ACUSAÇÃO
ART.º 16º
N.º3 CPP
LIMITE DE PENA DE PRISÃO
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
ACTO INÚTIL
Sumário

Sumário (da responsabilidade da relatora):
- Pelo facto de o Ministério Público ter deduzido acusação em processo comum e tribunal singular, ao abrigo do artigo 16.º, n.º 3 do C.P.P., condicionando desse modo o limite máximo da pena concreta que pode ser aplicado ao arguido após o julgamento, não tem como consequência que, nesse caso, possa ser aplicável a suspensão provisória do processo, como defende o recorrente.
- Uma coisa é o limite da pena abstracta que permite a suspensão provisória do processo por forma a evitar que o arguido vá a julgamento e lhe não seja aplicada uma pena – que não pode ser superior a 5 anos de prisão. Outra coisa é o limite que resulta do uso pelo Ministério Público do disposto no artigo 16.º, n.º 3 do CPP – de não poder ser aplicado pelo tribunal ao arguido uma pena concreta superior a 5 anos de prisão, ainda que o crime seja punível com pena de prisão superior a esse limite.
- Apesar de não ser de excluir a abertura da instrução apenas para obter a suspensão provisória do processo, realizar-se esta fase, em que obrigatoriamente tem lugar um debate instrutório, quando aquilo que o recorrente pretende é legalmente inadmissível, não deixa de se traduzir num acto inútil, que a lei processual proíbe nos termos do art.º 130.º do CPC aplicável ex vi art.º 4º do C.P.P, sendo inadmissível o requerimento de abertura da instrução.

Texto Integral

Acordaram, em conferência, as Juízes Desembargadoras da 9ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
I.1. No processo de inquérito n.º 1629/19.9T9LSB o Ministério Público proferiu despacho de acusação, para julgamento em processo comum, com a intervenção do Tribunal Singular, ao abrigo do disposto no artigo 16º, n.º 3, do Código de Processo Penal, imputando ao arguido AA, a prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica agravado, previsto pelo artigo 152.°, nº 1, alíneas b) e c), nº 2, alínea a) e n.° 3, alínea b) do Código Penal (em concurso aparente com um crime de violação, previsto e punido pelo art. 164º, n°s 1 e 2 do Código Penal).
I.2. O arguido requereu a abertura da instrução, invocando a verificação dos pressupostos para a aplicação da suspensão provisória do processo.
I.3. Sobre este requerimento o Sr. Juiz de onstrução criminal proferiu despacho a 03.12.2023, mediante o qual rejeitou a abertura de instrução, por legalmente inadmissível, nos termos do artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal.
I.4. Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido pedindo que se revogue o despacho proferido pelo tribunal a quo e que seja admitida a abertura de instrução, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«1a) A fls. e seguintes dos autos veio o Ministério Público deduzir acusação contra o aqui arguido, para julgamento perante o Tribunal Singular, imputando-lhe a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152°, n° 1, alínea b), c), n° 2, e n° 3. alínea b) do Código Penal, em concurso aparente com um crime de violação, p. e p. pelo art. 164°, n°s 1 e 2 do mesmo diploma legal.
2a) A alusão à alínea b) do n° 3 do Código Penal decorre - à evidência - de um lapso de escrita, dado que a ofendida se encontra viva e ( ao que sabe o arguido ) de boa saúde, não se encontrando sequer alegado - como é óbvio - em sede de acusação que, com a sua conduta, o arguido provocou a morte da ofendida.
3a) Considerou o Ministério Público ser este crime punível, em abstracto, com pena de prisão de 3 a 10 anos.
Porém
4a) Lançou mão da faculdade prevista no art. 16°, n° 3 do Código de Processo Penal e, assim sendo, remeteu o processo para julgamento perante Tribunal Singular.
Ora
5a) Em Tribunal Singular não poderá ser aplicada ao arguido pena de prisão superior a 5 anos, desta forma se reconduzindo os autos a uma situação de pequena/média criminalidade, para a qual foi pensado - e deverá ser utilizado - o instituto da Suspensão Provisória do Processo ( cfr. art. 281°, n° 1 do Código de Processo Penal).
