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RELATÓRIO
SENTENÇA
PERÍCIA
MENOR DE 16 ANOS
CONSENTIMENTO
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CRIME DE VIOLAÇÃO
ABUSO SEXUAL
PESSOA INCAPAZ DE RESISTÊNCIA
CONDENAÇÃO POR FACTOS DIVERSOS
NULIDADE
Sumário
(da responsabilidade do relator): 1 - A parte do «relatório» de uma sentença deve conter as indicações tendentes à identificação da assistente (art. 374º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal). 2 - As melhores práticas aconselham a que o relatório contenha já, ele próprio, a identificação da assistente, por razões de boa técnica na construção do acórdão, ligadas à autonomia e clareza da peça. 3 – Todavia, não ocorre vício que justifique correção quando o relatório contém algumas «indicações» que são «tendentes à identificação» da assistente e do conjunto do acórdão possa perceber-se sem qualquer dúvida quem é a assistente, sobretudo quando nunca se suscitara qualquer dúvida nos autos nessa matéria. 4 – A realização de perícia sobre características físicas ou psíquicas de determinada pessoa só pode ser realizada mediante consentimento, sem prejuízo do regime previsto pelo art. 154º, nº 3 do Código de Processo Penal. 5 – Se a pessoa a examinar tiver menos de 16 anos, compete aos seus representantes o direito de prestar esse consentimento, sem prejuízo de a opinião do menor dever ser considerada, com um grau cada vez mais determinante em função da sua idade e do seu real discernimento; mas se a criança tiver 16 ou mais anos, é a ela própria, presumidamente capaz para o efeito, que cabe à partida tomar a decisão se consente ou dissente na sua sujeição ao ato em causa. 6 – Se o tribunal pretender encetar um diferente enquadramento jurídico dos factos, absolvendo o arguido da prática do crime de violação, previsto pelo art. 164º, nº 2 do Código Penal, pelo qual fora acusado, e condená-lo pela prática de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previsto pelo art. 165º, nº 2 do mesmo diploma, sem que a alteração tenha sido preconizada pela Defesa, deve fazer a comunicação prevista pelo art. 358º, nºs 1 e 3 do Código de Processo Penal. 7 – Isto porque, estando embora diante ilícitos criminais próximos, no sentido em que ofendem o mesmo bem jurídico (liberdade sexual) e têm um requisito objetivo comum (a prática de um ou mais atos sexuais de relevo), constituem ilícitos de perfil diverso: no caso da violação, o agente constrange a vítima a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, um ou mais atos sexuais de relevo; e no caso do abuso de pessoa incapaz de resistência, a vítima está num estado de incapacidade de resistir e o agente aproveita-se dessa incapacidade. 8 – Entre um e outro desses ilícitos não pode dizer-se que haja uma relação de mais e menos, isto é, que os requisitos constitutivos do crime pelo qual o Arguido veio a ser condenado representem um minus em relação ao crime pelo qual fora acusado. 9 – Nestas circunstâncias, o acórdão é nulo por força do art. 379º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal, apesar de esta norma, no seu texto, se referir apenas à condenação por «factos diversos». 10 – Com efeito, um leitura da norma que seja sistematicamente coerente e teleologicamente enquadrada com as exigências do processo equitativo, demanda que se conclua que o legislador disse ali menos do que queria, no sentido em que pretenderia cominar com a nulidade a sentença que fizesse uma convolação jurídica para crime diverso cujos elementos constitutivos não estivessem todos incluídos no ilícito originariamente imputado, sem que fosse respeitado o regime do art. 358º do Código de Processo Penal.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
1 – RELATÓRIO
Pelo Juízo Central Criminal do Funchal (Juiz 3) foi proferido acórdão em 19 de dezembro de 2023 que contém a seguinte parte decisória (transcrição da parte relevante): «delibera o Coletivo de Juízes que compõe este Tribunal Julgar a acusação parcialmente procedente por nesta medida provada e consequentemente:
a. Absolver o arguido AA da prática do crime de violação p.p., pelo art. 164º, n. º 2, do CP
b. condenar o arguido AA, pela prática de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p.p., pelo art. 165º, n. º 2, do CP, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão.
c. condenar o arguido no pagamento de uma indemnização de 30.000,00€ à ofendida, a título de danos morais.
d. condenar o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC (cf. art. 513º, n.ºs 1, 2 e 3 do C. P. Penal e art. 8º, n.º 9 do RCP, com referência à Tabela III).
e. Condenar o arguido nas custas civis, na proporção dos respetivos decaimentos.»
*
Inconformado, o Arguido interpôs recurso, que terminou com as seguintes conclusões (transcrição):
«1-No dia 13/10/2022, com início a minutos a ofendida disse a minutos (8:58) e (9:00)
“Para além disso fez-te mais algum comentário que tu achasses assim mais estranho ou era um comentário para uma adolescente?”
“Portanto, só continuaram a beber tu e a tua mãe? “Sim”
2-Segundo os fatos provados no ponto 8 do acórdão diz:
“Durante o convívio, o arguido teceu elogios à vítima, designadamente, que estaria muito bonita com o vestido que trajava e não parecia ter a idade que tinha (16 anos), pois parecia uma mulher”.
Porém tal não condiz à verdade dos factos pois. O Tribunal a quo, não relevou o depoimento prestado pela ofendida nesta parte consta da transcrição do áudio do dia 13/10/2022, com início em (3:51) e termino em (3:57). “os elogios à vítima por parte do arguido não ocorreram durante o convívio ““Para além disso fez-te mais algum comentário que tu achasses assim mais estranho ou era um comentário para uma adolescente?”; “Não, mas era a tal coisa ele puxava muito mais conversa comigo do que com a minha mãe”.
3-Ponto nº 8 dado matéria dada como provado existe uma insuficiência de matéria de facto pelo que deverá o Tribunal Ad Quem deverá dar como não provado.
Os convívios para os almoços, realizavam-se sempre a convite do tio CC e não do arguido. (cfr. fls. 22) do Acórdão,
4-Mais o convite para o bar foi sugerido a mãe da ofendida e ao respetivo tio CC. (cfr. Gravações da ofendida, com início em 5:29 e término em 5: 38). Sugeriu que fossem a esse bar.
Sugeriu a quem?”; “Ele sugeriu a minha mãe e a esse tal tio”
5-Beber ponche por parte da ofendida, a mesma refere no áudio com início em (7:33) e termino em (7:38) “que já tinha bebido anteriormente”. que já tinha bebido anteriormente. “(...) já tinha bebido antes.”.
A ofendida não conseguiu precisar quantos copos tinha ingerido antes do ponche afirmando que não se lembrava”. (cfr. Áudio com início em 7:57 e termino em 8:03) “(...) Antes desse copo de ponche, quantos é que já tinhas bebido?”; “Não me lembro”.
6-Há uma contradição conforme o depoimento da ofendida, que teve início em (10:07) e termino em (10:14), “Como é que saíram do Bar?”; “Saímos do bar, depois de a minha mãe prontos estar mais ou menos bem, já não estar maldisposta”. ambos saíram do bar quando a mãe desta já não estava maldisposta.
7-Circunstância que permite aferir segundo o bom senso comum que o depoimento prestado pelo tio se encontra em consonância com a verdade histórica dos fatos: “em que não viu ninguém embriagado e nem maldisposto”. (cfr. fls. 22 da douta sentença proferida em 19/12/2023)
8-Consta no ponto 15 da douta sentença que o arguido “agarrou e pressionou-lhe o seio direito com força, o que lhe causou dor”, no depoimento prestado pela ofendida, que se encontra gravado digitalmente em 13/10/2022, com início em (13:44) e término em (13:50), (...) Senti um aperto enorme no meu peito a mesma não refere o lado da dor do seio, o que demonstra que o Tribunal a quo assentou a sua decisão com base em uma suposição.
9-Afigura-se que existe uma contradição da prova testemunhal com o outro meio de prova no processo, in casu o Relatório do Exame Médico Legal datado de 01/09/2022, realizado pela ofendida, em que a nível da região genital: “a observação da região anal e vaginal não revelou qualquer achado digno de relevo”. Acresce que “os genitais externos se apresentam normalmente (cfr. Pagina 4 do Relatório da perícia de natureza sexual em direito penal, realizada no gabinete medico legal e forense da ..., pelo perito medico Dr. CC).
10-A dor aguda na região genital perianal, a que a ofendida refere no seu depoimento, carece de valoração e reapreciação da mesma uma vez que a prova testemunhal se encontra em discrepância com a prova pericial apresentada e junta no processo, no que concerne a uma contradição entre o depoimento prestado e a verdade pericial médica.
11-Ao dar como provada como deu no ponto 16 dos factos dados como provados está em contradição plena e flagrante , com in casu o Relatório do Exame Médico Legal datado de 01/09/2022, realizado pela ofendida, em que a nível da região genital “ a observação da região anal e vaginal não revelou qualquer achado digno de relevo”,
De notar que:
12-A prova pericial representa em processo penal um desvio ao princípio da livre apreciação da prova plasmado no art. 127º do C.P.P. Essa prova de apreciação vinculada, como é a prova pericial, “tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos” - art. 151º do C.P.P.
Tratando-se de exame pericial o resultado obtido no mesmo apenas pode ser colocado em crise por outro meio de prova idêntico e nunca pela análise das testemunhas, ou pelas declarações dos arguidos
13-Assim as relações anais e vaginais referidas no testemunho da ofendida não podem colocar em crise in casu o Relatório do Exame Médico Legal datado de 01/09/2022, realizado pela ofendida, em que a nível da região genital :
“a observação da região anal e vaginal não revelou qualquer achado digno de relevo de salientar:
14-Só o Tribunal A quo poderia colocar em crise , mas teria que explicar a razão ou razoes e o raciocínio lógico indicando detalhadamente e os fundamentos da divergência Não o fazendo como não o fez todo o artigo 16 que se deu como provado não o poderia ser pois contraria Relatório do Exame Médico Legal já alegado.
15-Existe erro notório na apreciação da prova, artigo 410 Nº 2 alínea c)
Quando não existindo fundamentos válidos que permitam divergir da prova pericial, se decide pela aplicação do princípio da livre apreciação do artigo 127º do C.P.P.
16-No depoimento prestado pela ofendida com início em 13:23 e termino em 13:29, que se encontra gravado digitalmente em 13/10/2022, a mesma refere que quando acordou estava vestida.
Quando acordaste estavas vestida ou despida?”; “Eu estava vestida, o meu vestido não foi retirado.
17-A ofendida referiu que sentiu a pressão no peito e a dor na região genital perianal, com início 14:25 em e termino em 14:28, “(...) Sentia essa pressão no peito e essa dor no ânus.” pelo que se encontra gravado digitalmente datado de 13/10/2022, não existem indícios suficientes que comprovem que foi do lado direito do seio da ofendida conforme o tribunal a quo mencionou no ponto 15 ínsito na fundamentação da douta sentença proferida em 19/12/2023.
18-importa mencionar que o estudo laboratorial realizado não detetou a presença de material biológico de origem masculina. (cfr. Relatório pericial criminalística biológica em anexo nas páginas 1 a 3, realizado pelas especialistas superiores de medicina legal DD e EE.)
19-O depoimento gravado digitalmente com início em (15:50) e término em (15:52), “(...) E ele amanheceu no sofá. - Que o arguido acordou no sofá, importa relevar que a ofendida revelou que a almofada e a cama estava repleta de vómitos.
20-A ofendida estava menstruada, atendendo as condições do arguido não ter colocado os lençóis da cama para lavar e não ter colocado o soutien da ofendida, ( cfr. depoimento da ofendida que se encontra digitalmente gravado com inicio em 19:13 e término em
19:20) “ ele chegou a lavar tudo menos o soutien, e o soutien tinha sangue eu estava menstruada”..
21-Existe uma contradição com a matéria dada como provada pelo Tribunal a quo no ponto 8 no Douto Acordão uma vez que conforme o depoimento da ofendida datado de 13/10/2022, com início (22:58) e término em (24:09), “ Ele disse-me no dia seguinte que eu estava muito bonita vestida com aquela roupa, e que eu parecia uma mulher mais velha, que não me dava a idade que eu tinha e que tinha gostado bastante de me ver assim” os elogios que o arguido teceu à ofendida foram no dia seguinte e não durante o convívio conforme resulta da fundamentação da douta sentença.
22-Segundo o depoimento da ofendida com início (29:18) e término em (29:29), ), “Eu senti uma sensação viscose na minha boca, eu só senti tipo saliva uma sensação viscosa na minha boca.” a mesma refere ter sentido uma sensação viscosa na sua boca, nomeadamente saliva e não na região vaginal contradiz o ponto 20 ínsito na fundamentação do douto Acórdão
23-A psicóloga FF, com início em (4:35) e término em (4:38), a ofendida referiu reiteradamente a psicóloga que existiu um desconforto na região anal. Do depoimento da psicóloga com início em (2:06) término em (2:10), “Sentia desconforto nomeadamente na região anal a ofendida referiu reiteradamente a psicóloga que existiu um desconforto na região anal. a mesma refere que não existem dúvidas nenhumas para desconfiar, contudo não é que nos transparece no exame médico legal realizado a ofendida, datado de 01/09/2022.
24-No relatório medico pericial, foi extraído das conclusões que revelam praticas sexuais recentes de copula vaginal. No depoimento da psicóloga com início em 11:03 e termino em 11:49, é referido que a ofendida tem uma relação conjugal com um rapaz da mesma idade. Circunstância que nos suscita dúvidas uma vez que a mesma poderá já ter tido relações sexuais anteriormente de cópula vaginal consentidas e não resultante da previsível violação a que se alude.
25-Numa relação de cópula anal, não consentida existem vestígios como fissuras e lesões traumáticas que inexistem nos autos que apenas são analisados minuciosamente através de uma perícia medico legal e nunca psicológica.
26-Afigura-se importante ressaltar que a ofendida no seu depoimento não fez menção a sangue suscetível de integrar uma violação anal e que estaria sempre presente.
27-Termos em que, para que seja considerado uma violação existem indícios e elementos constitutivos como: lesões, fissuras, traumatismos.- nada disso foi detectado pela perícia medica.
28-O depoimento do arguido também seja reapreciado e reavaliado, segundo os princípios de direito para a valoração da prova, em consonância com a aplicação do princípio da presunção de inocência, consagrado constitucionalmente como uma garantia do processo criminal, previsto no artigo 32º nº2 da Constituição da República Portuguesa.
