AMNISTIA
INFRACÇÃO DISCIPLINAR LABORAL
EMPREGADOR PRIVADO
Sumário


As infracções disciplinares laborais praticadas por trabalhadores vinculados a empregadores privados não se encontram abrangidas pela lei de amnistia, aprovada aquando das “JMJ”, Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto

Texto Integral


Acordam na Secção Social da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO

AA intentou contra “EMP01..., LDA” acção declarativa, sob a forma de processo comum, emergente de contrato individual de trabalho.
Causa de pedir: alega que é trabalhador da requerida, que lhe foi instaurado processo disciplinar, o qual culminou com aplicação de sanção conservatória de suspensão do trabalho pelo período de 10 dias, com perda de retribuição e de antiguidade, sendo o procedimento inválido, mormente por falta de descrição circunstanciada na nota de culpa dos factos imputados e, ademais,  não cometeu qualquer ilícito disciplinar, sendo a sanção abusiva, reclamando indemnização por danos não patrimoniais.
Pedidos : a) que o processo disciplinar seja considerado inválido, revogando-se a sanção aplicada;  b) subsidiariamente que seja declarada a caducidade do processo; c) subsidiariamente que seja determinado que a sanção disciplinar aplicada ao Autor é abusiva sendo a mesma revogada e a Ré condenada a pagar-lhe indemnização de €2.450,00, (331º CT), acrescida de juros de mora; d) subsidiariamente que ser revogada a sanção disciplinar aplicada, por desproporcionada e a mesma substituída por sanção de repreensão (328º CT); d) em todo o caso, ser a Ré condenada no pagamento ao Autor da quantia de €1.000,00 (mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora.
Contestação: a ré impugna a matéria alegada e sustenta que deve ser absolvida do pedido.
Foi proferido despacho saneador e aguardava-se a realização de julgamento.
A ré formulou então requerimento de extinção de instância alegando que a Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, no seu art.º 6.º, declarou amnistiadas as infrações disciplinares, o que inclui obviamente as infrações disciplinares laborais. O autor opôs-se solicitando o prosseguimento dos autos.

DECISÃO RECORRIDA- sobre o requerido foi proferido despacho que considerou amnistiada a infracção disciplinar e que determinou o prosseguimento dos autos para apuramento do pedido de indemnização civil por danos não patrimoniais

Disse-se:
Por conseguinte, decide-se considerar amnistiada a infracção disciplinar laboral objecto dos presentes autos, com as consequências legais inerentes, nomeadamente a extinção do respectivo procedimento disciplinar.
Nesta medida fica prejudicado, por inutilidade superveniente da lide, o conhecimento dos pedidos formulados pelo autor nas alíneas a), b), c) e d), julgando-se a instância extinta nesta parte (art. 277º, al. e) do CPC ex vi art. 1º, nº 2 do CPT).

*
Sucede que o autor deduziu, ainda, pedido indemnizatório a título de danos não patrimoniais.
Sabemos que a amnistia das penas não extingue a responsabilidade civil emergente dos factos amnistiados, pelo que, deve prosseguir o processo apenas quanto a essa matéria.
Deste modo, o objecto do litigio centrar-se-á apenas em saber se é ou não devida a indemnização por danos não patrimoniais reclamada pelo autor.
Termos em que se determina o prosseguimento dos autos assim balizado, ou seja, para decisão sobre o pedido deduzido na alínea e) do petitório. “

QUER O AUTOR, QUER A RÉ DISCORDARAM E RECORRERAM.

CONCLUSÕES DO AUTOR - excertos- (argui também nulidade de omissão de pronúncia quanto a custas):

