa, mesmo assim estranha, porque tenho a certeza de que existiram muitas mais situações. Nessa em específico que a minha família, a família da minha mãe, incluindo o meu primo, as minhas tias… (…) Lembro-me que a minha família estava aqui, a persiana estava fechada, eu estava no meu quarto… lembro-me de até ter medo de não respirar porque as pessoas estavam literalmente do outro lado da porta, podiam ouvir. [00:24:32] À tarde, era nas horas de calor (…) [00:25:08] Começámos por nos roçar…, mas nessa altura… eu acho que até estava a gostar… e depois fiz uma coisa que não sei bem explicar, que é… com o pénis dele no meio do meu rabo barra pipi, no fundo, eu… como é que se diz… cruzei as pernas e fiz força, porque isso de alguma maneira dava-me prazer e roçámo-nos dessa maneira… [00:27:08]
De ele se estar a roçar a mim… mesmo na zona do pipi, dos lábios. E… eu até estar a gostar e até estar a roçar… ser eu também a roçar-me nele.”49
GG.–Mais, a Assistente relatou sempre ainda outro episódio, que localiza no tempo (quando se encontrava a frequentar a escola primária) e no espaço (na casa de família em ...), em que o Recorrente sugeriu que “jogassem um jogo”, o que na altura a Assistente relacionou com a prática de atos sexuais, por não se a primeira vez; a Assistente relata que nessa ocasião o Recorrente parecia um “animal”, que tentou penetrá-la com o pénis ereto, o que na altura a Assistente nem compreendeu porque nem sabia “como funcionava uma vagina” e que, depois, o Recorrente foi lavá-la ao bidé da casa de banho porque a Assistente tinha um liquido branco, que hoje sabe ser sémen (cfr. auto de declarações para memória futura de 09.02.2022, e respetivas declarações prestadas pela Assistente, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, inseridas no ficheiro de origem 20220209104820_4542111_2873337, aos minutos 00h12m39s a 00h13m15s; 00h17m40s a 00h18m05s; 00h28m09s a 00h29m10s; e ata de audiência de julgamento de 49 Minutos 00h22m23s a 00h23m30s; 00h24m32s a 00h25m00s; 00h25m08s a 00h27m25s do ficheiro de origem 20230320101231_4597213_2871334, correspondentes às declarações da Assistente, com início às 10h20m e termo pelas 11h50m, cf. ata de audiência de julgamento de 20.03.2023, a fls… dos autos. 20.03.2023, e respetivas declarações prestadas pela Assistente, gravadas através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, inseridas no ficheiro de origem 20230320101231_4597213_2871334, aos minutos 00h30m05s a 00h37m15s).
HH.–A situação relatada tem total correspondência com os pontos da matéria de facto provada n.ºs 12, 13 e 11.
II.–A benefício de compreensão transcreve-se o relato da Assistente perante o Tribunal a quo “[00:30:43] [Assistente]: Sim. ...… ahm… e… estávamos na cama da minha mãe, que era o quarto deles. (…) . E.… e ele disse “ai, filha não, anda cá que vamos jogar um jogo.” E eu disse “eu quero jogar este jogo…”, começando a ter noção do que ele queria dizer… porque ele tinha um olhar, quando eu olhava para mim eu sabia aquilo que ele estava… mesmo que não dissesse palavras sexuais. (…) E ele dizia “vamos fazer este jogo” e eu dizia “não quero este jogo” e ele dizia, “mas é um jogo que nunca fizeste antes”. Se bem que já… já tinha roçado em mim dessa maneira imprópria antes. E…, mas eu disse “pronto, ok”, estava desconfortável, mas eu não… eu não sei porquê, mas não me fazia sentido, por muito que eu não gostasse de uma coisa, essa instância que acabei de contar, dá-me um nojo admitir, mas eu até estava a ter prazer dessa. Mas existiam várias em que eu estava mesmo desconfortável e eu chegava a dizer que não, que não queria. (…) então, ele começou a roçar-se em mim, foi a mesma coisa que ele até parecia que tinha prazer em, devagarinho, a tirar com o dedo… pôr as cuecas para o lado… ele nem me tirava as cuecas. O que eu me lembro é de ele com um dedo, ou até dois, tirar… pegar nas minhas cuecas pôr para o lado. E… e pôs o pénis no meio do meu rabo, começou-se a roçar. Depois continuou, e lembro-me de ele ficar, parece que possuído, parecia um animal. E… e começou-se a pôr em cima de mim. Eu estava deitada de barriga para cima e ele abria-me as pernas, e punha-se mesmo em cima de mim e eu lembro-me de achar que era minúscula. Ele era enorme e estava em cima de mim.
E… e ele estava, pronto, para cima e para baixo. Não havia penetração, mas dessa vez ele tentou. Eu lembro-me que ele tentou. E eu fiquei, “mas, eu não tenho nada aí, porque é que ele está a tentar…”, porque eu nem sabia o que era uma vagina… e… eu lembro-me de ele estar a tentar e não conseguir. Ele estava absolutamente maluco, via-se na cara dele, parecia um animal. Eu depois tentei empurrá-lo para o lado e pôr o pénis dele fora e ele depois roçou-se do lado de fora da minha perna, a pensar que era a parte de dentro da minha perna e, quando se apercebeu, voltou a puxar-me para baixo dele… e…. depois eu tentei virar-me ao contrário e depois ele até parece que gostou mais disso e continuo a roçar-se com o pénis no meu rabo… no meu rabo e pipi porque é, pronto, continuação… e depois até me lembro que ele foi abaixo e de ter começado a lamber o pipi. (…) e depois ele foi levar-me à casa de banho e eu tinha um líquido branco, que não sabia o que é que era, e ele disse “ah, estás suja, vou-te lavar”. (Minutos 00h30m43s a 00h37m15s do ficheiro de origem 20230320101231_4597213_2871334, correspondentes às declarações da Assistente, com início às 10h20m e termo pelas 11h50m, cf. ata de audiência de julgamento de 20.03.2023, a fls… dos autos.)
JJ.–Por fim, a Assistente também sempre relatou a última das situações de que se recorda, por ter ideia de que já seria menstruada e que teve até medo de ficar grávida, ocasião em que conseguiu impedir que o Recorrente fizesse mais que dormir agarrado a ela, estando ambos de roupa interior, e tocado no seu corpo de forma imprópria (cfr. auto de declarações para memória futura de 09.02.2022, e respetivas declarações prestadas pela Assistente, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, inseridas no ficheiro de origem 20220209104820_4542111_2873337, aos minutos 00h22m32s a 00h23m15s; e ata de audiência de julgamento de 20.03.2023, e respetivas declarações prestadas pela Assistente, gravadas através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, inseridas no ficheiro de origem 20230320101231_4597213_2871334, aos minutos 00h48m07s a 00h56m00s).
KK.–Excetuando o local identificado pela Assistente, nas declarações prestadas perante o Tribunal em sede de audiência de julgamento, a factualidade descrita corresponde, no que respeita à atuação do Recorrente, ao ponto 11 da matéria de facto dada como provada.
LL.–A estas nove situações descritas pela Assistente – com correspondência aos pontos da matéria de facto provada (não oito e, muito menos, três, como pretende fazer crer o Recorrente) – acrescem ainda os relatos não especificados, mas que foram oferecidos pela Assistente por referência às descrições supra identificadas.
MM.–Veja-se, a título de exemplo, os relatos da Assistente identificados nas conclusões T, W e FF supra, em que é referido pela Assistente que a mesma “tem a certeza que aconteceu mais vezes” ou que “não era a primeira vez que acontecia”.
NN.–Esses relatos – naturalmente – tiveram de ser revelados pelo Tribunal a quo como qualquer outro relato apresentado pela Assistente, porque também daí se extrai que, a situação que foi narrada, aconteceu, pelo menos, mais uma vez (que é o mesmo que dizer que, de certeza, aconteceu duas vezes).
OO.–Considerando o que acaba de se expender, pretender o Recorrente que seja alterado o sentido da fixação da matéria de facto provada por haver alguns apontamentos não relatados pela Assistente, nas declarações prestadas pelo Tribunal a quo, é pretender revestir o processo penal de um formalismo tal que permitira a desresponsabilização de quem, não impugnando os factos que são imputados, deseja socorrer-se dos efeitos psicológicos e emocionais que as suas ações tiveram na própria vítima, i.e., das suas diferentes formas de relatar o (efetivamente) sucedido.
PP.–Termos em que, deve improceder totalmente a pretensão do Recorrente de vir a ser, por esta via, corrigida a decisão recorrida, em termos tais que permita a absolvição do Recorrente de 11 dos 14 crimes pelos quais vem condenado ou, sequer, de 6 crimes; nada há a reparar ou corrigir no acórdão recorrido quanto ao sentido da fixação da matéria de facto e, assim, da condenação do Recorrente.
QQ.–Caso assim não considere o Venerando Tribunal ad quem, i.e., caso venha a considerar, na sequência do recurso apresentado, ser de alterar o sentido da fixação da matéria de facto prova, tal alteração dever-se-á cingir à supressão da referência a quatro das ocasiões descritas no ponto n.º 11 da matéria de facto provada e à supressão dos factos do ponto n.º 7 da matéria de facto provada (ou, se assim se considerar mis conforme o relato da Assistente, manter a referência a uma das ocasiões do ponto n.º 7 da matéria de facto provada, suprimindo-se cinco das ocasiões referidas no ponto n.º 11).
Quanto à pretensão do Recorrente de ser aplicado, aos autos, o regime do art.º 30.º, n.º 2 do CP, importa sublinhar o seguinte:
RR.–A figura do crime continuado assenta, fundamentalmente, em três pressupostos cumulativos: (a) realização plúrima do mesmo crime ou de vários tipos de crime que protejam o mesmo bem jurídico; (b) homogeneidade da forma de execução; (c) no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente.
SS.–Nos presentes autos verifica-se, sem grande margem para discussão, a realização plúrima do mesmo crime, que protege o mesmo bem jurídico (a saber: liberdade de autodeterminação sexual).
TT.–O crime de abuso sexual de menor, praticado diversas vezes contra a mesma vítima, apesar de corresponder a uma realização plúrima do mesmo crime que protege o mesmo bem jurídico, só poderá ser unificado, numa única conduta relevante, caso essa violação do bem jurídico tenha sido executada de forma essencialmente homogénea e no quadro da mesma situação exterior que facilite a execução (e que diminua consideravelmente a culpa do agente).
UU.–Veja-se quanto resulta do Ac. do STJ de 12.09.2012, que fazendo referência ao Ac. do STJ de 19-03-2009, processo n.º 483/09-3ª, esclarece que “versando abuso sexual de crianças, afasta a figura do crime continuado, dizendo que o aditamento do n.º 3 ao artigo 30.º não permite uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzir ao crime continuado, afastando-se um concurso real; só significa que este deve firmar-se se esgotantemente se mostrarem preenchidos os seus pressupostos enunciados no n.º 2, de que se não pode desligar numa interpretação sistemática e global do preceito; ou seja, o aditamento não exclui, antes continua a pressupor, a verificação dos requisitos do crime continuado (…)”. (sublinhados nossos).
VV.–Quanto à homogeneidade da execução, por definição “a execução de forma essencialmente homogénea supõe a similitude do modus operandi do agente e, designadamente, dos meios utilizados na prática do crime.”(PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário ao art. 30.º do CP, §23, p. 138, in ob. cit.).
WW.–Ora, uma vez que os factos ocorridos foram praticados em diferentes locais e/ou realizados com diferentes modos de atuação por parte do Recorrente, não poderá ter-se por verificado este pressuposto indispensável à aplicação de tal figura.
XX.–Já no que respeita à exigência de que a realização plúrima do crime de abuso sexual se tenha efetuado no quadro da solicitação de uma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente, importa indagar sobre o que possa significar a existência de uma solicitação exterior que possa facilitar a execução e, ainda, diminuir a culpa do arguido (aqui, Recorrente).
YY.–Quanto a este requisito, ensina EDUARDO CORREIA (EDUARDO CORREIA, ob. cit., pág. 209) que “[p]ressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito”.
ZZ.–Veja-se ainda o Ac. STJ de 24.09.2020, quando refere que “só ocorrerá diminuição sensível da culpa do agente, tradutora de uma menor exigibilidade para que o agente atue de forma conforme ao direito, quando essa tal circunstância exógena se lhe apresenta, nas palavras impressivas de Eduardo Correia, de fora, não sendo o agente o veículo através do qual a oportunidade criminosa se encontra de novo à sua mercê". (sublinhados nossos)
AAA.–E neste seguimento, veja-se também o Ac. do STJ de 29.11.2012 “[n]a verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem”.
BBB.–No caso em apreço, em primeiro lugar, não será de se admitir a existência de uma situação externa facilitadora do crime, atendendo que foi o Recorrente quem criou as condições para que os crimes de abuso sexual de menor, perpetrados contra a sua própria filha, tivessem lugar.
CCC.–Conforme se pode constatar, a ideia da diminuição da culpa nos crimes de abuso sexual de menor não tem expressão na maioria da doutrina e jurisprudência, não sendo compatível com o tipo de crime, nomeadamente porque (e quando) o agente contribuiu para essa repetição, em violação de deveres que lhe são legalmente impostos, como no caso, por ser pai da vítima.
DDD.–Face a todo o exposto, resulta claro que, no caso dos autos, ainda que a norma jurídica aplicável pudesse permitir a ponderação sobre a aplicabilidade da figura do crime continuado aos factos praticados pelo Recorrente, se encontra tal aplicação totalmente afastada atenta a patente falta de preenchimento dos pressupostos de que depende, em especial, o que se refere à existência de uma situação externa facilitadora e diminuidora da culpa do Recorrente.
Mais,
EEE.–Quanto à figura do crime de trato sucessivo, apesar desta figura não ter consagração legal, a jurisprudência criou-a para permitir a unificação, à margem da lei, de várias condutas numa única, quando exista unidade de resolução; mas, ao contrário do que sucede com a figura do crime continuado, à medida que se prolonga no tempo, produz uma agravação da culpa do agente.
FFF.–Seguindo a jurisprudência do Ac. do STJ, de 22.01.2013,55 a figura do trato sucessivo pressupõe a “unificação das condutas ilícitas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando existe uma mesma, uma só resolução criminosa, desde o início assumida pelo agente” (sublinhados nossos).
GGG.–Entende-se, portanto, que para os crimes de abuso sexual de menor se unificarem, terão de estar cumulativamente verificados dois pressupostos: (a) unidade de resolução criminosa; (b) conexão temporal entre os atos realizados.
HHH.– Relativamente ao primeiro requisito relativo à unidade de resolução criminosa, o Acórdão do STJ, de 26.10.2011, ensina que que “[e]xiste unidade de resolução criminosa, quando, segundo o senso comum sobre a normalidade dos fenómenos psicológicos, se puder concluir que os vários atos são o resultado de um só processo de deliberação, sem serem determinados por nova motivação. (sublinhados nossos).
III.–No mesmo sentido, segundo os ensinamentos de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, (PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Ob. cit., pág. 136, §14 e 15) “(…) para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação.”