29-Demonstram-se assim, reunidos os pressupostos que o Tribunal a quo não valorou os meios de prova que tinha ao seu dispor, uma vez que a Digna Procuradora do Ministério Público, em sede de audiência de julgamento datada de 29/11/2023, com início em (6:41) e término em (7:00), faz referência apenas a membrana himenial da região genital da ofendida;
E que segundo o exame médico legal revelava relações sexuais de cópula vaginal recente
E que o soutien da mesma se encontrava com sangue, importa salientar que a perícia medico legal tem como objetivo detetar se houve lesões traumáticas nas regiões genitais que relevassem algum achado digno e não que o respetivo soutien da ofendida tinha manchas de sangue, que aliás não encontra respaldo no referido Relatório Médico legal.
30-A falta de consentimento da pericia da personalidade da ofendida
- A ausência de prestação de consentimento por ambos os progenitores . O pai não deu consentimento .
Trata-se de uma questão suscetível de integrar uma nulidade dependente de arguição (artigo 120º, nº 1, do mesmo texto legal) pela pessoa interessada – a menor que foi sujeita à perícia à personalidade, devidamente representada em juízo -, até ao termo da realização da perícia (artigo 120º, nº 3, alínea a), do mesmo Código) ou – no caso de se entender que ambos os progenitores, enquanto representantes legais da menor, deveriam ter estado presentes na perícia à personalidade da sua filha e tendo estado presente, apenas, um dos progenitores
O arguido carece de legitimidade para arguir tal nulidade sanável.
Porem face à impossibilidade de o arguir tal nulidade
Cabe ao Ministério Público representar o progenitor -e na falta deste arguir tal nulidade.
Ao não o fazer, violou o princípio da legalidade e a interpretação normativa viola o Princípio Constitucional. Da legalidade artigo 32 do CRP arguindo-se desde já a inconstitucionalidade dessa interpretação normativa .
A ofendida é uma menor de 16 anos o consentimento teria que ser dado por ambos os pais e não só pela mãe. Na ausência do pai incumbe ao MP representa-lo.
Considerando as suas características psicológicas e da personalidade, mas já não para aferir da credibilidade do seu depoimento, na versão que apresenta dos factos
31- Ou seja o facto de na perícia psicológica da ofendida ter credibilidade não significa que a ofendida não possa prestar falsas declarações em juízo. A perícia visa essencialmente uma avaliação do grau de credibilidade da testemunha e não a credibilidade da versão dos factos;
32-Da insuficiência de provas de facto. artigo 410 nº 2 al a) CPP Aceitar a versão dos factos valorizando da ofendida como verdadeira pode levar a Erros Judiciários
O tribunal desvalorizou a versão do arguido, porque não existem testemunhas que tenham presenciado.
33-Vícios de mera forma artigo 374º nº1 alíneas a) a d) artigo 379 do CPP
Do Relatório do Acórdão apresenta vícios de mera forma, em que a indicação tendente a identificação das partes, o crime imputado e a existência de contestação e caso haja lugar aos róis de testemunhas deva ser apresentado no Relatório conforme resulta do disposto no artigo 374º nº1 alíneas a) a d) do Código de Processo Penal, e não em outras partes da sentença de forma dispersa como foi no caso vertido.
34-A identificação tendente da assistente, foi apresentada na Fundamentação, nos termos em que deveria ter sido no Relatório do Acordão verifica-se a inobservância da aplicação dos vícios requisitos legais artigo 374º nº1 alíneas a) a d) artigo 379 do CPP do Acordão
35-A douta Acordão enferma de “errores in judicando”,
Suscita-se assim nos termos do artigo 380º do Código de processo Penal, a admissibilidade de correção da sentença uma vez que não foram observados integralmente os seus requisitos conforme consta do artigo 374º do Código de Processo Penal.
36-É imputado ao arguido no Relatório da referida sentença um crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164º nº2 alínea a) do Código Penal, suscita-se a nulidade da sentença nos termos do artigo 379º alínea b) do Código de processo penal, uma vez que condena o arguido por fatos diversos dos descritos na acusação.
37-Sucede que no Relatório da sentença ao arguido é imputado um crime de violação e no dipositivo da Acórdão é lhe imputado um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência.
38-Há uma divergência do objeto do processo e dos fatos objeto da condenação.
39-Nestes termos, afigura-se que a sentença que condenar por fatos substancialmente diversos dos da acusação é nula.
40- Atento o regime das nulidades da sentença, a mesma padece de dois vícios enunciados taxativamente no artigo 379º sob epigrafe
“Nulidade da sentença”, do Código de processo penal, que incide sobre
A. a violação de alguns dos requisitos da sentença, in casu,
B. na falta de menções obrigatórias ou da parte decisória
C. e de nulidade que decorram do não respeito na sentença do objeto do processo.
41-A fundamentação do Tribunal a quo, assentou em meios probatórios periciais e testemunhal, no que incide ao meio de prova pericial, no caso da perícia medico legal realizada à ofendida em 31/08/2022, importa salientar que o Tribunal a Quo não apreciou a matéria de prova com a devida relevância, nos termos em que do referido exame medico legal, a nível da região genital perianal não se revela qualquer achado digno de relevo, situação que suscita duvidas quanto a existência de uma violação na região anal e vaginal. erro notório, conforme resulta do previsto no artigo 410º nº 2 alínea c) do Código de Processo Penal.
42-Da alteração da qualificação jurídica no processo penal português Artigo 358º -
43-No momento do despacho a que se refere o art.° 311.° do C.P. Penal, não sendo patente um claro erro de subsunção dos factos constantes da acusação, não pode o juiz convolar os factos para outro tipo legal de crime por respeito do princípio acusatório
Atendo todo o alegado nas motivações e nas conclusões o arguido
INOCENTE pelo que o Tribunal A Quo deverá Absolvê-lo
Caso assim não entenda e conjugando todos as provas atenta a perícia medica legal poderá duvida aplicar “In dúbio pro reo”»
*
O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
A Digna Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância pugnou no sentido de que seja negado provimento ao recurso e mantido o acórdão recorrido, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
«1 - Nos termos do artigo 412.º, n. º1, do Código de Processo Penal, a motivação de recurso deve enunciar os fundamentos do recurso, e terminar com as conclusões, sendo certo que são estas que definem o seu âmbito.
2 - Assim, são as seguintes, em suma, as questões que o arguido convoca:
- Erróneo juízo formado pelo Tribunal, relativamente a alguns factos, considerando a produção da prova realizada;
- Erro notório na apreciação da prova, cfr artigo n.º 410.º, n.º 2, al. c) do CPP;
- Vícios de “mera forma” de que padece o Acórdão proferido, cfr artigo 374.º, n.º 1, alíneas a) a d) do artigo 379 do CPP; “errores in judicando;
- Nulidade do Acórdão; Questão da Alteração não substancial dos Factos e da Alteração da Qualificação Jurídica.
3. Não assiste razão ao recorrente, porquanto, do escrutínio feito a toda a factualidade, e, analisada a mesma na sua globalidade, o Tribunal não considerou provado que o arguido “tenha agido com o propósito deliberado de provocar um estado de embriaguez à ofendida e sua mãe”, como parece pugnar o recorrente no ponto 1) do segmento III) da motivação recursiva.
4. Relativamente aos comentários tecidos pelo arguido à ofendida e à roupa que a mesma trajava, o douto acórdão, na factualidade que considerou provada, peca por defeito, porquanto, das declarações da testemunha, mãe da ofendida e desta última, o que se conclui é que tais declarações foram emitidas e enunciadas nos dois momentos distintos que o arguido faz referência, no convívio no restaurante e após a prática dos factos na residência do arguido, quando BBe a mãe saíam da mesma para regressarem a casa de camioneta.
5- Não ocorreu, no douto Acórdão proferido, qualquer “Erro notório na apreciação da prova, cfr artigo n.º 410.º, n.º 2, al. c) do CPP, como quer o arguido fazer crer.
6- Não se verifica qualquer contradição entre as declarações da ofendida e depoimentos prestados pelas testemunhas em confronto com o teor do “Relatório do Exame Médico Legal datado de 01/09/2022.
7- A ofendida, no seu depoimento para Memória Futura (fls11/24, Auto de transcrição do depoimento a fls 433 a 444 dos autos), refere, sem qualquer dúvida, ter sentido “aperto enorme no meu peito” e “pressão no peito”, e, conjugadas tais declarações com a Perícia Médico Legal de Natureza Sexual já supra indicada (fls 576 a 581 dos autos), para onde se remete, a ofendida declarou ao perito “sentir uma “sombra” em cima dela e uma dor intensa na zona anal, bem como sensação de apertão muito forte na mama direita e de ter os punhos imobilizados……” (fls 578 dos autos, infra, negrito e sublinhado nosso).
8- O arguido, talvez por mero lapso, labora em erro, porquanto, na sua peça recursiva (fls 211 dos autos, supra) refere que a perícia médico legal efetuada concluiu que:
“a observação da região anal e vaginal não revelou qualquer achado digno de relevo”;
quando, efetivamente, o que consta do Relatório Pericial (fls 578, infra) é:
“a observação da região anal não revelou qualquer achado digno de relevo”, e não fazendo aquela perícia, neste específico segmento, qualquer alusão à zona vaginal.
9- Os factos, penetração anal e vaginal, ocorreram no dia 28.08.2022, e a ofendida foi observada no INML, no dia 01.09.2022, volvidos 04 (quatro) dias após os factos terem sido perpetrados.
10- Tal circunstância, reputou-se como impeditiva de constatar a penetração anal, pelo lapso de tempo, entretanto decorrido, desconhecendo-se, também, a amplitude e consequências de tal penetração na ofendida.
11- Na Perícia Médico-Legal, Relatório (fls 579 infra e verso supra), consta que:
“Membrana himeneal de forma semi-lunar, de cor rósea uniforme e aspecto carnudo, com maior altura (cerca de 10mm) e espessura pelas 7h. Observa-se uma solução de continuidade traumática, completa, às 6h, de bordas coaptáveis e rodeados de intenso ponteado hemorrágico – compatível com cópula recente.”
“As lesões de natureza traumática observadas a nível da membrana himeneal são compatíveis com práticas sexuais recentes (cópula vaginal).”
12. A decisão do Douto Tribunal “a quo” não assentou em “suposições”, bem ainda, como se deixou demonstrado, que os factos praticados, relatados pela ofendida e provados nos autos pela análise global de toda a prova, não colidem, em nenhum aspecto, com a prova pericial também junta aos autos; pelo contrário, tal prova pericial é a confirmação da prática dos factos pelo arguido.
13. Descarta-se a ocorrência de qualquer “Erro notório na apreciação da prova”, bem como a violação do Princípio da Livre Apreciação da Prova, como invoca o arguido.
14. O douto Tribunal “a quo” avaliou, de forma correta, a prova carreada para os autos e produzida em audiência de Julgamento, e todos os factos foram assertivamente considerados como “provados” e “não provados” pelo tribunal “a quo”, não se impondo qualquer alteração, neste conspecto.
15. O Tribunal da condenação prosseguiu os comandos do art.º 127.º do CPP, impondo tal preceito que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e da livre convicção do julgador.
16 - O Douto tribunal, recorrendo às regras da experiência comum e seguindo a bitola do que “é normal que aconteça”, e das ações encetadas por “um homem médio”, nestas circunstâncias, não pode deixar de concluir como concluiu, e assacar a prática dos factos ao arguido.
17 – O facto invocado pelo arguido, da existência de um namorado à ofendida, não resultou provado em audiência, o que foi referido é que, agora, na atualidade, à data da realização do julgamento, a ofendida teria um namorado, mas nunca tal facto foi referido, por nenhuma testemunha, relativamente à data dos factos, senão pelo arguido, porquanto tal referência fazia parte do seu plano de tentar descredibilizar a honra da ofendida e a sua mãe, na sua condição de mulheres, impugnando o seu carácter e bom nome, com a finalidade de desprezar e ocultar a prática dos factos que encetou.
18 - A questão aventada pelo arguido da “falta de consentimento do pai da ofendida para a realização de perícia sobre a personalidade”, é uma falsa questão e uma falácia, porquanto, dos autos não consta qualquer Perícia Psicológica ou à Personalidade da ofendida, tendo apenas o Douto Tribunal “a quo” inquirido, em sede de prova testemunhal, e não na qualidade de “Perito”, várias testemunhas como FF e GG, que testemunharam a reação emocional e psicológica da ofendida após a ocorrência dos factos.
19 – O M. º Coletivo “a quo”, observou, na íntegra, todas as regras previstas para a elaboração do Acórdão, prosseguindo no respeito pelos “requisitos da sentença”, a que alude o artigo 374.º do CPP, inexistindo qualquer vício de forma ou errores in judicando”.
20 – Confunde o arguido a questão da identificação com a prova de factos, que, como o nascimento e filiação só são passiveis de serem provados por documento autêntico, e, por isso, inevitavelmente, são levados à factualidade provada ou não provada no Acórdão a proferir.
21- O douto Tribunal alterou a qualificação jurídica do tipo legal em apreço, porquanto o arguido vinha acusado do crime de “Violação”, p. e p. no artigo 164.º, n.º 2, al. a) do Código Penal, e foi condenado pelo crime de “Abuso sexual de pessoa incapaz de resistência”, p. e p. no artigo 165.º n.º 2 do Código Penal.
22 - A alteração à qualificação jurídica produzida foi legal, atempada e no respeito pelo exercício do contraditório e dos direitos da defesa do arguido, não ocorrendo qualquer “divergência do objecto do processo e dos factos objecto da condenação”, como entende o recorrente, sendo que, também o douto Acórdão não condenou por “factos substancialmente diversos dos da acusação”, como também pugna o arguido.
23 – Procedeu o Tribunal da condenação à Alteração Não Substancial dos factos, reabrindo, em conformidade a Audiência para comunicação e exercício do direito de defesa e contraditório aos sujeitos processuais, cumprindo-se o formalismo legal ínsito no artigo 358.º do CPP;
24 - Conforme resulta da Acta da Audiência de Julgamento de 19.12.2023, fls 912-913, tendo aqueles sujeitos prescindido do prazo para se pronunciarem.
25 - É legítimo ao Tribunal do julgamento proceder à alteração dos factos vertidos na Acusação, desde que observe o formalismo que a lei prescreve.
26 - O que o Douto Tribunal fez, foi, com os factos que já constavam nos autos e aqueles que alterou, procedeu à alteração da Qualificação Jurídica dos mesmos e nada mais do que isso, razão pela qual não se concebe, mais uma vez, a questão ora aventada pelo arguido.
