HABEAS CORPUS
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
ACUSAÇÃO
NOTIFICAÇÃO
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I- O início do prazo máximo de duração da PP conta-se da data em que foi proferido o despacho de aplicação da PP - o que in casu ocorreu em 22.09.2023 – e não do início da detenção do arguido para audição em 1º interrogatório judicial com vista a eventual aplicação de medida de coação, uma vez que a lei atende à duração da medida de coação e não ao tempo global de privação da liberdade que lhe esteja associado, contrariamente às regras sobre desconto das medidas processuais no cumprimento da pena de prisão (artigo 80º C. Penal).
II- O dies ad quem daquele prazo coincide com a data em que foi deduzida acusação, conforme refere o nº1 a) do artigo 215º do CPP (e não com a data da notificação daquele despacho), pelo que não se suscitam dúvidas de que não foi ultrapassado o prazo máximo de seis meses estabelecido no artigo 215º nº 1 a) e nº 2 , corpo, entre a data de aplicação da prisão preventiva (22.09.2023) e a data em que foi deduzida a acusação (22.03.2024).

Texto Integral



Proc. n.º 1246/23.9PTLSB-B.S1


5ª Secção


Habeas Corpus


ACÓRDÃO


Acordam na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I


Relatório

1. AA, arguido preso preventivamente no Estabelecimento Prisional Anexo à Polícia Judiciária ..., melhor identificado nos autos principais, vem em requerimento apresentado pelo seu defensor oficioso requerer a concessão da providência de habeas corpus com fundamento em prisão ilegal, nos seguintes termos que se transcrevem ipsis verbis:


« 1.º Em sede de Primeiro Interrogatório Judicial, no pretérito dia 22/10/2023, foi determinada ao Arguido a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, prevista no artigo 202º do C.P.P., por se considerar existirem fortes indícios do mesmo ter praticado crimes de violação.


2.º O arguido invoca a presente providência de Habeas Corpus, por forma a ver tutelado o seu direito à liberdade individual ambulatória, que deve ser interpretado como um direito fundamental da pessoa e da sua própria dignidade como pessoa humana, tanto é que o referido instrumento é também proclamado em diversas legislações internacionais.


3.º A Declaração Universal dos Direitos Humanos assegura expressamente que ninguém pode ser arbitrariamente detido, razão pela qual não pode, igualmente, ser mantida a privação da liberdade com base em uma ordem de prisão ilegal, que desrespeite o devido processo legal.


4.º O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos assegura especificamente que todo o indivíduo tem direito à liberdade pessoal, pelo que segue terminantemente proibida a detenção ou prisão arbitrárias, que só poderia ser mitigado se fundamentado por lei e desde que respeitados os procedimentos legalmente estabelecidos.


5.º No mesmo sentido, é assegurado o direito a recorrer a um Tribunal a toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção, a fim de que este se pronuncie, com a maior brevidade, sobre a legalidade da sua prisão e em caso de prisão ilegal, deve ordenar a sua liberdade.


6.º A Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais resguarda ainda que toda a pessoa tem direito à liberdade, pelo que ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente e desde que tal prisão seja determinada de acordo com o procedimento legal.


7.º Já a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 27º, n.º 1, reconhece e garante os direitos à liberdade individual, à liberdade física e à liberdade de movimentos e, expressamente, consagra no artigo 31º, a providência do Habeas Corpus como sendo uma garantia extraordinária, expedita e privilegiada contra a prisão arbitrária ou ilegal, a ser decidida no prazo de 08 (oito) dias.


8.º A competência para decidir sobre a providência liberatória em referência, não pairam quaisquer dúvidas de que tal incumbência recai ao STJ, conforme entendimento que decorre do disposto no artigo 222º do CPP.


9.º Nesse sentido, a arguida reivindica através deste remédio excepcional a intervenção do poder judicial para imediatamente fazer cessar as ofensas ao seu direito de liberdade, eis que a manutenção da prisão é ilegal e reveste-se de notórios abusos de autoridade, razão pela qual pretende ver restituída a sua liberdade, pois encontra-se ilegalmente privada da sua liberdade física.


10.º Sucede que até a presente data, a Acusação ainda não foi apresentada, situação que viola o disposto no artigo 215º, n.º 2 do CPP, que prevê um prazo máximo de duração da prisão preventiva de 06 (seis) meses.


11.º Portanto, já transcorreu o prazo máximo de 06 meses e considerando que ainda não foi proferida a Acusação, a prisão preventiva extingue-se, por estar configurada notória ilegalidade, em virtude do excesso de prazo.


12.º Tendo sido extrapolado o prazo máximo da prisão preventiva e estando excedido o limite legalmente instituído, o arguido apresenta o presente Habeas Corpus e requer seja determinada a sua libertação imediata.