6a) Por esta razão, e pelas melhores descritas no seu requerimento de abertura de instrução, que aqui se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais, solicitou o arguido, ora Recorrente, que lhe fosse aplicado o dito instituto da Suspensão Provisória do Processo,
7a) Sabendo, de antemão, que a ofendida concordaria com esta solução e requerendo, por isso, a sua notificação para que, no prazo que lhe fosse proporcionado, viesse aos autos requerer nesse sentido, indicando as injunções regras de conduta a que, em seu entender, deveria ser submetido o arguido, ora Recorrente.
Sucede porém que
8a) Distribuído este processo ao Juiz 3 do TCIC de Lisboa, veio o juiz de instrução criminal a entender que, pese embora o arguido possa requerer a abertura de instrução com o único propósito de que lhe seja aplicada a suspensão provisória do processo ( cfr. acórdão do TRL de 15.01.2014, acórdão do TRE de 06.11.2018 e acórdão do TRL de 09.03.2021, todos disponíveis para consulta in www.dqsi.pt ), no caso estaríamos perante uma situação de inadmissibilidade legal da instrução, pois saber-se-ia desde logo que não se verificam os pressupostos do instituto da suspensão provisória do processo “ ( cfr. decisão recorrida), proferindo a decisão recorrida.
9a) Salvo o devido respeito por melhor entendimento, esta não é uma conclusão que se possa formular ex ante mas, apenas e só - se for o caso -, depois de aberta a instrução, notificada - como requerido - a ofendida, e sempre após debate instrutório.
10a) Termos em que, ao rejeitar liminarmente o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido, ora Recorrente, violou a decisão recorrida o disposto no art. 287°, n° 3 do Código de Processo Penal ( cfr. acórdão do TRL de 06.06.2023).
Termos em que deverá ser revogado o despacho recorrido, e substituído por outro que declare aberta a instrução, seguindo-se os demais trâmites processuais até final, assim se fazendo
JUSTIÇA!»
I.5. O Ministério Público junto do tribunal onde foi proferida a decisão sob recurso apresentou contra-alegações, argumentando do seguinte modo (transcrição dos segmentos com interesse para a apreciação do recurso):
«(…) O arguido encontra-se acusado pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de violência doméstica agravado, previsto pelo artigo 152.°, n.° 1, alíneas b) e c), n.° 2, alínea a) e n.° 3, alínea b) do Código Penal (em concurso aparente com um crime de violação, previsto e punido pelo art. 16400, n°s 1 e 2 do Código Penal) e punido com pena de 3 a 10 anos de prisão por ser a mais gravosa por referência ao art.° 164.°, n.°s 1 e 2 do Código Penal e à parte final do artigo 152.°, n.° 1 do mesmo diploma legal: “se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
Perante tal, falece desde logo o primeiro quesito para aplicação da suspensão provisória do processo, previsto no n.° 1, do art.0 281 ° do Código de Processo Penal, uma vez que o crime imputado ao arguido é punido com pena de prisão superior a 5 anos.
Falece intotum, em nosso entender, o argumento do arguido, que pelo facto de o Ministério Público ter lançado mão do disposto no art.016.°, n.° 3, do Código de Processo Penal, remetendo o processo para julgamento perante Tribunal Singular, já seria possível fazer uso do instituto da suspensão provisória do processo.
O arguido labora em completo erro, na medida em que o facto do Ministério Público entender que no caso concreto não deve ser aplicada pena superior a 5 anos e por esse motivo lançou mão do disposto no art.016° n.° 3, do Código de Processo Penal nada tem a ver com a moldura penal do crime pelo qual o mesmo se encontra acusado.
Por outro lado, o arguido não coloca em causa os factos descritos no despacho de acusação, limitando o RAI à questão em apreço.