JJJ.–Tendo em conta as definições elaboradas tanto pela doutrina como pela jurisprudência, relativamente ao requisito da unidade resolutiva, resta concluir que não poderá o caso em apreço ser subsumível a esta definição, uma vez que a conduta criminosa se prolongou durante vários anos e que o Arguido teve de renovar o respetivo processo de motivação para cometer cada crime.
KKK.–Será de concluir pela inexistência desta “unidade resolutiva” que permita a unificação de todos os tipos de crime praticados pelo Arguido num só crime de abuso sexual.
LLL.–No que respeita ao segundo requisito, a conexão temporal entre os atos realizados “supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual”. (FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 314-315)
MMM.–Neste sentido, segundo os ensinamentos de HELENA MONIZ, (HELENA MONIZ, ob. cit. pág. 15) “não podemos considerar estarmos perante um caso de um crime cuja ação se prolonga no tempo, ou crime duradouro, uma vez que não temos uma situação inicial de preenchimento do tipo com propagação do resultado ao longo do tempo.” (sublinhados nossos).
NNN.–Reconheceu ainda o Tribunal no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 20.10.2015, que “(…) a interrupção da actividade criminosa durante o período de dois meses não permite a conclusão de unificação de conduta, antes de renovação da resolução criminosa.” (sublinhados nossos).
OOO.–Ora, foram dados como provados – e foi condenado o Recorrente – 14 factos praticados entre 2007 e 2012… pelo que não é possível afirmar a existência de unidade de resolução (situação que se tornaria ainda mais óbvia caso fosse procedente a pretensão do Recorrente de ver a sua condenação reduzida a três crimes de abuso sexual de criança… cometidos ao longo de 5 anos!).
PPP.–Para além de não estarem verificados os pressupostos anteriores, mesmo que assim se considerasse, nunca seria possível a aplicação da figura do crime de trato sucessivo aos crimes de abuso sexual, justamente porque a estrutura típica do crime de abuso sexual de menores não pressupõe tal reiteração.
QQQ.–Conforme o entendimento do Acórdão do STJ, de 14.01.2016: “[p]orém, a maioria da jurisprudência do STJ é no sentido de que, no caso do crime de abuso sexual de crianças, o entendimento é o da integração da pluralidade de condutas à figura do concurso efectivo de crimes. (…) Considera a referida jurisprudência maioritária, que a estrutura típica do crime de abuso sexual de crianças não pressupõe tal reiteração, isto é, não se pretende com o mesmo punir uma actividade, pelo que não lhe é aplicável a figura do crime de trato sucessivo”.
RRR.–Face ao supra exposto, a conclusão inevitável será que não poderá ser admitida a aplicação da figura do crime de trato sucessivo por não existir base legal que o permita, tendo em conta que o tipo de ilícito jamais poderá ser configurado como prevendo, em si, uma reiteração de atos (como sucede, v.g., em crimes como o tráfico de droga ou o lenocínio), sob pena de violação flagrante do previsto na CRP quanto aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos; mais, mesmo que assim não se considerasse, não existe, sequer, nos autos, proximidade temporal que permita a subsunção dos factos sub judice àquela unidade resolutiva que pudesse abranger todos os atos praticados pelo Recorrente.
Continuando,
SSS.–Quanto à medida da pena aplicada (ou aplicável) e visto que está que aos factos sub judice não se aplica quer a figura do crime continuado, quer a figura do crime único (ou de trato sucessivo), importa analisar aos elementos atendíveis (cfr. art.º 71.º do CP) para a fixação da medida da pena e que são, em parte, invocados pelo Recorrente para fundamentar a sua pretensão de ver diminuída a pena a que foi condenado.
TTT.–Para análise d’“[o] grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente.” [n.º 1, al. a)], bastará apenas referir que, considerando os crimes (e a gravidade dos mesmos) em causa, as consequências que os mesmos trouxeram à Assistente e, não menos importante, a flagrante violação do Recorrente do dever que decorre do art.º 1878.º do CC, para concluir que, deste elemento, jamais seria possível extrair uma diminuição da pena aplicada ao Recorrente.
UUU.–Já no que concerne à intensidade do dolo [n.º 1, al. b)], o Recorrente agiu sempre com “conhecimento, previsão ou representação” dos elementos constitutivos dos crimes praticados, pretendendo, em cada momento, realizar factos subsumíveis àqueles elementos, contra a Assistente, sua filha, sendo elevadíssima a intensidade do dolo.
VVV.–Quanto aos “sentimentos manifestados no cometimento do crime e o os fins ou motivos que o determinaram” [n.º 1, al. c)], importa invocar jurisprudência e doutrina para demonstrar que qualquer diminuição da pena, por esta via, está completamente afastada; assim “o arguido agiu com o propósito de obter satisfação sexual, revelando sentimentos de indiferença relativamente às consequências graves da sua conduta sobre o desenvolvimento da personalidade de uma jovem […], a qual tornou objeto dos seus desejos reprimidos.”, situação que concorre com “o não funcionamento de fatores inibitórios (contramotivos) também agrava a culpa do agente, revelando a dita atitude do delinquente, por exemplo, quando o crime é cometido prevalecendo-se o agente (…) ou sendo o ofendido ascendente, descendente, esposo,…” (PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário ao art.º 71.º, §12, in ob. Cit.)
WWW.–As condições pessoais do agente e a sua situação económica [n.º 1, al. d)], conforme resulta do aresto do STJ de 10.11.202263 “têm diminuta relevância, uma vez que todos os cidadãos estão obrigados a não cometer crimes.”, a que acresce o facto de, nem por isso (i.e., nem por estar familiar, social e profissionalmente integrado) deixou o Recorrente de praticar crimes de abuso sexual de menor, contra a sua filha, com quem coabitava, durante um período de cinco anos.
XXX.–Quanto à “conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime” [n.º 1, al. e)], renova-se o a passagem do acórdão recorrido quanto à conduta do Recorrente “…, estando absolutamente ausente qualquer autocrítica, até que pudesse ser apenas parcialmente construtiva por parte do arguido, qualquer responsabilização que nos deixe sossegados para o futuro e para cuja interiorização se mostre minimamente sensibilizado.”
YYY.–Já no que respeita à “falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto.”, a Assistente permite-se socorrer, novamente, dos ensinamentos da mais alta jurisprudência “[a] forma como os crimes foram cometidos, a execução de atos de preparação e planeamento conjuntamente com outras pessoas não identificadas, de surpresa e em condições de manifesta superioridade física, o elevado grau de intensidade de violência física e psicológica sobre vítimas idosas, isoladas, frágeis, indefesas e incapazes de oferecer resistência, a fala de manifestação de qualquer expressão reveladora de consciência crítica e de qualquer ato destinado a reparar os danos causados, (…), indiciam claramente a falta de preparação da arguida para manter uma conduta lícita, a merecer forte reparação.”
ZZZ.–Considera assim a Assistente que, atendendo à factualidade pela qual foi condenado o Recorrente e, bem assim, todas as circunstâncias atendíveis e a ponderar no momento da determinação da medida da pena, bem andou o Tribunal na ponderação realizada e na fixação da pena unitária de dez anos de prisão.
AAAA.–Por último, no que respeita à quantia arbitrada pelo Tribunal a quo, ao abrigo do consagrado no art.º 82.º-A do CPP, a Assistente basta-se com a manifestação da sua total concordância com os fundamentos constantes do acórdão recorrido e, bem assim, na resposta ao recurso apresentada pelo MP, não merecendo a decisão do Tribunal a quo, também nessa parte, qualquer reparo.
BBBB.–Termos em que, pelo exposto, deve o presente recurso ser (i) rejeitado, por incumprimento do ónus que o Recorrente se encontrava obrigado a cumprir, na impugnação da matéria de direito, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 412.º do CPP; e (ii) ser julgado totalmente improcedente, por não provado e indevidamente fundamentado, uma vez que só dessa forma farão V. Exas., Exmos. Senhores Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa a acostumada JUSTIÇA.”
*
Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, nos seguintes termos:
“1.–O Recurso
O arguido AA
interpôs recurso do acordão, de 23/05/2023, do Juiz 1 do Juízo Central Criminal de Cascais que o condenou pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de 13 (treze) crimes de abuso sexual de criança agravados, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 e artigo 177.º, n.º 1, alínea a), 7 e 8, do Código Penal, cada um deles na pena de 3 (três) anos de prisão; de 1 (um) crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 e artigo 177.º, n.º 1, alínea a), 7 e 8, do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão; e em cúmulo de tais penas, na pena única de 10 (dez) anos de prisão.
O recorrente fundamenta o recurso na impugnação da decisão sobre a matéria de facto, por considerar que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao dar como provados, nos termos em que o fez, os factos 7, 9, 10, 11, 12 e 13, por as declarações da ofendida, prestadas na audiência de julgamento de 20/03/2023 se referirem a um número inferior de “ocorrências”/”episódios” (oito “episódios”, dos quais apenas três encontram correspondência na acusação); na impugnação da matéria de direito, por entender que deveria ter sido condenado por um crime de abuso sexual de criança na forma continuada, ou por um crime de abuso sexual por recurso à figura do crime de trato sucessivo e, assim não se entendendo, por a pena única aplicada se mostrar excessiva; impugna igualmente o valor da compensação oficiosamente arbitrada à ofendida por a reputar excessiva e desproporcional em função das condições económicas do próprio e da ofendida, da idade desta, e do lapso de tempo decorrido desde a prática dos factos.
2.–Posição do Ministério Público na 1.ª instância
O Ministério Público, na 1.ª Instância, apresentou Resposta ao recurso pugnando pela confirmação da decisão recorrida, por entender que o acórdão recorrido não enferma de nenhuma das anomalias invocadas pelo Recorrente.
3.–Posição do Ministério Público no TRL
Concordamos na íntegra com a argumentação expendida pela Exma. Magistrada do Ministério Público na 1.ª instância para refutar qualquer uma das anomalias atribuídas ao acórdão em crise, pelo que a subscrevemos, porquanto o fez de forma ponderada, exaustiva, crítica e equidistante relativamente ao Tribunal a quo.
No entanto, aditamos o seguinte:
Quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
O recorrente circunscreveu a impugnação da decisão sobre a matéria de facto aos segmentos das declarações prestadas pela ofendida em julgamento.
O recorrente, como a nossa Colega observou, olvidou que a ofendida prestou declarações para memória futura, em 09/02/2022.
Como se fixou no AUJ n.º 8/17, DR 1.ª série, n.º 224, de 21 de novembro de 2017, “a tomada de declarações para memória futura, nos termos dos artigos 271.º e 294.º, ambos do CPP, configura -se como uma antecipação parcial da audiência, sendo que (…) conceito de prova pré -constituída refere-se aos meios de prova antecipada, como é o caso das declarações para memória futura, previstas nos arts. 271.º e 294.º do CPP, ou dos meios de prova obtidos em inquérito com as garantias processuais adequadas.”
As declarações para memória futura, aquando da audiência de julgamento, tinham produzido o seu efeito probatório, pois que uma vez prestadas constituem prova a valorar: são prova já constituída não podendo ser excluídas do universo probatório a valorar pelo Tribunal.
O próprio Tribunal a quo foi claro ao afirmar que ponderou na prova da acusação, enquanto prova adquirida nos autos, o teor daquelas declarações.
Assim, o recurso, nesta parte, mostra-se manifestamente improcedente, devendo a matéria de facto ter-se por assente nos termos em que o Tribunal a quo o fez.
De resto, a ofendida lembrou bem, em julgamento, que foi abusada pelo recorrente mais vezes do que aquelas pelas quais foi submetido a julgamento e que apenas conseguia descrever, com o rigor possível, as catorze ocasiões descritas na acusação que o Tribunal a quo deu como provadas.
Quanto à impugnação da matéria de direito:
Concordamos inteiramente com o teor da resposta da assistente quanto à pretensão de qualificação do crime como sendo continuado ou de trato sucessivo, pois que não se percebe do recurso [nem das conclusões, nem da motivação], que se mostra por demais confuso nesta parte, que normas violou o Tribunal a quo ao ter condenado o recorrente em concurso real por 14 crimes, qual o sentido em que o Tribunal a quo, do ponto de vista do recorrente, interpretou essa norma, ou normas, qual o sentido em que a deveria ter interpretado e qual a norma que deveria aplicar.
Por sua vez, quanto à violação dos arts. 40.º, 71.º, e 77.º, todos do CP, tanto quanto se percebe da motivação e das conclusões, o recorrente apenas coloca em causa a medida da pena única, pois que nenhuma menção faz às penas parcelares, não se percecionando se, subsidiariamente, em caso de não procederem os anteriores fundamentos do recurso, coloca em causa as medidas das penas parcelares e, nessa decorrência, a pena única.
Afigura-se-nos, por isso, que o recorrente, quanto à impugnação da matéria de direito, não cumpriu o ónus que sobre ele impendia, conforme impõe o art. 412.º, n.º 2, als. a), b) e c), do CPP, o que implica que se deva ter por assente e a rejeição do recurso [arts. 417.º, n.ºs 3 e 4, e 420.º, n.º 1, al. c), do CPP].
Quanto ao quantum da compensação:
O recorrente desvaloriza os efeitos da sua conduta sobre a vida da assistente até ao momento presente e para o futuro e são precisamente esses que necessitam de ser compensados e, atendendo ao período de tempo em que os factos ocorreram [de 2008 a 2012], à idade da vítima [entre os 7 e os 11 anos de idade], ao laço de parentesco que une a vitima ao recorrente, a que a vítima, desde então, padece de stress pós-traumático e perturbação depressiva com repercussões para o resto da sua vida, bem destacados no relatório pericial junto aos autos, carecendo de ser acompanhada clinicamente, o montante fixado, s.m.o., mostra-se adequado.
Em face do exposto,
Somos de parecer que o recurso não merece provimento.”
*
Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo o recorrente vindo acrescentar ao já por si alegado.
*
Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.
*
2–Objecto do Recurso
Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)
À luz destes considerandos, são as seguintes as questões que cumpre conhecer:
- Erro de julgamento;
- Crime continuado ou concurso de crimes;
- Medida da pena;
- Montante da compensação económica atribuída à assistente.
*
3- Fundamentação:

3.1.–Fundamentação de Facto

3.1.-A decisão recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação:

“(…) Resultaram provados os seguintes factos
1.–O arguido AA contraiu matrimónio civil com CC, em ... de ... de 1998, iniciando comunhão de leito, mesa e habitação até ao ano de 2010, altura em que deixaram de coabitar.
2.–Fruto desse relacionamento amoroso nasceu BB a .../.../2000.
3.–Desde o nascimento da filha até à separação do casal, o arguido AA, CC e a BB viveram juntos, em residência sita em morada não apurada, mas localizada na ..., em ....
4.–Após, a BB passou a residir apenas com a mãe.
5.–Entre os anos 2008 e 2012, o arguido para além de estar com a filha na residência onde habitaram, em ..., passava tempo com a mesma nas residências dos avós paternos da criança, localizadas no ..., uma sita em ... e outra no ....
6.–Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido partilhava cama com a sua mulher e a filha BB.
7.–Em pelo menos duas das ocasiões referidas em 6. [em datas não concretamente apuradas, mas situadas entre os anos de 2008 e 2012], quando a BB tinha entre os sete e os onze anos de idade, o arguido, aproveitando-se do facto de CC estar a dormir, puxou o corpo da filha contra o seu e colocou as mãos nos seus seios e nádegas, actuação que mantinha mesmo quando esta o tentava afastar.
8.–Nesse período temporal, e nas residências acima referidas, o arguido costumava tomar banho com a filha.
9.–Em pelo menos uma ocasião, durante o banho [em data não concretamente apurada, mas situada no período temporal acima referido], o arguido apalpou os seios, vagina e nádegas da BB e, posicionando-se por trás dela, colocou o pénis erecto entre as pernas desta, friccionando-o até ejacular.
10.–Noutra ocasião, durante um banho de imersão, o arguido sentou-se de pernas abertas e posicionou a BB de forma a que lavasse o cabelo junto da sua zona genital, enquanto lhe apalpava os seios, a vagina e as nádegas.
11.–Em pelo menos quatro ocasiões, que tiveram lugar na residência sita em ... - uma ocasião na residência sita no ..., e cinco ocasiões na residência sita em ... –, em datas não concretamente apuradas mas situadas no período temporal acima referido, o arguido, aproveitando-se do facto de estar a sós na cama com a BB, e dizendo-lhe que era só uma brincadeira, colocou-se em cima dela, friccionou o seu corpo contra o dela e apalpou-lhe os seios, a vagina e nádegas, por dentro e por fora da roupa.
12.–Numa das ocasiões referidas em 11., o arguido ainda tentou introduzir o seu pénis erecto no ânus e na vagina da BB, fazendo pressão, o que só não se concretizou por não ter conseguido inseri-lo.
13.–Noutra das ocasiões referidas em 11., o arguido também beijou e lambeu a vagina da BB.
14.–Quando o arguido actuava da forma descrita, a BB mostrava-se incomodada, tendo chegado a pedir-lhe que parasse, o que não o demoveu de continuar.
15.–Em consequência da actuação do arguido, BB sofre de stress pós-traumático, personalidade com alterações ao nível da estruturação (de tipo emocionalmente instável) e perturbação depressiva.
16.–Tais sequelas configuram uma anomalia psíquica grave e sem cura, sendo as lesões psíquicas permanentes.
17.–O arguido quis actuar da forma descrita.
18.–O arguido sabia que a BB era sua filha, que tinha menos de 14 anos de idade e que, dessa forma, não tinha capacidade para lhe resistir e avaliar, atenta a sua idade e inexperiência, os actos sexuais que sobre a mesma praticava, tendo-se aproveitado de todas essas circunstâncias para satisfazer os seus instintos libidinosos.
19.–Mais sabia que ao actuar da forma descrita, afectava o livre desenvolvimento da personalidade sexual da BB, a limitava na sua liberdade de autodeterminação sexual e ofendia a sua integridade física e psicológica, o que igualmente não o coibiu de prosseguir a conduta.
20.–O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era censurável, contrária à lei e punida criminalmente.
Mais se apurou que
21.–O arguido não tem antecedentes criminais averbados no seu CRC.
22.–Das suas condições pessoais, apura-se que:
AA é oriundo de uma família constituída pelos pais, … e …, respectivamente, e quatro irmãos, sendo o mais novo.
Aos nove anos de idade os pais separaram-se, tendo o progenitor emigrado para o ....
Permaneceu com a mãe e irmãos até aos catorze anos aproximadamente, altura em que optou por viver com o pai conjuntamente com um dos irmãos mais velhos.
A infância e adolescência decorreram sem privações materiais.
Os progenitores são descritos de forma diferenciada pelo arguido, o pai como afectivamente distante e a mãe como figura presente e afectuosa.
A disciplina era imposta pela progenitora, por vezes com recurso a castigos físicos, estilo educativo que o arguido recorda como justo e não abusivo.
Manteve a frequência escolar até aos dezassete anos, tendo concluído o equivalente ao terceiro ciclo do ensino básico no período em que residiu no ....
O percurso laboral foi iniciado em Portugal, aos vinte e três anos, e tem estado ligado a actividade profissional independente como técnico ….
Refere [em contexto de entrevista para elaboração do relatório social] que a sexualidade não foi tema abordado no meio familiar de origem, não tendo o arguido recorrido a outras fontes para informação ou aconselhamento.
A sua iniciação sexual ocorreu aos dezasseis anos de idade, no âmbito de uma relação ocasional com uma jovem de idêntica idade.
As vivências sexuais subsequentes são contextualizadas no âmbito de relacionamentos afectivos que foi estabelecendo, mencionando [no mesmo contexto de entrevista] ter necessidade de envolvimento e proximidade emocional para estabelecer relações de intimidade sexual.
Regressou a Portugal aos vinte anos, aproximadamente, integrando o agregado materno.
Autonomizou-se familiarmente aos vinte e cinco anos de idade, passando a viver sozinho após cumprir o serviço militar.
Aos trinta anos assumiu a relação conjugal da qual resultou o nascimento da filha BB, contexto familiar onde se inscrevem os factos pelos quais está acusado.
AA integrava o agregado familiar constituído pelo cônjuge CC e a filha BB.
Verbaliza perante a DGRSP que a interacção conjugal se processava num clima de desentendimento, suscitado pelo descurar da limpeza e arrumação do espaço habitacional e estilo educativo permissivo imputados ao cônjuge.
Os desentendimentos conjugais, associados a alegadas suspeitas de infidelidade alimentadas pelo cônjuge em relação ao arguido, foram desgastando a relação, tendo contribuído para o distanciamento do casal e subsequente divórcio em ....
A filha, à data com 9 anos de idade, ficou entregue aos cuidados da mãe.
Aos cinquenta anos de idade, AA assumiu uma relação afectiva, com uma companheira quatro anos mais nova, que mantém.
Perante a DGRSP verbalizou que a dinâmica marital é vivenciada como insatisfatória pelo arguido, atribuindo à companheira frequentes estados depressivos durante os quais o diálogo e convivência se torna difícil.
Menciona também pouca gratificação com a vivência sexual, por fraca envolvência da companheira na intimidade do casal.
Tem mantido contacto frequente com a mãe e irmãos, existindo um relacionamento afectivo entre o arguido e estes familiares.
No período dos factos pelos quais está acusado, AA desenvolvia actividade laboral relacionada com prestação de serviços de … e de equipamentos de ….
Mantém esta situação de emprego independente, exercendo actividade no âmbito da empresa ..., que constituiu em ....
Menciona uma situação de suficiência económica, sustentada por remunerações provenientes da sua actividade profissional (refere um salário base de 450 euros mensais, acrescido de complementos para deslocações, telecomunicações e refeições suportados pela empresa de que é proprietário) e do salário da companheira, técnica ..., quantificados pelo arguido em 1800 euros mensais.
As despesas mensais do agregado familiar incluem amortização de um crédito para habitação (600 euros), e encargos de montante variável com consumos domésticos de água, energia e telecomunicações e a manutenção do arguido e companheira.
Menciona também o pagamento de uma pensão ao ex-cônjuge no valor de 150 euros mensais.
Os relacionamentos extrafamiliares são superficiais, circunscritos pelo arguido à esfera da sua actividade profissional, não tendo mencionado à DGRSP relações de amizade significativas.
Descreve-se [no mesmo contexto de entrevista perante a DGRSP] como uma pessoa caseira, ocupando os períodos de lazer com convívio familiar, jardinagem e visionamento de filmes.
Não comunicou à actual companheira a sua situação jurídico-processual.
Ela é conhecida da mãe e irmãos.
O arguido não se encontra referenciado por outras eventuais condutas delituosas pelos órgão de polícia criminal com intervenção na área de residência que consta nos autos.
Face ao exposto, e em caso de condenação, considera-se existirem condições para a execução de uma medida penal na comunidade, supervisionada pelos serviços de reinserção social. Dada a natureza dos factos pelos quais o arguido está acusado considera-se que, nessa eventualidade, tal medida deverá ser condicionada, com consentimento do próprio, a uma intervenção estruturada dirigida à problemática criminal.
23.–A ofendida revelou, desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde os 12 anos de idade, um comportamento irritadiço, com alterações de humor que evoluiu para actos de auto agressão e, num dos episódios, com a ingestão de comprimidos e subsequente ida para o hospital, configurando a mãe essa circunstância como uma tentativa de suicídio da filha.
24.–A ofendida teve acompanhamento psicológico desde data não concretamente apurada, mas pelo mesmos desde os 16 anos de idade, que mantém neste momento.
25.–Na sequência da perícia determinada, perante as perguntas formuladas [e remetendo-se integralmente para o relatório que se tem por reproduzido], conclui o INML que:
(…)
A examinanda apresenta um quadro compatível com perturbação de Stress Pos Traumático tal como descrito na Perícia efectuada anteriormente.
O quadro de depressão encontra-se em remissão, não condicionando, de acordo com o relato da examinanda impacto na vida diária da mesma.
(…)
O abuso sexual constitui, per se, um factor de stress suficientemente forte para poder desencadear uma perturbação de stress pós-traumático. Dito de outra forma, é clinicamente verosímil que o quadro de stress pós-traumático seja resultante de um alegado abuso sexual, que é, no douto despacho de Acusação, imputado ao arguido. Já quanto à perturbação de personalidade emocionalmente instável e à perturbação depressiva major, não é possível excluir causas concomitantes, nomeadamente o ambiente familiar, a má relação com ambos os progenitores e a violência a que a examinanda afirma ter sido sujeita. Em face disso, salvo melhor opinião, ainda que se admita um nexo de causalidade parcial, não se pode dizer com rigor que estas últimas perturbações são directamente resultantes das condutas alegadamente praticadas pelo arguido.
(…)
Não se apuram nenhum quadro psicopatológico codificável na secção de Doenças Mentais (F) da International Classification of Diseases and Related Health Problems – 10th revision (ICD 10) susceptível de distorcer, em concreto, a capacidade da Ofendida de relatar a sua versão dos factos.
(…)
**
Não resultaram provados os seguintes factos,
Que o arguido não tenha praticado os factos acima provados, não os tenha querido, livre e conscientemente, praticar ou os mesmos resultem de um quadro imaginativo ou vingativo da ofendida, designadamente motivado por interesses de ordem financeira ou vingança.
Que o arguido revele qualquer tipo de arrependimento quanto aos referidos factos, ou interiorização do seu desvalor e consequências para a formação e vida da ofendida.
**
III.–MEIOS DE PROVA E RAZÕES DA CONVICÇÃO DO TRIBUNAL
A liberdade de apreciação da prova, que conforma o nosso sistema penal e processual penal, refere-se a uma liberdade que não é meramente intuitiva. Trata-se de um critério de justiça que não prescinde da verdade histórica das situações nem do contributo dos dados psicológicos, sociológicos e científicos para a certeza e segurança da decisão.
Atento o disposto no artº 374º, nº 2 do CPP, importa fundamentar a decisão do Tribunal relativa à matéria de facto, não bastando a fundamentação genérica ou enunciação dos meios de prova considerados.
A convicção do Tribunal alicerçou-se no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, com apreciação crítica dos meios de prova disponíveis, com apelo às regras de experiência comum e de normalidade – artº 127º CPP.
Ao contrário do que muitas vezes se pretende, factos e fundamentação não se confundem – os factos fixam-se, a fundamentação é o juízo que se faz, assente na ponderação dos elementos de prova recolhidos, sobre a verdade material que se fez assentar. Não cabe, como tal, ao Tribunal fixar os meios de obtenção de prova na matéria provada (porque não são factos), bastando-lhe constatar aqui a sua existência, coligi-los e dar-lhes destino legal, porque é nisso de consiste a função de julgar.
*
Para que se explicite totalmente o leque de recursos probatórios à disposição do Tribunal para o efeito de sustentar a convicção quanto à matéria de facto, para além dos depoimentos e declarações, foi possível atender aos elementos de prova, todos eles ponderados, juntos em fase de inquérito e julgamento, destacando-se:
Pericial:
- Perícias de natureza sexual, cf. relatórios de fls. 148 a 150 e 234 a 236;
- Perícias médico-legais, cf. relatórios de fls. 177 a 179 e 220 a 224;
- Perícia psicológica, cf. relatório de fls. 271 a 278.
Documental:
- Assento de nascimento, a fls. 9 e 10;
- Informação resultante da base de dados do registo civil, a fls. 10 a 12
- E-mails de fls. 68 e 117;
- Relatório da Polícia Judiciária de fls. 118 a 131;
- Informação clínica de fls. 202 a 204;
- Assento de nascimento do arguido, agora junto;
- CRC do arguido e relatório social.
*
O Tribunal pôde contar com declarações do arguido, uma vez que optou por prestá-las.
O arguido negou os factos, dizendo que «tudo o que aqui se diz é falso».
O arguido descreve a filha como uma pessoa de atitudes fora do normal, que faz birras com a mãe e com o arguido para os colocar um contra o outro.
Refere que estava pouco tempo com a família porque trabalhava e, quando estava, estavam várias pessoas normalmente presentes, não tendo o hábito de dormir com a filha sequer e quando a sua mulher, que adormecia na cama de casal, o fazia com a filha, o arguido ia para o quarto da filha dormir com o cão.
Era pontualmente que ia adormecer a filha e contar histórias, mas depois saía de lá.
Desde cedo dava banho à filha, na casa de ..., tomava banho com a mesma porque ela chorava por causa dos piolhos, passando-se isto entre os 4 e os 7/8 anos da filha. De repente a filha deixou de ter piolhos e deixaram de ter essa preocupação, deixando de tomar banho juntos.
Quando dava banho à filha lavava-a em todo o corpo, mesmo nas partes íntimas e a filha sempre teve ardor nas partes íntimas e usava produtos especiais por causa disso.
A sua mulher, quando o arguido não podia, é que tomava banho com a filha.
De Janeiro a Novembro de 2005 esteve a trabalhar no ..., só vindo a casa aos fins de semana.
A sua filha queixava-se de ardor «no pipi» e era comum o declarante, depois de a limpar, ver se estava inchado ou não, para o que abria um pouco as pernas da filha para ver. Muitas vezes chamava a mulher para ver também.
Até que um dia foram ao médico, a filha e a mãe.
Soube deste processo em 2019. Antes disso, nesse ano ou no anterior ainda, a filha veio-lhe com uma conversa sobre violação [quando tu me violaste, ou dito assim, não recorda] e, como a mãe se apercebeu da conversa e perguntou, o declarante disse logo que não era nada e foi embora porque tinha empregados à sua espera no carro.
Nem sequer percebeu bem a conversa da filha.
Mas pensa que a filha ficou contrariada por ter-lhe negado a compra de bilhetes para ir a um concerto de ..., pois que nunca nada se passou que pudesse motivar esta conversa.
Depois disso continuaram a relacionar-se na mesma.
Mais tarde a sua irmã DD (EE) disse-lhe que a filha lhe contara alguma coisa, ao que respondeu também que nada acontecera.
Até aos 10 anos da filha foi sempre o declarante que tratou da mesma.
É verdade que viveu na ... entre 2010/2011.
De Novembro de 2011 ao verão de 2019 esteve em ..., visitando a filha sem regularidade, indo a casa da ex mulher quando era preciso arranjar lá alguma coisa, ficando por vezes no anexo da casa.
Depois de se separar os contactos foram sempre mais distantes, um beijinho e um abraço, o normal, quando se viam.
Quando iam de férias para o ... ia deixar lá a mulher e filha e vinha trabalhar e depois só regressava a buscá-las no fim das férias. Não ficava lá normalmente e só um dos anos ficou lá uma semana.
Isso aconteceu até 2009, porque em 2010 já não estavam as coisas bem entre o casal e já não foi.
Entre 2009 e 2020 esteve uma vez no apartamento no ....
Em 2015 estive no ..., com a mulher e filha, tendo repartido cama com a ex mulher e a filha dormido na sala.
A filha é interesseira, só se dá com as pessoas por dinheiro.
Quando fez 18 anos quis que lhe pagasse a pensão directamente e o declarante recusou e ela fez uma birra tremenda.
A sua filha teve acompanhamento psicológico dos 4 ou 5 anos em diante porque tinha dislexia.
Depois daquela conversa a filha já esteve inclusivamente na sua casa.
As coisas só mudaram com a queixa.
Uma vez, após uma discussão da filha com a ex mulher, a ex mulher foi para o hospital com uma vértebra partida.
*
A prova da acusação:
Foram ponderadas, por constituírem prova adquirida nos autos, as declarações para futura memória prestadas pela ofendida nos autos.
Também foram ouvidas as testemunhas de acusação.
A este respeito, o Tribunal faz apenas uma curta consideração.
As testemunhas, qualquer delas, não assistiram a nada, nada conheciam dos factos directamente, e vieram falar horas seguidas de ressentimentos, embustes e pactos de silêncio familiares que nada dizem ao Tribunal e nada têm que ver com os factos.
A ofendida foi sucessivamente retratada [até por algumas testemunhas de acusação, mas sobretudo pelas de defesa] como pessoa mimada, desequilibrada, caprichosa, sendo que as testemunhas de defesa, familiares directos da mesma, maioria delas [as que assim a descreveram], contrapunham isso a um arguido vítima [na perspectiva do próprio], uma espécie de «criatura amorfa» [na perspectiva dos familiares que, de tão empenhados estavam em desacreditar a ofendida, se esqueceram até de se lhe referir], que está mas não está.
Assim andaram os depoimentos em geral. Visívelmente parciais, de acordo com o lado a que respeitavam [como se esta fosse uma questão de lados], evidente se mostrando isso relativamente a todas as testemunhas, mesmo as que tentaram ser mais subtis e esquivas nas declarações, ora transformando a ofendida em monstro, ora em mártir - à excepção das testemunhas FF, GG [sua mulher] e HH [sua enteada].
Falou-se de não se falar das coisas, falou-se de se ocultarem coisas, falou-se de relações familiares que não existem e de pessoas que aparentam uma situação que não existe, o artifício do retrato de família, falou-se de reuniões para se falar do que se não fala mas se quer calar [a queixa da ofendida].
Como seria até penoso para o Tribunal, com todo o respeito, estar aqui a sumariar os depoimentos, deixa-se desde já claro que nenhum facto [do objecto do processo] atestam, ficando as coisas facilitadas porque se podem ouvir as gravações deles sem a necessidade de os analisar aqui em pormenor.
Genericamente:
A mãe da ofendida, testemunha CC, confirma a conversa da violação que a filha teve com o arguido e que a testemunha ouviu.
O arguido disse-lhe que nada fez.
Levou a filha ao psicólogo e ....
Disseram que estava bem.
Nunca viu o ex marido fazer nada.
Acha que o marido ia contar histórias à filha para dormir, muitas vezes dormindo os 3 juntos.
A filha sempre foi agressiva para si [mãe].
Era ela [mãe] que pedia ao ex marido que desse banho à filha.
Ela estava muito fora.
A filha tinha muitas alergias respiratórias e não tinha outros problemas de saúde.
Aí por volta dos 14 anos a filha pediu para deixar de se dar com o pai, tendo retomado a relação com ele quando ele já tinha refeito a vida, tendo até passado um fim de semana na casa do pai e da companheira. Isto aconteceu já depois de ter ouvido aquela conversa sobre violação entre pai e filha.
A filha, quando ainda era casada com o pai da mesma, dormia no quarto dela e como era muito nova tomava banho acompanhada, mas começou cedo a tomar banho sozinha.
Tinha borbulhas na pele e fazia medicação.
Aos 9 anos da filha já o casal se separara, não havendo mais banhos com o pai.
A filha começou a ter coisas na escola cedo, de se irritar, aí com 12 anos.
Aos 17 anos passou por episódios de auto mutilação.
Depois tomou uns comprimidos e a tia teve de a levar ao hospital, foi até vista na ..., pensa que foi uma tentativa de suicídio. Mas depois disse que tinha ficado assim porque a mãe não a deixou sair à noite.
Este depoimento impressionou negativamente o Tribunal pelo desapego emocional e até desinteresse afectivo com que a testemunha falou da filha, como se fosse uma pessoa estranha, uma pessoa com quem tem conflitos mas não consegue o distanciamento suficiente para ver que, de um lado está uma menor ou jovem adulta, e do outro está um adulto, sua mãe.