“...2. Crê-se.... que o Tribunal a quo …padece de nulidade, por omissão de pronúncia quanto a custas, impondo-se a sua reforma.
3. De forma expressa no texto da Lei n.º 38-A/2023 de 02 de agosto, não resulta que a mesma é aplicável às infracções disciplinares laborais.
4. Era claro nos anteriores diplomas referentes a amnistias - Lei n.º 29/99 de 12/05 e Lei n.º 23/91 de 04/07 - que pelo menos as infracções disciplinares praticadas por trabalhadores de empresas com as quais tivessem relações reguladas pela legislação laboral geral estariam excluídas do âmbito da amnistia.
5. Assim, apenas uma interpretação literal do artigo 6.º da Lei n.º 38-A/2023 de 02 de Agosto conduzirá, pois, à inserção de toda a qualquer infracção disciplinar no âmbito coberto pela amnistia, o eu se crê que é uma interpretação errónea.
6. O acto de clemência que se corporizou na Lei n.º 38-A/2023 representa uma renúncia parcial e momentânea do Estado ao seu poder de punir (ius puniendi), reduzindo ou anulando penas aplicadas por crimes, coimas correspondentes a contraordenações e sanções fundadas em infracções disciplinares praticadas no âmbito de funções públicas, incluindo o sector militar.
7. Quando o Estado amnistia as infracções disciplinares dos trabalhadores das empresas públicas ou de capitais públicos, fá-lo na dupla qualidade de legislador e titular, ainda que mediato, do poder disciplinar, o que não sucede para o sector privado.
8. O Estado dispôs, assim, de faculdades sancionatórias que lhe pertencem, com o propósito de assinalar o acontecimento relevante que foi a Jornada Mundial da Juventude, com a presença do Papa.
9. O direito de graça ou clemência, que inclui a amnistia e o perdão, está mencionado no artigo 134.º, alínea f) da Constituição da República Portuguesa, onde se pode ler que compete ao Presidente da República “na prática de atos próprios (…) indultar e comutar penas, ouvido o Governo”
10. Fora desse domínio se situa a disciplina laboral, conjunto de dispositivos de natureza normativa e sancionatória que se encontram na titularidade de quem gere empresas, como condição de viabilidade do funcionamento e da coesão interna destas, no quadro das relações de trabalho privadas.
11. Em relação ao exercício do poder disciplinar, o legislador cria, normativamente, condições de controlo dos excessos e abusos a que ele pode conduzir, como poder funcionalizado ao interesse de uma das partes no contrato de trabalho. Mas não pode ir além disso.
12. Não pode, nomeadamente, agir como se lhe pertencesse esse poder (como efectivamente não pertence), renunciando totalmente ou parcialmente ao seu exercício e privando da sua titularidade plena aos empregadores.
13. A neutralização de decisões disciplinares nas empresas – para além dos casos em que a sua ilicitude seja declarada pelos Tribunais – teria consequências conflituantes com a liberdade de organização e gestão das empresas, consagrada no artigo 61.º e 80.º, alínea c) da Constituição e representaria uma forma de ingerência manifestamente não comportável nos limites definidos pelo artigo 86.º, n.º 2 da lei Fundamental.
14. Ademais, os fins das empresas públicas para além de não serem inteiramente coincidentes com as do sector privado, a posição delas perante o Estado também é diversa, como são diferentes as especificidades das respectivas relações de trabalho, pelo que não podem ser tratadas de forma igual, porque desiguais.
15. Pelo que, ao contrário do defendido na decisão recorrida, assim pode e deve-se interpretar ... à margem da amnistia decretada as infracções praticadas por trabalhadores ao serviço de empresas com as quais tenham relação reguladas pela lei geral do trabalho, tal como a que é precisamente objecto da presente acção.
...
17. Uma tal interpretação também assim se impõe ao abrigo do disposto nos artigos 9.º, n.º 1 do Código Civil, que preceitua que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
18. Por conseguinte, andou mal a decisão recorrida, ao aplicar no âmbito da presente demanda a Lei n.º 38-A/2023 de 02/08, assim violando o disposto no artigo 6.º da citada Lei e ainda os artigos 61.º, 80.º c) e 86.º, n.º 2 da Lei Fundamental e os artigos 9.º e 10.º do Código Civil, devendo a mesma ser revogada e substituída por outra que julgue que a Lei n.º 38-A/2023 de 02/08 não tem aplicação relativamente à infracção laboral objecto dos presentes autos.
Sem conceder nem prescindir ....
19. Estabelece o artigo 2.º, n.º 2 alínea b) da Lei n.º 38-A/2023 de 02 de Agosto, que estão abrangidas pela citada lei as sanções relativas a infracções disciplinares e infracções disciplinares militares praticadas até às 0:00horas de ../../2023, nos termos definidos no artigo 6.º.
20. Pelo que, no âmbito de aplicação da Lei n.º 38-A/2023 de 02 de Agosto só estão contempladas as infracções praticadas ou, pelo menos, que se encontrem consolidadas na ordem jurídica.
21. Ora, não é esse manifestamente o caso da presente demanda, pois que o Autor, aqui Recorrente, não só impugnou judicialmente a infracção que lhe é imputada, a sanção disciplinar aplicada (mas não executada) pela Ré entidade patronal, como invocou vícios, irregularidades e deficiências do processo disciplinar que o inquinam e tornam o mesmo inválido, os quais não se consolidaram definitivamente na ordem jurídica com efeitos idênticos ao caso julgado próprio das decisões judiciais, que se verifica quando a decisão se torna imodificável, pelo contrário, a sua eventual prática ainda se encontra em discussão no âmbito da presente demanda.
...
28. Na verdade, e com a decisão recorrida, ... fá-lo ao arrepio e em completa violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva.. artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa...
29. Ao decidir da forma como decidiu, o Tribunal a quo retirou ao Autor, aqui Recorrente, o direito de se defender e demonstrar, com a correspondente decisão judicial nesse sentido, que não praticou a infracção disciplinar que lhe foi imputada pela entidade empregadora – direito esse que o mesmo exerceu ao interpor em juízo a presente demanda.
...Sem prescindir ...
...36. Pelo que, a considerar-se que a Lei n.º 38-A/2023 de 02/08 tem aplicação no âmbito da presente demanda, a decisão recorrida não devia ter considerado “amnistiada a infracção disciplinar laboral objecto dos presentes autos”, porque contém ínsita uma imputação de uma infracção objecto de impugnação e ainda não decidida, mas apenas e só ter-se limitado a declarar extinto o processo disciplinar objecto dos presentes autos e, consequentemente, determinar a eliminação do registo da sanção disciplinar do registo do trabalhador...
37. É certo que, com a extinção do processo disciplinar, fica prejudicado o conhecimento dos pedidos formulados pelo autor nas alíneas a), b) e d) do seu petitório, mas tal já não sucede relativamente ao pedido da alínea c), ao invés do defendido pelo Tribunal a quo.
38. Na alínea c) do seu petitório, o Autor formulou o seguinte pedido: “c) ser determinado que a sanção disciplinar aplicada ao Autor é abusiva e, por conseguinte, ser a mesma revogada e a Ré condenada a pagar ao Autor uma indemnização no valor de €2.450,00, nos termos do disposto no artigo 331.º do Código de Trabalho, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a citação até efectivo e integral pagamento”.
...
40. Nos termos do n.º 3 do citado artigo 331.º do Código de Trabalho, o empregador que aplicar sanção abusiva deve indemnizar o trabalhador ...
41. Daqui resulta que, nos termos do n.º 3 do citado normativo legal, ainda que se prove que o empregador aplicou uma sanção abusiva, o dever de indemnizar o trabalhador obedece aos termos gerais previstos nos artigos 483.º e ss. do Código Civil.
...44. Ora, e tal como doutamente decidido pelo Tribunal a quo, a amnistia não extingue a responsabilidade civil emergente dos factos amnistiados, tal como assim igualmente resulta do disposto na Lei n.º 38-A/2023 de 02 de Agosto.
45. Ainda que a citada Lei disponha expressamente a este respeito relativamente aos ilícitos penais, jamais se poderá deixar de considerar que tal igualmente resulta relativamente a todas as situações de responsabilidade civil emergente de factos amnistiados, sob pena de violação do princípio da igualdade, plasmado no artigo 13.º da Lei Fundamental, que impõe um igual tratamento de todos os cidadãos perante a lei e uma proibição de discriminações infundadas, apenas concedendo tal “privilégio” aos ilícitos de natureza penal e postergando todos os demais atingidos pela amnistia e que careçam de igual protecção ao nível da responsabilidade civil.
46. Ademais, uma tal interpretação violaria igualmente o princípio da tutela jurisdicional efectiva, direito fundamental consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa e traduzir-se-á numa violação da autoridade do caso julgado, pois que forma-se autoridade do caso julgado quanto aos factos amnistiados objecto da presente acção e fica assim o Autor impedido que os mesmos sejam apreciados em processo judicial autónomo para efeitos de responsabilidade civil.
47. Pelo que, andou mal a decisão recorrida, sendo até contraditório com próprio o teor da mesma (que reconhece que a amnistia não extingue a responsabilidade civil emergente dos factos amnistiados, ordenando o prosseguimento dos autos para decisão sobre o pedido deduzido na alínea e) do petitório), ao julgar que com a amnistia fica prejudicado o conhecimento do pedido formulado pelo Autor na alínea c) do seu petitório, violando o preceituado na Lei n.º 38-A/2023 de 02 de Agosto, e artigos 13.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa, impondo-se a sua revogação e substituição por outra que igualmente ordene o prosseguimento dos autos para decisão (também) sobre o pedido deduzido na alínea c) do petitório.