13.º Ora bem, o artigo 215º do CPP determina que:


"1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido;


a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;


b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;


c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.a instância;


d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.”


2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos."


14º Assim, o prazo da prisão preventiva acabou por atingir o seu prazo máximo de duração, pois extrapolou o limite de 06 (seis) meses desde que a sua determinação.


15.º Nos presentes autos, jamais foi atribuída excepcional complexidade.


16.º Logo, o prazo máximo da prisão preventiva, nos presentes autos, acabou por ser ultrapassado, situação que determina a conclusão de que a medida de coacção mais severa tornou-se ilegal, por excesso de prazo.


17.º Mesmo que o recebimento da acusação venha ainda a ser realizado, o facto é que revestirá de evidente ilegalidade, isso porque será extemporâneo, situação que determina, na mesma, a ilegalidade da prisão preventiva.


18.º Nesse sentido, deve incidir o disposto no artigo 22º do CPP, que determina que:


“l - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.


2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida/ em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:


a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou


c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”


19.º Considerando que o prazo máximo da prisão preventiva restou ultrapassado, concluímos que a detenção do Arguido no Estabelecimento Prisional Anexo à Polícia Judiciária ... representa um atentado ilegítimo à sua liberdade individual, é ilegal e inconstitucional, na forma do Artigo 22º nº 2 alínea c) do CPP.


20.º Para além disso, invocamos os dispositivos constitucionais pertinentes à matéria, designadamente os artigos 2o, 20º nº 4, 27º nº 2, 28º nº 4, 32º, 202º e 204º, todos da Constituição da República Portuguesa, tudo para dizer que o Arguido não pode ser privado da sua liberdade quando tenha esgotado os prazos estabelecidos por lei, sendo certo que vigora a presunção de inocência.


CONCLUSÃO:


Diante do exposto, resta configurada a ilegalidade da manutenção da prisão preventiva do Arguido, razão pela qual requer à Vossas Excelências, o deferimento do pedido de Habeas Corpus, e em consequência, deverá ser ordenada a imediata libertação do Arguido, isso porque o prazo legalmente previsto para a prisão preventiva encontra-se ultrapassado, diante do excesso de prazo de 06 meses, sem que tenha sido deduzida a Acusação.


..., 24 de março de 2024»


2. A senhora juíza titular do Tribunal Central Instrução Criminal de ..., Juiz ..., lavrou informação nos termos do art.º 223º n.º 1 do CPP, que se transcreve ipsis verbis:


**


« Analisados os fundamentos da providência apresentada não parece assistir razão ao requerente.


De facto, o Arguido foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva em 22.09.23 e a acusação foi notificada no dia 22.03.24 pelo que ainda não expirou o prazo máximo a que alude o requerente. – art.º 223º/1 do Código de Processo Penal.


Cumpra o disposto na referida norma.


Sem prejuízo, desde já se informa que nesta data vai ser proferido despacho de manutenção da medida de coacção nos termos e para os efeitos previstos no art.º 213º do Código de Processo Penal.


Notifique. »


3. O presente procedimento de habeas corpus vem instruído da 1ª instância com a petição de habeas corpus apresentada pelo arguido e a informação da senhora juíza titular do processo a que se reporta o artigo 223º nº1 CPP, supra transcrita, que referencia suficientemente os elementos documentais com interesse para a presente decisão.


4.Convocada esta 5ª Secção Criminal e notificado o Ministério Público realizou-se audiência pública, com a presença do senhor advogado, constituído defensor - art.os 223º n.os 2 e 3 e 435.º do CPP -, após o que o tribunal deliberou.


II. Fundamentação


1. Os termos do presente habeas corpus


1.Conforme pode ver-se da sua petição de Habeas Corpus, enviada por mail em 24.03.2024 (dom.) e autuada nos autos em 25.03.2023, o arguido alega que encontrando-se preso preventivamente por decisão de 22.09.2023 (por lapso manifesto menciona a data de 22.10.2023), mostra-se excedido o prazo máximo de 6 meses sem que tenha sido deduzida Acusação, pelo que deve proceder a presente providência de habeas corpus e determinar-se a sua imediata libertação nos termos do artigo 222º do CPP.


2.Resulta suficientemente esclarecido e documentado da informação prestada pela senhora juíza em 1ª instância, nos termos do art.º 223º n.º 1 do CPP, e dos dados do processo disponíveis na plataforma Citius, a que acedemos, que o arguido foi detido e sujeito a primeiro interrogatório judicial e em 22.09.23 foi proferido o despacho judicial que lhe aplicou a medida de prisão preventiva (situação em que se encontra), tendo sido deduzida acusação em 22.03.2024 pelo MP imputando-lhe a autoria, em concurso efetivo, dos seguintes crimes:


- um (1) crime de falsidade informática, na forma consumada, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1, da Lei 109/2009 (Lei do Cibercrime);


- um (1) crime de violação, na forma consumada, previsto e punido pelo artigo


164.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal, na pessoa de BB, e,


- um (1) crime de violação, na forma consumada, previsto e punido pelo artigo


164.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal, na pessoa de CC.