27 – Não condenou o douto Acórdão por “factos substancialmente diversos dos da acusação”, como também pugna o arguido.
28 – Os factos já constantes da Acusação, anteriormente à realizada alteração não substancial dos factos, eram bastantes e suficientes para viabilizarem a condenação do arguido pelo crime cominado.
29 - In casu, são elevadas as necessidades de prevenção geral e elevadíssimas as de prevenção especial, assim como o dolo é direto e intenso bem como a ilicitude e a culpa do agente revelada na ação.
17 – Na determinação da medida concreta da pena, o tribunal ponderou todos os factos, em absoluto respeito e em cumprimento do estatuído no art.º 71º, do Código Penal, que manda atender, na determinação da medida da pena, à culpa do agente, às exigências de prevenção e a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente.
18 - Assim, nada há a apontar ao douto Acórdão proferida, bem assim como à natureza e medida da pena concretamente aplicada ao ora recorrente, prisão efetiva, que se deve manter, na sua plenitude, pugnando-se pela improcedência do recurso interposto pelo arguido.
19 - O Tribunal “a quo” observou, na íntegra, todos os Princípios a que estava obrigado a respeitar, assim como todos os preceitos legais, e conformou a sua decisão no respeito pela legalidade, pelo que o douto Acórdão recorrido não merece qualquer censura ou reparo.
Termos em que se conclui pela manutenção da decisão recorrida por a mesma nenhum agravo ter feito à Lei, devendo o presente recurso ser julgado improcedente, como é de toda a JUSTIÇA.»
*
Chegados os autos a este Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer pugnando pela improcedência do recurso.
A esse parecer o Recorrente não respondeu.
O processo foi aos vistos e em seguida à conferência.
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2 - FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Questões a tratar
Tendo presente o objeto do recurso, delimitado pelas conclusões do Arguido, o que se encontra neste momento sob discussão são as seguintes questões, que aqui se alinham pela sua ordem lógica de apreciação:
i. Se se verifica a alegada violação do art. 374º, nº 1, alíneas a) a d) do Código de Processo Penal, em virtude de o acórdão recorrido não conter na parte do «relatório» indicações tendentes à identificação da Assistente;
ii. Se é nula a perícia sobre a personalidade da ofendida (alegadamente) realizada nos autos, em razão de a sua feitura não ter sido (alegadamente) consentida pelo pai daquela e se, não tendo a nulidade sido invocada por quem para tanto tinha legitimidade (o pai da ofendida), se devia ela ter sido arguida pelo Ministério Público, cuja inércia nesta matéria ofende o princípio da legalidade;
iii. Se a sentença é nula por ter condenado o Arguido por factos substancialmente diversos dos da acusação e por um crime diferente em relação ao que constava da acusação.
iv. Se foi concedido excessivo valor probatório à suposta perícia sobre a personalidade da ofendida;
v. Se se verifica insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, em razão da valorização excessiva do testemunho da ofendida;
vi. Se se verifica o erro notório na apreciação da prova ao ter o Tribunal a quo divergido sem fundamento válido do resultado da prova pericial;
vii. Se o Tribunal errou na valoração da prova, ao dar como provados determinados factos e nomeadamente os relativos aos contactos sexuais que se imputa ao Arguido ter perpetrado na pessoa da ofendida.
2.2 O acórdão recorrido
2.2.1 Os factos e sua motivação
O acórdão tem o seguinte teor quanto aos factos provados, não provados e motivação de facto (transcrição):
«II - FUNDAMENTAÇÃO.
1. Matéria de facto provada da acusação.
1. A vítima, BB, nasceu em …2006 e é filha de II e JJ.
2. No sábado, dia 27.08.2022, a vítima saiu para almoçar na companhia da sua mãe, JJ e do tio desta, CC, a convite deste, sendo que para esse almoço foi convidado um quarto elemento, primo da sua mãe, que a vítima praticamente desconhecia, o aqui arguido AA.
3. O almoço realizou-se no ...”, sito na ..., tendo os quatro ali permanecido durante algumas horas, em confraternização.
4. No dia seguinte, domingo, 28.08.2022, os quatro indivíduos (indicados em 2) voltaram a juntar-se para almoçar, desta feita, deslocaram-se para a ..., na viatura de CC, onde almoçaram no ...”, sito na ..., tendo ali chegado próximo das 13h00 e tendo permanecido até próximo das 16h00.
5. Neste local, e durante a refeição, a BB a sua mãe e o arguido, beberam licor de “Ginja”.
6. Quando abandonam o Restaurante, e por iniciativa do arguido, todos deslocaram-se para a zona da ..., onde permaneceram no estabelecimento comercial “...”, até próximo das 00h00 do dia 29.08.2022.
7. Neste bar a vítima BB a sua mãe e o arguido, ingeriram diversas bebidas alcoólicas, em quantidade não concretamente apurada, designadamente, PONCHA e cerveja.
8. Durante o convívio, o arguido teceu elogios à vítima, designadamente, que esta estaria muito bonita com o vestido que trajava e não parecia ter a idade que tinha (16 anos), pois parecia uma mulher.
9. Como consequência direta das bebidas alcoólicas que ingeriram, a BB e sua mãe começaram a sentir-se mal, tendo JJ vomitado, junto à via pública, em frente ao estabelecimento comercial supra indicado em 7, enquanto BB encontrava-se tonta e a cambalear.
10. Quando abandonam o bar, o arguido convidou CC, BB e JJ para ficarem a pernoitar na sua habitação, sita na ..., contudo, CC recusou-se a tal, deixando o arguido, BB e a sua mãe na habitação do arguido e abandonou o local.
11. Já no interior da aludida habitação, na madrugada do dia 29.08.2022, o arguido advertiu a vítima e sua mãe para não fotografarem, filmarem ou publicarem nas redes sociais quaisquer conteúdos relacionados com a permanência das mesmas em sua casa.
12. Neste circunstancialismo de tempo e lugar, a vítima e a sua mãe estavam a sentir-se mal, devido ao excesso de bebidas alcoólicas ingeridas nas horas que antecederam, deslocaram-se até um dos quartos existentes na habitação e adormeceram.
13. A dada altura a JJ levantou-se para ir a casa de banho vomitar, acabando por não conseguir, fazendo-o entre a saída do quarto e a entrada da sala, no chão.
14. Entretanto a vítima levantou-se para ir também vomitar a casa de banho e nessa altura o arguido sugeriu levar a ofendida para o seu quarto, o que fez, deitando-a na cama e fechando a porta.
15. De seguida, o arguido colocou-se por cima da vítima, afastou o seu vestido que envergava, junto à zona da axila direita, agarrou e pressionou-lhe o seio direito com força, o que lhe causou dor.
16. Seguidamente, o arguido levantou-lhe as pernas, empurrou-as para cima, ficando com os joelhos encostados na zona abdominal, e de seguida, penetrou o seu pénis, ereto, na vagina e no ânus da vítima, de forma alternada e fez movimentos de penetração, para frente e para trás, o que lhe causou uma dor aguda na região anal e desconforto e ardor na região vaginal.
17. A vítima, durante o ato supra descrito, sentia-se debilitada, queria mexer-se e não conseguia, colocou as suas mãos na zona do peito do arguido, no intuito de o afastar de si, mas não conseguiu fazê-lo, não tendo forças para tal, devido ao elevado consumo de álcool que ingerira.
18. Enquanto o arguido a penetrava na região anal e vaginal, manietou-lhe ambos os pulsos, com as suas próprias mãos, para que esta não tivesse oportunidade de o tentar afastar de si;
19. BBcomeçou a chorar devido às dores que sentia e ao facto de não conseguir falar, ao que o arguido lhe sussurrava, baixinho, ao ouvido, para ter calma e para não chorar.
20. Volvidos alguns minutos, BB sentiu algo “viscoso” na região vaginal, assim como sentiu o mesmo na sua boca.
21. Ao fim de algum tempo que não se logrou precisar, BB ficou em cima da cama do arguido, após o ato sexual supra descrito, onde vomitou e dormiu até à manhã do dia seguinte (29.08.2022), sem se conseguir levantar ou mexer.
22. A vítima nunca tinha mantido relações sexuais, quer vaginal ou anal, anteriormente.
23. Pela manhã, o arguido colocou a lavar o vestido e as cuecas que BB tinha vestido naquela noite, e posteriormente os lençóis, e disse para BB tomar um banho, ao que esta acedeu.
24. Ao fim da manhã, na companhia da sua mãe, BBabandonou a habitação do arguido e ambas se deslocam, de autocarro, para a ..., onde residem, sendo que a vítima apresentava dificuldades ao andar, devido à dor aguda na zona anal e um enorme ardor na região vaginal.
25. O arguido tinha conhecimento da idade da ofendida e fez-se prevalecer da sua compleição física e natural vulnerabilidade da menor, após ter ingerido diversas bebidas alcoólicas.
26. O arguido era, à data da prática dos factos aqui em causa, Agente da Polícia de Segurança Pública, a prestar serviço junto da esquadra da ....
27. Com as condutas supra descritas, atuou o arguido, sempre, com intenção de satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que BB estava alcoolizada e assim perturbada e diminuída de forma acentuada na sua capacidade de oferecer resistência às suas investidas, mesmo depois de esta o ter tentado impedir, bem sabendo que esta não queria manter relações sexuais consigo.
28. Agiu o arguido com o propósito de manter com BB relações sexuais de cópula completa, vaginal e coito anal, satisfazendo os seus instintos sexuais, bem sabendo que o fazia contra a vontade desta e usando de força física, ofendendo a dignidade, liberdade e autodeterminação sexual da ofendida, e constrangendo-a a submeter-se aos atos que queria praticar, o que conseguiu.
29. O arguido agiu sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo serem as suas condutas punidas e proibidas por lei penal.
*
30. O arguido não averba quaisquer condenações no seu certificado de registo criminal.
* 2. Das condições pessoais e sócio-económicas do arguido:
31- À data dos factos, AA, de 48 anos, …, residia na ilha da ..., sozinho, em casa arrendada, no concelho da .... Informou que o seu agregado, nessa altura, já se tinha mudado para a ilha de ..., nos ..., onde pretendiam passar a residir e a trabalhar de forma permanente, pois a esposa é natural desta ilha. O arguido manteve-se no ... durante cerca de 1 ano enquanto aguardava transferência para uma … na ilha de ..., deslocando-se aos ... regularmente para conviver com a esposa e com os filhos menores.
32-Presentemente, e desde que foi libertado do ... onde se encontrava em prisão preventiva à ordem dos presentes autos, o arguido tem-se mantido com Obrigação de Permanência na Habitação com recurso a vigilância eletrónica (OPH-VE), residindo em conjunto com a esposa, KK, com os dois filhos do casal, de … e … anos, com a sogra e um cunhado, em habitação que dispõe de boas condições de habitabilidade e conforto, em ambiente coeso e protetor, ainda que abalado por força do conhecimento dos factos que sobre ele pendem na acusação.
33-A esposa e a sogra exercem atividade profissional, contribuindo para prover o bem-estar de todos os elementos do agregado.
34-Natural de ..., para onde tinham emigrado os pais, o arguido é o mais velho de uma fratria de 4 (dois germanos e dois consanguíneos), tendo regressado a Portugal, concretamente à ilha da ..., na sequência do falecimento da mãe, na companhia do pai e de um irmão, quando tinha 6 anos. O pai, pessoa rigorosa e autoritária, refez a sua vida amorosa nesse arquipélago, vindo a ter outros dois filhos, iniciando atividade profissional como …, circunstância que favorecia longos períodos fora de casa, ficando o arguido e os irmãos aos cuidados da madrasta, desempregada, descrita como pouco afetiva e que o obrigava a desempenhar inúmeras tarefas domésticas.
35-Ingressou na escola em ..., vindo a frequentar o 1.º ciclo já no ..., apurando-se que terá realizado um percurso escolar normativo, sem problemas de comportamento ou reprovações, fazendo uso das férias escolares, a partir dos 15 anos, para se dedicar ao trabalho como forma de conseguir alguns proventos para uso próprio, quer como pintor de construção civil, quer em trabalhos agrícolas. Na adolescência, convivia com pares pró sociais, dedicando-se a atividades desportivas tais como corrida, ciclismo e ginásio, informando que teve algumas relações de namoro, tendo a primeira experiência sexual ocorrido nesse âmbito quando contava 17 anos, com uma mulher mais velha.
36-Completada a maioridade, ponderou ingressar no Exército, mas foi colocado na reserva territorial, iniciando atividade profissional como comercial de … aos 18 anos, relegando para segundo plano a conclusão do 12.º ano de escolaridade.
37-Foi-se mantendo laboralmente ativo até aos 24 anos, mas a circunstância de namorar com a filha de … fê-lo ponderar sobre o seu futuro profissional, decidindo inscrever-se na …, em ..., vindo a concluir o … com 25 anos, sendo colocado numa … nos ..., concretamente na ilha de ..., realidade que levou ao términus do seu relacionamento amoroso.
38- Nessa altura, corria o ano de 2002, conheceu, na ilha de ..., a mulher com quem viria a contrair matrimónio, tendo o casal decidido mudar-se para o ... em 2003, Região onde nasceram os dois filhos do casal. Depois de uma breve passagem pela casa do pai do arguido, o casal foi residir para um imóvel arrendado, vindo, posteriormente, a adquirir um terreno onde construíram a sua habitação própria permanente, local onde residiram com os dois filhos até 2021, altura em que a esposa e os filhos se mudam para a ilha de ..., ficando o arguido a aguardar a autorização de transferência para esta ilha, situação que se foi arrastando por mais de 1 ano, vindo a concretizar-se em outubro de 2022, altura em que ficou agregado ao ....
39- Durante o período que permaneceu na ilha da ..., residiu sozinho, em casa arrendada, tendo os factos pelos quais se encontra indiciado ocorrido, presumivelmente, durante esse intervalo temporal.
40-Revelou que a distância da família teve nele um impacto emocional significativo, sentindo maior tristeza e isolamento, reconhecendo que tal estado emocional favoreceu um maior consumo de bebidas alcoólicas e convívios sociais.
41-O arguido e a esposa mantiveram-se dedicados ao trabalho e à família nos últimos anos, relatando uma vivência tranquila, sem situações traumáticas, com rendimentos suficientes para a satisfação das necessidades dos 4 elementos do agregado, mas sem convívio com familiares, razão que os fez ponderar pelo regresso ao arquipélago dos ..., por aqui terem familiares da esposa, com os quais passavam os períodos de férias. Para além do tempo dedicado a atividades familiares, os tempos livres eram dedicados à manutenção física e em caminhadas pela natureza.
