ALTERAÇÃO ANORMAL DAS CIRCUNSTÂNCIAS
REQUISITOS
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
FIM CONTRATUAL
BASE NEGOCIAL
ABUSO DO DIREITO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REMISSÃO PARA DOCUMENTOS
DECISÃO JUDICIAL
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
LAPSO MANIFESTO
ERRO DE ESCRITA
CONHECIMENTO PREJUDICADO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Sumário


Quando num contrato de compra e venda de bem imóvel o destino a dar pelo comprador ao terreno vendido foi causa determinante da realização da venda e da estipulação do preço, vindo este mais tarde a dar destino diverso àquele bem, deve corrigir-se o desequilíbrio assim impostos às prestações a que as partes se obrigaram no contrato por recurso ao instituto da modificação do contrato por alteração das circunstâncias, constante do art.º 437.º do Código Civil.

Texto Integral

Recorrentes: AA,

BB,

CC,

DD,

EE,

FF, autores habilitados

Recorrida: Município de Guimarães

Valor da causa: 50 000,01 €


*


I – Relatório

Na acção presente acção declarativa com processo comum instaurada por GG, contra o Município de Guimarães, foi formulado o seguinte pedido:

A condenação do Réu a reconhecer que alterou, culposamente, as condições do contrato de compra e venda identificado no artigo 1º desta petição e a pagar-lhe o montante necessário ao restabelecimento do equilíbrio do contrato de compra e venda que deverá ser determinado nomeadamente pela diferença entre o valor do terreno face à construção que nele realmente foi implantada, deduzido do montante que por ele pagou devidamente actualizado com a desvalorização da moeda e do custo da infra-estruturação, valor esse acrescido dos juros de mora desde a citação até efectivo pagamento.

Em fundamento da sua pretensão alegou ter celebrado com o Réu, em 13.02.1981, um contrato de compra e venda de uma parcela de terreno com a área de 11.650 m2, com vista à implantação da Escola de Formação Profissional de Guimarães sob a ameaça de a parcela ser expropriada para esse fim. Antes da celebração dessa venda, tinha a intenção de urbanizar a propriedade em que a parcela se integrava, com a finalidade de construir prédios de habitação multifamiliar e comércio tendo para tanto apresentado junto do réu um pedido de viabilidade construtiva, que apesar do parecer favorável dos serviços técnicos do Município Réu, veio a ser indeferida com fundamento em a parcela (que, mais tarde, foi vendida) estar incluída em área para a qual estava em estudo um plano geral de urbanização (PGU) e estar abrangida dentro dos limites de protecção à Universidade do Minho, cujos condicionantes ainda não se encontravam definidos. Pouco depois daquele indeferimento, o Réu contactou a A. para aquisição da parcela, argumentando que esta se encontrava interdita à construção urbana e estava destinada à edificação da mencionada escola de formação e que, se não fosse aceite o negócio, haveria lugar à expropriação da parcela; a concreta finalidade – que ficou a constar da escritura pública de venda – foi determinante para a realização da venda e determinação do preço do solo que, por tais condicionantes foi avaliado por valor inferior àquele que seria se estivesse em causa um terreno apto a construção urbana. O Réu não respeitou o fim para que adquiriu a parcela e, aos dias de hoje, encontram-se implantadas na mesma residências universitárias – três corpos de construção em altura – e dois blocos de habitação multifamiliar e comércio assim destruindo o equilíbrio do negócio que celebrou.

O réu invocou a prossecução do interesse público.

A A. faleceu no decurso da acção tendo sido julgados habilitados, os actuais recorrentes.

A sentença proferida pelo Juiz 1 do Juízo Central Cível de ... do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, em 13.09.2022 julgou a acção parcialmente improcedente e condenou o Município Réu a pagar aos Habilitados a diferença a liquidar em ulterior incidente de liquidação entre o preço declarado na escritura pública a que se alude em a. dos factos provados, e o preço de mercado que os prédios tinham à data da escritura de doação referida em j., dos factos provados, deduzido do preço já pago por aquele.

O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão proferido em 4 de Maio de 2023, julgou a acção improcedente e absolveu o réu do pedido

Os A.A. interpuseram recurso de revista do referido acórdão apresentando as seguintes conclusões de recurso:

I. A primitiva autora propôs a presente ação porque se sentiu muito prejudicada, espoliada mesmo, pelo Município de Guimarães. E, entendeu que o instituto jurídico adequado era o da alteração das circunstâncias do artigo 437º do Código Civil.

II. Conhecia a melhor doutrina sobre a matéria e relevante jurisprudência que defendiam a aplicação deste regime jurídico para situações como esta de desrespeito pela finalidade da aquisição.

III. Não desconhecemos que há jurisprudência que enquadra factualidade como a dos autos na teoria do erro-error in futurum e outra no instituto do enriquecimento sem causa.

IV. Porém, às partes compete alegar factos sendo o melhor direito escolhido pelo Tribunal.

V. O Tribunal da Relação não se debruçou sobre outras soluções de direito que acautelassem a situação de prejuízo dos autores.

VI. Numa compra e venda as obrigações principais do contrato são a transmissão do bem e o pagamento do preço.

VII. Quando as partes colocam a finalidade do terreno adquirido na escritura é necessário que se averigue, caso a caso, da relevância dessa colocação.

VIII. No caso que nos ocupa a relevância foi total, e tal modo que se não fosse o destino inscrito na escritura pelas partes, não teria havido escritura.

IX. Estamos perante um dever lateral juridicamente muito relevante.

X. O preço da alienação foi calculado em grande parte pelo valor agrícola.

XI. A autora estava convencida de que a finalidade da aquisição era a construção dum Centro Profissional.

XII. A autora que essa edificação teria largo tempo de duração.

XIII.A autora queria urbanizar para habitação a sua propriedade e deu-o a conhecer ao réu.

XIV. Este indeferiu com fundamento em estudos relacionados com a Universidade do Minho, e muito tempo depois estava a afetar a parcela para a Escola Profissional que nada tinha a ver com a Universidade.

XV. Esta alteração alterou as circunstâncias do negócio de forma radical.

XVI. O Município veio a permitir um tipo de ocupação idêntica aquela que a autora pretendia implantar.

XVII. Esta alteração das circunstâncias é absolutamente anormal e imprevista já que a autora acreditou firmemente no Município, que considerava entidade merecedora de credibilidade.

XVIII. A situação no plano ético é muito censurável; o equilíbrio das prestações desapareceu.

XIX. A situação é de flagrante injustiça para a Autora.

XX. As perícias efetuadas nos autos comprovam o grande desequilíbrio.

XXI. Em situações como esta, em que o fim declarado tem muita relevância jurídica, e só deve realizar-se no futuro, aplica-se o instituto da alteração das circunstâncias.

XXII. Os requisitos da aplicação do instituto são os previstos no artigo 437º do Código civil, a saber, a alteração das circunstâncias em que as partes negociaram, anormal e imprevisível.

XXIII. Esta alteração não era previsível.

XXIV. E, a manutenção do contrato choca os mais elementares sentimentos de justiça.

XXV. Não é entendível que a justiça premeie quem assim enganou a autora.

XXVI. Esta alteração e este prejuízo não está contido na álea o negócio.

XXVII. A exigência de outro requisito tal qual o acórdão recorrido aplica, a ocorrência de um dado externo que se imponha cumulativamente a ambas as partes contratantes não existe nem faz sentido.

XXVIII. No caso dos autos ocorreu uma verdadeira subversão das condições em que as partes fundaram a decisão de contratar.

XXIX. Se não fosse a necessidade de construir na parcela a Escola de Formação Profissional cremos que, por um lado o Município não teria contatado a saudosa autora para lhe adquirir a parcela nem por outro lado ela a teria alienado.

XXX. E, muito menos nas condições em que o fez, a preço de terreno agrícola.

XXXI. Na parcela estão construídos 5 blocos habitacionais, tendo 2, comércio no rés do chão.

XXXII. A autora quis urbanizar a parcela para construção habitacional e deu-o a conhecer à Câmara a quem pediu autorização.

XXXIII. Se a autora sonhasse que a Câmara ia destinar a parcela à construção habitacional nunca alienaria, pois, a ganhar com o seu terreno, ganhava ela, como aliás queria

XXXIV. A autora teve como pressuposto para se decidir a negocial que ia ser construída uma Escola que teria, como é suposto, vocação para durar muitas décadas.

XXXV. Este pressuposto alterou-se.

XXXVI. O reequilíbrio só se faz se a compensação abranger a efetiva construção implantada na parcela.

XXXVII. A segunda perícia está melhor elaborada que a primeira por abranger a área de construção efetivamente implantada na parcela, com exceção de um bloco.

XXXVIII. A douta sentença da 1ª instância faz melhor aplicação do direito que o douto acórdão pelo que deve ser repristinada e alterada nos termos do nosso recurso.

XXXIX. O nosso recurso da matéria de facto não pois ter sido rejeitado pois o que pedimos ao Tribunal da relação que integrasse tais factos na decisão em que foram introduzidos para cabal perceção.

XL. Porém, ao abrigo do princípio do inquisitório o Tribunal se achar necessário consultará os arestos.

Requereu a revogação do acórdão recorrido e a procedência da acção.


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O recorrido, Município de Guimarães, em suporte do acórdão recorrido apresentou contra-alegações que culminam com as seguintes conclusões:

I. Na escritura de compra e venda celebrada em 13 de fevereiro de 1981 foi apenas mencionado o destino a dar ao terreno por parte do comprador, ora recorrido.