Por outro lado, o artigo 215º nº 1 a) e nº2 do CPP dispõe que no caso de ser imputada ao arguido a prática de crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos a prisão preventiva extingue-se quando desde o seu início tiverem decorrido seis meses sem que tenha sido deduzida acusação.


2. Decidindo.


«a)Considerações de ordem geral


O instituto do habeas corpus constitui garantia privilegiada do direito à liberdade física ou de locomoção reconhecido no art. 31º da CRP e regulado no CPP por referência às duas fontes de abuso de poder versadas no preceito constitucional: habeas corpus em virtude de detenção ilegal (artigos 220º e 221º, CPP) e habeas corpus em virtude de prisão ilegal (arts 22º e 223º, CPP), que aqui está em causa.


Conforme é pacificamente entendido, o acesso direto e expedito ao STJ através da providência , excecional, de habeas corpus justifica-se pelo propósito de fazer cessar rapidamente estados ilegais de privação da liberdade nas hipóteses, taxativas e manifestas, previstas nas três alíneas do artigo n.º 222º CPP, o que se verificaria no in casu se o arguido se encontrasse em prisão privativa sem que tivesse sido proferida acusação, conforme conclusivamente alegado pelo arguido e requerente.


b) Porém, resulta do conjunto dos elementos processuais relevantes no caso concreto que não se verifica a extinção da prisão preventiva com fundamento em excesso do prazo máximo respetivo, uma vez que o despacho de aplicação da prisão preventiva foi proferido em 22.09.2023 e no dia em que completaram 6 meses sobre aquela data, ou seja, em 22.03.2024, foi proferida acusação que imputa ao arguido a prática dos crimes supra enumerados, incluindo a prática de dois crimes de violação p. e p. pelo 164.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal, com pena de prisão de 3 a 10 anos.


Com efeito, o início do prazo máximo de duração da PP conta-se da data em que foi proferido o despacho de aplicação da PP - o que in casu ocorreu em 22.09.2023 – e não do início da detenção do arguido para audição em 1º interrogatório judicial com vista a eventual aplicação de medida de coação, uma vez que a lei atende à duração da medida de coação e não ao tempo global de privação da liberdade que lhe esteja associado, contrariamente às regras sobre desconto das medidas processuais no cumprimento da pena de prisão (artigo 80º C. Penal).


Em segundo lugar, o dies ad quem daquele prazo coincide com a data em que foi deduzida acusação, conforme refere o nº1 a) do artigo 215º do CPP (e não com a data da notificação daquele despacho), opção legislativa que se coaduna com a necessidade de certeza e rigor no estabelecimento e verificação destes limites, atenta a natureza excecional da privação da liberdade que lhe corresponde - vd, relativamente a ambas as questões, Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, III, 2ª ed., pp 592-3, bem como a jurisprudência ordinária e constitucional aí citada.


Assim sendo, não se suscitam dúvidas de que não foi ultrapassado o prazo máximo de seis meses estabelecido no artigo 215º nº 1 a) e nº 2 , corpo, entre a data de aplicação da prisão preventiva (22.09.2023) e a data em que foi deduzida a acusação (22.03.2024), sendo certo que é consensual a jurisprudência do STJ no entendimento de que para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva previsto no art. 215.º, n.º 1, al. a), do CPP é relevante a data de dedução da acusação e não a notificação desta ao arguido, conforme referimos e pode ver-se, entre os mais recentes, do acórdão do STJ de 28.06.2023 (rel. Ana Brito) e de diversos outros acórdãos do STJ aí referenciados.


A presente petição de habeas corpus revela-se, pois, infundada, porquanto não se mostra excedido o prazo máximo de seis meses entre a aplicação da prisão preventiva e a data da prolação da acusação, a que se reporta o art. 215º.


III - dispositivo


Por todo o exposto, julga-se improcedente a requerida providência de habeas corpus.


Vai o requerente condenado em custas, fixando-se a taxa de justiça em 3UCs (art. 8.º, n.º 9, e Tabela III do Regulamento das Custas Judiciais).


STJ, 1 de abril de 2024


Os Juízes Conselheiros de turno


António Latas, Relator


Heitor Vasques Osório, 1º Adjunto


Agostinho Torres, 2º Adjunto


Maria Clara Sottomayor, Presidente de Secção