42-Apurou-se, junto de uma … que comandou o arguido na..., que AA era tido como um bom profissional, que cumpria as suas funções com zelo e responsabilidade, mantendo um bom relacionamento com os colegas e adequado trato com os cidadãos.
43-Quem o conhece da esfera privada descreve-o como um indivíduo dedicado à família, pacato, responsável e organizado, não lhe sendo apontados comportamentos ou atitudes moralmente censuráveis.
44- Este é o primeiro contacto do arguido com o Sistema de Justiça, não se revendo nos factos que sobre ele pendem na acusação. A ausência de anteriores condenações, os hábitos de trabalho, a imagem social positiva, o apoio familiar de que beneficia, a par das competências pessoais, sociais e relacionais que evidencia, constituem-se como fatores de proteção, não se vislumbrando fatores de risco.
45- O arguido requereu acompanhamento psicológico em fevereiro p.p., tendo-lhe sido disponibilizada resposta a este nível através da Estratégia Regional de Prevenção e Combate ao Abuso Sexual de Crianças e Jovens, tendo beneficiado da primeira consulta no dia 12 de fevereiro p.p., comparecendo a todas as sessões agendadas, com atitude adequada e colaborante, revelando um humor depressivo e ansioso em face da situação jurídica atual.
2. Matéria de Fato Provada do Pedido Civel:
1.Como consequência direta e necessária da atuação do arguido a ofendida experimentou uma intensa dor, quer durante, quer depois de ter sido penetrada.
2. quando saiu da casa do arguido, a ofendida tinha dificuldades ao andar, devido à dor aguda na zona anal e ao enorme ardor e desconforto na região vaginal.
3. Como consequência direta e necessária da atuação do arguido a ofendida sentiu uma enorme exaustão física e um abalo emocional, sentiu e sente medo e ansiedade, sente-se deprimida, constrangida e envergonhada.
4. Tem um sentimento de culpa persistente uma vez que se interroga se teria feito algo para provocar ou evitar os fatos.
5. Perdeu a alegria de viver.
6. Tem dificuldade em dormir e tem pesadelos frequentes.
7. Por vezes a ofendida revive a experiência traumática por que passou, que lhe assola o pensamento.
8- A ofendida ficou com problemas de raciocínio e de humor.
9-Fica excessivamente alerta quanto a sinais de perigo e assusta-se facilmente.
10- Depois do dia 29 de agosto de 2022 a ofendida começou a sentir-se, de forma habitual, extremamente tensa, agitada e incapaz de relaxar.
11-Tem dificuldades para concentrar-se ou dormir.
12- A ofendida começou a ter dificuldades de aprendizagem na escola diminuindo o seu aproveitamento escolar.
13. A Ofendida tem medo de contactar com rapazes da sua idade e não consegue manter uma relação afetiva com receio que lhe façam mal.
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Factos não provados: Da acusação
1. Neste local, e durante a refeição, o arguido tomou a iniciativa de oferecer à BB e à sua mãe, licor de “Ginja”, que as mesmas ingeriram, dois ou três cálices.
2. Quando abandonam o Restaurante, e por insistência do arguido, todos deslocaram-se para a zona da ....
3. Neste bar o arguido ofereceu e entregou à vítima BB e à sua mãe, diversas bebidas alcoólicas.
4. Durante o convívio, o arguido mantinha as suas atenções voltadas à vítima.
5. Como consequência direta das bebidas alcoólicas que o arguido, sistematicamente, forneceu à BB e à sua mãe, ambas começaram a sentir-se mal.
6. A mãe da vítima continuava a sentir-se mal, devido ao excesso de bebidas alcoólicas ingeridas nas horas que antecederam, intensificou os vómitos e acabou por deslocar-se até um dos quartos existentes na habitação e adormeceu.
7. Ao passo que a vítima BB sentou-se no sofá da sala e ali permaneceu por pouco tempo, pois encontrava-se com tonturas e já não conseguia, sequer, colocar-se de pé, nem manter os seus olhos abertos, devido ao excesso de bebidas alcoólicas ingeridas nas horas que antecederam.
8. Não obstante, e sem que a vítima pudesse prever, o arguido, de forma não concretamente apurada, levou BB para o interior do seu quarto e deitou-a na sua cama.
9- Pela manhã, o arguido colocou a lavar o vestido e as cuecas que BB tinha vestido naquela noite, e posteriormente os lençóis, com água quente e lixívia.
10. O arguido fez-se prevalecer da vulnerabilidade da menor, após ter ingerido diversas bebidas alcoólicas, fornecidas por ele. Do pedido cível
Inexistem.
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MOTIVAÇÃO:
Ao dar como provada e não provada a factualidade supra descrita referente à atividade delituosa assacada ao arguido, o tribunal formou a sua convicção na concatenação crítica do conjunto da prova produzida em julgamento e, bem assim, da prova documental e pericial com que os autos foram instruídos, toda ela apreciada de acordo com o seu valor probatório e as regras da experiência, segundo dita o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º do CPP.
Livre apreciação que, se por um lado se afasta de um sistema de prova legal, i.e., baseada em regras legais predeterminantes do seu valor, por outro, não admite também uma apreciação fundada apenas na convicção íntima e subjetiva do julgador.
A livre apreciação da prova significa que o tribunal está vinculado ao dever de perseguir a verdade material do caso concreto que é trazido à sua apreciação, de tal modo que esta, embora livre, há-de ser motivada e controlável, quer pelos destinatários da decisão quer pelas instâncias de recurso. Por isso se exige a explicitação do percurso lógico do julgador na decisão sobre a matéria de facto, que está na génese da sua convicção.
Como, lapidarmente, a este propósito, se escreveu no Ac. STJ de 16.01.2008, disponível em www.dgsi.pt, “A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos para reapreciar uma decisão o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo.”
Mas não se deve, contudo, ignorar que os princípios da imediação e da oralidade só possíveis em Audiência de Julgamento, carregam consigo uma carga de convencimento dificilmente transponível para a fundamentação, uma vez que só podem ser apreendidos na sua totalidade pelo julgador perante o qual as provas são produzidas.
Descritos os respetivos meios de prova, nos moldes à frente alinhados, ter-se-á de proceder, conforme impõe o art.º 374º, n.º 2, do CPP, à exposição, tanto quando possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão sobre a matéria de facto, com o exame crítico das provas enumeradas.
Sublinha-se, que toda a prova produzida na audiência de julgamento se encontra gravada, o que, permitindo a ulterior reprodução de toda a referida prova e, assim, um rigoroso controle dos meios de prova com base nos quais o Tribunal formou a sua convicção sobre a matéria de facto, legitima uma mais sucinta fundamentação desta convicção e torna desnecessário tudo o que vá para além disso.
O Tribunal fundou-se, pois, nas regras de experiência e na ponderação de toda a prova, quer junta aos autos, quer produzida em audiência, e o juízo sobre a certeza e a verdade material dos factos resultou, sobretudo, dos seguintes meios de prova que abaixo se descreverão.
Escusado seria recordá-lo, para demonstração do crime de natureza sexual por cuja prática vem o arguido acusado, em tese, pela própria natureza da sua execução dificilmente concorrerão testemunhos de pessoas que presenciaram os factos.
Assim, a prova dos fatos passa sempre pelo peso da credibilidade da versão da vítima face à versão do suposto agressor, podendo (e devendo) ser utilizados como pesos da balança elementos objetivos como, por exemplo, os exames médico-legais, e as regras de experiência comum.
Nos autos, e como facilmente se constata da análise dos meios de prova, para além das declarações da ofendida, temos ainda o depoimento da sua mãe que se encontrava com a mesma na altura dos fatos, embora não exatamente no momento da sua prática.
Concretizando:
O arguido negou a prática dos fatos de que vem acusado, alegando que jamais faria tal coisa, porque também tem uma filha, confirmando, no entanto, a matéria de 1º a 14º dos fatos provados.
Afirmou que mal conhecia a BB e a mãe, só de vista, e que foi iniciativa do tio levá-las ao almoço, nos dois dias.
Ao ser-lhe perguntado, respondeu que tudo constitui uma invenção da ofendida e da sua mãe, para lhe extorquir dinheiro, uma vez que se tratam de pessoas muito pobres e até mal vistas na zona, insinuando, por diversas vezes, que as mesmas eram tidas como mulheres que andavam metidas com vários homens e ainda que a mãe da ofendida não cuidava da educação da mesma abandonando-a à sua sorte, desleixada e despreocupada, procurando sempre que possível, denegrir a imagem da ofendida e de sua mãe.
Referiu ainda que apenas sugeriu que a menor fosse para a sua cama, porque a cama do quarto onde ela se encontrava com a mãe, estava vomitada, e ainda que o próprio ficou a dormir no sofá. Referiu ainda que nessa altura mandou a JJ limpar o chão porque cheirava mal, para o que lhe forneceu o balde e a esfregona.
A ser verdade, questionamo-nos e ao arguido, porque razão não foram as duas dormir para o seu quarto já que o delas cheirava, segundo o próprio, a vomitado.
Referiu que quando foi ao seu quarto buscar uma almofada para dormir no sofá, a BB lhe terá dito: “fica aqui”, mas que o mesmo não ligou e foi para o sofá e insinuou que constava que a ofendida já teria sido violada anteriormente por outro indivíduo, mais uma vez querendo com tais afirmações denegrir a sua imagem.
Que sugeriu que fossem dormir a sua casa porque estavam todos embriagadas, mas que, chegados a sua casa, o seu tio quis ir embora para casa dele, ali deixando a ofendida e a sua mãe, que haviam ido com ele de carro ao almoço e posteriormente ao Bar.
Contudo, anteriormente havia referido que quando resolveram ir embora para casa, estava tudo bem, ninguém estava embriagado ou a cambalear, que era só para tomarem um copo.
Referiu ainda que, a pedido daquelas, no dia seguinte de manhã ainda lhes foi comprar o pequeno almoço e lhes deu dinheiro para irem embora de camionete, uma vez que o seu carro estava estacionado relativamente afastado e não queria perder o lugar. E ainda que, a pedido daquelas, pôs a roupa da BB a lavar e lhes deu duas toalhas e uma escova para tomarem banho, não sabendo se tomaram as duas ou só a BB.
No entanto, confrontada esta versão com as declarações da ofendida e das restantes testemunhas, conjugada com as regras de experiência comum, não podemos deixar de a desconsiderar.
As declarações da ofendida BB, (para memória futura e posteriormente transcritas, e que aqui se dão por reproduzidas), foram muito esclarecedoras, espontâneas, e consentâneas com um relato credível, vivido e verdadeiro, apesar de a mesma não se recordar de tudo com exatidão, já que estava embriagada e adormecida. Afirmou ainda que, aos poucos, se foi recordando do que lhe aconteceu.
Na realidade a ofendida ia relatando o que se lembrava, nos períodos em que acordava e procurava dizer ao arguido para parar.
Nelas resulta retratado quase todo o circunstancialismo descrito na acusação nos termos que deixámos expostos. Na verdade, as declarações da ofendida, como referimos, revelaram-se claras, objetivas, detalhadas e coerentes, revelando, outrossim, sempre com o cuidado de referir que o que não se lembrava com exatidão se devia ao facto de estar sonolenta e embriagada, adormecendo sucessivamente, o que de resto é compatível com o estado em que a ofendida se encontrava e relatado por esta, o que permite conferir especial credibilidade à versão da ofendida.
Também revelador desta credibilidade, foi o modo vivido, emocionado e sofrido com que relatou os factos supra descritos.
Realce-se, como já se referiu, que em matéria de “crimes sexuais” as declarações dos ofendidos têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante como foi o caso, pelo que não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta como são os crimes sexuais, e repita-se, neste caso, não temos como duvidar de tais declarações.
Por outro lado, a experiência científica nesta área ensina que as vítimas de crimes sexuais tendem a não verbalizar o sucedido remetendo-se a um penoso silêncio, recatando a traumática experiência e quando a revelam fazem-no de forma sentida e muitas das vezes com retalhos de memória seletivos. É neste contexto muito especial, que deve ser apreciado o depoimento da vítima, sendo que, neste caso acresce o fato de, para além de seu familiar, o arguido era agente da PSP, o que já por si, é um fato inibidor, como aliás o referiram a mãe da ofendida e a própria.
Na verdade, a ofendida acabou por desabafar com a sua explicadora, de nome LL (que igualmente depôs em tribunal), demonstrando receio de contar a alguém e muito menos apresentar queixa, como aliás atestam também as SMS trocadas com a mesma e juntas aos autos a fls.79, onde ela refere igualmente que a sua mãe não quer apresentar queixa.
Com base nas declarações da ofendida se deu também como assente a matéria do pedido cível.
Muito esclarecedor foi ainda o depoimento de JJ, mãe da ofendida, e que com a mesma se encontrava na data dos fatos.
Esta, num depoimento emotivo, tímido e envergonhado, relatou de forma pormenorizada todo o circunstancialismo em que os fatos que presenciou, ocorreram, que acabam por ser consentâneos com a realidade, e a versão da ofendida. A sua postura em julgamento, falando em tom de voz baixo, cabisbaixa e de forma tímida são consentâneas com a vergonha que sentia, e que é típica nos depoimentos nestes tipos de crimes.
Nele se notou também uma preocupação em relatar os fatos com precisão, e não com intenção de prejudicar o arguido. Note-se, que a mesma nem queria apresentar queixa, tendo sido convencida pela psicóloga da filha a fazê-lo, o que acabou por fazer junto da PSP do hospital.
Assim, a testemunha depôs por forma confirmar toda a matéria dos artºs 1º a 14º dos fatos provados.
Foi ainda confrontada com o croquis da casa do arguido e que consta de fls. 305, onde se constata que o quarto do arguido fica do lado oposto àquele onde inicialmente dormiu a ofendida com a filha e bem assim que este último quarto tem acesso direto à sala, ( o que esta e o arguido confirmaram), o que, como veremos adiante, é muito relevante.
Referiu que tanto ela como a sua filha beberam bastante, cervejas e poncha, mas que não tinha sido o arguido a oferecer-lhes as bebidas admitindo que pudesse ter oferecido uma ou outra.
Que já se havia sentido mal no bar, e vomitado no local.
Já na casa do arguido estranhou aquele dizer-lhes para não porem a casa dele nas redes sociais.