Desta forma, nunca poderia a instrução ter-se iniciado e bem esteve a Mmo JIC ao não admiti-la por inadmissibilidade legal da mesma. (…)»
I.6. A assistente contra-alegou argumentando, em síntese, que no caso concreto não se verificam os pressupostos legais para aplicação do instituto da suspensão provisória do processo. Pugna pela improcedência do recurso.
*
»»»I.7. Neste Tribunal da Relação de Lisboa, por seu turno, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso do arguido, subscrevendo a argumentação da resposta do Ministério Público da 1ª instância.
I.8. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada resposta ao parecer do Ministério Público.
I.9. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
***
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. Objecto do recurso
A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso (como é orientação uniforme da jurisprudência, são estas conclusões que delimitam o objeto do recurso) apenas a de saber se o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido cumpre os requisitos legais para ser admitido.
*
II.2. Decisão recorrida
A decisão recorrida tem o seguinte teor (transcrição)
«Fls. 669 a 671:
Veio o arguido AA, na sequência da dedução contra o mesmo da acusação pública de fls. 623 a 629, requerer a abertura de instrução, tendo como único desiderato a suspensão provisória do processo.
O Ministério Público imputou ao arguido a prática em autoria material e na forma consumada [de] um crime de violência doméstica agravado, previsto pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c), n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea b) do Código Penal (em concurso aparente com um crime de violação, previsto e punido pelo art. 164ºº, nºs 1 e 2 do Código Penal) e punido com pena de 3 a 10 anos de prisão por ser a mais gravosa por referência ao art. 164º, nºs 1 e 2 do Código Penal e à parte final do artigo 152.º, n.º 1 do mesmo diploma legal: “se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
No requerimento de abertura de instrução, o arguido não coloca em crise a suficiente indiciação dos factos descritos no libelo acusatório, nem o enquadramento jurídico-penal a que no mesmo se procede, pretendendo, exclusivamente, conforme se deixou expresso, que se determine a suspensão provisória do processo.
Estatui o art. 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. De harmonia com o disposto no art. 287.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal, a abertura da instrução pode ser requerida (…) pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação. Verificados que estejam os pressupostos de que depende a suspensão provisória do processo, pode a mesma ser decretada na fase de instrução (art. 307.º, n.º 2, do Código de Processo Penal). Por fim, acrescenta o n.º 3 do citado art. 287.º que o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
O arguido pode requerer a abertura da instrução com o único propósito de que seja aplicada a suspensão provisória do processo.1 Contudo, no caso, estamos perante uma situação de inadmissibilidade legal da instrução, pois sabe-se desde já que não se verificam os pressupostos do instituto da suspensão provisória do processo. Tal sucede quer se entenda que entre o crime de violência doméstica e o crime de violação existe uma relação de concurso aparente (por via de uma relação de subsidiariedade),2 quer se entenda que entre ambos os ilícitos se verifica uma relação de concurso efectivo.3
Na acusação pública aderiu-se ao primeiro entendimento. No entanto, mesmo para quem defenda a existência da aludida relação de concurso aparente entre os crimes de violência doméstica e de violação, por força da pena em abstracto aplicável (3 a 10 anos de prisão) sempre estará vedada a possibilidade de aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, atento o disposto no n.º 1 do art. 281.º do Código de Processo Penal. Na verdade, através do n.º 8 do citado art. 281.º não se alarga o âmbito da suspensão provisória do processo a crimes de violência doméstica puníveis com pena superior a 5 anos de prisão, antes constituindo o sentido dessa norma, conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque, o de condicionar a aplicação do instituto da suspensão à vontade da vítima, que não tem sequer de se constituir assistente, para se fazer ouvir.4 O instituto da suspensão provisória do processo encontra-se político-criminalmente delimitado em função de uma certa realidade criminológica (pequena e média criminalidade), o que é revelado pelo teor do referido n.º 1 do art. 281.º, que prevê a circunstância de o crime ser punível com pena de prisão não superior a 5 anos.