II. A única condição constante da referida escritura foi o pagamento ao caseiro, o que foi cumprido, pelo que não existiu qualquer outra condição que tenha sido aposta na venda realizada.

III. As partes não inseriram no contrato nenhuma cláusula consubstanciada em condição quanto ao destino do bem, pelo que não se trata de uma compra e venda juridicamente condicionada.

IV. O contrato em causa nos presentes autos foi celebrado e concluído em 1981, tratando-se de um contrato de execução imediata e não prolongada no tempo e, como tal, não lhe é aplicável, a disposição prevista no artigo 437.º do Código Civil.

V. O contrato de compra e venda em causa foi celebrado em 13 de fevereiro de 1981, tendo a primitiva Autora, nessa data, declarado que vendeu o prédio livre de ónus e encargos e que recebeu a totalidade do preço acordado, considerando a venda efetuada.

VI. Assim, ocorreu a transferência do direito de propriedade sobre a parcela de terreno em causa para o Recorrido, como também o cumprimento das referidas obrigações por ambos, incluindo o pagamento ao caseiro.

VII. O contrato em causa não ficou dependente da satisfação de um qualquer fim contratual futuro.

VIII. Nenhuma prestação ficou por realizar no que concerne à compra e venda do terreno em causa.

IX. O facto de o terreno não ter sido utilizado para aquele fim ou outro e terem passado 40 anos sobre a data da alienação não integra a alteração das circunstâncias a que se reporta o artigo 437.º, n.º 1 do Código Civil, que não é aplicável a contratos já cumpridos.

X. O Instituto consagrado no artigo 437.º do Código Civil, conforme já referido, só se pode aplicar a contratos que não se encontrem definitivamente concluídos, sob pena de violação grave das garantias dos cocontratantes, aqui colocados na posição real do Recorrido.

XI. Se assim não for, verifica-se um atentado aos princípios jurídicos aplicáveis aos negócios, nomeadamente, aos princípios da certeza, segurança jurídica e da boa-fé.

XII. Resulta dos factos provados e não provados que o destino a dar à parcela do terreno em causa não foi relevante para a base do negócio.

XIII. Resulta ainda dos factos provados que a possibilidade do prédio em questão ser destinado a outro fim não era um cenário que as partes não pudessem prever no momento em que celebraram o contrato de compra e venda.

XIV. A menção do fim a que se destina a parcela de terreno é uma afirmação produzida pelo representante do Recorrido a justificar a outorga do contrato de compra e venda, atenta a sua natureza de entidade de direito público.

XV. As circunstâncias que rondaram o caso dos autos não integram uma alteração anormal, imprevisível e excecional, encontrando-se abrangida pelos riscos próprios do próprio contrato.

XVI. A Escola de Formação Profissional não foi implantada por causa não imputável ao Recorrido.

XVII. Os requisitos do artigo 437.º, n.º 1 do Código Civil são cumulativos e não se verificam no caso em concreto, pelo que não pode o contrato ser modificado ou resolvido, com base neste instituto.

XVIII. Atendendo aos factos provados e não provados não se pode concluir que o Recorrido ao não implantar a Escola de Formação Profissional, incumpriu o contrato de compra e venda.

XIX. O Centro de Formação Profissional não foi implantado por factos não imputáveis ao Recorrido.

XX. O Recorrido fez prova que a existir uma qualquer falta de cumprimento, o que por mera hipótese se coloca, esta não procede de culpa sua.

XXI. Dessa forma, não se aplica o disposto no artigo 801.º, n.º 1 do Código Civil, pois esta disposição trata de uma impossibilidade culposa do cumprimento.

XXII. Acresce que os Recorrentes invocaram pela primeira vez a aplicação do Instituto previstos nos artigos 801.º e 802.º do CC, não tendo vertido essa invocação nas conclusões apresentadas com o seu recurso.

XXIII. Os recorrentes limitaram-se a reproduzir as suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, e, consequentemente, mais uma vez, não alegaram no seu entender o que justificaria a alteração da matéria de facto no que diz respeito às alíneas impugnadas, pelo que não obedece assim, aos requisitos previstos no citado artigo 640.º do Código de Processo Civil, requisitos que são obrigatórios.

XXIV. Os documentos não são factos, são simples escritos que corporizam declarações de ciência, pelo que, na descrição da matéria de facto, só há que consignar os factos eventualmente provados por esses documentos.

XXV. A primitiva Autora apesar de já ter um conhecimento dos factos há mais de 20 anos, nunca intentou qualquer ação judicial ou qualquer providência para anular ou resolver o negócio, ou dirigiu um qualquer requerimento ao Recorrido, pelo que

XXVI. – a pretensão dos Recorrentes - exigirem o pagamento de um montante que corresponde ao valor do terreno face à construção nele implantada, com fundamento na alteração das circunstâncias, quando essa alteração há muito ultrapassou, 40 anos desde a conclusão do negócio e mais de 20 anos desde o conhecimento dos factos por parte da primitiva Autora - consubstancia abuso de direito por parte daqueles, que é de conhecimento oficioso.

XXVII. Tal atuação configura um exercício ilegítimo do direito dos Recorrentes que excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé;

XXVIII. Este comportamento é ilícito e viola gravemente o princípio da confiança, patente na disposição do abuso de direito, que visa assegurar a proteção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte,

XXIX. O abuso de direito configura uma cláusula geral aplicável a todas as situações em que o exercício de determinado direito pelo seu titular, em circunstâncias concretas, atentaria violentamente e clamorosamente contra a consciência jurídica;

XXX. Nessa medida, atendendo à singular e importante função que o instituto do abuso de direito representa no nosso sistema, bem como ao facto de constituir uma cláusula geral e uma válvula de segurança do sistema (a sua inclusão na parte geral do Código Civil indicia o âmbito de aplicação geral do instituto).

XXXI. O douto acórdão recorrido não merece reparo quanto às decisões que constituem o objeto do presente recurso, fazendo uma correta interpretação e aplicação dos preceitos legais com relevância para o caso dos autos, pelo que não violou qualquer preceito legal.

Termos em que deve negar-se provimento ao recurso, mantendo-se o douto Acórdão recorrido,


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I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

O recurso de revista é admissível ao abrigo do disposto no art.º 671.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.


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I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar as seguintes questões:

1. Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

2. Abuso de direito.

3. Resolução/modificação do contrato por alteração anormal das circunstâncias que determinaram a decisão de contratar.


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I.4 - Os factos

As instâncias consideraram provados os seguintes factos:

a. Por escritura pública celebrada a 13.02.1981, na Secretaria da Câmara Municipal de Guimarães, perante o Chefe da Secretaria, Notário Privativo daquela, a Autora, casada no regime de separação de bens com Dr. AA, declarou ser dona e legítima possuidora da propriedade denominada Assento ... ou da ..., situada na freguesia de ... e que, pelo preço total de Esc. 7.200.000$00, vendia à Câmara Municipal de Guimarães, representada pelo seu Presidente, os prédios rústicos dessa propriedade identificados como campos do ..., do ... e do ... ou Campo ... e leira do ..., inscritos na matriz rústica da freguesia de ... sob os artigos .52, .53, .54 e .55 e descritos na Conservatória do Registo Predial de ... sob parte do prédio nº 36.090, a fls. 84 do Livro B-100.

b. Declarou, também, que aquele conjunto se situava à margem da estrada nacional 207-4 para ..., confrontava a norte com prédios da vendedora e terrenos de Dr. HH e II, nascente com a estrada nacional 207-4, sul com terras de Dr. JJ e caminho de servidão e do poente com Dr. JJ, terminando em bico com o caminho para a Escola do Magistério Primário, tendo a área aproximada de 12.000 m2.

c. Declarou, ainda, que a venda era feita livre de quaisquer ónus ou encargos e com a condição de, havendo lugar à indemnização do caseiro que fabricava os terrenos, a mesma seria da responsabilidade da Câmara Municipal.

d. Por sua vez, o Presidente da Câmara Municipal declarou aceitar o contrato para a sua representada na forma expressa cujas condições haviam sido aceites por deliberação de 12.12.1980 e firmadas em contrato promessa de 29.11.1980 e que o terreno se destinava à implantação da Escola de Formação Profissional.

e. Por escritura pública celebrada a 20.12.1983, na Secretaria da Câmara Municipal de Guimarães, perante o Chefe da Secretaria, Notário Privativo daquela, KK em representação da Câmara Municipal de Guimarães e a Autora declararam rectificar a escritura identificada em a. a d. do seguinte modo:

- a área dos terrenos transaccionados era de 11.650 m2 e não de 12.000 m2 como por lapso fora referido;

- as confrontações eram: norte com prédios da vendedora e terrenos de Dr. HH e II, nascente com a estrada nacional 207-4 e a vendedora, sul com terras de Dr. JJ e caminho de servidão e do poente com Dr. JJ.

f. Em 08.01.1980 deu entrada na Câmara Municipal de Guimarães requerimento de AA dirigido ao Presidente daquela, no qual intitulando-se proprietário da Quinta da ..., situada na freguesia de ..., com os limites eram assinalados em planta junta, solicitava “uma informação sobre a viabilidade da sua urbanização para construção tendo em atenção que todo o terreno da propriedade se acha dentro do perímetro da cidade e é manifesta a carência de habitações no local”, assim como, na hipótese afirmativa, “lhe sejam fornecidos os parâmetros gerais de condicionamento que a Administração entende dever exigir de acordo com os planos directores de urbanização em estudo”.

g. Por extracto da acta nº 16 de 14.04.1980, referente à reunião conjunta entre os técnicos da Direcção Regional de Planeamento Urbanístico do Norte e o Gabinete de Planeamento e Gestão Urbanística, foi exarado o seguinte parecer dos Arquitectos Urbanistas encarregados da elaboração do PGU de Guimarães relativamente à pretensão identificada em f.:

O terreno a Poente da Rua de ... está dentro dos limites de protecção à Universidade cujos condicionantes não estão ainda definidos.