Referiu ainda que quando da situação relatada no fato descrito em 14, a depoente se dirigiu ao arguido e lhe disse “não durmas com ela”. Neste particular, referiu ainda que o arguido havia sugerido que a filha dormisse no quarto dele, uma vez que a depoente havia vomitado à saída do quarto para a sala e cheirava mal, o que aceitou, pelo que não é verdade, como afiançava o arguido, que a cama estivesse vomitada já que a depoente não vomitou aí, o que desde logo deixa transparecer as verdadeiras intenções do arguido. E não só…
Não se percebe, e nem a depoente nem o arguido conseguiram explicar, o fato de se, como refere o arguido, este foi dormir para a sala, porque não foram as duas dormir para o quarto do arguido…Não se compreende também porque a razão, a depoente, que segundo a sua versão, mal conseguiu dormir e se levantou várias vezes durante a noite, já depois de a filha estar a dormir no quarto do arguido, não viu este último no sofá da sala, o que, teria que ver obrigatoriamente, já que como referimos, o quarto onde estava a dormir dava para a sala.
E a ofendida acabou por admitir que suspeitou que alguma coisa não estava bem, já que, foi até a porta do quarto do arguido a qual se encontrava fechada, e não teve coragem nem de bater nem de entrar.
E ainda mais preocupada ficou, quando a filha acordou e lhe disse que tinha dores no ânus e ardor na vagina, demonstrando dificuldade em andar. Levou-a ao Centro de Saúde, e ao hospital cerca de 2 dias depois face às queixas da filha, onde acabou por fazer a denúncia, conforme atestam os documentos de fls. 2 e 3, apesar de, de início não querer fazê-lo por ter receio uma vez que é agente da PSP, chegando a dizer “são coisas que acontecem…”
Atestou ainda o estado emocional em que a filha ficou nesse, e nos dias subsequentes aos fatos, e bem assim que a mesma lhe referiu que gostava que “a sua 1ª vez fosse com um rapaz de quem ela gosta e não com um velho”, e que começou a ser seguida por uma psicóloga. Referiu também que o seu rendimento escolar desceu bastante, sendo que atualmente está bem melhor, desta forma confirmando também a matéria do pedido cível.
Foi ainda ouvida a testemunha CC, tio do arguido e da ofendida (irmão do pai do arguido) que os convidou a todos para almoçar nos dois dias, e foi quem levou a ofendida e sua mãe de carro para o restaurante.
Referiu que praticamente não bebeu a noite toda a não ser 2 ou 3 Martini, e não viu ninguém embriagado, nem mal disposto. Não quis dormir em casa do arguido porque não gosta de dormir na casa dos outros, explicando quer a razão não levou a vítima e a sua mãe a casa, já que tinham ido consigo, porque elas não quiseram ir.
A testemunha LL, foi explicadora da ofendida desde 2022 a .... Para além de explicadora da BB, tinham-se como amigas.
Confirmou o teor das mensagens que trocaram e que constam de fls. 79 e que se reportam à altura em que a mesma ainda não tinha ido ao médico. Percebeu-a bastante abalada, o rendimento escolar deixou de ser o mesmo e notou-a bastante assustada, não tendo tido quaisquer dúvidas de que o por ela narrado era verdadeiro.
A testemunha MM, é amiga da mãe da ofendida e esteve com a BB no dia seguinte de manhã após os fatos, logo após terem chegado de camioneta da casa do arguido.
Ela mostrava-se queixosa, com dores na vagina, no ânus e no peito, com os olhos inchados de chorar, e relatou-lhe o sucedido, tendo a depoente sugerido a mãe da BB para ir com ela ao médico e a polícia, tendo a mesma lhe referido que tinha medo dele.
A testemunha NN é comerciante e proprietária do bar da ....
É amiga do arguido.
Referiu que eles chegaram da parte da tarde e ficaram até ao fecho.
Que as bebidas são servidas ao balcão, não sabendo quem pagou o quê e o que bebeu cada um deles, pois o bar encontrava-se cheio.
Declarou ainda ter visto vómitos no chão, mas não sabe quem vomitou.
A testemunha OO, é o proprietário do apartamento onde o arguido reside e que por si lhe foi emprestado, e onde ocorreram os fatos.
Confirmou o croquis junto aos autos e já referido. Acrescentou, por lhe ter sido perguntado, que o isolamento do mesmo é muito mau, ouvindo-se tudo de um andar para o outro, assim como de uma divisão para a outra, querendo com isso demonstrar que se os fatos tivessem ocorrido a mãe da BB teria ouvido os seus gritos, esquecendo-se, porém, que a vítima não gritou, porque não conseguia, dado o seu estado de embriaguez e semi-consciência, como já atras se referiu.
A testemunha FF, foi indicada pela PJ para seguir a vítima já que trabalha com vítimas de violência sexual. Teve o seu 1º contato com a vítima no início de Setembro de 2022
Não conhece o arguido.
Do que pôde observar, pelo seu comportamento, pela sua vulnerabilidade e instabilidade emocional, não tem qualquer dúvida de que os fatos ocorreram tal como relatados pela vítima.
Ela mostrava-se chorosa, ansiosa e visivelmente transtornada. Também lhe referiu que estava embriagada e não se lembra de tudo em pormenor, relatando apenas o que se lembrava.
A nível psicológico traduziu-se num grande abalo da sua estrutura familiar, escolar, ela sentia-se coartada nos seus movimentos, no início com muito medo, isolava-se bastante, não se sentia segura nem confortável na interação com os outros.
A nível da construção da sua personalidade traduziu-se numa grande dificuldade em confiar nos outros, sejam homens ou mulheres e com um sentimento de autoculpabilização.
No início e durante os dois primeiros meses acompanhou-a todas as semanas e ainda mantém o acompanhamento com menor regularidade.
A testemunha GG é técnica gestora de processos na ....
Conheceu a BB e a mãe no início de Outubro de 2022 no âmbito de um processo de promoção e proteção.
Descreveu que a menor vinha muito chorosa, ansiosa, nervosa e abalada, o que lhes causou particular aflição, verbalizando outrossim, desconforto físico.
Começou a procurar a comissão, às vezes só para buscar conforto, indo umas vezes só, outras com a mãe.
A vítima é pessoa muito resiliente e atualmente focada em superar os fatos e ter boas notas, o que está a conseguir desde Janeiro deste ano de 2023.
A testemunha … é agente, amigo e compadre do arguido, sendo que é na sua casa que o arguido se encontra sujeito a prisão domiciliária.
Referiu que o arguido, há cerca 15 dias, recebeu uma chamada supostamente de um irmão da JJ em que diziam “elas querem é chupar-te o dinheiro todo”. Que tudo se teria tratado de uma armadilha para lhe tirar dinheiro.
Acabou por referir que desconhece se o que se disse é ou não credível, já que nem conhece esse suposto irmão da mãe da vítima.
Toda esta prova foi ainda conjugada com toda a prova documental, alguma já elencada, a saber:
•Relatório de Exame Pericial, de fls. 55 e 56
• Relatório de Exame Pericial, de fls. 66 a 68
• Auto de Apreensão, de fls. 69
• Relatório de Exame Pericial, de fls. 97 a 106
• Auto de Apreensão, de fls. 155
• Auto de Apreensão de fls. 188
• Auto de Apreensão, de fls. 217
• Relatório de Exame Pericial, de fls. 219 a 221
• Ofício ao Laboratório de Polícia Científica, Área da Biologia, de fls. 231 e 232
• Relatório de Exame Pericial, de fls. 242 a 256
• Relatório de Exame Pericial, de fls. 260 a 274
• Relatório de Exame Pericial, de fls. 304 a 324
• Ofício ao LPC, Área da Biologia e Área da Físico-química, de fls. 341
• Relatório de Exame Pericial, de fls. 358 e 359
• Ofício ao LPC, de fls. 490
• Auto de Apreensão, de fls. 501
• Relatório de Perícia de Natureza Sexual, de fls. 576 a 581
• Relatório de Exame Pericial – CCG, de fls. 597 a 599
• Relatório de Exame Pericial – FFQ, de fls. 631 a 633
• Assento de Nascimento de BB.
• relatório da CPCJ de fls. 281
• Relatório final da PJ de fls. 634
Tudo o que se deixou exposto, serviu para, conjuntamente com toda a prova já elencada, conferir ainda mais, credibilidade ao depoimento da vítima se dúvidas ainda restassem, que não restavam.
A matéria factual referente às condições sociais e pessoais do arguido, seu percurso de vida e sua personalidade, a que se aludiu supra, decorre do conteúdo do Relatório Social a ele referente, e a inexistência de antecedentes criminais decorre do Certificado de registo criminal do arguido, junto aos autos.
Finalmente e quanto ao elemento subjetivo, baseamo-nos em todos os dados objetivos dados como assentes, resultando das regras da experiência comum o conhecimento que o arguido tem da ilicitude e censurabilidade da sua conduta, tanto mais que é um agente da PSP.
A matéria que não foi dada como provada resultou da falta total de prova sobre os mesmos ou da prova do seu contrário.
A demais matéria, que não foi dada como provada, nem como não provada, resulta do fato de serem considerações de direito, considerações gerais, matéria conclusiva ou repetições de fatos.»
2.2.2 Enquadramento jurídico-penal
Justificou o Tribunal a quo a qualificação jurídica dos factos nos seguintes termos (transcrição):
«O arguido está acusado da prática, na forma consumada de um crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal.
Resulta do disposto no art. 164º, n.º 1 e 2, do Código Penal que,
“1 - Quem constranger outra pessoa a:
a) Sofrer ou praticar consigo ou com outrem cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) Sofrer ou praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos;
é punido com pena de prisão de um a seis anos.
2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer ou a praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos atos referidos nas respetivas alíneas a) e b) contra a vontade cognoscível da vítima”
Com este preceito, que visa criminalizar condutas que atentam, gravemente, contra a liberdade, a vontade do sujeito, através de coação, tem-se em vista proteger a liberdade de autodeterminação sexual.
O conceito de cópula nele vertido reconduz-se ao resultado de uma relação heterossexual de conjunção carnal entre órgãos sexuais masculinos e femininos, exigindo-se sempre a introdução completa ou incompleta do órgão sexual masculino na vagina, não deixando a mesma de se assumir “qua tale” por não haver “emissio” ou “emissio seminis”.
Assim, constituem cópula, tanto a penetração total como a penetração parcial, haja, ou não, ejaculação.
No entanto, o crime em causa consumar-se-á também quando haja coito anal ou coito oral, isto é, a introdução do órgão sexual masculino no ânus ou na boca.
Exige-se aqui a penetração do órgão sexual masculino no corpo de outra pessoa e esta, ao contrário do que sucede na cópula, tanto pode ser um homem como uma mulher.
O conceito de violência há-de extrair-se dos meios utilizados e da idoneidade destes para lesar a liberdade sexual de outra pessoa, em razão de todas as circunstâncias que se apurem, atinentes, não só à natureza dos meios e como são usados, como também das condições pessoais e concretas em que a vítima seja colocada.
O crime de violação, previsto no n.º 1 do artigo 164.º, define-se como um crime de execução vinculada, ou seja, para o seu preenchimento são necessários meios típicos de coacção/constrangimento.
Quanto ao constrangimento este há-de ser idóneo a vencer a resistência efectiva ou esperada da vítima.
Será suficiente para o concretizar, a inexistência de vontade livre da vítima para a prática do acto. Daí que, quando perante uma situação de coacção, moral ou física, se leve a vítima a aderir à cópula ou ao coito oral ou anal, ainda assim se estará perante uma situação de constrangimento e, como tal, passível de integrar o crime.
Com efeito, para prova da cópula forçada a que se refere o preceito em análise, não é necessária a existência de lesões físicas nem de vestígios físicos e/ ou biológicos masculinos na vítima e a sua paralisação devido ao temor causado pelo constrangimento a que possa ter sido sujeita pelo agente, não se confunde com consentimento para o acto, como podemos constatar através do relatório de exame pericial de natureza sexual junto aos autos a fls. 576 e segs.
A vítima é colocada em certa posição ou estado com vista ao fim consignado na norma em apreço, ou seja, com o propósito de a constranger à prática dos actos sexuais nele previstos.
A conduta típica “constranger” traduz-se num ato de coacção (constranger outra pessoa a adoptar um determinado comportamento: praticar uma acção, omitir determinada acção, ou suportar uma acção), dirigido à prática, activa ou passiva, de um ato sexual de relevo. A coacção é, pois, aqui especializada através da sua finalidade, tendo de existir, segundo FIGUEIREDO DIAS, entre ela e o ato sexual uma relação meio/fim.
Neste caso, o agente constrange a vítima a sofrer ou a praticar ato sexual de relevo, também ele especializado, através das condutas de “violência”, “ameaça grave” e “tornar a vítima inconsciente ou pô-la na impossibilidade de resistir”.
Do ponto de vista subjectivo, também o crime em presença constitui um crime doloso, onde o dolo pode revestir todas as suas modalidades (art. 14º do Cód. Penal).
Na situação vertente, resultou que o arguido, após saírem do bar, convidou CC, BB e JJ para ficarem a pernoitar na sua habitação, sita na ..., contudo, CC recusou-se a tal, deixando o arguido, BBe a sua mãe na habitação do arguido e abandonou o local.
Neste circunstancialismo de tempo e lugar, e já dentro da residência do arguido, a vítima e a sua mãe, que continuavam a sentir-se mal, devido ao excesso de bebidas alcoólicas ingeridas nas horas que antecederam, deslocaram-se até um dos quartos existentes na habitação e adormeceram.
A dada altura a JJ levantou-se para ir à casa de banho vomitar, acabando por não conseguir, vomitando entre a saída do quarto e a entrada da sala.
Entretanto a vítima levantou-se para ir também vomitar à casa de banho e nessa altura o arguido sugeriu levar a ofendida para o seu quarto, o que fez, deitando-a na cama e fechando a porta.
De seguida, o arguido colocou-se por cima da vítima, afastou o seu vestido que envergava, junto à zona da axila direita, agarrou e pressionou-lhe o seio direito com força, o que lhe causou dor.
Seguidamente, o arguido levantou-lhe as pernas, empurrou-as para cima, ficando com os joelhos encostados na zona abdominal, e de seguida, penetrou o seu pénis, ereto, na vagina e no ânus da vítima, de forma alternada e fez movimentos de penetração, para frente e para trás, o que lhe causou uma dor aguda na região anal e desconforto e ardor na região vaginal.