DA NULIDADE DA DECISÃO RECORRIDA

48. A decisão recorrida do Tribunal a quo é omissa quanto custas, pelo que deixou de se pronunciar sobre questão que devia apreciar...
termos em que ...deve conceder-se provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida ...”

CONCLUSÕES DA RÉ

1.ª - O legislador na redacção da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, procedeu, conscientemente e com precisão, à definição das infracções cuja amnistia não extinguiria a responsabilidade civil emergente dos factos amnistiados, ou seja, as infracções penais, não pretendendo abranger na previsão da norma outras infracções, designadamente as disciplinares –
vd. n.º 1 do art.º 12.º e n.º 1 do art.º 4.º da Lei n.º 38-A/2023
2.ª - Nessa medida, a norma em crise, vocacionada que está para a concreta situação para que foi estabelecida, não tem elasticidade para abranger a infracção disciplinar laboral objecto dos presentes autos, não consentindo, pois, a interpretação ampla efectuada pelo Tribunal a quo –
vd. art.º 9.º do Cód. Civil
3.ª - Na verdade, face ao teor do referido normativo legal, sua concatenação com o diploma onde se insere e demais regime legal vigente, a interpretação propugnada pelo tribunal a quo, salvo o devido respeito, não encontra sustentabilidade legal à luz das próprias regras gerais de interpretação de normas, não tendo qualquer apoio ou correspondência ao menos imperfeita no texto da referida norma
- vd. art.º 9.º do Cód. Civil
4.ª - Assim, tratando-se no caso de uma infracção disciplinar laboral, a amnistia da mesma importa não só a extinção do respectivo procedimento disciplinar mas também a extinção da instância quanto a todos os pedidos formulados daí decorrentes e, naturalmente, a extinção da responsabilidade civil emergente dos factos amnistiados.
5.ª - De resto, a obrigação de indemnizar exige a verificação dos pressupostos, cumulativos, a saber: a existência de um facto voluntário, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade, sendo que a amnistia da infracção disciplinar obejcto dos autos, extingue a responsabilidade disciplinar e faz desaparecer da ordem jurídica o acto punitivo.

6.ª - Deste modo, banido da ordem jurídica o acto punitivo, o pedido indemnizatório formulado pelo autor fica privado de objecto, o que necessariamente conduz à sua extinção
- vd. art.º 277.º, al. e) do CPC.
7.ª - Não pode, pois, admitir-se que depois de amnistiar a infracção disciplinar em causa, o tribunal a quo possa debruçar-se sobre os factos amnistiados para apreciação / decisão do pedido indemnizatório formulado pelo autor decorrente dos mesmos, chocando um tal entendimento directamente com a decisão anterior de amnistia proferida, pondo-a em causa e decidindo em contrário, o que acarreta a nulidade da sentença
- vd. al. c) art.º 615.º CPC
8.ª - Além disso, logo que transitada em jugado tal decisão de amnistia, forma-se a autoridade do caso julgado quanto aos factos amnistiados, objecto da presente acção e que estão na base do pedido indemnizatório deduzido pelo autor, impedindo, pois, que sejam apreciados pelo Tribunal a quo para tal efeito
- vd. n.º 2 art.º 580.º CPC
DE HARMONIA COM AS RAZÕES EXPOSTAS DEVE CONCEDER-SE PROVIMENTO AO RECURSO E POR TAL EFEITO:
- revogar-se a decisão proferida (na parte aqui impugnada), deliberando-se a extinção da instância também quanto ao pedido formulado pelo autor na alínea e) do petitório.