A facilidade e o aparente desapego afectivo com que se falou de coisas tão emocionalmente complicadas, permitiram ao Tribunal perceber que, de facto, a ofendida encontra-se sem apoio emocional para lidar de forma consistente com a situação em que está envolvida.
Para além do irmão do arguido II, que usou da faculdade de não prestar declarações, as restantes testemunhas foram genericamente pelo mesmo registo.
Como aconteceu com a testemunha JJ, irmã da mãe da ofendida que, muito embora reconheça que a sobrinha lhe falou do acontecido há cerca de 3 ou 4 anos, num passeio que deram pela praia, nunca desconfiou antes de nada. No entanto, considerando a sobrinha, aqui ofendida, pessoa que estava psicologicamente muito afectada, enervada, que tinha sonhos de terror e não conseguia dormir, mas é uma rapariga com humor incerto.
Muito embora tenha sempre ficado na dúvida com o que a sobrinha lhe contou, guardou naquela altura para si as reservas, até que a sobrinha apresentou queixa e falou com a sua irmã, mãe da ofendida, que lhe disse nunca ter havido sinais de nada.
A testemunha KK, tia da ofendida, talvez uma das poucas testemunhas que manteve uma certa serenidade e até educação, ao dirigir-se à ofendida, veio descrever o convívio familiar do passado.
Depois relatou um episódio que terá ocorrido entre a sua própria filha (HH) e o arguido, envolvendo abuso sexual, situação que não conseguiram demonstrar perante as Autoridades competentes mas terá existido, e marcou o afastamento da mesma daquela família que girava em torno da desculpabilização do arguido.
Que isso sempre se soube na família e sempre se escondeu, que tirou a sua filha do contacto com a família e convívios onde o arguido pudesse estar.
Esta testemunha só teve contactos com a ofendida por volta da apresentação da queixa, porque os próprios contactos que mantinha com a família eram já afastados há muitos anos.
Só agora, recentemente, tem prestado apoio mais directo à sobrinha, precisamente porque considerou que a mesma não teve apoio de ninguém
Também a tia materna da ofendida, testemunha LL, veio dizer basicamente o que a outra irmã disse – que não sabia, nunca viu sinais, que a ofendida tinha problemas de humor, que a sua irmã (mãe da ofendida) lhe disse que a filha dissera ter sido violada pelo pai, tendo estado com a ofendida na época, a quem achou muito irritada e não estar bem.
Só começou a ver a sobrinha andar mal na adolescência, quando tinha cerca de 17 anos, tendo até pensado tratar-se de um esgotamento.
Como vive no ... vê menos a sobrinha, mas a ideia que guardou dela de pequena é que era muito meiguinha e agora viu-a mais agressiva, desde cerca dos 17 anos de idade, reagindo às coisas e até deixando de atender o telefone quando lhe diziam alguma coisa de que não gosta.
Quando a sobrinha lhe contou o que ocorrera, aceita não ter sido muito expressiva, admitindo que a mesma pudesse ter achado que não acreditara nela, e acha que essa foi a razão por que a sobrinha ainda agora não lhe responde a mensagens e chamadas.
Esteve sempre presente na vida da ofendida até cerca dos 12 anos dela e só depois, por ter ido viver para o ..., se passaram a ver apenas de 15 em 15 dias.
Sabe que a sobrinha teve acompanhamento psicológico no passado, andando com depressão e tomando medicação.
O relacionamento da ofendida com a mãe tem sido conflituoso, sobretudo desde o divórcio, quando a ofendida teria 12 anos de idade.
Sempre viu um bom relacionamento da ofendida com o pai e só depois do divórcio piorou, até ela ficar mesmo sem poder ver o pai à frente.
As testemunhas da assistente, que também a nada assistiram, vieram, pelo contrário, falar bem da mesma, tentando explicar os seus traumas e os problemas que lhe causava um relacionamento desastroso com a mãe e a falta de afecto suficiente por parte da restante família.
A psicóloga, MM, explicou o percurso escolar da ofendida por etapas de crescimento e problemáticas emocionais, dizendo-a uma menina complexa, que tocava piano e violino, que acompanhou por questões vocacionais e só mais tarde a mesma lhe falou deste sucedido, no 9º ano de escolaridade, procurando acompanhar a mesma sem lhe impor soluções, mas podendo recordar que era uma menina triste, falando de uma relação com a mãe que não era boa, sentindo que a mãe não a apoiava, e que o pai teria tido comportamentos menos próprios para consigo, de carácter sexual, não recordando pormenores do que lhe foi contado.
O que reteve foi que o pai teria sido violento para a ofendida do ponto de vista sexual.
Os episódios relatados ter-se-iam passado em casa e na casa da avó fora de Lisboa.
A declarante referiu-lhe que isso constituía crime e a ajudaria a denunciar e lidar com o assunto. Percebeu na altura que a ofendida não estava preparada para avançar com a denúncia e respeitou a sua vontade, mesmo tendo querido denunciar logo a situação.
Nunca pensou que pudessem os factos contados não serem verdadeiros, nunca teve dúvidas sobre a veracidade do que lhe foi contado [ao contrário de outras vezes em que outros alunos fazem denúncias e fica com dúvidas].
Na altura aconselhou a ofendida a falar com alguém de família em quem confiasse, porque era importante, e ela falou com uma tia de que gosta muito, mas não recorda o nome.
Entretanto a ofendida deixou aquela escola no final do 10º ano e não a viu mais.
Antes disso, depois de a ofendida lhe contar o ocorrido, mantinha sessões com a mesma quinzenais, para tentar ajudr o melhor que podia.
E a testemunha HH, a prima da ofendida a quem o mesmo teria acontecido em menina, com o mesmo arguido, veio dizer como soube do ocorrido com a prima, como a foi buscar no dia em que lhe ligou a pedir ajuda e a levou para casa da sua mãe, e como a ofendida lhe perguntou como fazia para estar com namorados depois do que lhe acontecera, porque ela não conseguia.
Depois contou como o arguido terá abusado de si quando tinha 4 ou 5 anos de idade, como isso determinou o afastamento da família porque a mãe não a deixava estar com o tio (arguido) e como a família, depois de saberem o que se passou com a aqui ofendida, reuniu e como a sua avó ainda procurou a ofendida para a influenciar a tirar a queixa e, nessa conversa, que a aqui ofendida gravou sem perceberem e deu à declarante para ouvir, a avó (mãe do arguido) dizia «aconteceu o mesmo à HH e isso passa».
E a testemunha FF, tio materno do arguido, marido da testemunha GG e padrasto da referida prima HH, que também a nada assistiu, veio confirmar o apoio que ele e a mulher têm dado à ofendida, e como marcou uma reunião com a família quando soube do ocorrido, e o que ali se passou – que a família já sabia o que se passara (excepto o seu irmão, que tem dúvidas que soubesse) e como isso o fez tomar para si a protecção da ofendida, até porque a sua mulher lhe contara, anos antes, o que sucedera com a filha e a família toda dizia que a HH mentia, o que provocou o afastamento da mulher da restante família. A família encobriu sempre o arguido, sobretudo a mãe e a irmã do arguido.
Há cerca de um ano a BB contactou-os porque queria sair da casa da mãe porque a mãe sabia de tudo e estava a ameaçá-la, e o declarante teve a ofendida na sua casa um tempo, sendo a sua mulher quem lhe paga a faculdade.
A BB, no início, falava disto sempre a chorar e só agora, embora se mostre revoltada com a vida, deixou de o fazer.
Muito embora não perceba porque razão a ofendida não tem namorado, aceita que possa ter que ver com esta situação, muito embora ela fale mais à vontade com a sua mulher e enteada do que consigo.
Soube da gravação que a ofendida fez da conversa que a avó e tia foram ter consigo depois de saberem que a queixa tinha sido apresentada.
As testemunhas de defesa, também a nada tendo assistido, vieram falar muito daquilo que não se podia falar, do carácter da ofendida que foram sempre criticando, de forma mais directa ou sibilina, nenhuma delas sabendo de nada do que se passou senão por ouvir dizer, e cada uma por ouvir dizer na versão que mais lhes aprouve reter.
A mãe do arguido, NN, aproveitou os intervalos de um discurso aparentemente afectivo para com a neta para «meter farpa» no carácter e estado emocional da mesma – que a neta tinha uma relação muito profunda consigo, muito próxima, e nunca nada lhe contou; que soube das coisas pelo seu irmão FF, numa reunião que convocou, e que aí ameaçou que ia fazer tudo «para que a verdade viesse ao de cima», tendo esse irmão levado a sua neta para casa deles, tendo-lhe «feito a cabeça» e depois de a influenciarem, como não estavam para a aturar, a recambiaram para casa da mãe; sabia do alegado episódio ocorrido com a HH e disse à GG, na altura, que tomasse providências e a própria GG lhe disse na altura que nada estava provado e que não sabia se era verdade, ou não, o que a filha lhe contara; nessa noite perguntou directamente à BB e ela garantiu que era verdade e disse que também era uma vingança contra o pai por lhe ter pedido que lhe desse directamente a pensão alimentar e ele recusou; disse-lhe a ofendida «eu tenho de me vingar dele»; não explicou as circunstâncias do abuso e nem mais nada; que a ofendida é vingativa e tudo lhe serve de pretexto, tendo mesmo uma vez partido uma costela à mãe com um pontapé.
Depois falou disso ao filho, que negou tudo.
Sempre teve uma relação muito próxima com a neta, muito embora tenha alertado os pais da mesma, quando ela tinha cerca de 7 anos, para o facto de «estarem a criar um monstrinho» e disse à mãe da miúda para a levar a um psicóloco.
A miúda era maquiavélica, com a mãe e também não gostava dos colegas da escola.
Atirava comida para a parede, mordia na mãe, empurrou-a e ela caiu das escadas, obrigava-a a ir do trabalho a casa só para aquecer a comida, chegando mesmo a atirar um piano pelas escadas de casa.
A nesta estava num estado estérico quando foi saber junto de si se era verdade o que lhe contara o tio, tendo «caído um pedragulho em cima de si» e não tendo sabido gerir a situação e disse à neta que devia ter falado consigo antes de ir às Autoridades.
Jamais acreditou que o filho tivesse feito o que se disse.
Depois daquela reunião a BB terá dito à GG que «não era isto que eu queria» e a GG respondeu-lhe «foi isto que fizeste e é isto que vai para a frente!».
E o registo em que veio a testemunha OO não foi muito diverso.
Também nada viu e nada sabe senão de ouvir dizer, mas falou muito daquilo de que se não pode falar, ou seja, da sobrinha «rebelde, desequilibrada, aos beijos ou a partir tudo», logo desde muito pequena. Viu-a diversas vezes maltratar a própria mãe, gritar e desobedecer, fazer o que queria.
Há anos atrás a mãe da HH contou os alegados abusos à família, depois afastaram-se deles, não tendo sabido de nada em concreto, mas só do diz-que-disse; nunca acreditou em nada porque, se fosse verdade, a mãe da HH devia ter feito queixa e, ao invés disso, levou a filha a um médico, disse que não havia nada e que deviam por uma pedra sobre o assunto. E a BB, por seu lado, sempre foi problemática, não lhe vendo qualquer diferença de comportamento nestes anos.
E a outra irmã do arguido, PP, que de nada também sabia a não ser do que ouviu a outros, veio também dizer que a sobrinha se dava mal com a mãe e bem com o pai, e lhe disse que fizera isto para se vingar apenas.
Voltou a tecer as idênticas considerações sobre o que se passou com a HH, indo até mais longe que os restantes, dizendo que a HH lhe referiu que não sabe porque continuavam a falar de um assunto de que já nem recordava nada.
Repetindo o que as demais testemunhas que vieram negar a versão da ofendida vieram aqui dizer.
E a testemunha QQ, prima da ofendida, veio fundamentalmente dizer – porque dos factos nada sabe senão de ouvir dizer – que o arguido, seu tio, nunca teve qualquer comportamento desadequado para consigo.
A testemunha RR, irmão do arguido, que também de nada sabe senão de ouvir dizer, veio também desabonar a ofendida, dizendo-a «um pouco estranha», falando bom consigo sozinha mas junto de outras pessoas «parecendo que o mundo lhe devia qualquer coisa», sempre «um pouco irritadiça».
Tendo esta testemunha aproveitado para informar o Tribunal de que a referida testemunha GG, que estará a patrocinar esta queixa da ofendida, foi sua amante e por isso lhe contou que desconfiava que o arguido fizera alguma coisa à sua filha HH porque a miúda se queixou de que lhe doíam as pernas depois de fazer uma sesta com o tio, tendo-lhe dito então que fosse ao médico e fizesse «o que era de justiça» e que depois deu em nada e o pai da HH disse-lhe que a miúda tinha investado tudo.
Não ficou preocupado porque conhece o irmão. Mas confrontou o mesmo na altura com o que a GG contou e ele respondeu-lhe que estava a dormir e a miúda foi ao seu quarto e depois foi embora.
E o mesmo se diga da testemunha SS, pai da QQ, que, nada sabendo do que aqui se trata, veio falar do que acha que aconteceu no «caso da HH».
*
Depois de tanta gente ter falado daquilo a que não assistiu, depois de tanta gente ter vindo falar do que acha que está na origem deste processo, do que acha que aconteceu no «caso da HH» e do que acha que não aconteceu neste caso, veio a ofendida, chamada pelo Tribunal, prestar novas declarações, complementando as para futura memória.
A ofendida tem 22 anos feitos, dá aulas de violino e piano.
Veio contar, basicamente, a sua vida, desde pequena e de que se lembra.
Disse que os pais se divorciaram quando tinha 7 anos, muito embora ainda vivessem juntos, mas via menos o pai.
Que os abusos começaram na casa do avô materno, em ..., que partilhavam de 15 em 15 dias, e a ideia que tem é de que ia fazer 7 anos de idade, e o último acontecimento foi na casa da avó paterna, em ..., quando tinha 12 anos e se negou a fazer o que o pai queria porque já tinha o período.
No primeiro acontecimento, adormeceu com os pais no quarto, «enroscando-se» ao pai para não ter frio e o seu rabo roçou na genital dele e ele começou a roçar-se e ela também, era como se fosse um jogo, não tinha noção do mal que aquilo significava.
O pai puxou as cuecas da declarante para o lado e colocou o seu pénis no seu rabo, como se fosse um jogo ainda lhe disse «então, não tens força?». E o seu pai teve erecção, porque o seu pénis estava duro.
Descreve o quarto como sendo onde ficavam habitualmente, normalmente onde dormia com o pai porque a mãe, desconhecendo porque razão, preferia dormir no quarto dela [declarante].
Já antes desse episódio o pai passava a mão pelo seu corpo, adormecendo com a mãos nas «suas partes privadas» e mesmo que a declarante lhas tirasse de lá ele voltava a pô-las lá. Isto acontecia já, várias vezes, nem sequer se recordando quantas e desde quando.
Não era só agarrar, mas também não tem ideia se eram só festinhas que fazia.
Aquele primeiro episódio repetiu-se várias vezes, não sabe quantas.
Na mesma cama não se lembra de mais vez nenhuma, mas aconteceu noutros lugares, como na casa-de-banho – não foi o pai roçar-se nela mas fazer festas nas «suas partes íntimas».
De facto, tomava banho com o pai, era ele que a lavava.
Ele fazia-lhe festas no peito e no rabo como se estivesse a lavar e punha o pénis dele dentro das suas nádegas.
Nesta casa referida, isso aconteceu pelo menos duas vezes.
Hoje, olhando para trás, entende que essas festas eram sexuais, não uma forma de a lavar.
Mais do que uma vez tentou tirar as mãos do pai do seu corpo e ele dizia que não. Até a forma como ele olhava para si, percebe agora, era de cariz sexual.
O segundo episódio, o do banho, ocorreu no mesmo ano.
Não tem ideia de o pai ter parado com este tipo de comportamentos em qualquer altura.
Cada vez que estava com ele sentia o desconforto de isso acontecer.
Mais tarde, na casa da avó, no ..., voltaram a acontecer coisas, mas só recorda parte.
Recorda uma vez em que a família da mãe estava no exterior da casa e a declarante estava a dormir a sesta num quarto onde ficavam habitualmente quando ali iam, e era hora de calor, após almoço, estando a persiana fechada mas havendo assim mesmo muita luz de fora.
O pai estava na cama consigo. Começaram por se roçar, acha até que estava a gostar, e o pai pôs o pénis no meio do seu rabo, tendo a declarante cruzado as pernas porque isso de alguma maneira lhe deu prazer, não sabe explicar, e o pai dizia qualquer coisa, não recorda, e tinha medo que o primo entrasse no quarto e ate de respirar. O pai roçou-se nela e chegou mesmo a roçar-se na zona dos seus lábios vaginais, tendo o seu pénis contacto com a parte exterior da sua vagina.
Nestes anos, não recorda que o pai a tenha penetrado efectivamente.
Não se lembra «se ele se vinha», não sabia o que era. Roçavam-se e chegava a um ponto em que parecia que tinha concluído e depois dormiam e depois acordavam normalmente.
Na vez seguinte que recorda, ainda na primária, na primeira casa onde viveram na ..., estava na cama, no quarto do pais onde costumava dormir, e ficara com o pai em casa por estar doente.
Dormiu com o pai e não sabe se aconteceu alguma coisa durante a noite, mas quando acordaram a declarante começou a saltar na cama e na barriga do pai e ele disse-lhe que iam jogar um outro jogo.
Já sabia o que isso significava porque o pai fazia sempre a mesma cara nessas ocasiões.
Disse que era um jogo que nunca fez antes.
Ficou desconfortável com isso mas não disse nada porque se o pai queria fazer um jogo ele é que sabia o que era suposto fazer-se.
O pai roçou-se em si, parecia que tirava prazer do facto de lhe tirar as cuecas com só um dedo, pôs de lado a cueca e pôs o pénis no rabo da declarante, roçando ainda mais, parecendo a certa altura estar possuído, tendo-se depois posto em cima de si, parecendo um animal – estava por cima de si e fazia movimentos, tentou pôr-se dentro da declarante e ela não percebia e tentava tirar o pénis dali e ele roçava-se na sua perna e isso parecia até dar-lhe mais prazer.
Roçou-se no rabo dela e na sua vagina.
Depois disso, o pai «desceu e lambeu o pipi» dela.
Depois levou-a à casa-de-banho, limpou-a no bidé porque tinha líquido branco e disse que [lá em baixo] passaria a mão para limpar e depois a declarante ainda foi tomar banho.
Nesta casa dos pais aconteceu o pai roçar-se em si no banho, uma ocasião acha que a mãe até estava em casa, tendo até a declarante aí começado a achar que a culpa daquilo acontecer era sua.
Ele estava no banho e a declarante entrou para a banheira e foi buscar o gel de banho e foi para a zona da água e ficou de costas para o pai e ele achou isso provocação e pegou no seu pénis e colocou no rabo da declarante, esfregando-se, no meio do seu rabo [sentiu a mão dele colocá-lo lá, embora sem a penetrar].
Recorda-se que isto se passou fora de férias, portanto, em período de aulas.
A declarante afastou-se e tem a ideia de ele ter-lhe feito só festas e mais nada.
Noutra ocasião, na mesma banheira, tendo a ideia de que era um fim-de-semana, não sabendo se tinham tomado banho juntos ou apenas a declarante, e o pai sentou-se na banheira, com a água a certo nível da cintura [com as penas cobertas pela água], e para lavar o seu cabelo [da declarante], o pai pôs a cabeça da declarante junto ao seu pénis, fez festas nela, lavou-a com gel e movimentos mais calmos e suaves sempre em zonas «menos próprias» do seu corpo e deu-lhe prazer – é o que se lembra, da sua cara frente ao pénis do pai e ele de pernas abertas à sua frente.
Numa outra ocasião, na casa da sua avó, roçaram-se um no outro, em roupa interior, e o pai pôs o pénis no seu pipi e rabo e roçou-o aí.
Na última vez, na cama da casa da avó materna [talvez Natal ou Páscoa], onde o pai dormia, acha que até já tinha o período e tinha medo de ficar grávida, o pai tentou e agarrou-a e ficou agarrado a ela na cama, roçando-se nela, tentou tirar as suas cuecas mas a declarante agarrou-as e ele não fez mais nada, ficando agarrados e adormeceram assim. Estavam de roupa interior e ficaram assim.
Em 2019 falou com alguém pela primeira vez sobre estas coisas.
Viveu quase sempre com a avó no ....
Estava no 9º ano, muito deprimida, apercebeu-se da gravidade disto tudo, faltou quase dois meses à escola.
Tinha problemas de raiva, odiava tudo.
Uma vez o pai foi à sua casa [da mãe] e ela disse-lhe que ele lhe tinha estragado a vida toda, mandando-o à merda e ele disse-lhe que estava a inventar. Devia ter 13 ou 14 anos de idade.
Já outras vezes tinham falado nisso, mas só desta vez ele disse que era mentira.
A mãe ouviu, discutiu com ele, a declarante foi para o quarto. Depois a mãe foi ter consigo, agarrou nas suas mãos e perguntou se o pai a tinha violado e disse que sim, e a mãe pediu desculpa e disse-lhe que a ia proteger.
Não sabe o que discutiram mas ele dormiu lá em casa.
No dia seguinte o pai e a mãe estavam na mesma cama.
Entrou no quarto, sentou-se na cama e a mãe disse-lhe para se afastar do pai e o pai respondeu-lhe «para se deixar de tretas» e a declarante fez o mesmo, porque lhe pareceu melhor.
Nos dias seguintes a mãe tratou-a muito bem, quando a via a chorar ficava consigo, muito embora não tenha falado em ir à polícia nem nada.
Passado algum tempo o pai saiu de casa e dias depois a mãe voltou ao mesmo, a ser má para si.
No ano seguinte começou bem o ano escolar, mas depois ficou mal outra vez, os professores queriam que fosse à psicóloga da escola.
A mãe dizia-lhe que a polícia não resolvia estas coisas, que «não dá em nada» e que para lidar com o sofrimento dava-lhe um abraço.
Quando tinha 14 anos contou à psicóloga da escola TT em ... que lhe tinha feito os testes psicotécnicos.
Contou-lhe que o pai a violara e ela disse para irem à policia e a declarante não quis e a psicóloga disse-lhe que estava «ali para ela e para a ajudar», sendo que a declarante tinha pânico porque sabia que isso lhe ia estragar a vida e só queria esquecer o assunto.