A vítima, durante o ato supra descrito, sentia-se debilitada, queria mexer-se e não conseguia, colocou as suas mãos na zona do peito do arguido, no intuito de o afastar de si, mas não conseguiu fazê-lo, não tendo forças para tal, devido ao elevado consumo de álcool que ingerira.
Enquanto o arguido a penetrava na região anal e vaginal, manietou-lhe ambos os pulsos, com as suas próprias mãos, para que esta não tivesse oportunidade de o tentar afastar de si;
BBcomeçou a chorar devido às dores que sentia e ao facto de não conseguir falar, ao que o arguido lhe sussurrava, baixinho, ao ouvido, para ter calma e para não chorar.
Volvidos alguns minutos, BB sentiu algo “viscoso” na região vaginal, assim como sentiu o mesmo na sua boca.
Ao fim de algum tempo que não se logrou precisar, BBficou em cima da cama do arguido, após o ato sexual supra descrito, onde vomitou e dormiu até à manhã do dia seguinte (29.08.2022), sem se conseguir levantar ou mexer.
Resultou ainda provado que o arguido atuou, sempre, com intenção de satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que BB estava alcoolizada e assim perturbada e diminuída de forma acentuada na sua capacidade de oferecer resistência às suas investidas, mesmo depois de esta o ter tentado impedir, bem sabendo que esta não queria manter relações sexuais consigo.
Da factualidade assim elencada afere-se, positivamente, o constrangimento da vítima pelo arguido mediante o uso de força física, para, desse modo, a submeter cópula forçada, porque não querida nem consentida por ela, com intenção de satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que BBestava alcoolizada e assim perturbada e diminuída de forma acentuada na sua capacidade de oferecer resistência às suas investidas, mesmo depois de esta o ter tentado impedir, bem sabendo que esta não queria manter relações sexuais consigo.
Outrossim, como também revelam os factos provados, sabemos que o arguido, com plena consciência da proibição e punibilidade da sua conduta, previu, quis e logrou actuar da forma que se deixou evidenciada com o propósito de satisfazer os seus impulsos libidinosos à custa da ofendida e contra a sua vontade e de fazer uso da força física para, desse modo, a constranger à prática de relações sexuais de cópula, o que conseguiu.
Dúvidas também não há em dizer que o arguido não podia ignorar que com tal comportamento, atentava contra a liberdade sexual da visada, a perturbava e incomodava e lhe causava desconforto e desagrado, conforme sucedeu e pretendeu, e ofendia os mais elementares princípios da moral sexual e de decoro.
Na valoração como meios de prova dos relatos contendo as descrições das experiências sexuais abusivas, é importante considerar que a vítima não tem de demonstrar que não contribuiu para a ocorrência do crime sexual que sofreu, mesmo que não viva de acordo com o papel social que lhe está atribuído pelos padrões culturais e históricos preestabelecidos, bem como, que todo o relacionamento sexual que não seja livremente consentido deve ser criminalizado – é a solução que resulta expressamente do artº 36º da Convenção de Istambul e das alterações aos nºs 2 dos artigos 163º e 164º do Código Penal, introduzidas pela Lei nº 83/2015 de 5 de Agosto (e também pela Lei 101/2019 de 6 de Setembro) .
Não é necessário, nem exigível que a vítima adote comportamentos heroicos de oposição ou defesa à atuação do agressor, correndo riscos ainda maiores do que o de lesão da sua liberdade ou da sua autodeterminação sexual, para se considerar o crime como consumado.
Com a entrada em vigor no nosso país da referida Convenção de Istambul, através da Resolução da AR n.º 4/2013, de 21 de Janeiro e algumas propostas legislativas no sentido da alteração desta norma, houve uma tentativa por parte do legislador de tornar a norma mais abrangente, abarcando o “não consentimento” da vítima, e abolindo-se a ideia de que o constrangimento apenas pode ser alcançado pelos meios tipificados.
Ou seja, com a alteração de 2015, passou a subsumir-se no tipo legal, nomeadamente no n.º 2, todo o ato que não comporte violência, ameaça grave ou tenha tornado inconsciente a vítima ou colocado na impossibilidade de resistir, mas que seja apto a constranger a vítima a sofrer ou praticar ato sexual de relevo, alargando-se o âmbito incriminatório, ampliando, por essa via, a tutela da vítima.
Esta ampliação deveu-se também ao facto de terem sido retiradas do n.º 2 as relações familiares, profissionais ou hierárquicas, permanecendo apenas a expressão: “pelos meios não compreendidos no número anterior”, sem mais.
Nessa medida, para a verificação do constrangimento por meios não tipificados expressamente mostra-se incluído o dissentimento por parte da vítima. Este ato de constrangimento, já acima descrito, e do qual resulte a prática do ato sexual de relevo, é assim o elemento típico indispensável para que se concretize o crime.
Para a consideração do preenchimento do tipo de violação previsto no artº 164º nº 1 do CP, na versão da Lei 83/2015 de 5 de Agosto, é assim crucial ponderar que a paralisação ou inibição da vontade da vítima em resistir à agressão sexual não tem de ser feita através de violência irresistível ou invencível ou de gravidade extrema.
Para além da reação expressa e ostensiva de oposição, o conceito de violência ali previsto é suficientemente amplo para incluir também o aparente assentimento oferecido como meio de evitar um mal superior, perante a ineficácia, a inaptidão ou inutilidade da resistência à prática sexual abusiva, para evitar a consumação desta.
Da matéria dada como assente, não resulta, porém (matéria de fato não provada), que o arguido tivesse voluntariamente embriagado a vitima, oferecendo-lhe bebidas alcoólicas durante todo o dia, embora fosse certo que a mesma se encontrava muito embriagada, o que o arguido bem sabia.
*
Estatui por seu turno o n.º 1 do artigo 165.º, do Código Penal, e mantendo presentes os conceitos e considerações a propósito de cópula e constrangimento, que “quem praticar acto sexual de relevo com pessoa inconsciente ou incapaz, por outro motivo, de opor resistência, aproveitando-se do seu estado ou incapacidade, é punido com pena de prisão de seis meses a oito anos”.
O n.º 2 da mesma disposição legal estabelece que “se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de dois a dez anos”.
O tipo fundamental dos crimes sexuais consiste no abuso e na coacção sexual (artigos 163.º, “coacção sexual”, 165.º e 166.º “abuso sexual” de pessoa incapaz de resistência e de pessoa internada, e 171.º “abuso sexual de crianças”).
Por sua vez, acto sexual de relevo e partindo do indicado bem jurídico, será toda aquela acção que afecte a liberdade e autodeterminação sexual e que, por isso mesmo, seja susceptível de condicionar a liberdade e autonomia sexual da pessoa visada a partir de actos relativamente aos quais ela não consentiu (pessoa inconsciente) ou então não tinha qualquer capacidade para consentir (pessoa incapaz) (assim, o Acórdão do TRP de 10/04/2013, acessível em www.dgsi.pt).
Na alteração legislativa de 1995, foi introduzida a expressão “acto sexual de relevo” que passou a dominar boa parte das incriminações, ainda que algumas vezes na forma qualificada já referida (cópula, coito anal, coito oral, etc.).
Neste aspecto, a cópula, o coito anal, o coito oral e a introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos consubstanciam os actos sexuais de relevo mais graves nas diversas incriminações.
Como assinala M. Miguez Garcia, “doutrinal e jurisprudencialmente tem-se considerado “acto sexual de relevo” toda a conduta que ofenda bens jurídicos fundamentais ou valores essenciais das pessoas quanto à sua livre expressão do sexo. A conduta, para ser de relevo, terá de ser intensa, objetivamente grave e traduzir intuitos e desígnios sexuais que frontalmente sejam atentatórios da autodeterminação sexual da vítima (acórdão do STJ de 15 de Junho de 2000, CJ, 2000, tomo II, p. 226)” (cfr. “O Direito Penal – Passo a Passo”, Vol. I, Almedina, p. 283).
No que ao tipo de ilícito previsto no artigo 165.º diz respeito, este visa tutelar a liberdade e a autodeterminação sexual de pessoas inconscientes ou incapazes de formularem a sua vontade para a prática de actos com relevo sexual (cfr. Acórdão do TRP de 10/04/2013, Processo n.º 2361/09.7TAVLG.P1, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
No contexto do bem jurídico tutelado, nesta incriminação, o acto sexual de relevo corresponderá a toda aquela acção que afecte a liberdade e autodeterminação sexual e que, por isso mesmo, seja susceptível de condicionar a liberdade e autonomia sexual de outra pessoa a partir de actos relativamente aos quais a pessoa visada não consentiu, por se encontrar inconsciente, ou por não dispor de capacidade para consentir, no caso de pessoa incapaz.
No caso do n.º 2 da disposição legal em análise, a pena do agente é agravada no caso de o ato sexual de relevo consistir na forma mais qualificada já referida de cópula, coito anal, coito oral, introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos.
Constituem elementos do tipo objectivo do crime em análise:
a) a prática de acto sexual de relevo, sob a forma de cópula ou outra forma qualificada prevista no n.º 2;
b) com vítima incapaz de opor resistência; e
c) que o agente se aproveite do estado de incapacidade da pessoa.
Atentemos, antes de mais, no primeiro desses elementos, a saber, a prática de um acto sexual de relevo.
A lei não define, directamente, esse conceito, que carece de concretização em cada caso. Pode definir-se acto sexual de relevo como a conduta que tem, em face das circunstâncias concretas, pela forma como é realizada, no seu contexto, uma conotação, uma significação, de natureza sexual. Um beijo social ou um cumprimento de mão, manifestamente, não se enquadram neste contexto; já serão, todavia, actos sexuais de relevo toques, actos de palpação ou carícias em zonas erógenas, tais como a região genital, as mamas, as nádegas, a boca, no caso de beijos.
Debruçando-se com detalhe sobre este conceito, em anotação ao art. 163º do Código Penal, Figueiredo Dias define acto sexual de relevo como “todo aquele (comportamento activo, só muito excepcionalmente omissivo: talvez, p. ex., em certas circunstâncias, permanecer nu) que, de um ponto de vista predominantemente objectivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou o pratica” (Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial – Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 447).
Na jurisprudência, sobre este elemento do tipo de ilícito, podem consultar-se, a título de exemplo, os seguintes acórdãos (disponíveis, como os demais arestos a seguir citados sem outra indicação de fonte, em www.dgsi.pt):
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/11/2003: “Constitui acto sexual de relevo o do arguido que coloca uma das mãos no meio das pernas […], acariciando-as;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09/07/2008: “Ao friccionar com as mãos as zonas genitais […] e ao tocar os seus dedos na sua vagina e ao dar um beijo na boca, o recorrente praticou actos sexuais de relevo […], visto que os mesmos foram executados em zonas erógenas do corpo, objectivamente conotadas com a sexualidade”;
- Acórdão do Tribunal da Relação Guimarães de 02/02/2009: “[…] colocando-lhe as mãos no peito e apertando-lhe os seios, praticou o arguido […] acto sexual de relevo”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28/11/2012: “Toques nas pernas, beliscões nas nádegas, apalpões nas coxas e, ainda que de raspão, o dedo sobre a zona vaginal […], integram o conceito de ato sexual de relevo”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05/06/2013: “É acto sexual de relevo todo o que tenha uma natureza objectiva estritamente relacionada com a actividade sexual, ou seja, que normalmente apenas seja praticado no domínio da sexualidade entre pessoas. Manifestamente, circunscrevem-se nesse domínio os casos traduzidos em acariciar/apalpar nádegas e a parte interior das coxas”; e
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13/03/2013: “Acto sexual é o comportamento que objectivamente assume um conteúdo ou significado reportado ao domínio da sexualidade da vítima, podendo estar presente um intuito libidinoso do agente, conquanto a incriminação persista sem esse intuito”;
- O Tribunal da Relação de Coimbra, em Acórdão de 13 de Janeiro de 2016, concluiu que “«Acto sexual de relevo» será todo aquele comportamento que de um ponto de vista essencialmente objectivo pode ser reconhecido por um observador comum como possuindo carácter sexual e que em face da espécie, intensidade ou duração ofende em elevado grau a liberdade de determinação sexual da vítima”.
Já no que tange ao citado nº 2, a cópula e o coito oral que nele assumem relevância penal típica agravante, consistem, respectivamente, na penetração da vagina, do ânus e da boca pelo pénis (Simas Santos e Leal Henriques no Código Penal Anotado, II, pág. 368)
Porém, estes últimos actos sexuais são equiparados à introdução vaginal ou anal de partes do corpo, nomeadamente à introdução da língua, nariz, mão e dedo da mão na vagina ou no ânus da vítima.
No que concerne à incapacidade da pessoa para opor resistência, ensina Figueiredo Dias que constitui o denominador de todas as situações típicas que ocorram com a vítima, sendo que importa considerar como típicas, tanto a situação de a vítima se encontrar incapaz de formar a sua vontade, como a de se encontrar incapaz de exprimir a sua vontade, sendo indiferente que a incapacidade fique a dever-se a motivos psíquicos ou antes a motivos físicos (cfr. “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, p. 477).
Para este enquadramento, a inconsciência pode resultar, por exemplo, de um estado de acentuada embriaguez ou de um estado resultante do consumo de tóxicos, não provocado pelo agente (se fosse provocado pelo agente, poderiam estar verificados os elementos típicos da coacção sexual ou da violação, consoante os actos concretamente praticados); por outro lado, a incapacidade de opor resistência pode resultar, exemplificativamente, de deficiências ou limitações físicas e/ou psíquicas.
O tipo objectivo de ilícito não se esgota com este elemento e o da prática de acto sexual, exigindo ainda que o agente se aproveite da incapacidade da vítima.
Figueiredo Dias salienta que no abuso sexual de pessoa incapaz de resistência “o agente não quebra a resistência da vítima – como sucede no caso dos arts. 163º e 164º–, mas aproveita-se de uma já existente incapacidade de resistência para praticar com ela um acto sexual de relevo” (op. cit., pág. 477) e explicita que, nesta matéria “é necessário e suficiente que o estado ou incapacidade torne possível ao agente o abuso sexual ou, significativamente, o facilite” (idem, pág. 479).
O mesmo autor explica, em contraponto, que, sempre que a outra pessoa “seja capaz de formar e exprimir a sua vontade no sentido de anuir ao acto, ou, inclusivamente, de tomar a iniciativa dele, não há aproveitamento para efeito do tipo” (idem, págs. 479 a 480).