Por seu turno, entendendo-se haver uma relação de concurso efectivo entre os crimes de violência doméstica e de violação, também aqui, por força da pena em abstracto aplicável pela prática deste ilícito criminal, bem como do disposto no n.º 1 do art. 281.º do Código de Processo Penal, está vedada a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo.
Em suma, não pondo o arguido em causa que os factos descritos na acusação pública estão suficientemente indiciados e não podendo haver lugar no caso à aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, trata-se de uma situação em que o requerimento de abertura de instrução, tal como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13.07.2021, deve ser liminarmente rejeitado, na medida em que, nesse caso, a instrução se traduziria na prática de um acto inútil, dado que estaria afastada, ab initio, a possibilidade de aplicação da suspensão provisória do processo.5
Pelo exposto, por inadmissibilidade legal, rejeito o requerimento de abertura de instrução de fls. 669 a 671 – art. 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.»
*
II.3. Apreciação do Recurso
No presente recurso a única questão colocada consiste em saber se o requerimento de abertura de instrução (RAI) apresentado pelo arguido, pretendendo apenas a abertura da instrução para efeito de nela ser ponderada e aplicada a suspensão provisória do processo reúne os requisitos legais para ser admitido.
Na situação ajuizada, o Ministério Público entendeu não suspender provisoriamente o processo e acusou o arguido, fazendo uso do disposto no n.º 3 do artigo 16.º do Código de Processo Penal, pela prática um crime de violência doméstica agravado, previsto pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c), n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea b) do Código Penal (em concurso aparente com um crime de violação, previsto e punido pelo art. 164ºº, nºs 1 e 2 do Código Penal).
E é o arguido que em sede de instrução, que requereu, pretende sindicar a opção do Ministério Público de não aplicar a suspensão provisória do processo.
Nos termos do estatuído no artigo 287º, nº 1, do Código de Processo Penal a abertura da instrução pode ser requerida pelo arguido relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação.
Interessa-nos, ainda, o que dispõe o nº 3 do mesmo artigo, segundo o qual os fundamentos de rejeição do requerimento de abertura da instrução são:
- A extemporaneidade do requerimento;
- A incompetência do juiz
- A inadmissibilidade legal da instrução.
Vejamos então.
Tem sido fonte de discussão na doutrina e na jurisprudência a questão de saber se é ou não possível ser requerida a instrução, pelo arguido, tendo em vista sindicar a decisão do Ministério Público de não suspensão provisória do processo, prevista no artigo 281º do Código de Processo Penal ou, no caso dessa questão não ter sido objeto de ponderação pelo Ministério Público, para requerer a aplicação desse instituto.
A jurisprudência tem-se pronunciado maioritariamente no sentido de a suspensão provisória do processo poder constituir o único fundamento do requerimento para a abertura da instrução.
Nesta matéria são duas as teses em confronto: uma que defende que ao instituto da suspensão provisória do processo é uma manifestação do princípio da oportunidade e, consequentemente, que a decisão de não aplicação do instituto pelo MP não é sindicável, e outra tese que considera que o mesmo instituto é expressão do princípio da legalidade aberta, impendendo sobre o MP o dever legal de promover a aplicação do instituto, desde que se mostrem verificados os respetivos pressupostos legais e como tal, que é possível sindicar o incumprimento do dever do MP de suspender provisoriamente o processo, sendo o meio processual para o fazer, uma vez findo o inquérito, o requerimento de abertura da instrução.