CONTRA-ALEGAÇÕES - a ré sustenta a improcedência da apelação. No que se refere à omissão de pronúncia sobre custas sustenta que “Atendendo a que a instância foi extinta por impossibilidade da lide, decorrente da Lei da amnistia entretanto publicada, ou seja, por causa não imputável às partes, deverá reformar-se a sentença nesta parte, declarando-se a extinção da instância sem custas, ou, caso assim não se entenda, deverão então as custas ser repartidas por ambas as partes, uma vez que, como exposto, o motivo da extinção não é imputável à recorrida.”

DESPACHO A SUPRIR A OMISSÃO DE PRONÚNCIA SOBRE CUSTAS: após a apresentação dos recursos a senhora juiz a quo proferiu despacho nos seguintes termos:

Da nulidade por omissão da decisão recorrida:
Veio o A. invocar a nulidade da decisão por ser omissa quanto à condenação em custas.
Efectivamente, assiste-lhe razão.
Assim, ao abrigo do disposto nos arts. 616º, nºs 1 e 3 e 617º, nº 1 do CPC ex vi art. 77º do CPT, decide-se reformar a sentença aditando-se a condenação quanto a custas nos seguintes termos:
“Custas em partes iguais – cf. artigo 536.º, n.º 1 e 2 alínea c) do Código de Processo Civil.”

Nenhuma das partes reagiu a este despacho de rectificação, que passou a fazer integrante da decisão e a constituir o novo objecto do recurso no que a custas se refere - 614º, 617, 2 (aplicação analógica), CPC.

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO – sustenta-se que deve ser dado provimento ao recurso interposto pelo autor e ser negado provimento ao recurso interposto pela ré.  

RESPOSTA AO PARECER- a ré reitera as suas alegações considerando que a infracção se encontra amnistiada.
O recurso foi apreciado em conferência – art. 659º, do CPC.

QUESTÕES A DECIDIR [1]: custas fixadas pelo tribunal a quo; saber se a infracção disciplinar se encontra abrangida pela Lei de amnistia nº 38-A/2023 de 02 de Agosto e, em caso positivo, se os autos devem prosseguir e para apreciação de que pedidos.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A) FACTOS A ATENDER: os mencionados no relatório e ainda o seguinte:

Por carta recepcionada em 04 de Janeiro de 2023, e por alegados factos reportados a período anterior, foi o Autor notificado pela Ré de que foi decidido aplicar-lhe sanção disciplinar de suspensão do trabalho, com perda de retribuição e de antiguidade, pelo período de 10 (dez) dias, a cumprir nos seguintes dias: do dia 08 ao dia ../../2023- doc. n.º ....

B) CUSTAS
A senhora juiz, nos termos acima relatados, considerou amnistiada a infracção disciplinar por força da aplicação da Lei 38-A/2023 de 02 de Agosto (e determinou o prosseguimento dos autos apenas para apuramento do pedido de indemnização civil por danos não patrimoniais). Mais à frente, em face da arguição de nulidade, em complemento à decisão, condenou autor e ré nas custas do processo, em partes iguais.
A ré em contra-alegações havia sustentado, a título principal, que não deveria haver lugar a condenação em custas, porquanto a instância foi extinta por impossibilidade da lide decorrente da Lei da amnistia entretanto publicada, ou seja, por causa não imputável às partes.

Decidindo:
Segundo a norma (536º, 1, CPC): “Quando a demanda do autor ou requerente ou a oposição do réu ou requerido eram fundadas no momento em que foram intentadas ou deduzidas e deixaram de o ser por circunstâncias supervenientes a estes não imputáveis, as custas são repartidas entre aqueles em partes iguais.”
Considera-se que ocorreu uma alteração das circunstâncias não imputável às partes “c) Quando ocorra, no decurso do processo, prescrição ou amnistia;”- 536º, 2, c),  CPC
Ora esse foi o caso dos autos em que a instância se extinguiu parcialmente por, no entender do tribunal a quo, ter ocorrido amnistia da infração disciplinar (não relevando, obviamente, aqui,  a questão de fundo de saber se a conduta está ou não amnistiada).
Assim, é de manter a decisão do tribunal a quo.