Quanto a este último aspecto, o Tribunal da Relação de Guimarães, em Acórdão de 23 de Outubro de 2009, acessível em www.dgsi.pt, expendeu as seguintes considerações: “Nem toda a anomalia psíquica «condena» o seu portador à abstinência de actos sexuais com outrem. Existem anomalias que conduziriam à inimputabilidade, mas que não acarretam a incapacidade para formar e exprimir a vontade da prática do acto sexual. No crime de abuso sexual de pessoa incapaz o que releva é o efeito concreto que da doença ou anomalia psíquica resulta para a capacidade e vontade de resistência da vítima e não a sua qualificação médica abstracta”.
O Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 561/95, acessível no mesmo sítio, expôs o seguinte (a respeito do crime de violação): “Mas será que da norma […] resulta que as pessoas, ou antes, as mulheres com deficiência mental, seja qual for o grau de deficiência de que padecem, ficam todas impedidas de terem uma vida sexual normal (isto é, adequada à sua situação), como o recorrente alega? De modo nenhum. Com efeito, não é por ter cópula com mulher portadora de uma qualquer anomalia psíquica que […] o agente pratica o crime de violação: só há crime de violação punível nos termos deste artigo se a anomalia psíquica for tal que tire à deficiente a capacidade para avaliar o sentido moral da cópula ou a capacidade para se determinar de acordo com essa avaliação. Assim sendo, a norma em causa não visa – nem tem como consequência – impedir toda e qualquer mulher portadora de deficiência psíquica de ter uma vida sexual normal (isto é, adequada às suas condições físicas e psíquicas); pelo contrário, visa justamente as situações em que o consentimento da mulher não existiu, nem podia existir, ou se revela manifestamente irrelevante”.
Já no plano subjectivo, o crime em presença é, necessariamente, doloso, atenta a regra geral do art. 13º do Código Penal. Nesta sede, o dolo tem que abarcar, além do mais, o conhecimento do estado de inconsciência ou da incapacidade da vítima.
Miguez Garcia/Castela Rio aludem à seguinte formulação: “o agente age com a consciência de que o estado da vítima pelo menos lhe facilita o abuso sexual”.
No caso dos autos está demonstrado que a ofendida encontrava-se muito embriagada, encontrando-se inclusivamente a vomitar, e muito sonolenta, dado que temos por adquirido quer pelas declarações da ofendida e do arguido, quer pela testemunha JJ, fato que, por isso, não se põe em causa.
Mais está provado que o arguido, conhecedor do estado em que se encontrava a ofendida, que inclusivamente por sua sugestão foi dormir na sua cama, decidiu usá-lo para atuar do modo que vem descrito na matéria de facto dada como assente nos artºs 15º a 20º.
Por fim apurou-se ainda que o arguido agiu sempre, sem a autorização e contra a vontade da ofendida, e apesar de estar plenamente ciente de que somente conseguia fazê-lo e atingir os seus intentos por se ter aproveitado do mencionado estado de embriaguez e de indisposição em que aquela se encontrava, do facto de ela estar a dormir e da incapacidade, daí resultante, de a mesma se autodeterminar sexualmente e de lhe oferecer resistência, de se defender e de se lhe opor.
Outrossim apurou-se ainda que o arguido previu, quis e logrou actuar nos termos supra descritos, bem sabendo que, ao fazê-lo, atentava contra a liberdade sexual da ofendida e que praticava nela actos sexuais de relevo, porque susceptíveis de comprometer o seu bem estar psíquico, afectivo e sexual, e que ofendia os mais elementares princípios da moral sexual e de decoro, o que quis e alcançou.
Praticou assim um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p.p. artº 165º nº2 do CP, e não um crime de violação tal como vinha acusado, uma vez que que mostram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos desse tipo de crime.»
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2.3 Conhecendo do recurso
2.3.1 Sobre a alegada violação do art. 374º, nº 1, alíneas a) a d) do Código de Processo Penal
Diz o Recorrente que na parte do acórdão intitulada «relatório» deve figurar a indicação tendente à identificação das partes, o crime imputado e a existência de contestação e os róis de testemunhas, caso haja.
Refere que no caso concreto o relatório não contém a identificação da assistente, que figura apenas na parte da fundamentação.
Conclui dizendo que se suscita a admissibilidade da correção da sentença, nos termos do art. 380º do CPP.
Cumpre apreciar.
Diz-nos o art. 374º, nº 1 do CPP o seguinte: «1 - A sentença começa por um relatório, que contém: a) As indicações tendentes à identificação do arguido; b) As indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis; c) A indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido; d) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada.»
O problema que o Recorrente especificadamente suscita é, como vimos, o da identificação da assistente, que na sua ótica figura na parte da fundamentação do acórdão, mas não, como devia, na parte do relatório.
Ora, é verdade que o acórdão recorrido não procede, na parte do «relatório», à indicação do nome (e eventuais outros elementos identificativos) da Assistente, mas aí refere que aquela deduziu um pedido cível a fls. 750; e se compulsarmos fls. 750, aí encontramos o nome da Demandante/Assistente – BB (cfr. referência eletrónica nº 5305701) -, cujos elementos identificativos eram já conhecidos dos autos desde a «comunicação de notícia de crime», com que os autos principiaram, em 31 de agosto de 2022 (fls. 2/3).
Podemos conceder que as melhores práticas aconselhariam a que o relatório do acórdão contivesse já, ele próprio, a identificação da Assistente, por razões de boa técnica de construção do acórdão, ligada à autonomia e clareza da peça.
Não nos parece porém que a sua forma atual enferme de algum vício que justifique correção: seja porque o relatório contém «indicações» que são «tendentes à identificação» da Assistente, como dito; seja porque, lidas no conjunto do acórdão, não há dúvida de que a Assistente foi quem fez o pedido cível e do acórdão resulta que um tal pedido se mostra formulado pela ofendida.
De resto, sempre se dirá ainda que nunca se suscitou nenhuma dúvida nos autos quanto a saber quem era a Assistente, nem o Arguido as podia ter, já que foi ouvido em momento prévio à admissão da intervenção da ofendida BB como Assistente, no quadro do art. 68º, nº 4 do Código de Processo Penal, nada tendo oposto, e foi notificado do despacho que deferiu o requerimento (cfr. ata da audiência de julgamento de 15 de novembro de 2023), despacho esse nunca objeto de qualquer tipo de impugnação.
Improcede este segmento recurso.
2.3.2 Sobre a nulidade da perícia sobre a personalidade da ofendida alegadamente realizada nos autos
Defende o Recorrente que se verifica uma nulidade nos autos, relativa à perícia realizada sobre a personalidade da ofendida, visto que a realização desta apenas poderia ter ocorrido mediante o consentimento de ambos os progenitores, o que não existiu, dado que esse consentimento apenas foi prestado pela mãe.
Mais refere que não assiste ao Recorrente legitimidade para arguir essa nulidade, mas antes ao pai da ofendida e que, perante a ausência ou inação deste, caberia uma tal legitimidade ao Ministério Público; não tendo este invocado a nulidade, mostra-se violado o princípio constitucional da legalidade, «arguindo-se desde já [acrescenta o Recorrente] a inconstitucionalidade dessa interpretação normativa».
Cita o Recorrente nas conclusões do recurso o art. 120º, nºs 1 e 3 alínea a) do CPP e o art. 32º da CRP, embora na parte da motivação, além desses preceitos, tenha ainda citado o art. 119º do CPP e o art. 29º, nº 1 da CRP.
Cumpre apreciar.
Antes de mais, importa notar que o acórdão recorrido não se serve na sua fundamentação do relatório de qualquer exame pericial que haja sido feito sobre a personalidade da ofendida; de resto, não vemos nos autos que esse exame à personalidade tenha sequer sido realizado.
O exame pericial realizado nos autos na pessoa da ofendida foi o de natureza sexual, que deu origem ao relatório documentado a fls. 577 a 579.
E por aqui poderia quedar-se a nossa apreciação deste segmento do recurso, pois o exame cuja invalidade é reclamada não figura na fundamentação do acórdão e, mais ainda do que isso, não foi sequer realizado nos autos.
O que resulta de mais próximo do que vem alegado pelo Recorrente, para além do exame de natureza sexual já referido, é o acompanhamento psicológico por parte da Sra. Psicóloga FF a que a ofendida passou a estar sujeita e cujo depoimento é citado no acórdão recorrido em abono da credibilidade do depoimento daquela; esse acompanhamento terá tido o seu início em setembro de 2022 e, segundo relatado em audiência, processou-se numa fase inicial à razão de uma consulta por semana e entretanto mais esporadicamente, tendo a última consulta ocorrido cerca de três semanas antes do dia em que estava a ser ouvida.
Ora, este relato, embora provindo de uma Sra. Psicóloga que fazia o acompanhamento psicológico da ofendida (na sequência de referenciação pela Polícia Judiciária para a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, com a qual a testemunha colabora), não se confunde com um «exame pericial»; do que se tratou foi de alguém que, por força do exercício das suas funções, contactou e contactava com a ofendida e pôde nesse contexto perceber o seu estado emocional, a respeito do qual o seu depoimento é direto e do qual o Tribunal a quo se serviu como elemento corroborante da veracidade do relato da ofendida, como o fez, aliás, em relação a outros depoimentos, como bem resulta da motivação da decisão de facto.
Não se tratou pois de um «exame pericial à personalidade» da ofendida; de todo o modo, ainda que o fosse, não se requereria o consentimento dos pais para o efeito, como não se requereria também, pela mesma ordem de razões, semelhante consentimento para a concretização daquele acompanhamento psicológico ou para a realização do exame pericial de natureza sexual que teve efetivamente lugar nos autos.
Expliquemos sucintamente a nossa posição, ainda que já numa lógica obiter dictum.
Tratando-se de uma perícia que incida sobre as características físicas ou psíquicas da pessoa visada, a sua efetiva realização deve ser precedida ou acompanhada do competente consentimento, embora, na eventualidade de este ser recusado, possa ainda assim a perícia ter lugar desde que cumpridos os procedimentos e critérios estabelecidos pelo art. 154º, nº 3 do CPP, que nos diz que «quando se tratar de perícia sobre características físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado consentimento, o despacho previsto no número anterior [que ordena a perícia e lhe fixa o âmbito] é da competência do juiz, que pondera a necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado». Isto porque, é sabido, «ninguém pode eximir-se a ser submetido a qualquer exame médico-legal quando este se mostrar necessário ao inquérito ou à instrução de qualquer processo e desde que ordenado pela autoridade judiciária competente, nos termos da lei» - é o que nos diz o art. 6º, nº 1 da Lei nº 45/2004, de 19/08.
No caso concreto, a perícia de natureza sexual, como o acompanhamento psicológico ocorreram sem qualquer intervenção do juiz; impunha-se portanto que a sua realização fosse consentida.
Mas consentida por quem?
A pessoa sujeita ao exame em apreço foi a ofendida, nascida em 10 de março de 2006, o que significa que à data do exame (1 de setembro de 2022, cfr. fls. 577) tinha 16 anos.
Tendo 16 anos, é manifesto que a ofendida ainda era menor de idade à luz do direito civil (art. 122º do Código Civil).
Ora, «salvo disposição em contrário, os menores carecem de capacidade para o exercício de direitos» - é o que nos diz o art. 123º do Código Civil; «salvo disposição em contrário» - retenhamos este trecho.
E no Código Penal encontra-se prevista uma norma sob a epígrafe «consentimento», que importa ter em atenção; é o art. 38º, que prescreve, para o que aqui releva, o seguinte: «1 - Além dos casos especialmente previstos na lei, o consentimento exclui a ilicitude do facto quando se referir a interesses jurídicos livremente disponíveis e o facto não ofender os bons costumes. 2 - O consentimento pode ser expresso por qualquer meio que traduza uma vontade séria, livre e esclarecida do titular do interesse juridicamente protegido, e pode ser livremente revogado até à execução do facto. 3 - O consentimento só é eficaz se for prestado por quem tiver mais de 16 anos e possuir o discernimento necessário para avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o presta. (…)» 16 anos é portanto a idade que o legislador definiu como marco para aferir da eficácia do consentimento a prestar para excluir a ilicitude do facto – e na redação originária do Código Penal, isto é, antes da versão introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4/09, esse marco era ainda anterior, estando fixado nos 14 anos. E é à luz dessa mesma lógica que no âmbito dos processos tutelares educativos se exige o consentimento do visado que tenha já 16 anos para ser sujeito a programas de tratamento médico, médico-psiquiátrico, médico-psicológico ou equiparado [art. 14º, nº 2 e) e 4 da Lei Tutelar Educativa].
É essa então a idade de referência (16 anos) a considerar no direito português para efeitos de consentimento para a prática de atos de natureza médica ou equiparada [cfr. sobre esta matéria André Gonçalo Dias Pereira, O consentimento informado na relação médico-paciente, Coimbra Editora (2004), pgs. 314 e sgs].
Se é assim quanto a esse tipo de intervenções tendencialmente mais invasivas, por maioria de razão o será em relação a um exame pericial ou a um acompanhamento psicológico.
Esta leitura que dá voz própria, autónoma e tendencialmente decisiva ao próprio menor é congruente aliás com o sistema legal no seu conjunto.
Veja-se que uma pessoa com 16 anos de idade é criminalmente imputável (art. 19º do Código Penal); pode ser admitida a intervir como assistente [art. 68º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal] e pode até emancipar-se pelo casamento [arts. 132º e 1604º, alínea a) do Código Civil].
Veja-se ainda que o legislador confere um papel de crescente importância ao menor nos assuntos que lhe digam respeito (art. 1901º, nº 3 do Código Civil, aqui até já sem o limite mínimo dos 14 anos que a norma previa antes da alteração introduzida pela Lei nº 61/2008, de 31/10); papel esse que assume particular ênfase logo a partir dos 12 anos [cfr. art. 10º, nº 1 da Lei nº 147/99, de 1/09 e art. 1984º, alínea a) do Código Civil].
E veja-se, por fim, que este reforço do papel do menor está em linha com o que resulta de instrumentos internacionais a que Portugal está vinculado, como é o caso da Convenção sobre o Exercício dos Direitos da Criança (arts. 1º, nºs 1 e 2 e 6º); da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (art. 24º, nº 1); da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano Face às Aplicações da Biologia e da Medicina: Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, também conhecida por Convenção de Oviedo (art. 6º, nºs 1 e 2); e do Regulamento (UE) 1111/2019 do Conselho, de 25/06 [arts. 1º, nº 1, alínea b) e 21º].