Contou também a uma amiga, UU e descreve a conversa e o sucedido.
No dia em que fez a queixa, com 18 anos de idade, estava no meio da pressão de entrar para a faculdade e tinha ataques de pânico, desde logo quando tomava banho porque o pai sempre teve a chave de casa.
Depois descreveu como contou à amiga VV e porquê e como foi apresentar a queixa e como depois tudo se desenvolveu, até que a tia GG lhe ligou a «dizer que estava lá para ela» e soube que a família já sabia.
A declarante nessa altura também já sabia o que tinha acontecido com a prima HH e o seu pai, porque a sua própria avó lhe contou que algo de semelhante acontecera com a HH e ela já tinha seguido em frente.
Depois de fazer o exame de ginecologia para o processo a mãe disse-lhe que a avó e a tia EE iam lá a casa falar-lhe, e foram.
No início foram muito simpáticas mas depois tudo mudou - «então vamos lá sentar», disse a avó e fechou a porta da sala (só estavam a declarante, a avó, a tia EE e a mãe da declarante). A sua mãe, como sempre fez, disse-lhe que era maluca; e o que o pai lhe fez não teria sido suficiente e que era assim que lhe pagava [a ela, sua mãe] o que sempre lhe dera.
Nessa altura decidiu gravar a reunião, como fez.
A mãe dizia-lhe que era uma cabra, um monstro, uma merda. E a avó disse que tinha havido uma reunião na casa do tio FF. E a EE até gritou a dizer que o pai foi julgado na praça pública.
A avó disse que isto era para a humilhar, que isto era para discutir só com a mãe, que são assuntos de família, disseram-lhe que a avó se ia suicidar e a culpa era sua, mil e uma coisas, de insultos a pressão para acabar com o processo.
Depois contou como tem sido o tempo decorrido, com quem tem vivido, como faz acompanhamento psicológico e como foi sucessivamente pressionada até que um dia disse mesmo à EE que não queria ser responsável pela morte da avó e que estava arrependida de ter feito a queixa.
A EE, que acha que nunca duvidou do que a declarante lhe contou, disse-lhe que tinha tido com o arguido uma conversa de mais de uma hora sobre isto que se passara mas que as coisas não se resolviam com processos em Tribunal.
Depois das declarações da ofendida o arguido quis prestar novas declarações onde, para além de reiterar a negação dos factos, disse que a filha não era uma pessoa «bem com a vida», nunca lhe quis fazer mal ou abusar dela, a mãe não tinha paciência para a aturar e era ele que tinha, estava horas com ela na banheira por causa dos piolhos. Não o devia ter feito, talvez. Se fosse hoje não lhe passaria o creme pelo corpo.
Uma vez acordou agarrado à filha pensando que era a mulher.
Pode ter tido uma erecção mas é porque todos os homens têm quando acordam antes de ir à casa de banho.
Nada mais aconteceu.
«Quanto mais damos, menos agradecem» rematou, mas falou aqui de coração, sem discurso.
Que a filha já fez muita asneira, até já respondeu em Tribunal e foi ele quem lhe pagou as coisas.
«É pena que esteja assim, que tenha chagado a este ponto.» «Não fez nada de mal à miúda, e o que fez foi para bem dela», e o que ela disse foi má interpretação e imaginação dela.
*
Entrecruzando os elementos de prova
O que dizer da prova que parece tão divergente consoante o polo em que se encontra quem testemunhou?
Na verdade, parecendo embora distante, está toda ela equidistante dos factos, sem curar de saber para já quais e de que tipo.
De facto, quando se nos depara uma situação descrita como de abuso sexual sobre menor, há desde logo alguns traços que o decisor deve procurar como normalmente invariáveis.
São eles, como na generalidade dos crimes sexuais acontece, o recolhimento em que as circunstâncias se dão ou podem dar.
De facto, é traço comum que os comportamentos abusivos aconteçam longe de olhares terceiros, pelo que se compreende que não haja, à excepção dos envolvidos, outras testemunhas que atestem tais condutas.
E aqui, de facto, não tendo o arguido aceite os factos, fica-nos apenas a vítima, na altura menor, como testemunha.
Por outro lado, isto implica que todas as restantes testemunhas, não presenciais de qualquer facto, tenham vindo apenas atestar uma de duas coisas: ou que não houve qualquer momento em que a indicada vítima e o indicado autor tenham estado juntos, designadamente sozinhos; ou que, tendo estado sozinhos, caracterizem a personalidade de indicado autor de modo tal que considerem inviável que tenha praticado abusos ou/e descrevam as circunstâncias de tal modo que fosse de todo inviável que o abuso acontecesse ou, finalmente, como aqui aconteceu, descrevam a vítima de tal modo que a seja ela o demónio desta história.
Quanto ao primeiro ponto, já vimos que nem sequer a questão se põe, uma vez que a ofendida e o arguido estiveram juntos, diversas vezes, quer em família com outros quer sozinhos, quando o arguido estava em casa, numa das casas onde iam normalmente, consigo.
De facto, ninguém pretendeu escamotear este assunto, aliás, como não faria sentido que o fizesse, tendo inclusivamente sido genericamente aceite que o arguido gostava da filha e passava tempo com ela, sendo particularmente devoto do tratamento dos piolhos e dos banhos, sempre sozinho com a mesma.
Quanto aos segundos pontos, a explicação não diverge muito.
Muito embora o arguido venha caracterizado como pessoa incapaz deste tipo de comportamentos, o facto é que na grande maioria dos casos desta natureza, alguns do conhecimento público inclusivamente, os agentes do crime são genericamente pessoas de quem não se pensa serem capazes de abusos sexuais, pessoas sociáveis e reconhecidas como boas pessoas pelos seus e em geral.
Portanto, em rigor, nada neste particular contexto difere daquilo que é o comum das circunstâncias neste tipo de realidades.
Particularizando, também conseguimos perceber que, muito embora o arguido fosse pessoa de estar algum tempo afastado da família, estava com alguma regularidade com a filha, fazendo a família os referidos convívios em que aproveitavam para se juntar, ou para alternarem nas casas que tinham de família, ficavam com muita frequência na casa do avô, da avó, tanto mais quanto, em tempo de férias até se lhes juntavam outros familiares (como primos) e, no tempo de aulas, mesmo na casa da avó, estavam pai e filha como queriam, sem interacção com mais ninguém.
Depois, neste contexto, temos três outros factores: primeiro, o arguido contava com a sua própria família para o «normalizar», já que, ao que pensamos ser de acerto e normalidade, bastaria, numa família comum que houvesse sequer desconfiança de algum episódio passado e já não havia sestas e nem banhos com outros menores em casa – portanto, foi a família, que sempre encobriu e silenciou o passado ou as suspeitas que fossem desse passado que permitiu, com o seu silêncio, desinteresse e omissão, que estes contactos com a ofendida fugissem do padrão: numa família considerada média ou comum, o pai vai para a banheira horas com uma filha com a desculpa de haver piolhos, ou alergias de pele? Não será o contrário?; segundo, que o arguido levava a menina para o quarto e a adormecesse, dormindo com a mesma e a mãe saindo dali, da cama do casal, para dormir sozinha no quarto da filha – isto é o padrão? Onde estão os sentimentos maternais que já não deixam a mãe dormir quando um filho tem maus sonhos, ou não consegue dormir? E ainda que isso se passasse, por exemplo, porque o pai até «podia ter mais jeito» do que a mãe, o que se pretende é convencer este Tribunal de que aquilo que se passava era o padrão e a normalidade?; terceiro, a ofendida, a quem todos abandonaram durante o crescimento ao abrigo deste tão elevado padrão moral que aqui ficou descrito, e que continua sozinha agora, nas consequências de tudo o que aconteceu, ainda tinha de continuar a ocultar tudo isto porque o conselho da tribo não permitia terceiros a meterem-se na família, mesmo depois de uma tentativa de suicídio da ofendida?.
Estes padrões que aqui vieram trazidos têm tanto de repugnante como de castradores.
Vamos por partes.
O arguido começou por negar peremptoriamente tudo.
Foi nessa tarefa amplamente coadjuvado por quase toda a família – nada disto foi verdade e a ofendida é que é a criatura diabólica, desequilibrada, mal formada e delinquente.
Foram apenas três as pessoas que deram credibilidade à ofendida e a ajudaram.
O que têm estas personagens de fora do padrão? Parecem pessoas que têm laços afectivos reais entre si e têm um episódio triste no passado também.
O sofrimento comum e a boa formação permitiu a estas pessoas o distanciamento suficiente para ajudarem sem impor, percebendo – porque o seu próprio passado ainda traz dor – que estes assuntos se resolvem e não se escondem, e dando o espaço suficiente para não estragar laços afectivos entre terceiros [por exemplo, não afastando a ofendida da sua própria mãe e família].
Os restantes, todos, incluindo a mãe da ofendida, muito mal impressionaram o Tribunal com os depoimentos que vieram prestar. Ainda que se entenda a coesão familiar, quando ela deva existir e não seja por motivo vergonhoso, já mal se entende que tanta gente tenha vindo, sem nunca terem assistido a nada, sem sequer saberem o que se passou, dizer simplesmente que a ofendida é e sempre foi uma desequilibrada.
Repare-se, isto é tanto mais grave quanto, ouvidas as declarações escorreitas da ofendida, é o próprio arguido quem vem, no final, aceitar parte dos factos – afinal os banhos prolongados, de mais de duas horas, são mesmo verdade (muito embora a esperança fosse, talvez, a de afogar os piolhos pela exaustão, certamente); afinal nesses banhos havia festas (porque o arguido até acha que se fosse hoje «não iria para a banheira com ela e não passaria creme no corpo dela»); afinal dormiam juntos a sesta, despidos quase («o calor era muito» e a roupa era pouca); afinal, havia contactos na cama com a filha («uma vez acordou agarrado a ela a pensar que era a mulher e pode ter tido uma erecção, porque é normal os homens terem antes de irem à casa de banho»).
Afinal, parece que a ofendida «desequilibrada» não inventou coisas.
Vamos fazer as perguntas certas:
É normal um pai entrar para a banheira com uma filha de 11/12 anos, dar-lhe banhos diários de duas horas, apenas para lhe tratar dos piolhos? Quantos casos conhecemos destes? E os produtos para os piolhos? Os piolhos matam-se com água? Como dissemos, só se for pela exaustão.
Quantos casos conhecemos [para além daqueles que têm com este afinidades] de pais que, em banhos de duas horas com as filhas de 11/12 anos de idade fazem festas no corpo das filhas?
Quantos casos conhecemos de pais que se despem e despem as filhas para dormirem sestas à tarde?
E quantos pais acordam agarrados a uma filha de 11/12 anos como se fosse à mulher?
E quanto à suposta erecção que, segundo o arguido, os homens têm antes de ir à casa de banho pela manhã, sempre se dirá que existe uma diferença de substância entre os homens e os restantes machos na natureza, que se chama inteligência e que leva, necessariamente, à aquisição de posturas educacionais e culturais. Essa diferença é todo um mundo novo, sabemos, mas é aquela por que deve medir-se o padrão, e não outra.
Isto tudo, sendo um elemento apenas, releva por si só.
Mas releva mais ainda no contexto das declarações da ofendida, uma vez que a mesma refere os factos por que passou nesse mesmo contexto a que o arguido pretende dar relevância diversa. E releva também porque daí se retira que a ofendida, aliás como vem dito na perícia, não inventou oportunidades e nem circunstâncias.
E também releva quanto ao restante, quando a ofendida diz que o arguido, nesses contextos – que, à excepção do último que singulariza, o arguido aceita – diversas vezes os usou em benefício da sua satisfação sexual.
Claro, e falando apenas das declarações da ofendida, que o que daqui se retira é que a mesma não inventou circunstâncias. Elas eram encaradas com normalidade na família, claro, desconhecendo-se o que ali acontecia, facto que é apenas do conhecimento da mesma ofendida como é normal que seja. Aliás, mal seria se mais alguém na família tivesse testemunhado ou desconfiado disso e contemporizasse com comportamentos tão graves.
Portanto, o que se retira deste lote de considerações é que nada no comportamento do arguido à vista da família parecia destoar do normal. Ou, pelo menos, não se prova o inverso. Como acontece também da generalidade dos casos em que estes abusos se verificam.
As circunstâncias estão lá. A ofendida fala delas. Conta o que o resto das pessoas que as referem não sabem que aconteceu durante as mesmas. Até aqui, como se percebe, nenhum dos depoimentos contraria ou invalida, nem que seja tangencialmente, as declarações da ofendida.
Como teve o cuidado de se dizer acima, as pessoas vieram depor a julgamento sobre coisa diversa, tendo o processo servido às testemunhas para acertos de contas pontuais, como bem resulta das declarações gravadas.
Na circunstância de ter de perceber o fundo destas questões, o Tribunal viu-se na contingência de ter de ouvir o que diziam, de modo a retirar de todos os depoimentos, como tirou, a convicção de que a família não apoiou a ofendida, nem no passado e nem agora [excepção feita aos tios de que se falou acima], o que deixa no Tribunal também a convicção de que isso terá estado na base dos comportamentos desestruturados daquela – acessos de raiva, tentativa de suicídio, conflitos com a mãe.
Além disto, temos ainda a perícia feita à menor que a descreve como atenta, espontânea e sem contradições mesmo apesar do tempo decorrido sobre os factos, sobretudo desde os primeiros. O que se conjuga com as declarações da própria, antes de julgamento.
Finalmente, as declarações da ofendida em audiência.
Escorreitas, sem tentativas de inventar o que não recorda já ou não consegue já pormenorizar, como refere a perícia, com calma, na linha daquilo que se descreve como sendo traços da sua personalidade, sem que se suscitem dúvidas sobre a seriedade das declarações.
Ouvidas as declarações, depressa se percebe que a ofendida não inventou os lapsos de tempo de que não tem memória, procurou chegar aos factos por recordação, servindo-se de referência com as situações que mais foram ficando marcadas.
Este contexto de prova persuade para que se tenham por boas as declarações da ofendida e, com elas, a veracidade dos factos por si expostos, no que acreditou o Tribunal tendo em conta tudo o que se expôs.
Determinante foi, como se perceberá seguidamente, o facto de a mesma ter conseguido, de algum modo, concretizando factos que depois foi dizendo que se repetiram dessa mesma forma, ter conseguido também dizer que os abusos tiveram lugar no intervalo de tempo que já resultava apurado. Mais do que isto, perguntada quantas vezes se passaram, disse não saber quantas vezes ocorreram os factos mas sem descrever as ocorrências que principalmente recorda e, apenas depois disso, dizendo que se repetiram em iguais moldes.
*
Como sabemos, e a experiência aponta com alguma normalidade nestas circunstâncias, nos abusos de menores, para além de tudo o que se referiu antes, estamos perante vítimas que, sendo de idade inferior a 16 anos, estão em crescimento, com a personalidade em formação, com os processos de cognição perante as circunstâncias da vida ainda também em aperfeiçoamento, pessoas em formação a todos os níveis, portanto também quanto à valoração dos actos da vida num quadro emocional que está em constante maturação entre as influencias educativas, morais e culturais do meio e aquilo que é o sentir de certo ou não certo, justo ou menos justo, provocador de sofrimento ou não.
Por isso mesmo, além de tudo e da eventual concorrência também de bloqueios emocionais para evitar ou minimizar o sofrimento solitário, estamos perante pessoas que normalmente não têm também instrumentos de defesa suficientemente interiorizados, para quem a queixa pode ser anulada pelo pedido de segredo ou exigência dele, pelo sentimento de solidão e de vergonha que por vezes se instala.
Neste quadro tão amplo de cores emocionais, não é estranha a dificuldade de concretização das vezes em que aconteceram os abusos, e se são vários e durante vários anos, mais difícil se torna a concretização.
A ofendida conseguiu fazer nos termos atrás expostos.
Debate-se hoje o direito penal com a dificuldade de convocar para o âmbito de protecção da norma aquela que parece ser uma concretização de facto um pouco ainda vaga e a necessidade de estabelecer a forma concreta de actuação e, sobretudo, a intenção criminosa, num sistema legal de culpa concretizada em que parece exigir-se a individualização do mal para se singularizar, ou não, a circunstância.
Acontece que a vida, ao contrário da ciência, não parte da abstracção para a concretização, mas faz o percurso contrário. E a partir do momento em que a concretização, designadamente numérica, não parece resultar de fácil apreensão num universo de anos em que o sofrimento esbate as circunstâncias, então aí a ciência procura soluções, por vezes esquecendo que a normalidade da vida nos inibe de a viver por apenso a um bloco de notas tipo agenda.
De facto, se a menor porventura chegasse ao Tribunal com as datas assentes de cada facto, com grande probabilidade causaria estranheza e alguma desconfiança.
Se, por seu turno, isso não acontece, porque a vida não acontece em fotogramas seleccionáveis em que a data e local aparecem pré instalados numa imagem congelada, então ao Direito competirá adequar-se e adequar a decisão à vida e não adequar a vida ao Direito.
O que aqui temos é um complexo de factos que são de abuso sexual de menor, com todo o desgaste emocional que isso provoca, com o sofrimento (recorde-se, a ofendida auto mutilou-se, tentou o suicídio e faz acompanhamento psicológico) que se estendeu por um período de, pelo menos, vários anos.
A acusação refere serem 13 circunstâncias e mais 1 circunstância, portanto 14 crimes no total, sendo 13 integradas no nº 1 do artº 171º CP e a restante também no seu nº 2, todos eles agravados pelo artº 177º CP.
A ofendida confirma isto, retirando-se tal número das suas declarações.
De facto, a ofendida diz que foram, pelo menos, essas as circunstâncias, mas que tem a percepção de terem sido mais, muito embora não consiga numerá-las.
E o Ministério Público, bem, dizemos, fez passar isso mesmo para a acusação.
O arguido prestou, como se viu, declarações e negou primeiro os factos para depois, no final, aceitar algumas das circunstâncias.
A ofendida localiza as primeiras circunstâncias, tal como faz a acusação em (7), antes mesmo dos 7 anos de idade, mas por cerca dessa idade e depois dela, dizendo que aconteceram várias vezes.
O Ministério Público – repete-se, bem, diz que tal aconteceu em, pelo menos, duas ocasiões.
É precisamente o raciocínio que o Tribunal faz.
Tratando-se de crimes contra as pessoas, em que cada acto violador do bem jurídico tutelado pela norma constitui um crime, falando a ofendida em mais do que um mas sem certeza de quantas vezes aconteceu, a decisão segura em termos judiciários é de que, em pelo menos dias vezes, o crime se verificou.
Depois, todas as restantes vêm descritas como na acusação, tendo servido de referência à ofendida a casa onde estavam à data dos factos.
E também o episódio a que a acusação atribui maior gravidade [em termos de moldura penal] está bem caracterizado em (13), tal como a ofendida confirma e descreve.
Assim, ao contrário do que alguma jurisprudência hoje em dia vem defendendo, alinhamos aqui com aquela que, afastando o crime único com pluralidade de actos e o crime de trato sucessivo [que desconhecemos mesmo o que seja no contexto dos crimes contra as pessoas], defende que a determinação mínima do número de ocorrências deve resultar na prova de pelo menos essas, o que equivalerá a um crime por cada uma.
Se pensarmos bem na estruturação do edifício penal, desde a culpa à forma de cometimento do crime, entre o mais, percebemos que só desta forma a aplicação do direito faz aqui sentido.
Claro, não é fácil muitas vezes concretizar de modo a chegar a um número, o que bem pode levar a que, e não através do trato sucessivo, venha a considerar-se provado um único crime.
Não é, porém, o caso.
Na medida do que lhe foi possível em face de tudo o que se deixou já dito, muito conseguiu a ofendida que, descrevendo o início e termos destes comportamentos, os caracterizou, permitindo perceber-se o escalar da gravidade dos mesmos o que também se revela dentro de um padrão nestes casos.
Nesta tentativa de aproximar o direito à vida, a jurisprudência que nos parece de melhor inspiração e melhor argumentação, entende que não pode, à força de pouca concretização de facto, cair-se no erro de deixar entrar pela janela aquilo a que se fechou a porta – crime contra as pessoas, impossibilidade de ver senão uma renovação criminosa em cada acto praticado, uma ilicitude profundamente grave, repetida, mesmo quando cometidos os primeiros actos a desconsideração quanto aos restantes das suas consequências, enfim, um conjunto de considerações que não permitem, por um lado, simplesmente dizer que se trata de um crime continuado (pois que é mesmo o seu inverso) e também não pode dizer-se que é de trato sucessivo, pois que a conclusão seria a mesma.
Assim, estamos perante tantos crimes quantas as circunstâncias permitem apurar, sendo que estas permitem apurar em termos de certeza exactamente aqueles que imputa a acusação.
Procede, pois, a acusação integralmente, em termos de facto.(…)”