A última posição enunciada é a que vem sendo maioritariamente acolhida na doutrina [cfr., entre outros, João Conde Correia, in Questões práticas relativas ao arquivamento e à acusação e à sua impugnação, Porto, Universidade Católica, 2007, pág. 99; Anabela Miranda Rodrigues, in «Celeridade e Eficácia - Uma opção politico-criminal, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria», Coimbra Editora, 2003, páginas 54 e 55, nota de rodapé 46; Rui do Carmo, in «A suspensão provisória do processo no Código Penal revisto – Alterações e clarificações», Revista do CEJ, 9 (2008), páginas 329 e 330, nota de rodapé 25; Pedro Caeiro, in «Legalidade e Oportunidade: a perseguição penal entre o mito da “justiça absoluta” e o fetiche da “gestão eficiente” do sistema» – Revista do Ministério Público, Ano 21, n.º 84; Fernando José dos Santos Pinto Torrão, in «A Relevância Político-Criminal da Suspensão Provisória do processo» - Almedina, Coimbra, 2000; Ana Cláudia Nogueira, in «Instrução Criminal: Mudanças Precisam-se» – Revista Julgar, n.º 33; Rosa Margarida Maia Alves Pinto, «Suspensão provisória do processo: questões controvertidas», in Julgar Online, novembro de 2018, pp. 6-12, disponível em http://julgar.pt; Cláudia Isabel Ferraz Dias Matias, A suspensão provisória do processo: o regime legal presente e prespectivado, dissertação de mestrado em direito, Coimbra, 2014, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, págs. 39 a 41, acessível in https://estudogeral.uc.pt/.] e, tendencialmente, também, na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores [cfr. os Acórdãos do TRL de Lisboa, de 16 de novembro de 2006, proferido no processo n.º 7073/2006-9 , de 15 de janeiro de 2014, proferido no processo n.º 3132/10.3TACSC.L1-3, do TRC de 16 de março de 2011, proferido no processo n.º 8/07.5GBLRA-A.C1, de 28 de março de 2012, proferido no processo n.º 53/10.3GAAPMS.C1, de 30 de janeiro de 2013, proferido no processo n.º 68/10.1TATND-A.C1, do TRP de 16 de março de 2016, proferido no processo n.º 12931/13.3TDPRT.P1, do TRG de 6 de novembro de 2017, proferido no processo n.º 258/14.8GDGMR-A.E1 e do TRE de 6 de novembro de 2018, proferido no processo 139/17.3 T9VVC.E1, de 13 de julho de 2021, proferido no processo 45/17.1GBFTR.E1 e de 26 de Abril de 2022, proferido no processo 1312/20.2GBABF.E1, acessíveis em www.dgsi.pt], admitindo-se que possa ser requerida a abertura da instrução com a finalidade de sindicar a decisão do Ministério Público de não aplicar o instituto da suspensão provisória do processo e de deduzir acusação.
Pronunciou-se ainda nesse sentido, o Ac. de do STJ de Justiça, de 13 de fevereiro de 2008, proferido no processo n.º 07P4561, 13/02/2008 [acessível em www.dgsi.pt], em cujo sumário se pode ler: «(…) – O arguido e o assistente podem, pois, pedir hoje ao Ministério Público ou ao juiz de instrução a suspensão provisória do processo, a qual não pode deixar de ser determinada, se se verificarem os respectivos pressupostos: no decurso do inquérito, ao Ministério Público por requerimento; findo o inquérito, ao juiz de instrução, na “acção” adequada à efectivação desse direito e que só pode, pois, ser constituída pelo requerimento de abertura de instrução em que se pede que se analisem os autos para verificar se se verificam os pressupostos de que depende a suspensão provisória do processo e que em caso afirmativo se diligencie, além do mais, pela obtenção da concordância do Ministério Público, tal como o impõe o n.º 2 do art. 307.º do CPP, pois só esse requerimento abre a possibilidade ao juiz de instrução de proferir a decisão a que se refere o art. 307.º e que inclui, como se viu, a possibilidade de suspender provisoriamente obtida a concordância do Ministério Público.»
Também nós entendemos que a não promoção/utilização da suspensão provisória do processo é decisão sindicável, podendo o arguido requerer a abertura da instrução, para ver apreciada pelo JIC, aquela opção assumida do MP com a finalidade de verificar se estão reunidos os pressupostos de aplicação desse instituto, consubstanciando tal faculdade uma garantia de defesa do arguido, imposta pelo artigo 32º, n.º 1, da CRP.
Aqui chegados impõe-se, agora analisar se a decisão recorrida enferma do particular defeito que lhe é imputado no recurso interposto.