O terreno a Nascente é, em princípio, passível de urbanização não sendo, no entanto possível de imediato fornecer os condicionantes em virtude de o PGU estar ainda em estudo.

Nesta conformidade e na falta dos elementos para apreciação do mesmo, dá-se parecer desfavorável ao abrigo da alínea g) do nº 1 do art. 7º do DL 289/73 por, tal como é apresentado, vir a contrariar estudos de urbanização cuja concretização se aguarda para breve”.

h. Em 13.05.1980 o pedido identificado em f. foi “indeferido nos termos da informação conjunta do DRPUN e PGU”, o que foi comunicado ao requerente por ofício nº 2252/S.

i. A Autora, em 13.02.1981, celebrou com o Réu um contrato de compra e venda titulado por escritura pública outorgada no Notário Privativo do Réu, a que se alude em a.

j. Por escritura pública celebrada a 24.11.1989, nas Primeiras Instalações do Campus Universitário da UM, em ..., Guimarães, perante a Chefe de Divisão dos Serviços Administrativos e de Pessoal da Câmara Municipal de Guimarães, enquanto Notária Privativa, o Presidente da Câmara declarou que, de harmonia com a deliberação efectuada em 06.03.1989, fazia doação pura e simples à Universidade do Minho, representada pelo seu Reitor, do terreno de construção com a área de 11.650 m2, situado na rua de ..., da cidade de Guimarães, destinado a uma residência universitária, assim identificado:

- Propriedade denominada da ... ou Assento do ... situada na Rua de ..., freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 128-..., registado em G-1 a favor da Câmara Municipal e inscrito na matriz sob os artigos 451, 452, 453, 454, 455 e já participado para a sua inscrição como terreno de construção na 1ª Repartição das Finanças do Concelho no dia 22 de Junho do ano em curso, confrontando de norte com prédios de GG, de Dr. HH e II, sul com terras de Dr. JJ e caminho de servidão, do nascente com a rua da sua situação e do poente com Dr. JJ, terminando em bico com o caminho da Escola do Magistério Primário.

k. Mais declarou o Presidente da Câmara que, conforme a deliberação citada, concedia à Universidade do Minho, atempadamente, o apoio com a realização de infra-estruturas necessárias no terreno doado.

l. O Reitor da Universidade do Minho, em representação desta, declarou aceitar a doação e mais benefícios de forma expressa.

m. Actualmente no prédio identificado em a. estão implantadas residências universitárias - 3 (três) corpos de construção em altura.

n. Antes da venda a que se alude em a., era intenção da Autora urbanizar a propriedade, com a área total de 3 (três) hectares, que se localizava dentro dos limites da planta que anexou ao requerimento datado de 19.12.1979, mencionado em f..

o. Essa propriedade, para além de se situar dentro do perímetro urbano da cidade de Guimarães era servida por via pública pavimentada (a Rua de ...) urbana e dotada de abastecimento de energia eléctrica e abastecimento de água.

p. Exactamente as mesmas que serviam as construções existentes na zona.

q. Os Serviços Técnicos de Obras da Câmara Municipal de Guimarães emitiram, com relação ao pedido enunciado em f. e n., o seguinte parecer:

Não vemos inconveniente em certificar favoravelmente o requerido.”

r. Após o indeferimento a que se alude em h., o Réu contactou a Autora e o marido, mostrando-se disponível para lhe adquirir a parte do prédio objecto da escritura.

s. A Autora sabia, de acordo com a informação que o próprio Réu lhe prestara, que a parcela vendida não seria susceptível de urbanização para habitação privada, mas sim para um estabelecimento de ensino.

t. A falecida Autora não venderia o prédio ao Réu se não fosse para o fim indicado na escritura referida em a. e este sabia-o.

u. O preço fixado na venda foi baseado numa avaliação inferior à que seria se o solo fosse avaliado para construção.

v. O facto de se destinar à construção de uma escola levou-a a aceitar vender por um valor inferior ao que seria fixado em expropriação se o solo fosse classificado como apto para construção.

w. O preço pago não foi determinado em avaliação que o classificasse como apto para construção.

x. O valor de construção (habitacional) rondava, pelo menos, o correspondente a 25.000$00 por m2 à data da escritura mencionada em a..

y. Deduzindo-lhe os custos de infra-estruturação, o valor do terreno era superior àquele por que foi pago, se avaliado nos termos indicados em v...

z. A Autora negociou a escritura mencionada em a., perante a inviabilização da construção particular e com base na informação de que o terreno se destinava à construção de uma escola profissional.

aa. Hoje, no prédio, para além do mencionado em m., estão implantados dois blocos de habitação multifamiliar e comércio no rés-do-chão, os quais tiveram um valor de venda (concretamente não apurado).

bb. Com um índice de ocupação correspondente a 1,46 m2.

cc. O Réu licenciou as construções a que se alude em m. e aa..

dd. A construção de uma escola de formação não seria susceptível de comercialização e consequente lucro.

ee. Foram estabelecidas negociações entre AA e o Presidente da Câmara Municipal de Guimarães com relação ao prédio a que se reporta a escritura mencionada em a..

ff. Nesse âmbito, quer AA quer o Município Réu solicitaram a peritos que apresentassem o seu relatório de avaliação.

gg. Assim, em 08.10.1980, LL, apresentou o seguinte relatório de avaliação:

“(…) Dr. AA Área Total = 13.100m2

a) Zona marginal = 3.000m2 x 1.500,00 = 4.500c

b) Zona agrícola = 9.300m2 x 220,00 = 2.046c

c) Construções e logradouros 800m2 x P/Est. 5.512c TOTAL 12.058 c. (…)”

hh. Por sua vez, AA anexou à missiva referida em ii., um relatório de avaliação (da autoria de MM) com o seguinte conteúdo:

A. Zona agrícola e hortícola com ramadas nas bordaduras

9200m2 x 230$00….. 2024 contos

B. Zona marginal apta a construção

3000m2 x 1800$00 …. 5400 contos

C. Zona de construções:

1. Casa principal com 3 pisos, toda em pedra, razoavelmente bem conservada

132m2 x 20 000$00 …….… 2640 contos

2. Casa de caseiro em 2 pisos, boa construção de pedra, funcional para os fins a que se destina

72m2 x 10 000$00 ……..….. 720 contos

3. Dependências agrícolas compostas de telheiro, cortes, barras, alpendre e eira de pedra

234m2 x 3 500$00 ………... 819 contos

4. Garagem sita a norte, boa construção de pedra

40 x 6 000$00 ……………. 240 contos

5. Logradouro e zona ocupada pelas construções

800m2 x 1500$00 ………...1200 contos

13.043 contos.”

ii. Em 24.10.1980, AA comunicou ao Presidente da Câmara Municipal o seguinte:

Em referência à conversa pessoal que tive com V. Exa. sobre a pretensão da Câmara de adquirir parte dos terrenos sitos no lugar da ... da freguesia de ..., dos quais sou proprietário comunico a V. Exa. que:

1. É minha intenção concordar com essa pretensão.

2. O preço que considero justo é o que consta do relatório junto, consoante estudo a que procedeu o Senhor Eng.º MM

..., 24 de Outubro de 1980

jj. Em seguida, foi obtido consenso entre a falecida Autora e o Presidente da Câmara Municipal de Guimarães, como consta da proposta deste na reunião ordinária da Câmara Municipal de 12.12.1980, que foi aprovada por unanimidade, nos termos seguintes:

O proprietário vende o terreno correspondente às duas parcelas rústicas, no total de 12.300m2, pelo preço de 7.200 contos, reservando para si as construções e logradouros, pelo que se verifica, assim, uma baixa de 200 contos em relação ao valor do perito do proprietário, havendo, no entanto, uma decorrência para mais de 654 contos, em relação ao perito da Câmara, propondo a aquisição amigável pelo preço agora pedido”.

kk. Por despacho de 14.07.1981, o Secretário de Estado do Emprego autorizou o Fundo de Desenvolvimento da Mão-de-Obra a aceitar a cedência gratuita pela Câmara Municipal de Guimarães, do direito de superfície, por 50 anos, da propriedade denominada ... ou do Assento ..., situada na Rua de ..., freguesia de ..., ...”, para construção de um centro de emprego e formação profissional.

ll. Esta cedência foi previamente aprovada por deliberação da Câmara Municipal de Guimarães de 13.02.1981 e da Assembleia Municipal de 15.05.1981.

mm. Por escritura de 23.07.1981, foi constituído direito de superfície a favor do Fundo de Desenvolvimento da Mão-de-Obra do Ministério do Trabalho, nos termos que constam de fls. 73 a 77.

nn. Por deliberação de 06.03.1989 da Câmara Municipal de Guimarães, mediante proposta do seu Presidente, foi solicitado ao Secretário de Estado e Formação Profissional a rescisão do protocolo de cedência do direito de superfície e aprovada a cedência daquele terreno à Universidade do Minho, para construção de uma residência universitária com apoio da Câmara Municipal para a realização das infra-estruturas necessárias.