C) AMNISTIA DE INFRACÇÃO DISCIPLINARES
Decisão recorrida:
Na decisão recorrida entendeu-se que as infracções disciplinares laborais se encontram abrangidas[2] pela lei de perdão de penas e de amnistia de infrações, Lei nº 38-A/2023 de 02 de Agosto. Invocou-se: o elemento literal da lei (texto); a regra de interpretação da lei de que o legislador se soube exprimir adequadamente (9º, 3, CC); a análise de anteriores leis de amnistia da qual decorrerá que quanto legislador pretendeu afastar, ou não, as infracções laborais disse-o expressamente, o que não terá acontecido na actual lei de perdão e amnistia.
Posição do autor:
O autor pretende o prosseguimento dos autos para julgamento de todos os pedidos formulados, desde a invalidade do infracção disciplinar até à aplicação de sanção abusiva (al. c), discordando que os autos prossigam apenas para apuramentos do pedido referente a danos não patrimoniais (al. e).
Sustenta que a amnistia é um acto de clemência do Estado (poder político) que renuncia, parcial e momentânea, ao seu poder de punir (ius puniendi), reduzindo ou anulando penas aplicadas por crimes, coimas correspondentes a contraordenações e sanções fundadas em infracções disciplinares praticadas no âmbito de funções públicas, incluindo o sector militar. Assim, agindo na dupla veste de legislador e empregador, faz sentido que o Estado amnistie as infracções disciplinares dos trabalhadores das empresas públicas ou de capitais públicos, fazendo-o na dupla qualidade de legislador e titular, ainda que mediato, do poder disciplinar. Tal não sucede para o sector privado, em que os dipositivos de natureza normativa e sancionatória se encontram na titularidade de quem gere empresas como condição de viabilidade do seu funcionamento no quadro das relações de trabalho privadas, as quais não estarão, assim, abrangidas pela lei de amnistia.
Posição da ré:
A ré, ao invés, entende que a infracção disciplinar se encontra abrangida pela Lei da amnistia e que os autos não devem prosseguir, nem sequer para apuramento do pedido referente a indemnização por danos não patrimoniais decorrentes da instauração do processo disciplinar (é isto que motiva o seu recurso).
Sustenta que resulta da lei de amnistia que o legislador pretendeu amnistiar as infracções disciplinares, incluindo as laborais, sempre e quando a sanção aplicada não se traduza em despedimento. A Constituição da República atribui competência à Assembleia da República para conceder amnistias sem impor qualquer restrição quanto ao seu âmbito, podendo consequentemente, abranger as infracções disciplinares, ainda que privadas. A amnistia importa não só a extinção do respectivo procedimento disciplinar, mas também a extinção da instância quanto a todos os pedidos formulados daí decorrentes e, naturalmente, a extinção da responsabilidade civil emergente dos factos amnistiados.

Analisando:

A amnistia é um instituto antiquíssimo, que remonta à antiguidade clássica, cujo significado era o “esquecimento” do delito praticado. O conceito foi sendo modelado ao longo dos tempos, chegou à era contemporânea, sendo entendido como um ato de clemência pública que faz extinguir o procedimento criminal (amnistia “própria”, como alguns lhe chamam) ou, em caso de já ter havido condenação, faz cessar a execução da pena e os seus efeitos (amnistia “imprópria/“perdão genérico”) - 127º e 128º CP.
São diversas as finalidades que podem presidir à aprovação de uma lei de amnistia. Desde: razões de pacificação social promovendo a reconciliação da sociedade (após queda de regimes, revoluções, conflitos civis...); medidas de clemência fundadas em razões de política criminal e de fins das penas; intenções de obviar a incorreções legislativas; até razões práticas e de conveniência pública (diminuição de pendências, obviar a sobrelotação de espaços, libertação de recursos e energias para outras causas), para citar algumas.
O seu campo tradicional era o foro criminal. Foi-se estendendo a outras condutas do direito público, mormente ao direito de mera ordenação social, direito disciplinar da função pública (funcionários civis), direito penal militar, direito disciplinar das Ordens Profissionais (associações públicas, como a Ordem dos Advogados, Ordem do Médicos, Ordens dos Enfermeiros, etc), e direito sancionatório fiscal.
A concessão de amnistia compete à Assembleia da República. Veja-se o artigo 161º ( Competência política e legislativa)
“Compete à Assembleia da República:....f) Conceder amnistias e perdões genéricos;”
No caso da lei de amnistia que ora tratamos, a mesma foi publicada por ocasião da Jornada Mundial da Juventude, que contou com a presença do dirigente supremo da Igreja Católica Apostólica Romana, o Papa Francisco.
A mesma foi precedida da Proposta de Lei 97/XVI/1ª. Da sua exposição de motivos apenas se colhe que a amnistia é motivada na realização em Portugal de um evento marcante a nível mundial que é a Jornada Mundial da Juventude  “que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal”, pelo que entendeu-se que seriam de adoptar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento (jovens).
Antecipe-se que a exposição de motivos e os pareceres do OA, do CSM e do CSMP não abordaram a questão das “infrações disciplinares” que ora nos ocupa. Na verdade, como é público, a celeuma que rodeou a aprovação da lei da amnistia centrou-se principalmente na questão de os seus destinatários (quanto a sanções penais) serem apenas jovens até aos 30 anos. Tudo para dizer que os trabalhos preparatórios não esclarecem em especial a questão da abrangência das infracções disciplinares.

Vejamos, agora, a concreta lei de amnistia.

Artigo 2º(âmbito):
“1- Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de ../../2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º
2 - Estão igualmente abrangidas pela presente lei as:
a) Sanções acessórias relativas a contraordenações praticadas até às 00:00 horas de ../../2023, nos termos definidos no artigo 5.º;
b) Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de ../../2023, nos termos definidos no artigo 6.º”

Somos, portanto, remetidos para o artigo 6º (“Amnistia de infrações disciplinares e infrações disciplinares militares”), dele se colhendo que:

“São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.”

Diversas publicações jurídicas e notícias em jornais deram conta que a norma em causa logo suscitou dúvidas da sua aplicação ao âmbito laboral quando estejam em causa infrações disciplinares praticadas por trabalhadores de empresas privadas.
A simples leitura da norma, sem recurso a outros elementos, não permite alcançar logo o porquê de tanta controvérsia, pois o seu texto não distingue entre as infracções disciplinares do foro público ou privado, pelo que seremos tentados também a não distinguir.
Sabe-se que o texto é apenas o começo da interpretação, conquanto também o seu limite, cingindo-se a elementos gramaticais. Mas, a interpretação é mais do que isso, é operação que visa reconstituir e chegar à razão de ser da lei (ratio legis, elemento lógico).