*
3.2.- Mérito do recurso

A)- Erro de julgamento

No caso dos presentes autos invoca o arguido que ocorreu um erro de julgamento relativamente aos factos dados como provados sob os nºs 7), 9) 10) e 11), considerando que os mesmos foram incorrectamente julgados, com fundamento nas declarações da assistente.
A reapreciação da matéria de facto poderá ser feita no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, onde a verificação dos mesmos tem que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, mas sem recurso a quaisquer elementos exteriores, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412º, nos 3, 4 e 6 do mesmo diploma, caso em que a apreciação se estende à prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente.
Verifica-se, assim, que só se pode alterar o decidido se as provas indicadas obrigarem a uma decisão diversa da proferida, mas já não quando tais provas apenas permitirem uma outra decisão, a par da decisão recorrida.
Neste último caso, havendo duas, ou mais, possíveis soluções de facto, face à prova produzida, se a decisão da primeira instância se mostrar devidamente fundamentada e couber dentro de uma das possíveis soluções, face às regras da experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, porquanto foi proferida em obediência ao previsto nos art.ºs 127º e 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal (cf., Ac. TRL de 02.11.2021, proferido no processo nº 477/20.8PDAMD.L1-5, em que foi relator Jorge Gonçalves, in www.dgsi.pt.).
Nos casos de impugnação ampla da matéria de facto, o recurso não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, mas constitui apenas um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, sempre em relação aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Para esse efeito, deve o Tribunal de recurso verificar se os concretos pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (neste sentido, cf. Ac. STJ de 14.03.2007 (no processo nº 07P21, Relator: Conselheiro Santos Cabral), de 23.05.2007 (no processo 07P1498, Relator: Conselheiro Henriques Gaspar), de 03.07.2008 (no processo nº 08P1312, Relator: Conselheiro Simas Santos), de 29.10.2008 (no processo nº 07P1016, Relator: Conselheiro Souto de Moura) e de 20.11.2008 (no processo nº 08P3269, Relator: Conselheiro Santos Carvalho), todos disponíveis em www.dgsi.pt).
O recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto destina-se a despistar e corrigir determinados erros in judicandoou in procedendo, razão pela qual o art.º 412º, nº 3 do Cód. Proc. Penal impõe ao recorrente a obrigação de indicar:
a)- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)- As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c)- As provas que devem ser renovadas.”
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
A especificação das «concretas provas» implica a indicação do conteúdo do meio de prova ou de obtenção de prova e a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Por seu turno, a especificação das provas que devem ser renovadas impõe a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda e das razões para crer que aquela renovação permitirá evitar o reenvio do processo previsto no art.º 430º do mesmo diploma.
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência. Havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao que tiver sido consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens das gravações em que fundamenta a impugnação, não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou de vários depoimentos, pois são essas passagens concretas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo Tribunal de recurso, como é exigido pelo art.º 412º, nºs 4 e 6 do Cód. Proc. Penal.
A este respeito, importa ter em atenção que o STJ, no seu Ac. nº 3/2012, publicado no Diário da República, 1ª série, Nº 77, de 18 de abril de 2012, já fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
Na verdade, o poder de apreciação da prova da 2ª instância não é absoluto, nem é o mesmo que o atribuído ao juiz do julgamento, não podendo a sua convicção ser arbitrariamente alterada apenas porque um dos intervenientes processuais expressa o seu desacordo quanto à mesma.
Segundo o previsto no artigo 127º do Cód. Proc. Penal, o Tribunal deve fixar a matéria de facto de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador, desde que não se esteja perante prova vinculada.
Pese embora o ato de julgar tenha sempre, necessariamente, um lado subjetivo, as regras da experiência, complementadas pelo disposto no art.º 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, determinam que aquele acto não possa ser um acto arbitrário ou discricionário.
Verifica-se, pois, que a livre convicção não se confunde com a íntima convicção do julgador, dado que a lei lhe impõe que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, devendo a avaliação da prova ser efectuada com sentido de responsabilidade e bom senso.
Em consequência, sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve-se acolher a opção do julgador da 1ª instância, sobretudo porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova (cf., neste sentido, Ac. STJ de 13/02/08, proferido no processo nº 07P4729, em que foi relator Pires da Graça, in www.dgsi.pt).
A lei não considera relevante a convicção pessoal de cada um dos intervenientes processuais, no sentido de a mesma se sobrepor à convicção do Tribunal, até porque, se assim fosse, não seria possível existir qualquer decisão final.
O que a lei permite é que, quem entenda que ocorreu um erro de apreciação da prova, o invoque, fundamentadamente, em sede de recurso, para que tal questão possa ser reapreciada por uma nova instância jurisdicional.
Para além de a lei determinar a forma como tal reapreciação deve ser pedida, estabelece também os limites da mesma, ou seja, os poderes de cognição do Tribunal de recurso.
Mesmo nos casos em que exista documentação dos atos da audiência, o recurso para o Tribunal da Relação não constitui, como já se referiu, um novo julgamento, no sentido de haver lugar à reapreciação integral da prova.
Na verdade, como se refere no Ac. deste TRL de 26/10/21 ( proferido no processo nº 510/19.6S5LSB.L1-5, em que foi relator Manuel Advínculo Sequeira, in www.dgsi.pt): «apenas séria discrepância entre o que motivou o tribunal de 1ª instância e aquilo que resulta da prova por declarações prestada, no seu todo e à luz de regras de experiência comum, pode ser de molde a inverter aquela factualidade, impondo, nas palavras da lei, outra decisão (…).
Como é sabido, o recurso sobre a matéria de facto não equivale a um segundo julgamento, pois é apenas uma possibilidade de remédio para apreciação em que claramente se haja errado, em face do que é possível apreciar e na correspondente fase.
As declarações são ainda indissociáveis da atitude e postura de quem as presta, olhares, trejeitos, hesitações, pausas e demais reacções comportamentais às diversas perguntas e questões abordadas, isoladas ou entre si combinadas, bem como a regras de experiência e senso comuns à luz da normalidade dos comportamentos humanos.
Nunca se poderá ainda perder de vista a circunstância de, por princípio, ter aquela observação levado em devida conta a apreciação comunitária e o exame individual de todos os intervenientes no caso, perante o tribunal e durante a audiência, com todas as vantagens atinentes e intrínsecas à imediação, desta resultando, sem qualquer tipo de reserva, factores impossíveis de controlar após o respectivo encerramento. De resto, tal como em relação à prova em geral, especialmente no que toca à prova por declarações e muito particularmente depois a todo o seu caldeamento com a generalidade do material probatório recolhido.
Toda a sensibilidade que ali desfila, individual, mas também geral, tem enorme importância no sentenciamento justo e é impossível apartá-lo da resposta que o tribunal irá dar ao caso concreto, em nome da comunidade.
Matéria tão importante quanto impossível de captar para futura reprodução.
Só a imediação, a par da oralidade, garante o processo e decisão justos, princípios adquiridos com segurança, vai para mais de um século.
Não por acaso, a antecedente prova escrita (a velha assentada) foi obliterada do processo português, precisamente porque, eliminando o material supramencionado, facilmente permitia a afirmação judicial de inverdades e justamente na fase de recurso.
Paralelamente, é essa a razão de ser das apertadas e exíguas possibilidades de recurso sobre a matéria de facto. Maior abertura à sua restrição aumentaria, na exacta proporção, aí sim, a hipótese de erro judiciário.
Tudo para concluir ser de primordial importância saber-se que na concreta fixação da verdade do caso influem elementos determinantes que escapam por natureza a apreciação posterior.»
Assim sendo, o que o Tribunal da Relação pode e deve fazer nesta matéria, em sede de recurso, é verificar, ponto por ponto, se os concretos erros de julgamento indicados pelo recorrente, de facto existem e, na afirmativa, proceder à sua correção.
A razão de ser desta forma de funcionamento do instituto do recurso, quanto à reapreciação da matéria de facto, decorre do princípio da oralidade, o qual implica uma imediação, um contacto direto, pessoal e presencial entre o julgador e os elementos de prova (sejam eles pessoas, coisas, lugares, sons, cheiros, timbre e entoação), que facilita a formação da livre convicção do julgador e que só existe na primeira instância.
A imediação permite que o julgador tenha uma perceção dos elementos de prova muito mais próxima da realidade do que qualquer apreciação posterior, a realizar pelo Tribunal de recurso, mesmo que este se socorra da documentação dos atos da audiência.
A imediação revela-se também de importância fulcral para aferir da credibilidade de um depoimento, pois o seu desenrolar, a posição corporal, os gestos, as hesitações, o tom de voz, o olhar, o embaraço ou o desembaraço e todas as componentes pessoais ligadas ao ato de depor são insuscetíveis de serem registadas, mas ficam na memória de quem realizou o julgamento, são importantes na formação da convicção do julgador e são objetiváveis na fundamentação da decisão, mas não são suscetíveis de documentação para reapreciação em sede de recurso.
Impõe-se, assim, concluir que, nesta matéria, cabe apenas ao Tribunal de recurso verificar se o Tribunal a quo, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho prosseguido até se chegar à matéria fáctica dada como provada e não provada, devendo tal apreciação ser feita com base na motivação elaborada pelo Tribunal de primeira instância e na fundamentação da sua escolha, ou seja, no cumprimento do disposto no art.º 374º, nº 2 do Cód. de Proc. Penal.
Para este efeito, como se escreveu no Ac. deste TRL de 11/03/2021 ( proferido no processo nº 179/19.8JDLSB.L1-9, em que foi relator Abrunhosa de Carvalho, in www.dgsi.pt. ): «O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado».
E convém referir que quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os recorrentes.
Normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar.»
Sucede que: «O recorrente não impugna de modo processualmente válido a decisão proferida sobre matéria de facto se se limita a procurar abalar a convicção assumida pelo tribunal recorrido, questionando a relevância dada aos depoimentos prestados em audiência.» (cf. Ac. do TRP de 6/10/2010, proferido no processo nº 463/09.9JELSB.P1, em que foi relatora Eduarda Lobo, in www.dgsi.pt).
No mesmo sentido, se decidiu no Ac. do TRG de 28/06/2004 ( proferido no processo nº 575/04-1, em que foi relator Heitor Gonçalves, in www.dgsi.pt), onde se refere que: “(…) Cremos que o recorrente pretende substituir essa convicção do julgador pela sua própria convicção, “escolhendo” os depoimentos que vão de encontro aos seus interesses processuais, quando é sabido que são os julgadores em primeira instância que detêm o poder/dever de apreciar livremente a prova, apreciação que, de todo o modo, no dizer do Prof. Figueiredo Dias, há-de ser, como foi no caso concreto, “recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo”. Uma decisão errada, ilegal ou arbitrária não pode ser sustentada numa simples alegação da discordância entre a convicção do recorrente e a convicção que o julgador livremente formou com base na prova produzida em audiência de julgamento, antes passa necessariamente pela demonstração inequívoca de que o tribunal que a proferiu contrariou as regras da experiência e desrespeitou princípios basilares do direito probatório (v.g. prova legalmente vinculada, provas proibidas etc.). Quando o recorrente pretende apenas pôr em causa a livre apreciação da prova, o recurso estará irremediavelmente destinado à improcedência. É que, como se referiu, o tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que essa opção seja explicitada e convincente, como é o caso. Cumprida essa exigência, a livre convicção do juiz torna-se insindicável, até porque a documentação dos actos da audiência não se destina a substituir, nem substitui, a oralidade e a imediação da prova. Defender-se uma outra solução, o tribunal de recurso acabaria “por proceder a um juízo, mas com inversão das regras da audiência de julgamento ou então, numa espécie de juízos por parâmetros” (Damião da Cunha, O caso julgado Parcial, 2002, pág. 37).(…)”.
De tudo o exposto, impõe-se concluir que o recorrente tem que apontar na decisão recorrida os segmentos que impugna e colocá-los em relação com as provas, concretizando as partes da prova gravada que pretende que sejam ouvidas, se for o caso, quais os documentos que pretende que sejam reexaminados, bem como quais os outros elementos probatórios que pretende ver reproduzidos, demonstrando a verificação do erro judiciário a que alude.
A este respeito, alega o recorrente que houve nos autos em apreço um erro de julgamento, porquanto foram incorrectamente dados como provados os factos indicados em 7), 9) 10) e 11), não podendo o Tribunal a quo ter-lhe imputado a prática de mais do que oito crimes, pois a assistente não identificou mais do que esse número de episódios, e desses oito episódios individualizados pela assistente em circunstâncias de tempo, modo e local, apenas três são subsumíveis aos factos vertidos na acusação pública.
Alega, para tanto, que:
“ (…) Face a todo o atrás exposto, resulta que o Tribunal a quo fez uma incorreta apreciação da prova produzida, em especial do depoimento da Assistente (minuto 7:53 ao minuto 47:59 do depoimento de dia 20.03.2023), nos concretos momentos de prova de tal depoimento todos atrás devidamente identificados, pois do mesmo não resultam identificados catorze episódios como o Tribunal a quo deu como provados nos pontos 7), 9) 10) e 11), dos factos provados, mas apenas oito episódios.
E, desses oito episódios relatados pela Assistente, apenas três desses episódios têm correspondência com os factos vertidos nos pontos 7), 9) 10) e 11), dos factos provados, a saber:
i)- Episódio vertido no ponto 6) dos factos provados;
ii)- Episódio ocorrido na casa do ... vertido no ponto 11) dos factos provados;
iii)- Um episódio ocorrido na casa de ... vertido no ponto 11), dos factos provados, o qual corresponde ao facto dado como provado e vertido nos pontos 12) e 13).
Os restantes cinco episódios relatados no depoimento da Assistente não têm qualquer correspondência nos factos constantes na acusação motivo pelo qual não podem os mesmos ser tidos em conta nos presentes autos, nem ser utilizados para imputar ao Arguido factos diferentes dos que constam da acusação.
Do acima exposto resulta claro que o Tribunal a quo fez uma errada apreciação da prova produzida, muito em especial do depoimento acima referido da Assistente, nos concretos momentos identificados nestas alegações, e consequentemente errou na apreciação da matéria de facto, já que, da prova produzida não poderia o Tribunal a quo ter dado como provado o seguinte:
a)- O vertido no ponto 7) dos factos provados;
b)- O vertido no ponto 9) dos factos provados;
c)- O vertido no ponto 11) dos factos provados relativamente às quatro situações localizadas na casa de ... e relativamente a quatro das cinco situações localizadas na casa de ....
Pelo que, deveria o Tribunal a quo ter absolvido o Arguido destes onze crimes que lhe eram imputados em sede de acusação, por não ter sido produzida prova quanto aos mesmos, já que o Tribunal a quo fundamentou a prova dos factos no depoimento da Assistente acima referido e, como se demonstrou, no mesmo, não é feita referência a estes onze crimes tal como os mesmos se encontram descritos e circunstanciados em sede de acusação.
Assim, não poderia o Tribunal a quo ter condenado o Arguido pela prática de catorze crimes, mas apenas de três crimes, como acima se referiu, devendo ser revogada a acórdão proferida e substituída por outra que absolva o Arguidos dos onze crimes acima identificados nos quais o mesmo foi condenado. (…)”
Ora, da mera análise desta alegação se verifica que o recorrente não cumpriu integralmente as exigências legais da impugnação da matéria de facto supra indicadas.
Na verdade, não obstante tenha indicado os concretos pontos da matéria de facto que considera terem sido mal julgados, limitou-se a pôr em causa a credibilidade do depoimento da assistente, dizendo que o Tribunal a quo avaliou mal as suas declarações e não podia ter dado como provados os factos que deu com fundamento nas mesmas.
Só que não indicou qual a versão dos factos que, no seu entender, se devia ter dado como provada, nem indicou outros meios de prova que sustentassem tal versão.
Também não indicou as passagens da gravação do depoimento da assistente que este Tribunal de recurso deveria ouvir, embora tal se possa depreender das passagens da gravação a que fez referência e das que transcreveu.
Porém, ouvidas, por este Tribunal de recurso, na sua integralidade, as declarações da assistente, quer as para memória futura, quer as prestadas em audiência de julgamento, constata-se que a mesma relatou, de forma clara, pormenorizada e perceptível, os momentos em que esteve com o arguido e que foram mencionados na motivação de facto da decisão recorrida, tendo resultado das suas declarações que esses momentos são os que a sua memória reteve com mais pormenor, mas que tais situações, nomeadamente as descritas nos números 7., 8., 9. e 11., ocorreram em maior número de vezes do que foi considerado provado.
Na verdade, o que resulta das declarações da assistente é que entre os seus 7 e os seus 12 anos, nas casas de Carcavelos, Lagoa e ..., em número de vezes e datas que não conseguiu precisar, mas com alguma periodicidade, o arguido dormia na mesma cama da assistente, abraçado a ela, com as mãos nos seus seios, vagina ou nádegas, que a mesma qualificou de partes íntimas ou privadas, que era o arguido quem habitualmente lhe dava banho, que durante os banhos passava-lhe as mãos pelos seios, vagina e nádegas de uma forma que não era só para a ensaboar, mas com carácter sexual, e que as situações de se roçar ou friccionar em si, por dentro e por fora da roupa, como as descritas 11., ocorreram também várias vezes, a pretexto de fazerem um jogo, mas que, pelo olhar que o arguido fazia nessas ocasiões, a assistente já sabia de que tipo de jogo se iria tratar.
Mais resulta das suas declarações que, mesmo nas vezes em que dormiam na cama com a mãe, o arguido dormia a tocar nas referidas partes do corpo da filha, em conchinha.
O facto de a assistente não conseguir concretizar o número de vezes em que estas situações ocorreram, as datas em que ocorreram e as casas onde cada uma delas ocorreu não retira credibilidade às suas declarações.
Desde logo porque, quer o arguido, quer a mãe da menor admitiram que o arguido dormia habitualmente com a filha e que era ele quem lhe dava banho, tendo o arguido ainda admitido que passava creme no corpo da filha.
Depois porque, dado o melindre da situação, a tenra idade da assistente à data dos factos e o tempo entretanto decorrido, não seria credível que a mesma se lembrasse com rigor do número exacto de vezes e das datas e locais em que todas as situações descritas ocorreram. Sobretudo porque tais situações faziam parte da relação entre o pai e a filha, eram uma prática regular no relacionamento de ambos e passavam-se num ambiente de intimidade e privacidade, sem ser testemunhado por terceiros.
Daí que o número de vezes a que se chegou em 7. e 11. o foi por defeito, pois muitas mais situações do mesmo teor terão ocorrido.
As declarações da assistente mereceram inteira credibilidade quer ao Tribunal a quo, quer a este Tribunal de recurso, porquanto a mesma depôs da forma emocionada possível, tentou ser precisa e concreta e demonstrou grande coragem, ao enfrentar a oposição e a tentativa de descrédito por parte de uma família inteira, da qual não recebeu apoio ao longo destes anos, no que se inclui a sua própria mãe.
A credibilidade das declarações da assistente também foi corroborada pelo resultado dos exames periciais efectuados e pelas declarações das testemunhas KK, sua tia, e HH, sua prima, que este Tribunal de recurso também ouviu, tendo a testemunha HH relatado de forma emocionada, mas credível, o modo como o arguido abusou sexualmente de si quando era criança e a tentativa da sua família de ocultar e descredibilizar esse facto.
Ora, o Tribunal a quo teve perante si o arguido e as testemunhas, viu-os, apercebeu-se de muitos pormenores de atitude e postura que só a imediação permite e concluiu quais os depoimentos que se mostraram mais credíveis e denotaram coerência e isenção, apelando, para tanto, às regras da lógica e da experiência comum.
Pelo contrário, o recorrente limitou-se a manifestar, na motivação do recurso, o seu desacordo quanto à leitura que o Tribunal recorrido fez de parte da prova produzida, tecendo considerações genéricas sobre essa prova e sobrepondo a sua interpretação relativamente ao que foi dito à interpretação do Tribunal recorrido, sem indicar outros meios de prova que considerasse suscetíveis de imporem decisão diversa relativamente aos factos que considera incorretamente julgados e sem indicar a versão dos factos que tem por correcta, em desobediência ao exigido pelo art.º 412º, nº 3 do Cód. Proc. Penal.
Como se deixou expresso, a análise da impugnação tem que ser feita por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àquela outra que o recorrente, colocado numa perspectiva subjectiva, não equidistante, tem para si como sendo a boa solução dos factos e entende que devia ter sido provada, como vem este recorrente aqui fazer.
No caso sub judice, o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão quanto à factualidade julgada provada e não provada nos termos supra transcritos, procedendo a um resumo das declarações que considerou relevantes prestadas pelos diversos intervenientes e esclarecendo em que medida é que cada um deles foi considerado credível ou não, expondo de forma clara as razões que levaram a que se convencesse, ou não, da veracidade dos relatos, e fazendo, para o efeito, apelo às regras da razoabilidade e da experiência comum, articulando tais relatos com toda a restante prova documental e pericial produzida nos autos, sobretudo a resultante das perícias efectuadas.
Tendo em conta a natureza dos crimes em causa, a idade da vítima à data dos factos e a circunstância de os mesmos terem ocorrido num ambiente de intimidade familiar e doméstica, não era possível ao Tribunal a quo, como facilmente se compreenderá, determinar o número exacto de vezes em que tais crimes ocorreram, pelo que optou por efectuar, à luz de critérios de bom senso e razoabilidade, um cálculo por defeito, de acordo com o depoimento das testemunhas, o que só beneficiou o arguido, mas não descredibilizou o depoimento da vítima, sobretudo porque a mesma não apontou num caderno, ou onde quer que fosse, o número de vezes em que foi abordada sexualmente pelo seu pai, nem existem outras testemunhas que tenham assistido a esses factos.
Os depoimentos da vítima foram, efectivamente, prestados de modo coerente e espontâneo, mostram-se consentâneos com as perícias a que se submeteu e com o depoimento das suas tia e prima, tendo, por isso, merecido inteira credibilidade ao Tribunal recorrido.
A motivação da decisão sobre a matéria de facto operada pelo Tribunal a quo permite aos sujeitos processuais, às partes, a este Tribunal de recurso e a quem quer que seja que leia o acórdão recorrido, apreender as razões pelas quais o coletivo de juízes decidiu a matéria de facto nos termos em que o fez.
É nítido o percurso lógico seguido pelos julgadores da 1ª instância, apoiado nos elementos de prova previamente indicados e devidamente explicados no texto do acórdão, mostrando aos sujeitos processuais, ao Tribunal ad quem e, sobretudo, aos cidadãos, o raciocínio lógico em que apoiou a decisão sobre a matéria de facto.
Posto isto, considera-se que se provou efectivamente o número de crimes de abuso sexual agravado praticados pelo arguido e descritos em 7., 9., 10., 11., 12. e 13. dos factos provados, importando, no entanto, fazer duas pequenas correcções.
Não resultou efectivamente das declarações da assistente o número de vezes em que ocorreram as situações descritas em 11. em cada uma das casas aí mencionadas, pelo que, de acordo com a prova produzida nos autos, se altera a redação deste ponto nos seguintes termos:
11.–Em pelo menos dez ocasiões, que tiveram lugar nas residências sitas em ..., no ... e em ..., em datas não concretamente apuradas mas situadas no período temporal acima referido, o arguido, aproveitando-se do facto de estar a sós na cama com a BB, e dizendo-lhe que era só uma brincadeira, colocou-se em cima dela, friccionou o seu corpo contra o dela e apalpou-lhe os seios, a vagina e nádegas, por dentro e por fora da roupa.”
Também não resultou das declarações da assistente que o arguido ao esfregar-se em si no banho tenha alguma vez chegado a ejacular, pelo que se altera a redação do ponto 9. dos factos provados nos seguintes termos:
9.–Em pelo menos uma ocasião, durante o banho [em data não concretamente apurada, mas situada no período temporal acima referido], o arguido apalpou os seios, vagina e nádegas da BB e, posicionando-se por trás dela, colocou o pénis erecto entre as pernas desta, friccionando-o.”
Sucede, porém, que estas alterações da matéria de facto redundam apenas em pequenas concretizações dos factos apurados, sem consequências ao nível da qualificação jurídica dos mesmos, pois não implicam nenhuma despenalização, nem uma penalização diferente das condutas do arguido.
No mais, mantém-se a matéria de facto apurada pelo Tribunal a quo, julgando-se improcedente o recurso quando à condenação do recorrente por menor número de crimes.