oo. Por ofício de 22.03.1989, o Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) comunicou ao Presidente da Câmara Municipal de Guimarães que não se previa, no então programa de construções do IEFP, “a construção do Centro de Guimarães” e ainda que aceitava a rescisão do acordo firmado em 1981, entre a Câmara Municipal de Guimarães e o ex- Fundo de Desenvolvimento da Mão-de-Obra.

pp. Em 30.08.1989, os Serviços Sociais da Universidade do Minho, apresentaram projecto ao Réu para construção de residência universitária.

qq. Em correspondência com as negociações prévias havidas entre o marido da falecida Autora, AA e o Presidente da Câmara Municipal de Guimarães, a compra ficou sujeita apenas à condição de indemnizar o caseiro.

rr. Só por razões alheias ao Réu é que a construção da escola de formação profissional não foi efectivada.

ss. A posterior doação à Universidade do Minho, para construção de uma residência universitária (para alojamento de estudantes), e apoio à realização das necessárias infra-estruturas urbanísticas teve subjacente a finalidade de manter os estudantes em Guimarães.

tt. Por escritura celebrada a 12.12.1997, a Universidade do Minho declarou ceder a J... ......... .. ...... ...ª, uma parcela de terreno com a área de 5.530,00 m2, destinada a arredondamento de estremas do prédio da referida sociedade, a destacar do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 128/....

uu. Por decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, em 31.03.2016, foi declarada a nulidade do despacho de 05.05.1998, que deferiu o licenciamento do loteamento; do despacho de 18.08.2000, que deferiu o licenciamento da operação de loteamento; do despacho proferido a 02.03.2001, que deferiu o licenciamento da operação de loteamento no processo 373/2000, que levou à emissão do alvará n.º 21/2 em 06.05.2002; de todos os actos consequentes dos actos de deferimento referidos, designadamente o despacho de 25.08.2005, que deferiu o licenciamento de construção para o lote 1 do loteamento n.º 45/00, que levou à emissão do alvará n.º 1136/2006, de 16.12.

vv. A decisão referida na al. anterior ressalvou os “efeitos que os mesmos tenham produzido em relação aos contra-interessados.”

ww. A decisão a que se alude nas als. anteriores foi confirmada por Acórdão do Tribunal Central Administrativo, proferido em 12.04.2019 1.2.

As instâncias consideraram não provados os seguintes factos:

1. A urbanização pretendida, através do pedido mencionado em n., era a construção de prédios de habitação multifamiliar e comércio no rés-do-chão.

2. O Município Réu comunicou à falecida Autora que, se não aceitasse alienar o prédio, seria expropriada por utilidade pública para este concreto fim.

3. A Autora fez questão que o concreto destino do terreno vendido indicado pelo próprio Réu ficasse a constar na escritura, de modo que fosse obrigatoriamente respeitado.

4. O Réu alegava que, se fosse expropriada, o solo seria, nos termos do Código das Expropriações, avaliado pelo potencial agrícola, já que seria classificado como para outros fins.

5. A construção de residências é uma construção mais cara em relação à escola de formação profissional.

6. O valor de venda dos blocos de habitação e comércio foi de 4 (quatro) milhões de euros cada um.

7. O valor do terreno representava 25% do valor da construção.

8. O valor pago pelo Réu à Autora foi o correspondente a 600$00/m2.

9. O Réu não criou as condições para a construção da escola de formação profissional.

10. Foi AA que manifestou ao Réu o interesse em alienar a referida Quinta da ....

11. O facto de na escritura mencionada em a. constar que "o terreno se destina à implantação da Escola de Formação Profissional" apenas significa que a finalidade subjacente era de interesse público e não meramente privado.


* * * * * *


II – Fundamentação

1. Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto

Ainda que seja duvidoso que verdadeiramente a decisão proferida pelo tribunal recorrido no recurso de apelação interposto pelos aqui recorrentes, quanto à decisão proferida sobre a matéria de facto, seja objecto do presente recurso de revista, passaremos a esclarecer esta questão.

O Tribunal recorrido considerou que “(…) os recorrentes/Habilitados, que sucederam à primitiva autora, não especificam, nas conclusões da alegação ou na correspondente motivação, eventuais modificações que preconizem introduzir à decisão de facto que foi considerada na decisão recorrida, nem qualquer facto que entendam dever ser aditado a tal matéria, antes pretendendo o aditamento da referência expressa à remissão genérica para os documentos que corporizam as decisões judiciais plasmadas nas als. uu), vv) e ww) dos factos provados. (…) Pelo exposto, decide-se rejeitar o recurso dos recorrentes/Habilitados, que sucederam à primitiva autora, na parte relativa à decisão de facto, mantendo-se, em conformidade, a decisão de facto proferida pelo tribunal a quo, relativamente aos factos provados uu) e ww).”.

Em causa estão os seguintes pontos da matéria de facto.

uu. Por decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, em 31.03.2016, foi declarada a nulidade do despacho de 05.05.1998, que deferiu o licenciamento do loteamento; do despacho de 18.08.2000, que deferiu o licenciamento da operação de loteamento; do despacho proferido a 02.03.2001, que deferiu o licenciamento da operação de loteamento no processo 373/2000, que levou à emissão do alvará n.º 21/2 em 06.05.2002; de todos os actos consequentes dos actos de deferimento referidos, designadamente o despacho de 25.08.2005, que deferiu o licenciamento de construção para o lote 1 do loteamento n.º 45/00, que levou à emissão do alvará n.º 1136/2006, de 16.12.

vv. A decisão referida na al. anterior ressalvou os “efeitos que os mesmos tenham produzido em relação aos contra-interessados.”

ww. A decisão a que se alude nas als. anteriores foi confirmada por Acórdão do Tribunal Central Administrativo, proferido em 12.04.2019 1.2.

Cremos ser claro que, por lapso no acórdão recorrido, foi indicado “(…) mantendo-se, em conformidade, a decisão de facto proferida pelo tribunal a quo, relativamente aos factos provados uu) e ww).” quando se pretendia dizer:

- mantendo-se, em conformidade, a decisão de facto proferida pelo tribunal a quo, relativamente aos factos provados uu) a ww).”, pois não existiu qualquer consideração adicional que leve a não estender à alínea vv) o que fora decidido para as duas outras alíneas em destaque.

Como esclarecido nas alegações de revista os recorrentes pretendiam que o Tribunal recorrido aditasse a tais alíneas:” de acordo com o teor do documento que aqui se dá integralmente por reproduzido”.

Estão em causa duas decisões judiciais que os recorrentes entendem não foram completamente compreendidas pelas instâncias, o que teve, em seu entender, repercussões na decisão final pretendendo que a inserção da dita expressão alertasse o Tribunal de recurso para a necessidade de reanálise dessa decisão.

Dar por reproduzido um documento que é um meio de prova, apesar de muito frequente nas decisões judiciais, é uma prática jurídica incorrecta. Compete ao Tribunal definir, com exactidão, quais os factos relevantes para a decisão da causa que o documento prova, o que não é suprido pela indicação de que se dá por integralmente reproduzido o teor do documento.

Não se localiza qualquer violação de regra de direito probatório e, como indicam os recorrentes, o tribunal de recurso lerá as referidas decisões para a decisão do recurso.


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2. Abuso de direito

O recorrido Município de Guimarães invoca, em sede de revista, como anteriormente havia efectuado em sede de apelação, o abuso de direito por parte dos recorrentes, questão cujo conhecimento ficou prejudicado pela decisão final do acórdão recorrido, por estarmos perante a exigência do pagamento de um montante que corresponde ao valor do terreno face à construção nele implantada, com fundamento na alteração das circunstâncias do negócio, quando essa alteração ocorreu pelo menos, há vinte anos, o que ofende, em seu entender, claramente o sentimento de justiça dominante, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, e, pelo fim social e económico desse direito.

A verificar-se que os recorrentes pretendem com esta acção usar abusivamente do direito de resolver ou modificar o contrato de compra e venda não será necessário verificar se tal direito existe, pelo que, logicamente, o conhecimento da questão do abuso de direito por parte dos autores precede as demais questões suscitadas no recurso, de que passa a tomar-se conhecimento.

Como já foi tido em conta na decisão anterior proferida nestes autos, que transitou em julgado e julgou improcedente a excepção peremptória de prescrição do direito dos autores, há uma significativa imprecisão na alegação de que há pelo menos 20 anos que os autores são conhecedores da existência do direito a que se arrogam na presente acção, sem o terem, por qualquer forma exercido. Seguindo a causa de pedir, a invocada alteração tida por anormal das circunstâncias apenas ocorreu, ou se tornou aparente, com a construção de residências universitárias e dois blocos de habitação multifamiliar e comércio no rés-do-chão, o que ocorreu em data desconhecida nos autos.

A doação efectuada pelo recorrido à Universidade do Minho foi levada ao registo em 27/09/1996.

Porém, a matéria de facto, nomeadamente a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, menciona que o despacho que deferiu o licenciamento do loteamento é de 05.05.1998, o despacho que deferiu o licenciamento da operação de loteamento é de 18.08.2000, o despacho que deferiu o licenciamento da operação de loteamento no processo 373/2000, que levou à emissão do alvará n.º 21/2 é de 02.03.2001, tendo este alvará sido emitido em 06.05.2002, o despacho que deferiu o licenciamento de construção para o lote 1 do loteamento n.º 45/00, que levou à emissão do alvará n.º 1136/2006, é de 25.08.2005, tendo o dito alvará sido emitido em de 16.12.2006, sendo certo que as construções a eles respeitantes, a ter sido cumprida a lei, ocorreram nos anos posteriores.