 Refere a este propósito no artigo 9º CC:
“ 1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”)

A razão de ser da lei é alcançada com recurso aos elementos teleológico, sistemático e histórico.
O elemento teleológico busca a finalidade subjacente à criação da lei.
O elemento sistemático apela à unidade do sistema jurídico. Obsta a que a norma interpretada seja vista de modo isolado, sendo, antes, uma peça de um todo. O elemento sistemático convoca todo o complexo normativo, institutos afins, lugares paralelos, compreendendo a necessidade de a norma interpretada ter “…consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico. Baseia-se este no postulado da coerência intrínseca de todo o ordenamento jurídico” - Machado, J. Baptista, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1999, p. 181. Mais, a unidade do sistema jurídico vinca a ideia de que a norma ou diploma interpretado não é meramente um produto imediato daquele legislador concreto, mas “o resultado de uma determinada evolução cultural…”- González, José Alberto, Código Civil Anotado, Vol I, Parte Geral, Quid Juris, 2011, p. 29.
O elemento histórico (occasio legis) tem em conta o contexto histórico para explicar a norma interpretada. Recorre-se à história evolutiva da norma, regime ou instituto, às fontes da lei e aos trabalhos preparatórios (anteprojectos, projectos, actas das comissões legislativas…).
Finalmente, a referência do art. 9º do CC, às condições específicas do tempo em que a lei é aplicada introduz uma vertente actualista, que tem em conta as mutações histórico-sociais próprias da vida, a qual não é uma “realidade petrificada” - Machado, ob. cit., p. 175 e seg.

Ora, a análise da história evolutiva do instituto, à luz das últimas leis de amnistia, leva à constatação de que em Portugal nunca foram amnistiadas infracções disciplinares no âmbito de relações laborais de trabalhadores vinculados a entidades privadas.
 O que nos faz distanciar da decisão recorrida quando argumenta que o legislador expressou quando quis (ou não) afastar a aplicação da amnistia às infracções disciplinares laborais, para daí concluir que, no caso, nada tendo dito, quis abarcar as infracções laborais.
Julgamos que esta não é a análise correcta da sucessão das leis de amnistia. Dela resulta, ao invés, que até agora as infracçoes disciplinares cometidas no âmbito de relações jurídicas laborais sujeitas ao direito laboral comum, em que as empregadoras são entidades privadas, nunca foram abrangidas pelas leis de amnistia. O que nos leva a crer que se o legislador tivesse querido inovar, tê-lo-ia dito. O que não aconteceu, nem tal resulta da história recente, mormente dos trabalhos preparatórios e da referida exposição de motivos.