B)Crime continuado ou concurso efectivo de crimes
O arguido não põe em causa a qualificação jurídica dos factos efectuada pelo Tribunal a quo, mas pretende ser condenado por apenas um crime de abuso sexual agravado, enquanto crime continuado ou de trato sucessivo, em vez de por vários crimes, em situação de concurso real.
Alega, para tanto, que os factos dos autos se caracterizam pela homogeneidade de múltiplas condutas, concretizadas entre o mesmo agente e a mesma vítima, com identidade na forma de execução, proximidade e continuidade temporal, no quadro de uma mesma solicitação exterior, pelo que permitem a sua unificação numa mesma resolução criminosa e numa única conduta criminosa de abuso sexual de criança agravado, para além do que, à data dos factos, não estava em vigor a atual redação do nº 3 do art.º 30º do Cód. Penal.
Apreciemos a sua pretensão.
Como supra se referiu, dispõe o art.º 30º do Cód. Penal que:
1- O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2- Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
3- O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.” (sublinhados nossos)
No que concerne aos crimes de natureza sexual, a maioria da jurisprudência dos Tribunais superiores tem entendido que a figura do crime continuado ou de “trato sucessivo” não tem aqui aplicação, desde logo pela natureza eminentemente pessoal do bem jurídico protegido pelas normas, mas também pela atitude resolutiva do agente na execução do ilícito.
A lei não consente que a figura de continuação criminosa se aplique às situações em que o agente viola repetidamente a mesma norma de protecção, fazendo transparecer uma menorização da culpabilidade, pela facilidade com que se propícia a prática do ilícito.
No caso dos autos, verifica-se que houve hiatos temporais entre a prática de cada um dos crimes de abuso sexual pelo arguido na pessoa da sua filha, os quais permitem perspectivar que, de cada vez que o arguido abordou a vítima para a prática de um acto sexual, renovou a sua resolução criminosa, traduzindo-se cada resolução numa nova lesão do bem jurídico protegido.
Atenta a gravidade das condutas do arguido, a elevadíssima ilicitude dos seus comportamentos, o dolo directo com que atuou, o desrespeito manifestado para com a dignidade pessoal e a liberdade de determinação sexual da sua filha, uma menor ainda em processo de crescimento físico e psicológico, jamais seria possível perspectivar-se uma situação de diminuição da culpa do arguido, por forma a permitir a sua punição por um só crime de abuso sexual agravado, mesmo que as suas várias condutas pudessem ser tidas em conta na medida concreta da pena a aplicar-lhe.
O que sucedeu foi um aumento gradual da culpa do agente a cada renovação da resolução criminosa, com uma nova lesão do bem jurídico protegido e com uma vontade cada vez maior de satisfazer os seus desejos sexuais, que superou a natural inibição que seria exigível a um pai para com a sua filha menor, que era suposto cuidar e proteger e não transformar em objecto sexual.
Foi o arguido o agente motor da prática dos crimes, sem ter sido influenciado por nada exterior a si, mas antes criando ou aproveitando as circunstâncias para a prática repetida do mesmo tipo de crime.
Por outro lado, também não se verifica no caso concreto uma total homogeneidade de condutas, nem a verificação sempre do mesmo “modus operandi”, pois as actuações do arguido não foram sempre do mesmo tipo e ocorreram em locais diferentes e em localizações geográficas diferentes.
Ou seja, embora exista a violação do mesmo bem jurídico, da mesma vítima, pelo mesmo agente, não há homogeneidade de actuação, nem de locais onde os factos ocorreram, havendo uma pluralidade de resoluções criminosas na produção do resultado, acionadas em dias, horas e locais distintos, com hiatos temporais, que impõem o afastamento da punição como crime de trato sucessivo ou continuado.
Actualmente a discussão é estéril, desde logo porque o próprio legislador tomou posição ao arredar da punição como crime continuado os crimes cometidos contra bens eminentemente pessoais, que são os crimes previstos no Título I da parte especial do Cód. Penal, nos quais se incluem os crimes contra a liberdade sexual e, entre estes, o crime de abuso sexual (cf. neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit. pág. 250).
Tem sido esta a orientação seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça nesta matéria, de forma praticamente unânime, como se pode ver no acórdão do STJ datado de 24/03/2021, proferido no processo nº 69/20.1GBGDL.S1, em que foi relator Gabriel Catarino, in www.dgsi.pt, e na jurisprudência no mesmo citada ( onde se referem, a título de exemplo os seguintes arestos: Ac. de 27/02/19, proferido no processo nº 2165/15.8JAPRT.P1.S1; Ac. STJ de 30/11/2016, Proc. 444/15.3JAPRT.G1.S1, rel. Pires da Graça; Ac. STJ de 14/12/2016, Proc. 3/15.0T9CLB.C1.S1, rel. Sousa Fonte; Ac. STJ de 4/5/2017, Proc. 110/14.7JASTB.E1.S1, rel. Helena Moniz; Ac. STJ de 13/7/2017, Proc. 1205/15.5T9VIS.C1.S2, rel. Rosa Tching; Ac. STJ de 18/1/2018, Proc. 239/11.3TALRS.L1, rel. Lopes da Mota; Ac. STJ de 22/3/2018, Proc. 467/16.5PALSB.L1-S1, rel. Souto de Moura).
Alega o recorrente que é passível de aplicar ao caso em apreço a figura do crime continuado, dado que os factos ocorreram antes da entrada em vigor do normativo vertido no nº 3 do art.º 30º do Cód. Penal, na redação que lhe foi dada pela Lei nº 40/2010, de 3/09 e que entrou em vigor a 3/10/10, a qual exclui a figura do crime continuado relativamente a crimes contra bens eminentemente pessoais, mas que, por ser uma lei nova, é inaplicável a situações ocorridas anteriormente à sua entrada em vigor, por ser mais desfavorável ao arguido.
Sucede que, como se referiu, no caso de reiteração da prática do crime de abuso sexual, não há que lançar mão da figura do “trato sucessivo”, nem do crime continuado, devendo cada acto ser punido de forma autónoma e isoladamente, como uma nova lesão de um bem jurídico próprio, que foi o que sucedeu, e bem, nos presentes autos.
Impõe-se, assim, julgar igualmente improcedente nesta parte o recurso, não se mostrando violadas as normas invocadas pelo recorrente.

C) Medida da pena
Entende também o recorrente que a pena única que lhe foi aplicada, depois de operado o cúmulo jurídico é excessiva, pois não levou em conta algumas atenuantes que o beneficiam, nomeadamente o facto de não ter antecedentes criminais e as suas condições pessoais.
Entende que a pena concreta a aplicar deveria situar-se no limite mínimo da mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes que lhe foram imputados, violando o acórdão recorrido o disposto nos arts.º 30º, 40º, 71º, e 77º do Cód. Penal.
Vejamos se lhe assiste razão.
Quanto à determinação da medida da pena, esta deve ser apurada em função dos critérios enunciados no art.º 71º do Cód. Penal, que são os seguintes:
“Artigo 71.º - Determinação da medida da pena
1-A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2- Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a)- O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b)- A intensidade do dolo ou da negligência;
c)- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d)- As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e)-A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f)- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3- Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.”
Em matéria de concurso de crimes importa ter em conta o disposto nos seguinte artigo do Cód. Penal:
“ Artigo 77.º - Regras da punição do concurso
1- Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2- A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3- Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.
4- As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.”
Os critérios enunciados no art.º 71º devem ser relacionados com os fins das penas previstos no art.º 40º do mesmo diploma, onde se estabelece no seu nº 1 que: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, e no seu nº 2 que: “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Como se refere no Acórdão do STJ de 28/09/2005, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173, as finalidades da punição e a determinação em concreto da pena, nas circunstâncias e segundo os critérios previstos no art.º 71º do Cód. Penal, têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena.
Tais elementos e critérios contribuem não só para determinar a medida da pena adequada à finalidade de prevenção geral, consoante a natureza e o grau de ilicitude do facto tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação de valores, como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial, em função das circunstâncias pessoais do agente, idade, confissão e arrependimento e permitem também apreciar e avaliar a culpa do agente.
Em síntese, pode dizer-se que toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (cf. Figueiredo Dias, in “ Direito Penal, Parte Geral “, Tomo I, 3ª Edição, 2019, Gestlegal, pág. 96).
Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto “ O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril-Junho de 2002, págs. 181 e 182), apresenta as seguintes proposições que devem ser observadas na escolha da pena: «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»
No entanto, do que se trata agora é de sindicar as operações feitas pelo Tribunal a quo com essa finalidade.
Ainda segundo Figueiredo Dias, in “ Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, edição de 1993, págs. 196/7, § 255, é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação da medida concreta da pena, bem como o desconhecimento ou a errónea aplicação pelo tribunal a quo dos princípios gerais de determinação da pena, a falta de indicação de factores relevantes para aquela ou a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Defende ainda que está plenamente sujeita a revista a questão do limite ou da moldura da culpa, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção e a determinação do quantum exacto de pena, o qual será controlável no caso de violação das regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.
Para este autor, na mesma obra de 1993, § 280, pág. 214 e nas Lições ao 5.º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, 1998, págs. 279 e seguintes: «Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito, ou de «determinação concreta da pena»). As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena».
Importa, assim, ter em conta que só em caso de desproporcionalidade manifesta na fixação da pena ou de necessidade de correcção dos critérios da sua determinação, atenta a culpa e as circunstâncias do caso concreto, é que o Tribunal de 2ª instância deve alterar a espécie e o quantum da pena, pois, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, não há que corrigir o que não padece de qualquer vício.
Neste sentido decidiu o Acórdão do TRL de 11/12/19, proferido no processo nº 4695/15.2T9PRT.L1-9, em que foi relator Abrunhosa de Carvalho, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “A intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas, ou mantidas, pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a situação económica do agente, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efectuada, ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares.”
Também no mesmo sentido se pronunciou José Souto de Moura, in “ A Jurisprudência do S.T.J. sobre Fundamentação e Critérios da Escolha e Medida da Pena”, 26 de Abril de 2010, consultável em www.dgsi.pt, onde defende que: “ Sempre que o procedimento adoptado se tenha mostrado correcto, se tenham eleito os factores que se deviam ter em conta para quantificar a pena, a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar tenha sido feita, e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos, sempre que nada disto seja objecto de crítica, então o “quantum” concreto de pena já escolhido deve manter-se intocado.”
Voltando ao caso dos autos, o acórdão recorrido fundamentou a aplicação ao arguido das penas em apreço pela seguinte forma:
“(…)Em face da repetição da prática do crime de abuso sexual de menores, demonstrada pelos elevados índices de criminalidade desta natureza que diariamente são noticiados e julgados, em crescendo num País que era de bons costumes e respeito pelas instituições e pessoas e em que os comportamentos se vão acentuadamente caracterizando como cada vez mais violentos e, do outro lado, cada vez mais permissivos parecem ser os sentimentos sociais para com esta realidade cruel do abuso violento sobre a pessoa humana, tanto mais quando criança, são de considerar muitíssimo elevadas as exigências de prevenção geral.
Vivemos num mundo em que, mercê da mundialização dos fenómenos culturais, se deixam acantonadas comunidades inteiras, num mundo que vai sendo dominado pela cultura do subúrbio citadino onde os costumes próprios e valores de referência são substituídos pelo consumo, pela idolatria do dinheiro, do negócio fácil, pela relativização de valores humanos em face da agressividade crescente e da intolerância para com os outros, porque a vigilância social tem mais dificuldade em acudir de forma célere.
Esta dificuldade vem permitindo o crescente sentimento de auto regulação e de aparecimento de pequenos focos sociais em que a auto vigilância se vem assumindo cada vez mais com foros de impunidade. Na origem de muitos destes fenómenos, criticáveis, está muitas vezes o abandono afectivo, o mau trato e o abuso sexual durante a menoridade que impedem o indivíduo de crescer sem um quadro valorativo amoroso e solidário.
Há que perceber que esta crescente dicotomia de realidades – por um lado quem, com recursos ou sem eles, assume os desígnios da sua vida e a quer levar certa, organizada, respeitando regras e se esforça por consegui-lo e, por outro, quem vive de forma marginal, quem não se importa com o outro -, dizíamos, esta dicotomia tem um efeito degenerativo no tecido sociocultural muito alarmante, que importa combater, e que se traduz, maioria das vezes, numa perda irremediável para os valores fundamentais em que se alicerçam os Estados de Direito, com os inerentes custos que daí advêm.
Como tal, e ainda que se vão ouvindo por aí alguns argumentos falsamente apaziguadores, o que é facto é que as exigências de prevenção geral destes tipos de crimes são crescentes nas nossas comunidades. Hipoteca o futuro dos nossos meninos e meninas, dos jovens e do nosso povo e, como tal, do País.
É importante que a sociedade possa e saiba responder com prontidão a esta predisposição para a auto regulação comportamental e impunidade que determinados contextos sociais vêm revelando e que relativizam os valores humanos ao ponto de todos eles parecerem vulneráveis, mercantilizáveis, corrompíveis e desprotegidos pela própria lei e sociedade.
Por outro lado, não podemos descurar as exigências de prevenção especial que no caso se fazem sentir de forma muito, muito acentuada, uma vez que o arguido actua com total desprezo pela saúde física e moral de uma pessoa que não pode e nem sabe defender-se e escolher o que quer e rejeita, abusando ainda da sua imaturidade emocional e sexual, da sua vulnerabilidade, com uma violência emocional absolutamente invulgar e absolutamente inqualificável, com uma violência mesmo escandalosa, com desapego por sentimentos humanos básicos, com uma absurda e inqualificável desvalorização do sentido do “outro”, do que é o respeito pelos outros, pelo ser humano que está à sua frente, na medida em que, pese embora o arguido não tenha passado criminal por factos semelhantes, a gravidade destes comportamentos ultrapassa todos os limites do que é comum, mesmo para comportamento criminalmente relevante, pelo que o seu comportamento aqui sancionado tem que ser muito valorizado, de modo a deixar inequivocamente demonstrado ao arguido que, se não se ajeita sozinho com a rejeição definitiva desses actos, o Tribunal em nome da sociedade tem o dever de o fazer perceber quais são os valores humanos relevantes e como devem ser respeitados, pois que são básicos à sobrevivência da humanidade, à preservação da dignidade das pessoas, nem que para tanto tenha de o fazer à custa da sua liberdade.
Assim, pelo exposto, com vista à promoção de uma consciência ética social, é inequívoca a necessidade de aplicar penas de prisão ao arguido.
Como se disse, atribui-se à culpa a função única de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena, e à prevenção geral a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo é dado pela medida óptima da tutela dos bens jurídicos, dentro do que é considerado pela culpa, e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências de defesa do ordenamento jurídico; e cabe à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida moldura de prevenção, e que melhor sirva as exigências de socialização do agente.
Na determinação da medida concreta da pena, há que ponderar factores:
A ilicitude dos factos, que se revela especialmente acentuada, tendo em conta o facto de estarmos perante actos reveladores de desumanidade, de baixeza de carácter, de cobardia mesmo, prolongados por anos sucessivos e que, ao invés de gerar riqueza social e paz na comunidade, contribuem fortemente para a miséria social, desagregação do tecido humano, intranquilidade das pessoas e das comunidades, nas famílias, nos bairros, na vida de todos os dias; o facto de o arguido não ter dificuldades económicas que levem à sua marginalização, e ser pessoa de vida dentro de um padrão social, a trabalhar, enfim, a extrema gravidade dos factos e a constatação de que, além deles, muito pouco fica a faltar para o absolutamente grave, estando absolutamente ausente qualquer autocrítica, até que pudesse ser apenas parcialmente construtiva por parte do arguido, qualquer responsabilização que nos deixe sossegados para o futuro e para cuja interiorização se mostre minimamente sensibilizado.
O grau da culpa que, mercê disso mesmo, se mostra muitíssimo acentuado, tendo em conta que o arguido agiu com dolo directo, especialmente dirigido ao resultado que obteve, em qualquer das circunstâncias.
As condições de vida do arguido – integrado, familiar [mãe e parte dos irmãos] e socialmente, sem carências económicas notadas.
Tem-se em atenção, como se disse, que o arguido não tem passado criminal, estando já a ofendida a residir em morada diversa da dele.
Tem-se também em atenção que, no que aos 13 crimes do artº 171º, nº 1 CP diz respeito, não faz sentido diferenciar as situações em termos de penas porque elas terão ocorrido de forma em tudo semelhante entre si, sendo que apenas quanto ao crime previsto no nº 2 daquele preceito, atentas as específicas circunstâncias e moldura, divergirá a ponderação.
Tudo ponderado, atentas as normas e as molduras legais em causa – artº 171º, nº 1 e 2 e 177º, nº 1, al a), 7 e 8, todos do CP -, com os fundamentos deixados antes, afigura-se-nos ajustado aplicar ao arguido:
- por cada um dos 13 (treze) crimes de abuso sexual de criança agravados, p. e p. pelo artº 171º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a), 7 e 8 CP, a pena de 3 (três) anos de prisão;
- por 1 crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelo artº 171, nº 1 e 2, 177º, nº 1. Al. a), 7 e 8 CP, a pena de 6 (seis) anos de prisão.
*