É que, no caso vertente, não se mostra que a decisão recorrida de rejeitar o requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal desta, assentou no entendimento de que não é admissível a instrução apenas para apreciar a suspensão provisória do processo. Antes, o tribunal recorrido entendeu que não se verificava um dos pressupostos legais que permite a aplicação do referido instituto, mais concretamente porque em causa está a imputação ao recorrente de crime cuja moldura abstrata ultrapassa os 5 anos de prisão, circunstância que inviabiliza a apreciação dos demais pressupostos, na medida em que a neste caso, a instrução se traduziria num acto inútil, em virtude de o requerimento do arguido se limitar a essa questão.
Discorda o recorrente desse entendimento afirmando que do facto de o Ministério Público ter deduzido a acusação ao abrigo do disposto no artigo 16º, nº 3, do Código de Processo Penal, decorre que não lhe pode ser aplicada pena de máximo superior a 5 anos, reconduzindo-se desta forma o caso a uma situação de pequena/média criminalidade para o qual foi pensado o instituto da suspensão provisória do processo.
Liminarmente, dir-se-á que não assiste razão ao recorrente.
Nesta matéria, cumpre ter presente o regime que resulta da norma do artigo 281º, do Código de Processo Penal, que se refere à suspensão provisória do processo, nos seguintes termos:
«1 - Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos:
a) Concordância do arguido e do assistente;
b) Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza;
c) Ausência de aplicação anterior de suspensão provisória de processo por crime da mesma natureza;
d) Não haver lugar a medida de segurança de internamento;
e) Ausência de um grau de culpa elevado; e
f) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.Tal como decorre do disposto no artigo 286º do CPP, quando requerida pelo arguido, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, isto é, visa discutir essa decisão, «de maneira a verificar, se se justifica (ou não) submeter o arguido a julgamento[2]», terminando com um despacho de pronúncia ou de não pronúncia, consoante o juiz venha a concluir num ou noutro sentido. (…)»
8 - Em processos por crime de violência doméstica não agravado pelo resultado, o Ministério Público, mediante requerimento livre e esclarecido da vítima, determina a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução e do arguido, desde que se verifiquem os pressupostos das alíneas b) e c) do n.º 1. (…) ».
Nas palavras de Cláudia Matias [in “A suspensão provisória do processo: o regime legal presente e perspetivado “ - Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra , em 2014], a suspensão provisória do processo «É uma solução processual, imbuída do espírito dos sistemas de oportunidade, para crimes de reduzida gravidade, em que o Ministério Público, com o acordo do arguido e do assistente e com a homologação do juiz, suspende provisoriamente a tramitação do processo penal e determina a sujeição do arguido a regras de comportamento ou injunções durante um determinado período de tempo. Se tais injunções forem cumpridas pelo arguido, o processo é arquivado; se não forem cumpridas, o Ministério Público revoga a suspensão, isto é, deduz acusação e o processo penal prossegue os seus ulteriores termos.»
A suspensão provisória do processo surgiu em resposta à pequena e média criminalidade, numa altura de “crise da justiça”, em que aumentaram massivamente estas formas de criminalidade, colocando em risco o funcionamento do sistema de justiça penal.» [cfr. Marisa Nunes Ferreira David, in “O Regime Legal da Suspensão Provisória do Processo”, Dissertação de Mestrado – Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, página 11].
Como acabamos de ver, nos termos do nº 1 do transcrito artigo 281º, o primeiro requisito para a suspensão provisória do processo é o do crime que se indicia não ser punível com pena de prisão superior a 5 anos.
Em causa está o limite que tem a ver com a moldura abstracta da pena prevista para o crime indiciado.
Com efeito, a suspensão provisória do processo destina-se, verificados os pressupostos previstos no artigo 281º, nº 1, do Código de Processo Penal, às situações de crime único punível com pena até 5 anos de prisão, ou de vários crimes puníveis com penas abstractas cujo conjunto não ultrapassa os 5 anos de prisão.