Para que dúvidas não restem, as mais recentes leis da amnistia em Portugal foram:
Lei n.º 29/99, de 12 de maio [3], por ocasião do 25º aniversário do 25 de Abril (art. 7º, exclui os ilícitos laborais)
Lei n.º 15/94, de 11 de maio [4], por ocasião do 20.º aniversário do 25 de Abril;
Lei n.º 23/91 de 4 de julho [5], pela nova visita do Papa João Paulo II;
Lei n.º 16/86, de 11 de junho [6], a propósito da eleição de Mário Soares como Presidente da República;
Lei n.º 17/82, de 2 de julho[7], pela visita do Papa João Paulo II a Portugal.
Decreto Lei n.º 47702, de 15 de maio[8], pela visita do Papa Paulo VI à Cova da Iria em 13 de Maio de 1967.
Da leitura destes diplomas decorre a atribuição de amnistias no foro do direito disciplinar dos funcionários públicos civis, do sector empresarial do Estado, de empresas de capitais públicos, no direito disciplinar militar, direito disciplinar de profissionais liberais relativamente às Ordens Profissionais (associações públicas), infracções desportivas, infracções praticadas por jornalistas nos órgãos de comunicação social pertencentes a entidades públicas ou delas dependentes quando tivessem decorrido da "legítima expressão da liberdade individual ou colectiva dos respectivos trabalhadores, bem como da livre afirmação das suas opções políticas e ideológicas". E não do foro do direito disciplinar comum praticados em empresas privadas.
É certo que a CRP não limita ao legislador a possibilidade de amnistiar infracções disciplinares cometidas por trabalhadores vinculados a privados (161º, f). Em tese geral, não será pelo facto de o Estado não ser o empregador e não deter o poder disciplinar que, do ponto de vista da competência, se verá impedido de amnistiar tais condutas. Não há uma paridade de competências entre o poder disciplinar e o poder de amnistiar.
Contudo, essa não tem sido a nossa prática. Julgamos que a isso não será alheio o facto de a amnistia de faltas disciplinares punidas por empresas privadas poder ser entendido como uma ofensa ao principio constitucional de liberdade de iniciativa económica privada - 82º, 1, 3, CRP e na doutrina Jorge Miranda e Rui Medeiros, CRP Anotada, Tomo II, Coimbra editora, 2006, em anotação ao artigo em causa. Ou de poder contender com a garantia constitucional da autonomia privada (individual e colectiva) inerente ao Estado de Direito   - 61º, 1, 80º, c), 86, 2, CRP, e na doutrina Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, Tomo II, 4ª ed., Coimbra Editora, p. 291 e 292.
Basta consultar a jurisprudência desenvolvida durante as anteriores leis de amnistia para se concluir que as discussões (no que a infracções disciplinares privadas se refere) se têm centrado na aplicação ou não das diversas amnistias apenas a empresas públicas ou se também abrangem as empresas mistas, de capitais maioritariamente públicos, se se deve ter em conta as que, entretanto, sofreram transformação jurídica desde a data da infração, etc. À jurisprudência subjaz o entendimento de que as infracções disciplinares laborais de entidades privadas não estavam amnistiadas, questão por vezes abordadas lateralmente aquando das controvérsias referidas -acórdãos do STJ de: 20-10-1993, p. 003719,  20-10-1093, p. 003720, 21-09-1994, p. 003672,  ac. 17-02-1994, p. 003768, ac 16-03-1993, p. ACTC00003820, ac. 2-07-1997, p. 96S4410 e, ainda, estudo, do Sr. Desembargador Cruz Bucho denominado “Amnistia e Perdão ( Lei 38-A/2023, de 2 de agosto): Seis meses depois (Elementos de Estudo)”, Guimarães, 1-03-2024, ponto n. 10 onde refere que a jurisprudência anterior se inclinava para considerar as infracções disciplinares não amnistiadas.
Há que excluir da discussão a possibilidade de se entender que a lei de amnistia, ao não se aplicar à infracções de empresas privadas, possa violar o principio constitucional da igualdade. Tem sido sublinhado pela jurisprudência, com a qual concordamos, que só existe violação deste princípio em situações jurídicas paritárias, o que não acontece na comparação entre o âmbito das relações laborais de trabalhadores vinculados a privado e das relações de trabalhadores de entidades do setor público. Em matéria de amnistia a aferição de sua constitucionalidade terá de ser feita com particular cautela dado que cabe exclusivamente ao legislador a escolha do critério de discriminação entre infracções amnistiáveis e não amnistiáveis, não sendo estas valorações sindicáveis, salvo casos de inequívoca arbitrariedade ou falta de justificação razoável.
No acórdão do Tribunal Constitucional 152/93, 3-02-1993, proc.  432/91, www.tribunalconstitucional.pt, rebate-se que possa ser violado o princípio da igualdade pela diferenciação, em matéria de amnistia,  entre os trabalhadores do sector público e do sector privado, aludindo em diversos trechos às diferenças entre ambos os regimes:
 “...bastará notar que a natureza empresarial pública da entidade patronal pode condicionar as relações laborais, nomeadamente pela sujeição dos trabalhadores a um regime de direito público .... sucedendo mesmo que certos trabalhadores do sector público têm determinados ónus, que não impendem sobre trabalhadores de empresas privadas, mesmo quando sujeitos ao regime da lei geral do contrato individual de trabalho. A título exemplificativo, refiram-se certas incompatibilidades legais para o exercício de funções remuneradas em regime de acumulação que atingem apenas os trabalhadores de empresas públicas do sector bancário ... bem como as amplas possibilidades de exercício de funções por funcionários públicos e trabalhadores de outras empresas públicas em regime de requisição.... Entende-se, assim, que o legislador tinha a possibilidade constitucional de decretar uma amnistia laboral restrita aos trabalhadores do sector público, atendendo a que se tratava de cidadãos que desenvolvem a sua actividade no interesse e por conta do empresário público, que é o Estado, não tendo por isso uma situação igual às dos trabalhadores das empresas do sector privado”- negrito nosso.

Concluindo: a circunstância de as diversas leis de amnistia, que se tem sucedido ao longo dos tempos, não contemplarem a amnistia de condutas de trabalhadores de entidades privadas e sujeitas ao direito geral é um dado interpretativo essencial da ratio legis, que se sobrepõe ao elemento literal, o qual de resto, é, ainda assim, respeitado. E, como referimos, a lei da amnistia não contém qualquer detalhe explicativo, nem tão pouco dos seus antecedentes (exposição de motivos e parecer da OA, CSM e CSMP) resulta vontade de inovar, mas tao só a implementação de medida de clemência a propósito de um evento marcante que reúne jovens (JMJ)  que “conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal”. Não se vê, pois, como possa este objectivo justificar, em contracorrente com a tradição jurídica, que a amnistia abranja infracções disciplinares laborais.
Assim sendo, entendemos como muito plausível a justificação apresentada por António de Monteiro Fernandes e João Vilaça em artigo intitulado” “Estarão as infracções laborais cobertas pela amnistia?”, 12-09-2023, RHmagazine, https://rhMagazine.pt,  quando sugerem que a ambiguidade da lei de amnistia resultará de infeliz reprodução/transposição da anterior lei de amnistia[9] que amnistiava as infracções disciplinares e os ilícitos disciplinares militares (7º e 7º, c) mas excluía deles os ilícitos laborais,  o que foi omitido pelo actual legislador (veja-se a similitude de redacção entre as normas, 7º, c) da anterior lei de amnistia e artigo 6º da actual).
Mais alertando os autores para o facto de que ” A neutralização de decisões disciplinares nas empresas – para além dos casos em que a sua ilicitude seja declarada pelos tribunais – teria consequências conflituantes com a liberdade de organização e gestão das empresas, consagrada nos arts. 61º e 80º-c) da Constituição, e representaria uma forma de ingerência manifestamente não comportável nos limites definidos pelo art. 86º/2 da Lei Fundamental. Esvaziar juízos disciplinares legitimamente realizados sobre comportamentos dos trabalhadores constitui um facto de enorme perturbação na ordem e na coesão interna das empresas, sem apoio no ordenamento constitucional. “
Também no sentido de que as infrações praticadas por trabalhadores ao serviço de empresas privadas não estão abrangidas pela lei de amnistia ver ac. RL de 24-01-2024, p. 778/23.3T8PDL-A.L1-4, www.dgsi.pt
Assim sendo, não estando a infracção disciplinar amnistiada pela razoes acima expostas, os autos terão de prosseguir para apreciação de todos os pedidos, ficando prejudicadas as restantes questões, mormente as arguidas pela ré (sempre se diga que à ré não assistiria razão quanto pretendia o não prosseguimentos dos autos para apreciação do pedido de indemnização por danos não patrimoniais. A amnistia não extingue a responsabilidade civil decorrente dos factos amnistiado, podendo a parte aproveitar os autos e requerer a sua continuação, conforme artigo 12º da lei de amnistia, preceito que teria de se aplicar às acções que versassem sobre infrações disciplinares caso se entendesse que a lei da amnistia as abrangia).