As obras de infra-estruturas do alvará de loteamento n.º 45/00 foram recebidas provisoriamente em 01/09/2003 e, definitivamente em 13/09/2010, momento em que se encontravam concluídas, conforme documentos junto aos autos pelo recorrido Município de Guimarães em 19/09/2019.

Não menos importante é que a declaração de nulidade de todos esses actos de deferimento com fundamento na violação do art.º 30º, nº 3 do Regulamento do Plano Director Municipal de Guimarães aprovado em 18/07/1994 pela Assembleia Municipal de Guimarães, que permitiu construção urbana em zona de equipamentos, ocorreu por sentença proferida em 31.03.2016, que foi confirmada por Acórdão do Tribunal Central Administrativo, proferido em 12.04.2019, muito depois de proposta esta acção.

Assim, mesmo sem se conhecer a data exacta em que os recorrentes terão tido conhecimento, ou poderiam razoavelmente ter tido conhecimento de que tinha sido dado um destino diferente ao imóvel que venderam à Câmara Municipal, o certo é que as sucessivas operações de licenciamento, loteamento e construção decorreram ao longo de muitos anos até ganharem a forma final que hoje assumem e são determinantes, do ponto de vista dos recorrentes, para a definição do direito que se arrogam, muito distantes dos ditos 20 anos. Apesar disso, o prazo de prescrição ordinária é de 20 anos por tal ser o período temporal eleito pelo legislador para o exercício legitimo da generalidade dos direitos, a menos que comportamentos específicos gerem razoavelmente a confiança na contraparte de o seu titular a eles ter renunciado. Mas, nada se mostra alegado a este propósito, muito menos indiciariamente provado.

Não existem, pois, factos provados que permitam concluir que os recorrentes ao pretenderem obter judicialmente a resolução ou modificação do contrato de compra e venda que celebraram com o Município de Guimarães, com fundamento em alteração anormal das circunstâncias, procedem a um ilegítimo exercício desse direito, seja por excederem manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, como estabelecido no art.º 334.º do Código Civil.


*


3. Resolução/modificação do contrato por alteração anormal das circunstâncias

Seguindo cronologicamente os factos provados a relação material controvertida delineia-se do seguinte modo:

1. Era intenção da Autora urbanizar a sua propriedade denominada Quinta da ..., situada na freguesia de ..., com a área total de 3 (três) hectares;

2. Essa propriedade, para além de se situar dentro do perímetro urbano da cidade de Guimarães era servida por via pública pavimentada (a Rua de S...) urbana e dotada de abastecimento de energia eléctrica e abastecimento de água.

3. Exactamente as mesmas que serviam as construções existentes na zona.

4. Em 08.01.1980 deu entrada na Câmara Municipal de Guimarães um requerimento de AA, cônjuge da A. GG, já falecida, no qual intitulando-se proprietário da Quinta da ..., situada na freguesia de ..., solicitava “uma informação sobre a viabilidade da sua urbanização para construção tendo em atenção que todo o terreno da propriedade se acha dentro do perímetro da cidade e é manifesta a carência de habitações no local”, assim como, na hipótese afirmativa, “lhe sejam fornecidos os parâmetros gerais de condicionamento que a Administração entende dever exigir de acordo com os planos directores de urbanização em estudo”.

5. Os Serviços Técnicos de Obras da Câmara Municipal de Guimarães emitiram, com relação tal pedido emitiram o seguinte parecer:

"Não vemos inconveniente em certificar favoravelmente o requerido."

6. Pelos Arquitectos Urbanistas encarregados da elaboração do PGU de Guimarães relativamente a tal exaram o seguinte parecer:

“O terreno a Poente da Rua de ... está dentro dos limites de protecção à Universidade cujos condicionantes não estão ainda definidos. O terreno a Nascente é, em princípio, passível de urbanização não sendo, no entanto possível de imediato fornecer os condicionantes em virtude de o PGU estar ainda em estudo. Nesta conformidade e na falta dos elementos para apreciação do mesmo, dá-se parecer desfavorável ao abrigo da alínea g) do nº 1 do art. 7º do DL 289/73 por, tal como é apresentado, vir a contrariar estudos de urbanização cuja concretização se aguarda para breve”.

7. Em 13.05.1980 tal pedido de viabilidade de construção foi “indeferido nos termos da informação conjunta do DRPUN e PGU”.

8. Após o indeferimento o Réu contactou a Autora e o marido, mostrando-se disponível para lhe adquirir a parte do prédio objecto da escritura referida em 16.

9. A Autora sabia, de acordo com a informação que o próprio Réu lhe prestara, que a parcela vendida não seria susceptível de urbanização para habitação privada, mas sim para um estabelecimento de ensino.

10. Foram estabelecidas negociações entre AA e o Presidente da Câmara Municipal de Guimarães com relação ao prédio a que se reporta a escritura mencionada em 16.

11. Nesse âmbito, quer AA quer o Município Réu solicitaram a peritos que apresentassem o seu relatório de avaliação.

12. Assim, em 08.10.1980, LL, apresentou o seguinte relatório de avaliação:

"(…) Dr. AA

Área Total = 13.100m2

a) Zona marginal = 3.000m2 x 1.500,00 = 4.500c

b) Zona agrícola = 9.300m2 x 220,00 = 2.046c

c) Construções e logradouros 800m2 x P/Est. 5.512c

TOTAL 12.058 c. (…)"

13. Por sua vez, AA anexou à missiva referida em ii., um relatório de avaliação (da autoria de MM) com o seguinte conteúdo:

A) Zona agrícola e hortícola com ramadas nas bordaduras

9200m2 x 230$00………….. 2024 contos

B) Zona marginal apta a construção

3000m2 x 1800$00 …….….. 5400 contos

C) Zona de construções:

1. Casa principal com 3 pisos, toda em pedra, razoavelmente bem conservada

132m2 x 20 000$00 …………… 2640 contos

2. Casa de caseiro em 2 pisos, boa construção de pedra, funcional para os fins a que se destina

72m2 x 10 000$00 ……………… 720 contos

3. Dependências agrícolas compostas de telheiro, cortes, barras, alpendre e eira de pedra 234m2 x 3 500$00 ………... 819 contos

4. Garagem sita a norte, boa construção de pedra

40 x 6 000$00 ……………………. 240 contos

5. Logradouro e zona ocupada pelas construções

800m2 x 1500$00 ………………...1200 contos

13.043 contos."

14. Em 24.10.1980, AA comunicou ao Presidente da Câmara Municipal o seguinte:

"Em referência à conversa pessoal que tive com V. Exa. sobre a pretensão da Câmara de adquirir parte dos terrenos sitos no lugar da ... da freguesia de ..., dos quais sou proprietário comunico a V. Exa. que:

1. É minha intenção concordar com essa pretensão.

2. O preço que considero justo é o que consta do relatório junto, consoante estudo a que procedeu o Senhor Eng.º MM

..., 24 de Outubro de 1980".

15. Em seguida, foi obtido consenso entre a falecida Autora e o Presidente da Câmara Municipal de Guimarães, como consta da proposta deste na reunião ordinária da Câmara Municipal de 12.12.1980, que foi aprovada por unanimidade, nos termos seguintes:

"O proprietário vende o terreno correspondente às duas parcelas rústicas, no total de 12.300m2, pelo preço de 7.200 contos, reservando para si as construções e logradouros, pelo que se verifica, assim, uma baixa de 200 contos em relação ao valor do perito do proprietário, havendo, no entanto, uma decorrência para mais de 654 contos, em relação ao perito da Câmara, propondo a aquisição amigável pelo preço agora pedido".

16. A A. GG, já falecida, vendeu à Câmara Municipal de Guimarães, por escritura pública outorgada em 13.02.1981, o prédio denominado Assento ... ou da ..., situada na freguesia de ... integrando os prédios rústicos identificados como campos do ..., do ... e do ... ou Campo ... e leira ..., inscritos na matriz rústica da freguesia de ... sob os artigos .52, .53, .54 e .55 e descritos na Conservatória do Registo Predial de... sob parte do prédio nº 36.090, a fls. 84 do Livro B-100, com área aproximada de 12.000 m2, livre de quaisquer ónus ou encargos , pelo preço total de Esc. 7.200.000$00, e com a condição de, havendo lugar à indemnização do caseiro que fabricava os terrenos, a mesma ser da responsabilidade da Câmara Municipal.

17. A falecida Autora não venderia o prédio ao Réu se não fosse para o fim indicado na escritura referida em 16 e este sabia-o.

18. O preço fixado na venda foi baseado numa avaliação inferior à que seria se o solo fosse avaliado para construção.

19. O facto de se destinar à construção de uma escola levou-a a aceitar vender por um valor inferior ao que seria fixado em expropriação se o solo fosse classificado como apto para construção.

20. O preço pago não foi determinado em avaliação que o classificasse como apto para construção.

21. O valor de construção (habitacional) rondava, pelo menos, o correspondente a 25.000$00 por m2 à data da escritura mencionada em 16.

22. Deduzindo-lhe os custos de infra-estruturação, o valor do terreno era superior àquele por que foi pago, se avaliado como apto para construção.

23. A Autora negociou a escritura mencionada em 16, perante a inviabilização da construção particular e com base na informação de que o terreno se destinava à construção de uma escola profissional.