De tudo quanto vimos de expor decorre, para o que aqui releva, que se a criança tiver menos de 16 anos, compete aos seus representantes o direito de prestar o consentimento, sem prejuízo de a opinião do/a menor dever ser considerada, com um grau cada vez mais determinante em função da sua idade e do seu real discernimento; mas se a criança tiver 16 ou mais anos, é a ela própria, presumidamente capaz para o efeito, que cabe à partida tomar a decisão se consente ou dissente na sua sujeição ao ato em causa.
Visto que no caso concreto a ofendida tinha já 16 anos à data dos eventos em referência e nada há nos autos que concorra para que se tivesse por ilidida a presunção de capacidade para que aponta o legislador, era a ela própria que cabia aceitar, ou não, ser sujeita a tais eventos (sem prejuízo de, em caso de recusa de intervenção num exame pericial, ter aplicação o já atrás mencionado art. 154º, nº 3 do Código de Processo Penal).
Assim é que a alegada ausência de consentimento (ou dissentimento) por parte do pai da ofendida nenhum vício implicaria, na certeza de que os termos em que o exame pericial sexual e o acompanhamento psicológico ocorreram, à luz do modo como se encontra documentado aquele e descrito este, sugerem consistentemente que a ofendida aceitou intervir de forma inteiramente livre, consciente e voluntária, na base, portanto, de um consentimento pelo menos tácito ou implícito.
Improcederá destarte este segmento do recurso.
*
2.3.3 Da condenação por factos e por um crime diverso
Diz o Arguido que foi condenado por factos diversos e por um crime diverso, em relação ao que constava da acusação.
E acrescenta ainda, em dado passo, que no momento do despacho a que se refere o art. 311º do Código de Processo Penal, não sendo patente um claro erro de subsunção dos factos constantes da acusação, não pode o juiz convolar os factos para outro tipo legal de crime.
Vejamos.
Primeiro aspeto: o despacho de recebimento da acusação, a que se refere o citado art. 311º do Código de Processo Penal, foi proferido nos autos a 15 de julho de 2023 (referência Citius nº 53896221) e aí não teve lugar qualquer convolação jurídica; mostra-se aliás nesse despacho plasmado explicitamente, entre o mais, o seguinte: «Recebo a acusação deduzida contra AA, devidamente identificado(s) nos autos, pelos factos descritos na acusação de fls. 688 que integram a prática pelo mesmo de um crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal (…)»
A acusação que fora formulada contra o Arguido no dia 6 de junho de 2023 (referência Citius nº 53685874), imputando-lhe a prática de um crime de violação previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal, mostra-se pois ter sido recebida qua tale.
Dito isto, que aconteceu em seguida?
A audiência de julgamento iniciou-se no dia 15 de novembro de 2023 (referência Citius nº 54413818) e teve continuidade, sem incidências de relevo, nos dias 22 de novembro (referência Citius nº 54465948), 23 de novembro (referências Citius nºs 54469534 e 54472396) e 29 de novembro (referência Citius nº 54503452), até que, na sessão do dia 19 de dezembro (referência Citius nº 54607270), data agendada para a leitura do acórdão, é proferido o seguinte despacho pela Sra. Juíza Presidente, com a sequência processual registada em ata nos termos que se transcrevem: "Decide-se reabrir a audiência de julgamento a fim de comunicar à defesa do arguido que da prova produzida em julgamento, designadamente das declarações do arguido, da ofendida e da testemunha JJ, resulta a alteração não substancial dos factos da acusação, nos termos do disposto no art. 358º, nº 1 do Código Proc. Penal. Assim, relativamente aos artºs, 12, 13, e 14º da acusação, os mesmos passam a ter a seguinte redação: 12- Neste circunstancialismo de tempo e lugar, a vítima e a sua mãe estavam a sentir-se mal, devido ao excesso de bebidas alcoólicas ingeridas nas horas que antecederam, deslocaram-se até um dos quartos existentes na habitação e adormeceram. 13- A dada altura a JJ levantou-se para ir a casa e banho vomitar, acabando por não conseguir, fazendo-o entre a saída do quarto e a entrada da sala, no chão. 14- Entretanto a vítima levantou-se para ir também vomitar a casa de banho e nessa altura o arguido sugeriu levar a ofendida para o seu quarto, o que fez, deitando-a na cama e fechando a porta. Notifique." * De seguida, sendo dada a palavra à Ilustre Mandatária do arguido e ao MºPº, foi por ambos dito não pretender a concessão de prazo adicional para a preparação da defesa, na sequência da sobredita comunicação. * Gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14 horas e 47 minutos e o seu termo pelas 14 horas e 49 minutos. * PUBLICAÇÃO DE ACÓRDÃO Seguidamente, foi pela Mma. Juíza Presidente proferido o acórdão, por súmula, já que a tal nada foi oposto, anunciando, ao abrigo do disposto no art.º 372º do C. P. Penal, que se encontra elaborado em conformidade com a deliberação tomada por todos os elementos do Tribunal Colectivo, composto por ela, Meritíssima Juíza Presidente e pelas suas colegas, Dras. Joana Dias e Carla Meneses. * Logo, todos os presentes foram devidamente notificados e, na falta de qualquer recurso, foi declarada encerrada a audiência quando eram 15 horas e 30 minutos.»
Comunicou portanto a Sra. Juíza Presidente que o Tribunal a quo considerava que da prova produzida resultava uma alteração que se reportava aos factos nºs 12, 13 e 14 da acusação, factos que aí tinham o seguinte teor (referência Citius nº 53685874):
«(…)
12. Neste circunstancialismo de tempo e lugar, a mãe da vítima continuava a sentir-se mal, devido ao excesso de bebidas alcoólicas ingeridas nas horas que antecederam, intensificou os vómitos e acabou por deslocar-se até um dos quartos existentes na habitação e adormeceu.
13. Ao passo que, a vítima BBsentou-se no sofá da sala e ali permanece por pouco tempo, pois encontrava-se com tonturas e já não conseguia, sequer, colocar-se de pé, nem manter os seus olhos abertos, devido ao excesso de bebidas alcoólicas ingeridas nas horas que antecederam.
14. Não obstante, e sem que a vítima pudesse prever, o arguido, de forma não concretamente apurada, levou BB para o interior do seu quarto e deitou-a na sua cama.»
E o acórdão, como sabemos, vem a absolver o Arguido da prática do crime de violação, previsto pelo art. 164º, nº 2 do Código Penal e a condená-lo pela prática de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previsto pelo art. 165º, nº 2 do mesmo diploma.
Dito isto, é incontornável concluir que o acórdão recorrido não padece de nenhum vício quanto à alteração de factos que introduziu, mas já padece da nulidade prevista pelo art. 379º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal quanto à alteração da qualificação jurídica.
Vejamos porquê.
Decorre da assinalada norma que «é nula a sentença (…) que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º».
Com particular relevo olhemos para o que nos diz o art. 358º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe «alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia»: «1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa. 2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa. 3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.»
E o art. 359º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe «alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia» diz-nos por sua vez o seguinte:
«1 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância. 2 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo. 3 - Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal. 4 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.»
Com óbvio interesse na matéria ocorre ainda ter presente o art. 1º, alínea f) do Código de Processo Penal, que define a «alteração substancial dos factos» como «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis».
Ora, o Tribunal a quo fez duas coisas.
A primeira foi citar o art. 358º, nº 1 do Código de Processo Penal e comunicar uma alteração de factos; e nada tendo sido oposto, nomeadamente pelo Arguido, veio a concretizar essa alteração no acórdão recorrido.
A segunda foi uma qualificação jurídico-penal do conjunto dos factos que deu como provados que resultou num crime que não aquele pelo qual o Arguido fora acusado.
Ora, quanto à alteração dos factos em si mesma, não vemos que ocorra qualquer vício; com efeito, as modificações introduzidas nos factos em apreço não determinariam a imputação ao Arguido de um crime diverso, nem o agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Na verdade, tais alterações circunscrevem-se a aspetos de pormenor que não têm a virtualidade de provocar uma qualquer mexida no enquadramento jurídico-penal do conjunto dos factos, não tendo pois a natureza de «alteração substancial dos factos», com o sentido legalmente definido.
Diferente é o que sucede em relação à qualificação jurídica: o que o Tribunal a quo fez nesta matéria foi algo que não podia ter feito sem mais - encetou uma qualificação jurídica dos factos diversa da que se achava na acusação, sem ter seguido o procedimento previsto pelo art. 358º, nº 1 do Código de Processo Penal, aplicável à alteração da qualificação jurídica por via do nº 3 do preceito.
É sabido que o Tribunal a quo, em momento prévio à leitura do acórdão, adotou esse procedimento no que respeita a três pontos da matéria de facto que constavam da acusação e que se aprestava a alterar; mas essa alteração nenhuma repercussão aparentemente comportava em termos de enquadramento jurídico-penal, como dissemos, e em qualquer caso esse procedimento de comunicação não foi estendido à questão da nova qualificação jurídica, de tal sorte que, tendo sido acusado por um crime de violação, o Arguido veio a ser condenado por um crime de abuso de pessoa incapaz de resistência.
Estamos diante ilícitos criminais evidentemente próximos, no sentido em que ofendem o mesmo bem jurídico (liberdade sexual) e têm um requisito objetivo comum (a prática de um ou mais atos sexuais de relevo), mas ainda assim constituem ilícitos de perfil diverso: no caso da violação, o agente constrange a vítima a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, um ou mais atos sexuais de relevo; no caso do abuso de pessoa incapaz de resistência a vítima está num estado de incapacidade de resistir e o agente aproveita-se dessa incapacidade [Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I, Coimbra Editora (1999), pg. 471, 477 e 472 e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Universidade Católica Editora, 5ª edição (2022), pgs. 734 e 739].
Não se pode sequer dizer que haja aqui uma relação de mais e menos, isto é, que os requisitos constitutivos do crime pelo qual o Arguido veio a ser condenado representem um minus em relação ao crime pelo qual fora acusado, já que os elementos do crime previsto pelo art. 165º não estão todos contidos no art. 164º do Código Penal.
Assim é que não podia o Tribunal a quo deixar de ter seguido o procedimento legal de comunicar a alteração e de, se requerido, conceder ao Arguido o prazo mínimo tido por necessário à preparação da defesa (cfr. Assento nº 3/2000, in DR, Série I-A, de 11/02/2000). Trata-se, acrescente-se, de uma exigência do processo equitativo contida no art. 6º, nºs 1 e 3, alíneas a) e b) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (cfr. Acs. do TEDH Block v. Hungary, nº 56282/09, de 25/01/2011, § 24 e Pereira Cruz e outros v. Portugal, nºs 56396/12 e outros, de 26/06/2018, § 198).
Não o tendo feito, quid juris?
Sustenta o recorrente que o vício é o da nulidade, à luz do art. 379º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal, de acordo com o qual «é nula a sentença (…) que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º».
Ora, a alínea faz referência a «factos diversos», o que, a uma primeira aproximação, poderia levar-nos a pensar que não tinha aplicação aos casos em que em debate esteja uma alteração da «qualificação jurídica».
Porém, a verdade é que, por um lado, a própria alínea faz menção expressa aos arts. 358º e 359º e, naquele primeiro, à alteração da qualificação jurídica são dirigidas as mesmas exigências de comunicação e contraditório que à alteração de factos.
E por outro lado não há razão para tratar diferentemente no art. 379º aquilo que o legislador equipara no art. 358º [no sentido de dar aplicação ao art. 379º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal ao caso da alteração não comunicada da qualificação jurídica, vide Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo IV, Almedina (2022), pgs. 640 e 641 e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penalà luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Universidade Católica Editora, 4ª edição atualizada (2011), pgs. 982; cfr. ainda o Ac. do STJ de Uniformização de Jurisprudência nº 7/2008 e os Acs. da RC de 22/02/2017, da RE de 12/03/2019, relatados respetivamente por Inácio Monteiro e José Proença da Costa].
Assim é que uma interpretação do art. 379º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal que seja sistematicamente coerente e sobretudo que se mostre teleologicamente enquadrada com as exigências do processo equitativo, demanda que se conclua que o legislador disse ali menos do que queria, no sentido em que pretenderia cominar com a nulidade a sentença que fizesse uma convolação jurídica para crime diverso cujos elementos constitutivos não estivessem todos incluídos no ilícito originariamente imputado, sem que previamente se seguisse o procedimento do art. 358º, nºs 1 e 3 (a menos que ocorresse a situação excecional prevista no nº 2 do preceito, de que aqui se não cuida).
Vistas deste modo as coisas, impõe-se então declarar a nulidade da sentença, na parte em que encetou a apontada convolação jurídica, com os efeitos decorrentes do art. 122º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal: determinar-se-á a reabertura da audiência em 1ª Instância para cumprimento do preceituado pelo art. 358º, nº 1 e 3 do Código de Processo Penal.
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Face à solução dada a este ponto do recurso, fica por ora logicamente prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pelo Arguido.
3 – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acorda-se no seguinte:
3.1 Nega-se provimento ao recurso:
3.1.1 Quanto à pretendida correção do «relatório» do acórdão recorrido, no que toca à identificação da Assistente;
3.1.2 Quanto à invocada nulidade da perícia sobre a personalidade da ofendida alegadamente realizada nos autos;
3.1.3 Quanto à invocada nulidade da sentença na parte relativa à alteração de factos a que o Tribunal a quo procedeu na sequência do cumprimento do disposto pelo art. 358º, nº 1 do Código de Processo Penal.
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3.2 Julga-se procedente o recurso quanto à invocada nulidade da sentença, ao abrigo do disposto no art. 379º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal, na parte em que, procedendo à qualificação jurídica dos factos, condenou o Arguido por um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previsto pelo art. 165º, nº 2 do Código Penal, sem dar prévio cumprimento ao procedimento previsto pelo art. 358º, nºs 1 e 3 do Código de Processo Penal e, em consequência, determina-se a baixa dos autos à 1ª Instância, para que seja reaberta a audiência e se cumpra um tal procedimento.
3.3 Julga-se prejudicada por ora a apreciação das demais questões suscitadas no recurso.
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Não são devidas custas [arts. 513º/1, 514º e 515º, nº 1, alínea b), todos a contrario sensu, do Código de Processo Penal].
Notifique.
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Remeta desde já cópia do teor do presente acórdão ao Tribunal Recorrido, para os fins aí tidos por convenientes e nomeadamente tendo em vista a sua incorporação no traslado de controle da medida de coação.
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Lisboa, 02 de maio de 2024
Os Juízes Desembargadores (processado pelo Relator e por todos revisto)
Jorge Rosas de Castro
José Castro
Paula Cristina Bizarro