Pena única a fixar ao arguido
De acordo com a Jurisprudência do nosso STJ, a decisão deve efectuar uma ponderação em conjunto, interligada, integrada, quer da apreciação dos factos, de modo a poder avaliar-se globalmente a sua dimensão, intensidade, gravidade, alcance e consequências, quer da personalidade manifestada na sua prática, procurando caracterizar a personalidade emergente do conjunto das condutas, encaradas a jusante daquele processo circunscrito, de determinado pedaço de vida, agora em visão e apreciação global, de uma forma mais completa e abrangente, de modo a dar uma panorâmica de toda a actividade do arguido, indagando das suas inter-relações, ligações e conexões, e, por isso mesmo, fornecendo uma visão mais compreensiva, em ordem a, a final, concluir sobre a sua motivação subjacente, se emergindo e sendo expressão de uma tendência criminosa, como manifestação de uma personalidade propensa ao crime, ou antes de mera pluriocasionalidade, fruto de reunião de circunstâncias, não oriunda, fundamentada ou radicada na personalidade.
Atenta a relação concursal destas penas entre si, nos termos do artº 77º do CP, ponderadas as circunstâncias e as suas consequências, o elevadíssimo desvalor da actuação do arguido, o número de factos que traduz uma personalidade desvaliosa do arguido, o Tribunal entende, entre o mínimo de 6 (seis) anos de prisão e o máximo de 25 (vinte e cinco) anos de prisão, a que se reduz ao máximo legal da pena de prisão, fixar a pena única do arguido em 10 (dez) anos de prisão. (…)”

Analisada a decisão recorrida, verifica-se que o Tribunal a quo aplicou correctamente os princípios gerais de determinação da medida das penas, não ultrapassou os limites da moldura da culpa do agente e teve em conta os fins das penas nos quadros da prevenção geral e especial.
Na verdade, as razões e necessidades de prevenção geral positiva são muito elevadas, fazendo-se especialmente sentir neste tipo de crimes geradores de grande e forte sentimento de repúdio pela comunidade, a necessidade de uma resposta punitiva firme, para assegurar a confiança da comunidade na validade das normas jurídicas e na realização da justiça.
Regista-se também que no caso dos autos é muito elevado o grau de ilicitude com que foram praticados os factos, atento o largo período de tempo em que os mesmos ocorreram e a falta de inibição do agente perante uma menor indefesa que era sua filha.
Ao contrário do alegado pelo arguido, a sua ausência de antecedentes criminais e as suas condições pessoais e sociais foram tidas em conta na determinação das penas aplicadas, quer das penas parcelares, quer da pena única do concurso de crimes.
No entanto, pondera muito negativamente a sua ausência de compaixão pela vítima, a quem cabia proteger, a ausência de controle dos seus impulsos sexuais e a atribuição de culpa à vítima.
As consequências para a vítima dos actos praticados pelo arguido ainda hoje se fazem sentir, impedindo-a de ter um relacionamento afectivo normal com outras pessoas, em consequência dos danos psicológicos que os abusos sexuais perpetrados pelo seu pai lhe causaram.
São também muito elevadas as exigências de prevenção especial positiva que no caso se fazem sentir, pois, não obstante a ausência de antecedentes criminais e a sua inserção social, o arguido, ao praticar estes crimes ao longo de vários anos, demonstrou grande dificuldade no controlo dos seus impulsos sexuais, possuir uma personalidade com pouca empatia pela vítima e dificuldades de interiorização das regras de convivência social, o que leva a concluir que são sérias as suas necessidades de socialização.
Assim sendo, face à culpa do agente e à gravidade dos factos pelo mesmo praticados, as penas aplicadas são de manter, não sendo compreensível pela sociedade e pelo sentir comunitário qualquer redução das mesmas, quer no que concerne às penas parcelares, quer quanto à pena unitária em que o arguido foi condenado, termos em que, também nesta parte, o recurso não pode deixar de improceder, não se mostrando violadas as normas invocadas pelo arguido.

D) Montante indemnizatório a pagar pelo arguido à vítima
Invoca ainda o recorrente que é excessivo o quantum da indemnização fixada, determinado por força do arbitramento oficioso de reparação à vítima, uma vez que a mesma não efectuou qualquer pedido de indemnização e se encontra a trabalhar, são precárias as condições económicas do arguido e o mesmo não praticou o número de crimes de que vinha acusado, devendo ser arbitrada uma indemnização no máximo de 10.000,00 euros.
Importa recordar que este Tribunal de recurso não efectuou qualquer alteração à matéria de facto apurada que determinasse a diminuição do número de crimes praticados pelo arguido, caindo assim já por terra um dos argumentos invocados pelo mesmo.

A este respeito decidiu o Tribunal recorrido que:
“(…) No que concerne à sua apreciação, tal como nos termos do pedido de indemnização, há que atentar ao teor do artº 483º, nº 1 do CC que esclarece que quem, com dolo ou culpa, violar de forma ilícita o direito de outrem ou norma que vise especificamente a sua tutela, está obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes dessa violação.
Provou-se em audiência a factualidade essencial à procedência do direito a ver compensada a actuação danosa do arguido, enquanto tal (cfr. artº 342º, nº 1 do CC), e por maioria de razão os pressupostos legais invocados para a compensação indemnizatória, que assenta na verificação, inerente aos factos provados, de danos de cariz emocional.
Impondo-se, também nesta parte, a condenação do arguido.
Atento a que o arguido é empresário, com medianas posses económicas como resulta do relatório social, sendo ainda certo que, não se tendo apurado rendimentos concretos sempre será adequado fazer a ponderação por referência a esses elementos, impõe-se fixar a compensação em medida adequada a estas circunstâncias, por equivalência ainda à proporção da sanção que se venha a concretizar e ponderada a situação da menor, que estuda, a experiência absolutamente traumática destes factos e o futuro hipotecado emocionalmente à violência deste destrate vindo de alguém que lhe era próximo.
Por outro lado, o artº 82ºA CPP diz que não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.
A lei processual penal presume, assim, a existência de particulares exigências de protecção por parte da vítima.
Estas exigência têm que ver, normalmente, com o reconhecimento de que as vítimas ficam numa situação pessoal carenciada do ponto de vista emocional e/ou patrimonial, que não deve ser acentuada pela necessidade de terem de impor andamento a um pedido indemnizatório ou, no limite, que, tendo sido deixados nessa situação de especial vulnerabilidade pela actuação do arguido, se vejam impedidos de continuar a levar a sua vida dentro de padrões emocionais e materiais como até antes de os factos terem ocorrido.
Ora, no caso dos autos, o que se verifica é que esta ofendida em concreto reúne os pressupostos subjectivos que inerem à condição de vítima.
Deve, como tal, ser fixada a seu favor uma compensação indemnizatória que permita, desde logo, pelo menos, providenciar por apoio do ponto de vista emocional que a ajude a ultrapassar esta situação de vida que tantos constrangimentos lhe causou.
Considera-se, pelo exposto, adequado fixar a indemnização a atribuir à vítima em 50.000€ (cinquenta mil euros).(…)
Da análise desta parte da decisão recorrida decorre que foram bem ponderadas as circunstâncias que qualificam os danos sofridos pela vítima em resultado da conduta do arguido, como as condições económicas deste último, ao contrário do referido pelo mesmo.
De acordo com o disposto no art.º 129º do Cód. Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil.
Quanto à responsabilidade civil por factos ilícitos, dispõem os arts.º 483º, nº 1, 486º e 563º do Cód. Civil que tem a mesma os seguintes pressupostos:
a) o facto ilícito, enquanto acção voluntária, ou omissão, violadora de bens jurídicos patrimoniais ou pessoais de terceiros;
b) o nexo de imputação do facto ao lesante;
c) a existência de um dano ou prejuízo causado pelo facto ilícito;
d) o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima.
Segundo o disposto no art.º 496º, nº 1 do mesmo diploma, na fixação da indemnização por danos não patrimoniais deve-se atender aos danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Ainda segundo o previsto no art.º 562º do Cód. Civil, a obrigação de indemnizar tem em vista a reconstituição da situação que existiria na esfera patrimonial do lesado se não tivesse ocorrido o facto causador da lesão.
A indemnização por danos morais, visando uma compensação do lesado pelo sofrimento, é fixada segundo critérios de equidade, nos termos previstos nos arts.º 496º, nº 4 e 566º, nº 3 do Cód. Civil, e actualizada ao momento do julgamento (cf., neste sentido, Ac. STJ de 14/3/91, in BMJ 405, pág. 443).
Importa, no entanto, determinar quais são os danos não patrimoniais indemnizáveis.
Conforme é hoje unanimemente entendido, a gravidade do dano não patrimonial mede-se por um padrão objetivo, consoante as circunstâncias do caso concreto, devendo ser afastados fatores suscetíveis de traduzir uma sensibilidade exacerbada ou requintada do lesado (cf., neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª Edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 499, nota 1).
O dano indemnizável deve ser assim um dano de tal modo grave que mereça a tutela do direito e justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado, não relevando para efeitos de indemnização os simples incómodos ou contrariedades (cf., neste sentido, Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 10ª Edição, pág. 606).
A gravidade do dano deve, pois, aferir-se com recurso a critérios objectivos, como sejam a dignidade e o valor intrínseco do bem ou interesse jurídico violado.
Não é, no entanto, possível estabelecer um paralelismo absoluto entre a gravidade do dano e a dignidade do bem jurídico violado, havendo outros factores que podem conferir gravidade ao dano, como por exemplo a intensidade da lesão, quer em termos temporais, quer em termos de afectação do bem ou interesse em causa, e a censurabilidade da conduta do agente, apta a justificar a qualificação como grave de um dano que pelos critérios da dignidade e da intensidade poderia ficar sem protecção.
Na determinação dos danos não patrimoniais indemnizáveis cabem ainda os decorrentes de uma especial sensibilidade do lesado, como sejam a doença, a idade e a maior vulnerabilidade ou fragilidade emocionais.
Não são, no entanto, atendíveis os meros incómodos e pequenas contrariedades, que na perspectiva do lesado mereceriam a tutela do direito, mas que não passam no crivo de uma avaliação objectiva ou de mero bom senso.
Quanto à definição de quais sejam os danos não patrimoniais indemnizáveis, destaca-se o dano moral em sentido próprio ou subjectivo, ou seja, a humilhação, a angústia, a vergonha e a ansiedade, nele se incluindo também a própria dor, que no direito português abrange quer a dor física, quer o sofrimento moral.
É ainda possível a ofensa de bens de carácter imaterial, desprovidos de conteúdo económico e insuscetíveis de avaliação pecuniária, como sejam a integridade física, a saúde, a correcção estética, a liberdade, a honra ou a reputação.
A ofensa objectiva destes bens tem, em regra, um reflexo subjectivo na vítima, traduzido na dor ou sofrimento, de natureza física ou moral (cf. neste sentido, Galvão Telles, in “Direito das Obrigações”, 6ª Edição, Coimbra Editora, 1989, pág. 375).
Também Antunes Varela identifica os danos não patrimoniais com os prejuízos, como as dores físicas, os desgosto morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação e os complexos de ordem estética, que não são susceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens como a saúde, o bem-estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, a honra ou o bom nome, pelo que não integram o património do lesado e apenas podem ser compensados pecuniariamente (in “Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª Edição, Almedina, 2003, pág. 602 e seguintes).
Na senda da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tem-se vindo também a autonomizar do dano moral em sentido estrito, o dano não patrimonial derivado da lesão da dignidade humana, decorrendo esta autonomização do reconhecimento de que os actos atentatórias da dignidade humana provocam angústia, amargura e desespero (cf. neste sentido “Danos Não Patrimoniais”, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, FDUC, Vol. III, Direito das Obrigações, 2007, págs. 505 a 512).
No entanto, como sustenta Vaz Serra, in BMJ, vol. 83º, pág. 85: “ (…) a satisfação ou compensação dos danos morais não é uma verdadeira indemnização no sentido equivalente do dano, isto é, de um valor que reponha as coisas no seu estado anterior à lesão; trata-se de dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este, sendo apenas moral, não é susceptível de avaliação”.
Assim sendo, uma vez que o ressarcimento dos danos não patrimoniais deriva da violação de direitos fundamentais, deve-se abandonar um critério miserabilista no que respeita à fixação dos respetivos montantes indemnizatórios.
A decisão recorrida encontra-se, também neste tocante, bem fundamentada de facto e de direito.
Os danos morais sofridos pela vítima em resultado dos sucessivos actos do arguido, tendo em conta a sua duração e intensidade, são de tal modo graves que merecem, efectivamente, a tutela do direito, impondo-se atribuir-lhe uma indemnização compensatória pelo sofrimento dos mesmos.
Uma vez que não existe a possibilidade de quantificar os danos morais, a sua ressarcibilidade tem que ser feita com recurso à equidade, ou seja, através de um critério de razoabilidade, ditado pelo bom senso.
Face aos danos de natureza não patrimonial em apreço há que ter em conta que a indemnização deve ser significativa de modo a representar uma efetiva compensação pelos prejuízos sofridos, mas sem representar um enriquecimento injustificado da lesada à custa do lesante.
Os abusos sexuais perpetrados pelo arguido na pessoa da assistente duraram vários anos, ocorreram com periodicidade e tiveram consequências dramáticas na saúde física e mental da jovem, de carácter permanente e irreversível, impedindo-a de estabelecer relações afectivas e amorosas com normalidade e lesando a sua auto-estima e o seu bem-estar psicológico de forma grave e duradoura.
Analisando a decisão recorrida e a factualidade apurada, considera-se justo e proporcional condenar o arguido a pagar à ofendida o montante de 50.000 € (cinquenta mil euros), a título de reparação pelos danos não patrimoniais sofridos, o que não está dependente do facto de a vítima se encontrar ou não a trabalhar, nem se destina apenas a pagar consultas de ... da mesma.
No caso concreto, face a tudo quanto antecede, à luz da equidade, entende-se que a quantia em apreço é justa, adequada e proporcional, mostrando-se, de acordo com as especificidades do caso concreto, perfeitamente consentânea com os valores atribuídos e os critérios seguidos pela jurisprudência dos nossos Tribunais superiores em casos que com este têm alguma similitude.
Por conseguinte, também nesta parte o recurso tem que improceder.
Por todo o exposto, impõe-se concluir que a decisão recorrida se mostra bem fundamentada de facto e de direito e não violou nenhum dos preceitos legais invocados pelo recorrente.
*

4.–Decisão:
Pelo exposto, acordam as Juízes que integram esta 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto por AA e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 Uc´s.


Lisboa,7 de Maio de 2024


(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)


Carla Francisco
(Relatora)
Alda Tomé Casimiro
(Adjunta com a seguinte declaração de voto:
Votei a decisão que incide sobre o recurso, e ainda que não concorde com a afirmação de que o recorrente se limitou a pôr em causa a credibilidade do depoimento da assistente – porque, de facto, não o fez – o acórdão acaba por apreciar a impugnação do recorrente.
Contudo, voto vencida no que se refere à condenação em custas, uma vez que tendo procedido parcialmente o recurso – ainda que não conste da parte decisória houve efectivamente procedência parcial, com alteração da matéria fáctica, embora sem relevo para a decisão da causa – entendo que, não tendo havido decaimento total, o recorrente não deveria pagar custas (art.º 513º, nº 1, in fine, do Cód. Proc. Penal) )
Ester Pacheco dos Santos
(Adjunta)