24. A construção de uma escola de formação não seria susceptível de comercialização e consequente lucro.

25. Em correspondência com as negociações prévias havidas entre o marido da falecida Autora, AA e o Presidente da Câmara Municipal de Guimarães, a compra ficou sujeita apenas à condição de indemnizar o caseiro.

26. Por despacho de 14.07.1981, o Secretário de Estado do Emprego autorizou o Fundo de Desenvolvimento da Mão-de-Obra a aceitar a cedência gratuita pela Câmara Municipal de Guimarães, do direito de superfície, por 50 anos, da propriedade denominada "... ou do Assento do ..., situada na Rua de ..., freguesia de ..., ...", para construção de um centro de emprego e formação profissional.

27. Esta cedência foi previamente aprovada por deliberação da Câmara Municipal de Guimarães de 13.02.1981 e da Assembleia Municipal de 15.05.1981.

28. Por escritura de 23.07.1981, foi constituído direito de superfície a favor do Fundo de Desenvolvimento da Mão-de-Obra do Ministério do Trabalho, nos termos que constam de fls. 73 a 77.

29. Por deliberação de 06.03.1989 da Câmara Municipal de Guimarães, mediante proposta do seu Presidente, foi solicitado ao Secretário de Estado e Formação Profissional a rescisão do protocolo de cedência do direito de superfície e aprovada a cedência daquele terreno à Universidade do Minho, para construção de uma residência universitária com apoio da Câmara Municipal para a realização das infra-estruturas necessárias.

30. Por ofício de 22.03.1989, o Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) comunicou ao Presidente da Câmara Municipal de Guimarães que não se previa, no então programa de construções do IEFP, "a construção do Centro de Guimarães" e ainda que aceitava a rescisão do acordo firmado em 1981, entre a Câmara Municipal de Guimarães e o ex-Fundo de Desenvolvimento da Mão-de-Obra.

31. Só por razões alheias ao Réu é que a construção da escola de formação profissional não foi efectivada.

32. Por escritura pública celebrada a 24.11.1989, o Presidente da Câmara declarou que, de harmonia com a deliberação efectuada em 06.03.1989, fazia doação pura e simples à Universidade do Minho, representada pelo seu Reitor, do terreno de construção com a área de 11.650 m2, situado na Rua de ..., da cidade de ..., destinado a uma residência universitária, assim identificado

33. Actualmente no prédio identificado em 16 estão implantadas residências universitárias - 3 (três) corpos de construção em altura.

34. A posterior doação à Universidade do Minho, para construção de uma residência universitária (para alojamento de estudantes), e apoio à realização das necessárias infra-estruturas urbanísticas teve subjacente a finalidade de manter os estudantes em Guimarães.

35. Em 30.08.1989, os Serviços Sociais da Universidade do Minho, apresentaram projecto ao Réu para construção de residência universitária.

36. Por escritura celebrada a 12.12.1997, a Universidade do Minho declarou ceder a J... ......... .. ...... .. .., uma parcela de terreno com a área de 5.530,00 m2, destinada a arredondamento de estremas do prédio da referida sociedade, a destacar do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 128/....

37. Hoje, no prédio, para além do mencionado em 33, estão implantados dois blocos de habitação multifamiliar e comércio no rés-do-chão, os quais tiveram um valor de venda (concretamente não apurado).

38. Com um índice de ocupação correspondente a 1,46 m2.

39. O Réu licenciou as construções a que se alude em 35.

A primitiva autora, com a intenção de urbanizar a sua propriedade denominada Quinta ..., situada na freguesia de ... e dentro do perímetro urbano da cidade de Guimarães, com a área total de 3 (três) hectares, servida por via pública pavimentada (a Rua de ...), dotada de abastecimento de energia eléctrica e abastecimento de água apresentou, por intermédio do seu cônjuge, na Câmara Municipal de Guimarães, no início do ano de 1980, o que se configura como um pedido de informação prévia de construção ou estudo de viabilidade, solicitando o fornecimento dos parâmetros gerais de condicionamento exigíveis, num momento em que o plano director de urbanização se encontrava em estudo.

Apesar de um primeiro parecer favorável à construção, veio a ser comunicado à autora que seria inviável a urbanização do terreno a poente da Rua de ... por estar dentro dos limites de protecção à Universidade cujos condicionantes não estavam ainda definidos, e, do terreno a nascente dessa rua, por poder vir a contrariar estudos de urbanização em curso.

Depois desse indeferimento, indicativo de não ser possível construir habitações no dito imóvel, o Presidente da Câmara de Guimarães diligenciou junto da autora pela compra de parte da quinta da Dourada, para nele instaurar uma escola profissional, o que veio a concretizar-se no início do ano seguinte – 1981 – por valores fixados tendo em conta, exclusivamente, a aptidão agrícola dos terrenos em causa.

Entre a data em que foi proferido o despacho de indeferimento e a realização da escritura de compra e venda decorreram 8 meses dentro dos quais foram estabelecidas negociações, avaliados os terrenos, apresentadas proposta sobre o valor, e submetida a deliberação camarária a aquisição dos ditos terrenos.

Actualmente encontram-se implantados nos terrenos 3 blocos de residências universitárias e 2 blocos de apartamentos para habitação e comércio considerando a autora que o réu/comprador alterou deliberadamente as condições estabelecidas pelas partes para celebrarem o contrato, o que lhe causou manifesto prejuízo patrimonial.

Enquanto o Tribunal de primeira instância considerou verificados todos os requisitos de aplicação do disposto no art.º 437.º do Código Civil, o Tribunal recorrido considerou, que a invocação do direito de resolução ou de modificação do contrato por alteração anormal das circunstâncias, nos termos do artigo 437.º do Código Civil, não é aplicável aos contratos cujas obrigações já tenham sido integralmente cumpridas, como ocorreu com este contrato de compra e venda em que foi pago integralmente o preço, e, transferido o direito de propriedade sobre os terrenos vendidos para o comprador, tendo a venda sido efectuada livre de quaisquer ónus ou encargos, e, com a única condição de, havendo lugar à indemnização do caseiro que fabricava os terrenos, a mesma ser da responsabilidade da Câmara Municipal, aqui não em causa, inexistindo qualquer outra condição ou cláusula resolutiva eventualmente associada a qualquer concreto destino do terreno vendido, designadamente ao que foi indicado pelo próprio réu na referida escritura.

Pese embora o acórdão recorrido tenha indicado, que se suportava da orientação “amplamente consensual na doutrina e na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, com especial destaque para a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça”, não cremos que esse consenso exista.

A resolução é uma das modalidades prevista na lei para operar a extinção da relação contratual, daí que só possa ocorrer enquanto a relação contratual subsistir. Do mesmo modo a modificação de um contrato por vontade das partes, ou, estipulação legal, pressupõe igualmente que exista uma relação contratual em curso, que possa ser modificada.

Assim, a resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias regulada nos artigos 437 a 439.º do Código Civil visa regular consequências indesejáveis de relações contratuais ainda pendentes.

Todavia, na presente situação acontece que, apesar de as principais prestações do contrato de compra e venda estarem realizadas, o destino do bem adquirido só se corporizou no futuro. Ora a indicação desse destino não foi irrelevante, pelo contrário, foi decisiva para a declaração de vontade de contratar da vendedora, como decorre da matéria de facto provada. Como resulta da matéria provada a construção da escola profissional, naquele local, era também um factor determinante para o comprador se dispor a comprar os ditos terrenos apresentando-se mesmo como a única explicação para a manifestação de vontade do comprador em adquiri-los. O comprador é uma autarquia local que não é um promotor imobiliário, nem pode desenvolver actividade de especulação imobiliária. As despesas que efectua têm de ter enquadramento orçamental, serem autorizadas, tendo em conta o concreto fim a que se destinam, e, a respectiva relevância para a realização do interesse público municipal. Acresce que, neste caso, o comprador é um ente público que tem também o poder para licenciar construções e indeferir licenciamentos, para conceder, rejeitar ou suspender pedidos de informação sobre a viabilidade de construção, o gestor urbanístico por excelência, com especial obrigação de tratar com igualdade todos os seus munícipes. Toda a dinâmica pré contratual demonstra a relevância desse fim para a celebração do contrato, e, para ambas as partes. O terreno que o comprador tinha indicado à vendedora que não dispunha de aptidão edificativa, usando o seu “jus imperii urbanístico”, que pretendia adquirir para nele instalar uma escola profissional, o que se realizaria através da compra e venda, que veio a ocorrer, ou, através de expropriação por utilidade pública, com valorização do terreno segundo a sua aptidão agrícola, veio afinal, poucos anos depois, em violação da lei e com actos nulos, a ser licenciado para construção, por esse mesmo comprador.

Consta das alíneas t), u, e, z dos factos provados que:

- A falecida Autora não venderia o prédio ao Réu se não fosse para o fim indicado na escritura referida em a. e este sabia-o.

- O facto de se destinar à construção de uma escola levou-a a aceitar vender por um valor inferior ao que seria fixado em expropriação se o solo fosse classificado como apto para construção.

- A Autora negociou a escritura mencionada em a., perante a inviabilização da construção particular e com base na informação de que o terreno se destinava à construção de uma escola profissional.

A indicação do referido fim a que se destinava o terreno não era uma condição a que ficou subordinado o contrato, não era uma prestação a que o comprador estava obrigado por força desse contrato, mas um pressuposto do negócio sem o qual a vendedora não teria aceitado vender o terreno, muito menos pelo preço pago.