III– DECISÃO

Acorda-se em:
a) conceder provimento ao recurso do autor, revogando-se a decisão e determinando-se a continuação dos autos para apreciação de todos os pedidos;
b) não conceder provimento ao recurso da ré;
c) manter a decisão que versou sobre custas.
Custas de ambos os recursos a cargo da ré.
Notifique.
2-05-2024

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Francisco Sousa Pereira
Vera Sottomayor



[1] Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s salvo as questões de natureza oficiosa.
[2] As praticadas até às 00h de ../../2023, sendo o elemento temporal consensual.
[3] Artigo 7º “Desde que praticadas até ../../1999, inclusive, e não constituam ilícito antieconómico, fiscal, aduaneiro, ambiental e laboral são amnistiadas as seguintes infracções:....
c) As infracções disciplinares e os ilícitos disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável não seja superior à suspensão ou prisão disciplinar;”
[4] Artigo 1: Desde que praticadas até ../../1994, inclusive, são amnistiadas as seguintes infracções:...
jj) As infracções disciplinares puníveis pelo Estatuto Disciplinar, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, directamente ou por remissão, quando a pena aplicável ou aplicada não seja superior a suspensão e, bem assim, as infracções praticadas pelos funcionários ou agentes com estatuto especial, quando a sua gravidade não seja superior à das referidas no n.º 1 do artigo 24.º daquele Estatuto, salvo quando os factos imputados integrem ilícito criminal ou quando o infractor já tiver anteriormente sido punido com censura ou pena mais grave;
ll) Os ilícitos disciplinares militares quando punidos com pena não superior a prisão disciplinar;
mm) As infracções disciplinares cometidas, no exercício da sua actividade, por profissionais liberais sujeitos a poder disciplinar das respectivas associações públicas de carácter profissional, salvo quando os factos imputados integrem ilícito criminal ou quando o infractor já tiver anteriormente sido punido com censura ou pena mais grave.”
[5]Artigo 1º “ Desde que praticados até ../../1991, inclusive, são amnistiados:....
gg) As infracções disciplinares puníveis pelo Estatuto Disciplinar aprovado pelo Decreto n.º 24/84, de 16 de Janeiro, directamente ou por remissão, quando a pena aplicável ou aplicada não seja superior a suspensão, e, bem assim, as infracções praticadas pelos funcionários ou agentes com estatuto especial, quando a sua gravidade não seja superior à das referidas no n.º 1 do artigo 24.º daquele Estatuto;
hh) Os ilícitos disciplinares militares quando punidos com pena não superior a oito dias de detenção ou que lhe seja equiparada, desde que a pena haja sido efectivamente cumprida;
ii) As infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos, salvo quando constituam ilícito penal não amnistiado pela presente lei ou hajam sido despedidos por decisão definitiva e transitada;
jj) As infracções disciplinares cometidas, no exercício da sua actividade, por profissionais liberais sujeitos a poder disciplinar das respectivas associações públicas de carácter profissional, salvo quando os factos imputados integrem ilícito criminal punível com prisão superior a seis meses, com ou sem multa, ou quando o infractor já tiver anteriormente sido punido com censura ou pena mais grave.
[6]Artigo 1º “ Desde que praticados antes de ../../1986, são amnistiados:....
dd) As infracções disciplinares puníveis, directamente ou por remissão, pelo Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, quando a pena aplicável ou aplicada não seja superior a suspensão, e bem assim as infracções praticadas pelos funcionários ou agentes que possuam estatuto especial, quando a sua gravidade não seja superior à das referidas no n.º 1 do artigo 24.º daquele Estatuto;
ee) As infracções disciplinares cometidas por membros de órgãos representativos de trabalhadores de empresas públicas no exercício das correlativas funções ou por causa delas, quando não puníveis ou punidas com despedimento;
ff) As infracções disciplinares cometidas, no exercício da sua actividade, por profissionais liberais sujeitos a poder disciplinar das respectivas associações públicas de carácter profissional, desde que os factos imputados não integrem ilícito criminal punível com prisão superior a seis meses, com ou sem multa.
[7] No que ora interessa são amnistiadas apenas infracções disciplinares de natureza militar- 3º, f), e certas infracções disciplinares do Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante - 4º, b).
[8] Artigo 1º São amnistiados....11 As infracções de carácter meramente disciplinar, previstas nos artigos 46º aº e 47.º do Decreto-Lei 41204, de 24 de Julho de 1957 (tratam-se de infracções contra a saúde pública e contra a economia nacional) e são anuladas certas penas disciplinares do Regulamento de Disciplina Militar- art. 8º
[9] Lei 29/99, de 12 de maio- artigo 7º, c).