Como se explana no Acórdão do TRL de 09 de Março de 2021, processo nº 474/19.6PFLRS-A.L1-5, que aqui seguimos de perto (consultável em www.dgsi.pt), «Trata-se de um limite intransponível que obsta a que o Ministério Público ou o juiz se debrucem sobre a apreciação dos demais pressupostos, ou seja, se o crime é punível com pena de prisão superior a 5 anos, já não pode ser ponderada a aplicação da suspensão provisória do processo.»
No caso vertente, o arguido/recorrente encontra-se acusado pelo Ministério Público pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de violência doméstica agravado, previsto pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c), n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea b) do Código Penal (em concurso aparente com um crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164ºº, nºs 1 e 2 do Código Penal) e punido com pena de 3 a 10 anos de prisão por ser a mais gravosa por referência ao artigo 164º, nºs 1 e 2 do Código Penal e à parte final do artigo 152.º, n.º 1 do mesmo diploma legal: “se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
Assim, perante a moldura penal prevista para tal crime - de prisão de 3 a 10 anos - não é permitido ponderar a aplicação da suspensão provisória do processo.
Importa ainda referir que, ao contrário do defendido pelo recorrente, o facto de o Ministério Público ter feito uso da faculdade prevista no artigo 16º, nº 3, do Código de Processo Penal quando deduziu acusação contra o arguido não afasta a conclusão a que chegamos.
E isto porque a declaração prevista no n.º 3 do artigo 16.º do Código de Processo Penal só condiciona a pena concreta a aplicar, não alterando a moldura penal abstrata do crime.
Neste sentido se pronuncia de forma muito clara o citado Acórdão do TRL de 09 de Março de 2021, que transcrevemos parcialmente: «Uma coisa é o limite da pena abstracta que permite a suspensão provisória do processo por forma a evitar que o arguido vá a julgamento e lhe não seja aplicada uma pena – que não pode ser superior a 5 anos de prisão. Outra coisa é o limite que resulta do uso pelo Ministério Público do disposto no artigo 16.º, n.º 3 do CPP – de não poder ser aplicado pelo tribunal ao arguido uma pena concreta superior a 5 anos de prisão, ainda que o crime seja punível com pena de prisão superior a esse limite.
O que se pretende com o artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, é diverso do que se visa com o artigo 281.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.
O artigo 16.º, n.º 3, respeita à repartição de competência para julgamento entre tribunais em função da medida da pena concretamente aplicável no processo, condicionando a pena concreta, mas não altera a distinção qualitativa entre pequena e média criminalidade e criminalidade grave, que se reflecte na medida da pena abstractamente aplicável ao crime e é justificada por razões de protecção do bem jurídico.
Por outras palavras: a posição do Ministério Público condiciona a pena concreta, mas não altera a moldura penal abstracta, ou, de outro modo, pela utilização da faculdade do artigo 16º, n.º 3 do C.P.P., não ocorre uma alteração da moldura abstracta do crime.
Diversamente, o artigo 281.º do C.P.P. estabelece os pressupostos para a aplicação da suspensão provisória do processo com base na pena abstractamente aplicável, sendo através da pena abstracta que o legislador, por assim dizer, pesa a gravidade do crime, distinguindo qualitativamente os segmentos da criminalidade – desse modo delimitando os segmentos da criminalidade a que se aplica o dito instituto, independentemente da pena concreta que pudesse vir a ser aplicada.
O limite da pena que resulta do uso do artigo 16.º, n.º 3do C.P.P. não pode, pois, servir de fundamento para a suspensão provisória do processo prevista no artigo 281.º do mesmo Código até porque esse limite só se verifica com a dedução da acusação por crimes cuja moldura penal em abstracto é superior a 5 anos de prisão, porque o Ministério Público só então faz uso desse preceito legal.
A seguir-se a tese defendida pelo recorrente teríamos que a suspensão provisória do processo ficaria sempre dependente de o Ministério Público fazer uso ou não do disposto no artigo 16.º n.º 3 do CPP, nos casos em que estivessem em causa crimes puníveis com pena superior a 5 anos de prisão e, nesses casos, a suspensão provisória só seria possível no âmbito da fase da instrução.