São muitas as situações similares, que se recolhem na jurisprudência, que têm encontrado soluções jurídicas com fundamentações diversas para atenuar este tipo de desequilíbrio contratual.

Assim, a solução jurídica adoptada pelo Supremo Tribunal de Justiça reconduziu-se ao regime do erro-vício nos acórdãos de 02-02-1971 (publicado no BMJ n.º 204, págs. 131 e segs.) e de 02-11-1977 (publicado no BMJ n.º 271, págs. 190 e segs.), em que o comprador (uma autarquia local) declarou que adquiria o bem imóvel a particulares para um fim determinado no contrato (respectivamente, um arruamento e um largo público), vindo depois a dar-lhe um destino diverso (construção de prédio urbano), ao erro sobre o objecto do negócio no acórdão de 02-02-1971, “(…) na venda de um prédio urbano a uma Câmara Municipal (realizada em 1957), os vendedores só contrataram por estarem convencidos de que o terreno em que ele assentava ia ser destinado a arruamento, e a compradora sabia que só em razão dessa circunstância eles se decidiram a vender, há lugar à anulação do contrato, por erro sobre as qualidades do seu objecto, com fundamento no artigo 661° do Código Civil (de 1867), se mais tarde a Câmara vendeu a terceiro uma parte do terreno com destino a construção de prédio de rendimento.”, ao erro sobre as circunstâncias que constituem a base do negócio no acórdão de 02-11-1977, “ter uma Câmara Municipal adquirido a particulares um prédio destinado, segundo o mesmo contrato, a demolição e integração do respectivo terreno em largo público e, depois, ter cedido parte desse terreno a uma sociedade para fins de construção urbana; uma vez apurado pelas instâncias que as partes contratantes, ao realizarem o negócio, tinham recíproco conhecimento das circunstâncias que constituíam a sua base: nem a Câmara nem os vendedores ignoravam que o preço do prédio, constante do contrato, era inferior ao que seria possível obter se, em vez de destinado a demolição e afectação a uso público, fosse negociado com vista à sua possível valorização através da construção de prédio urbano.”.

Já no acórdão de 09-05-2006 proferido na revista n.º 37/06, publicado em www.dgsi.pt, estando também em causa um contrato de compra e venda mediante o qual o comprador (o Município de Almada) declarou que adquiria o terreno a particulares para um fim determinado no contrato (edificação de Paços do Concelho), vindo depois a dar-lhe um destino diverso (construção de um parque de estacionamento e galerias comerciais), foi considerado que a obrigação de respeitar o destino declarado do bem imóvel transaccionado se integrava nos deveres laterais de conduta a cargo do comprador, constituindo a violação de tais deveres um incumprimento do contrato, que legitima a sua resolução pela parte contrária.

Na situação dos autos não divisamos a existência de qualquer erro do vendedor ou incumprimento de um dever lateral de conduta por parte do comprador. Há o desvio relativamente ao fim a que o comprador declarou destinar o bem adquirido, que, como antes indicamos, foi determinante para a realização da venda e a fixação do preço, desvio esse só aparente muitos anos após a celebração do contrato de compra e venda.

A declaração efectuada pelo Presidente da Câmara na escritura de compra e venda quanto ao fim a que se destinava o terreno não é um mero formalismo sem conteúdo, por ter sido proferida na sequência do indeferimento do pedido de informação sobra a viabilidade de construção naquele terreno, mas também porque, como resulta da declaração de nulidade de todos os despachos de deferimento de loteamento, de emissão de alvará, de deferimento do licenciamento de construção, aquele terreno estar destinado a equipamentos.

Foram alteradas, de forma profunda e anormal, as circunstâncias sobre as quais as partes formaram a sua vontade de contratar. A autora aceitou vender o terreno apenas para que nele fosse construída uma escola profissional, o que não veio a ocorrer, vindo a ser edificadas nele várias construções, mesmo sem que o PDM o permitisse.

O comprador, em 1980 informou da inviabilidade da construção no terreno, que depois comprou, assente na área de protecção à Universidade que ainda não estava definida qual fosse, e no que viria, no futuro, a ser determinado como condicionante à construção, com base em estudos, então em curso, cujo conteúdo era também desconhecido. Chegado a 1989 o comprador decidiu doar o prédio à Universidade para construção, indiferente também, ao que seria a classificação urbanística do terreno. No bem adquirido pelo recorrido não foi implementada a escola profissional, mas construídos cinco blocos de residências universitárias, habitações e áreas comerciais e, como definiram os Tribunais Administrativos e Fiscais, em violação da lei. O recorrido abandonou o projecto de construção da escola profissional, e, em 1989 doou o terreno, que qualificou de terreno para construção, para nele serem construídas residências universitárias, sem qualquer condicionante, veio, depois, a licenciar a sua edificação, que antes declarara à vendedora estar interdita pelas regras urbanísticas.

Tal actuação do recorrido para além da nulidades dos despachos que proferiu assentes em violação das regras urbanísticas, afecta de forma grave os princípios da boa-fé e não pode ter-se por abrangida pelos riscos próprios do negócio. Com efeito não estamos perante dois particulares que transaccionam um terreno considerando que ele não tem aptidão edificativa e, mais tarde, por alteração do PDM, passa a ter essa aptidão. Esta alteração nem seria anormal nem exterior aos riscos próprios do negócio.

Muito diversamente, na situação dos autos, o comprador é quem tem o poder de informar se o terreno tem capacidade edificativa, e informa a vendedora que não tem e, mais tarde, mesmo em desrespeito pelas regras urbanísticas em vigor, vem sobre esse mesmo terreno a conceder a outrem, à Universidade do Minho, e, depois, à empresa de construção - licença de construção. Não está em causa apenas o conteúdo do direito de propriedade, mas uma miríade de poderes-deveres que o recorrido usou/abusou em prejuízo da autora. Mesmo que, entre o negócio com a autora e o licenciamento da construção, o recorrido haja efectuado uma doação, negócio gratuito, à Universidade do Minho, tendo sido esta que vendeu os terrenos a quem obteve o licenciamento de parte das construções que nele hoje existem, parecendo que apenas a Universidade do Minho e este terceiro construtor terão obtido vantagens económicas dos terrenos, não tendo estes tido qualquer intervenção no negócio com a autora, o certo é que o Município comprou à autora esses terrenos, que doou, por um preço muito inferior ao devido, graças ao artifício de ter-lhe indicado que os terrenos não tinham capacidade construtiva e se destinavam à implementação de uma escola profissional, com isso obtendo um ganho evidente.

O desequilíbrio entre as prestações decorre, não de se instalar ou não a escola profissional, mas de se ter convencido o vendedor de que não podia construir no dito terreno e vir, mais tarde, a permitir essa construção a um terceiro, sendo que a possibilidade/impossibilidade de construção é gerida exclusivamente pelo comprador – Município. O comportamento do recorrido que apenas se tornou manifesto em 1989, quando declara doar um terreno para construção, vindo a licenciar o loteamento e a construção, não só foi ilegal, como declararam os Tribunais Administrativos e Fiscais, mas fere a ética e a boa-fé que deve estar subjacente a qualquer negócio, sobretudo se nele tiver intervenção um ente público, como aqui ocorre, cuja missão é a realização do interesse público em conformidade com a lei.

A realização do interesse público exige um estrito cumprimento da lei, quer quanto aos fins, quer quanto aos meios empregues, para garantir que se não ofendam desnecessariamente interesses privados.

Neste mesmo sentido se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 21-10-2010 proferido na revista n.º 454/2001.G1.S1 que se encontra junto aos autos, que seguimos de perto, dada a proximidade das situações analisadas naquele e neste recurso que sumariou as questões também aqui abordadas, em sentido que merece o nosso total acordo da seguinte forma:” (…) «muito embora o art. 437.° se aplique, por norma, a contratos já cumpridos, excepcionalmente é de admitir o recurso ao art. 437.° mesmo depois do cumprimento das prestações “quando o fim contratual só no futuro deve realizar-se e doravante se torna inatingível”.

O caso dos autos não é de incumprimento contratual por o destino do bem não ter sido acordado pelas partes, nem, por outro lado, é um caso típico de alteração das circunstâncias de contrato ainda não cumprido.

Mas, tendo em conta que o comprador declarou o fim a que se destinava o lote de terreno, sabendo que foi por causa disso que os vendedores outorgaram o contrato, pois, caso soubessem que isso não se verificaria, não o teriam vendido ou o venderiam por preço diferente, o comportamento do comprador, ao dar outro destino ao bem, violou os princípios da boa fé, ocorrendo uma anormal alteração das circunstâncias em que os vendedores contrataram, não coberta pela álea do negócio.

Por isso, neste caso especial, de não verificação da pressuposição, a doutrina entende que casos há, como o dos autos, que o instituto a que se deve lançar mão é o da alteração das circunstâncias previsto no art. 437. ° do Código Civil

Também a doutrina acompanha esta solução jurídica, nomeadamente Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por A. Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra, 2005, página 613), no qual o autor, citando Larenz, afirma: “A não verificação da pressuposição só deverá afectar os contratos ainda não completamente cumpridos. A resposta afirmativa é a corrente na doutrina, e nesse sentido vão os Códigos italiano e brasileiro (respectivamente, arts. 1467.° e 478. °: «contratos de execução continuada ou periódica ou de execução diferida»). Mas, excepcionalmente, acentua Larenz, pode ser de atender depois do cumprimento das prestações, «quando o fim contratual só no futuro deve realizar-se e doravante se toma inatingível”.

Sobre esta matéria, Larenz defende que: “Em princípio, a queda da base do negócio só afecta contratos ainda não integralmente cumpridos. Contudo, pode ela também mais tarde ser ainda tomada em conta; assim, quando desde o início não existe a pressuposta base negocial (subjectiva) ou o fim contratual só no futuro deve realizar-se e doravante se tome inatingível” (Lehrbuch des Schuldrechts, vol. I, Allgemeiner Teil, 14.º ed., München, 1987, § 21, II, pág. 329, apud Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, Coimbra, Almedina, 2013, págs. 344/345, nota 3).

No mesmo sentido, Manuel de Andrade (“Teoria Geral da Relação Jurídica, II, páginas 403 e 404) que define a pressuposição como “a circunstância ou estado de coisas que qualquer dos contraentes, ao realizar dado negócio, teve como certo verificar-se no passado ou no presente ou vir ou continuar a verificar-se no futuro, quando de outro modo não teria contratado. Chama-se pressuposição também a esta atitude ou estado de espírito do pressuponente.” Indica que os casos particulares em se deverá admitir a relevância da pressuposição: “Serão os casos em que a pressuposição se tornou conhecida ou cognoscível da outra parte no momento da conclusão do negócio; e, por outro lado, de harmonia com aa circunstâncias — especialmente a finalidade do negócio —, deva concluir-se que se o pressuponente tivesse proposto à outra parte a cláusula negocial (condição) correspondente, a outra parte teria anuído ou, pelo menos, segundo as normas de boa fé, deveria tê-la aceitado, por os seus interesses, razoavelmente apreciados, não se oporem a isso. Tal a conhecida formulação de Lehmann. Está certa no essencial. Apenas se lhe deve acrescentar que valerá a mesma solução quando a boa-fé, porventura não exigindo a aceitação daquela cláusula, todavia imponha que o negócio, uma vez concluído, não permaneça inalterável depois de falhada a pressuposição.” (ibidem, págs. 406 e 407)

A aplicação do instituto da alteração anormal das circunstâncias a casos semelhantes ao dos autos é também defendida por Pinto Monteiro em anotação aos acórdãos do STJ de 02-02-1971 e 02-11-1977, acima citados, e ao acórdão da Relação do Porto de 08-05-1986, publicada na Revista de Legislação de Jurisprudência, n.º 3891, págs. 181 e segs; n.º 3892, págs. 221 e segs., e n.º 3930, págs. 280 e segs..indicando que: “não há aqui qualquer erro, em sentido próprio, técnico-jurídico; Não se desconhece a realidade nem se faz dela uma falsa ou deficiente representação — e só nesse caso é que haveria erro, é que a vontade estaria viciada. (…) Na verdade, o erro-vício consiste no desconhecimento ou numa falsa representação da realidade; se, pelo contrário, a falsa representação se reportar :ao futuro, é a previsão que falha ou o quadro de acontecimentos pressuposto que não se verifica ou evolui em termos diferentes do previsto, caso em que será de recorrer ao instituto da alteração das circunstâncias e apurar se essa falsa representação reúne os pressupostos que este instituto requer para relevar juridicamente” (in RLJ n.º 3892, pág. 221).

Em casos como o dos autos em que o comprador declara no contrato que dará certo destino ao bem imóvel objecto da venda, o qual não se vem a verificar, refere Pinto Monteiro que: “Tudo está, assim, em saber, desde logo, se tais declarações constituem um compromisso juridicamente vinculante quanto ao destino da coisa, isto é, uma obrigação a cargo do comprador. Ou, não sendo esse o caso, se há pelo menos algum dever lateral do comprador. Continuando a não ser esse o caso, haverá que ponderar se a declaração sobre o destino do bem será irrelevante, por não passar de mera motivação do comprador, ou, pelo contrário, se ela fará parte da base do negócio e relevará nos termos previstos para a alteração das circunstâncias.” (in RLJ n.º 3891, pág. 192).

E, dando o exemplo dos casos em que o comprador não dá à coisa adquirida o destino que declarara, em virtude de circunstâncias exteriores que o impediram de fazer isso, como sucede no caso destes autos em que a escola profissional não pôde ser construída na parcela de terreno por motivos alheios ao réu Município, Pinto Monteiro afirma que “o recurso ao art. 437. ° afigura-se constituir a via adequada. Sirva de exemplo o caso decidido pelo Acórdão da Relação do Porto de 8 de Maio de 1986, o qual, como dissemos, deveria ter sido enquadrado em sede de alteração das circunstâncias — e não de erro —, pois o parque de campismo só não foi construído porque a Câmara se viu impedida, por força de circunstâncias exteriores ocorridas posteriormente à celebração do contrato de compra e venda do terreno. É certo que, em princípio, o recurso ao art. 437.º está reservado aos contratos ainda não completamente cumpridos. Ora, na situação que vimos analisando — e em outras do mesmo tipo — parece que o contrato já estaria cumprido, o que deveria levar ao afastamento daquela norma. Mas não é forçosamente assim. Tem-se entendido que excepcionalmente é de admitir o recurso ao art. 437. ° mesmo depois do cumprimento das prestações «quando o fim contratual só no futuro deve realizar-se e doravante se torna inatingível». (in RLJ n.º 3930, pág. 282).

No mesmo sentido também se pronunciou Almeida Costa (Direito das Obrigações, 12.ª edição, Coimbra, Almedina, 2013, págs. 344-345). O referido autor, apesar de defender, como princípio, que a resolução ou modificação por alteração anormal das circunstâncias envolve apenas os contratos que ainda não se encontrem inteiramente cumpridos, sendo essa “a solução predominante, apoiada no forte argumento da segurança do tráfico e dos interesses da contratação”, concebe, no entanto, que existam “situações excepcionais, em que, verificados os seus requisitos, se justifica a resolução ou revisão do contrato, após o cumprimento de uma ou até de ambas as prestações. Imagine-se um exemplo: A celebra com uma empresa estrangeira, B, um contrato de aquisição de tecnologia industrial para o fabrico, no País, de certa especialidade farmacêutica; transmitida essa tecnologia e satisfeito o preço, ainda antes do início da laboração, a autoridade pública proíbe que se produza e venda, em todo o território nacional, o referido medicamento.”

Também Henrique Sousa Antunes (in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações - Das obrigações em Geral - Coord. José Brandão Proença, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2021, anotação ao art. 437.º, págs. 156 e 157), apesar de defender, como regra geral, “que a possibilidade de resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias pressupõe a existência de uma dilação temporal entre a celebração do contrato e a realização da prestação a que o devedor se encontra vinculado”, estando por isso “excluídas, as prestações de execução imediata”, citando Mota Pinto e Almeida Costa, nas passagens já acima citadas, concebe este autor “que, nas hipóteses em que a satisfação do fim contratual seja posterior ao cumprimento da obrigação, a impossibilidade de a realizar tenha relevância nesta sede.”.

Sendo certo que no contrato de compra e venda translativo da propriedade de um imóvel, a regra geral é a de que o vendedor, adquirido o direito de propriedade, goza do pleno direito de alterar o destino do bem, no caso concreto dos autos, os factos que resultaram provados pelas instâncias demonstram que a base objectiva do negócio pressuponha sempre que o imóvel nunca poderia vir a ser apto para construção, nos termos já acima expostos. Daí que a alteração desse destino pelo recorrido, que passou a conferir aptidão construtiva ao prédio constitua, de acordo com a boa-fé, uma alteração intolerável para a manutenção do contrato nos termos em que foi celebrado, pois a pedra angular que determinou não só a própria existência do contrato, como o seu conteúdo (valor do preço), desapareceu.

Em conclusão, não estamos perante um incumprimento contratual pois o destino do bem não foi acordado pelas partes. A alteração das circunstâncias de contrato ganhou visibilidade após o cumprimento do contrato. O fim a que se destinava o lote de terreno, era a razão da outorga do contrato, pelo que o comportamento do comprador, ao dar outro destino ao bem, violou os princípios da boa fé, ocorrendo uma anormal alteração das circunstâncias em que os vendedores contrataram, não coberta pela álea do negócio. Perante a não verificação da pressuposição, mostra-se suficientemente configurada uma situação de alteração, absolutamente anormal e ilegal das circunstâncias em que as partes assentaram a sua vontade de contratar, que aportou um desequilíbrio negocial desfavorável à vendedora, que nesta acção urge reparar, por aplicação do disposto no art.º 437.º do Código Civil.

Consequentemente, impõe-se a revogação do acórdão recorrido na parte em que considerou não ser aplicável o disposto no art.º 437.º do Código Civil e determina-se, ao abrigo do disposto no art.º 679.º do Código de Processo Civil, a baixa dos autos ao tribunal recorrido para que, em face da definição do direito aplicável, tome conhecimento das demais questões que lhe foram presentes no recurso de apelação, cujo julgamento julgou prejudicado.


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III – Deliberação

Pelo exposto, acorda-se em conceder parcialmente a revista, revogar o acórdão recorrido na parte em que considerou não ser aplicável o disposto no art.º 437.º do Código Civil e determina-se a baixa dos autos ao tribunal recorrido para que tome conhecimento das demais questões que lhe foram presentes no recurso de apelação cujo julgamento julgou prejudicado.


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Lisboa, 18 de Abril de 2024

Ana Paula Lobo (relatora)

Isabel Salgado

Maria Graça Trigo