Ora, não foi essa a intenção do legislador quando em 1987 introduziu no sistema processual penal o instituto da suspensão provisória do processo nem o que está consagrado no C.P.P. actual quanto aos pressupostos da suspensão provisória do processo, que são os mesmos quer a suspensão ocorra no âmbito do inquérito quer na instrução e não depende da forma como é deduzida a acusação.» (em abono da tese ora defendida pode ainda ver-se os Acórdão do TRG de 10 de dezembro de 2007, proferido no processo n.º 2168/07-2, do TRP de 26 de abril de 2017, proferido no processo n.º 191/15.6SMPRT-A.P1 e o citado Acórdão do TRE de 26 de Abril de 2022, acessíveis em www.dgsi.pt).
Logo, isto posto, em função do exposto, é de confirmar a decisão recorrida pois que não obstante o arguido ter sido acusado em processo comum e perante tribunal singular ao abrigo do disposto no art.º 16. ° n.°3 do Código de Processo Penal, não é legalmente admissível a suspensão provisória do processo, porque o crime de que o mesmo está acusado é, com vimos, punível com pena de prisão superior a 5 anos.
Não se mostra, pois, violado o disposto nos artigos 281º e 287º do Código de Processo Penal.
Apesar de não ser de excluir a abertura da instrução apenas para obter a suspensão provisória do processo, realizar-se esta fase, em que obrigatoriamente tem lugar um debate instrutório, quando aquilo que o recorrente pretende é legalmente inadmissível, tal equivaleria um acto inútil, que a lei processual proíbe nos termos do artigo 130.º do CPC aplicável ex vi art.º 4º do Código de Processo Penal, pelo que, nesta particular situação, é de rejeitar o requerimento para a abertura de instrução (neste sentido, veja-se os Acs. do TRE de 06 de dezembro de 2016, processo nº 169/14.4GBSLV-A.E1, do TRC de 08 de Outubro de 2019, processo nº 1003/17.1GBABF-A.C1 e o citado acórdão do TRL de 09.03.2021.
Assim, não pode deixar de se concluir, tal como o tribunal recorrido, pela inadmissibilidade do requerimento de abertura da instrução.
Termos em que improcede, categoricamente, o recurso interposto.
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II.4. Responsabilidade pelo pagamento de custas
Uma vez que o recorrente decaíu totalmente no recurso que interpôs, é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua atividade deu lugar - artigo 515º do Código de Processo Penal.
Nos termos do disposto nos art.º 8º, nº 9, Regulamento das Custas Processuais e a Tabela III a ele anexa, a taxa de justiça varia entre 3 a 6 UC, devendo ser fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela III.
Tendo em conta a complexidade mediana do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 3 UC`s.
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III. DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam as Juízes que integram a 9ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido confirmando a decisão recorrida.
Mais se condena o recorrente nas custas do recurso, fixando-se em 3 Ucs a taxa de justiça devida – artigos 513º e 514º, ambos do Código de Processo Penal, e tabela III do Regulamento das Custas Processuais aprovado pelo Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro.
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Notifique.
Lisboa, 02.05.2024
(texto processado e revisto pela relatora, assinado electronicamente)
As Juízes Desembargadoras,
Amélia Carolina Teixeira
Maria João Ferreira Lopes
Ana Marisa Arnêdo
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1. A este propósito, cf., por exemplo, os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 06.11.2018 (processo 139/17.3T9VVC.E1) e do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.03.2021 (processo 474/19.6PFLRS-A.L1-5), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
2. Neste sentido, cf. o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.12.2016 (www.dgsi.pt – processo 1152/15.0PBAMD.L1-5).
3. Neste sentido, cf. os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 16.02.2022 (processo 76/20.4GGCVL.C1) e do Supremo Tribunal de Justiça de 12.10.2022 (processo 2043/20.9PBBRR.S1), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
4. In Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Volume II, 5.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora: Lisboa, 2023, p. 184/23.