MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
PRINCÍPIO DO RECONHECIMENTO MÚTUO
DETENÇÃO
PRAZO
CESSAÇÃO
MEDIDAS DE COAÇÃO
RECURSO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
CADUCIDADE
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS HUMANOS
Sumário


I - O MDE – definido no art. 1.º, n.º 1 da Lei n.º 65/2003, de 23-08 – tem como únicos objectivos a detenção e entrega da pessoa procurada, visando a primeira a efectivação da segunda;
II - Esgotado o prazo máximo de detenção da pessoa procurada, previsto no n.º 3 do art. 30.º da referida lei, sem que tenha sido proferida decisão com trânsito em julgado sobre a execução do Mandado de Detenção Europeu, impõe-se a sua cessação, podendo a pessoa procurada ser sujeita a outras medidas de coacção, não detentivas, a fim de a República Portuguesa poder cumprir a obrigação de entrega;
III - O decurso do prazo máximo de detenção da pessoa procurada, previsto no n.º 3 do art. 30-º da referida lei, sem que tenha sido proferida decisão com trânsito em julgado sobre a execução do MDE, não determina a caducidade do procedimento.

Texto Integral



RECURSO Nº 320/23.6YRPRT-B.S1


(Mandado de detenção europeu)


Recorrente: AA


Recorrido: Ministério Público


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Acordam, em conferência, na 5º Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO


1. O requerido AA foi detido em 15 de Outubro de 2023 no âmbito da execução do presente mandado de detenção europeu [doravante, MDE], emitido pelo Tribunal da Comarca de Praga, República Checa, em 22 de Agosto de 2022, com a referência nº ... ....18.


O requerido foi ouvido pelo Exmo. Juiz Desembargador relator do Tribunal da Relação do Porto em 17 de Outubro de 2023 que, por despacho de 18 de Outubro de 2023, determinou que em substituição da detenção (…) aguarde os ulteriores termos do processo, além do TIR já prestado, em prisão preventiva, medida esta que se mostra proporcionada à gravidade do crime que lhe é imputado e à pena correspondente, situação em que se manteve até 13 de Março de 2024.


Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29 de Novembro de 2023, foi decidido determinar a execução do MDE emitido contra o requerido, com a consequente entrega do mesmo às autoridades judiciárias da República Checa.


Inconformado com a decisão, o requerido recorreu para este Supremo Tribunal que, por acórdão de 29 de Dezembro de 2023, negou provimento ao recurso, confirmando o decidido pelo acórdão da Relação.


De novo inconformado, o requerido recorreu do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça para o Tribunal Constitucional, recurso que não foi admitido, tendo o requerido reclamado do despacho de não admissão do recurso, reclamação que se encontra ainda pendente.


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Em 12 de Março de 2024, o Exmo. Juiz Desembargador relator proferiu o seguinte despacho:


Alegando ter sido ultrapassado o prazo a que alude o artigo 30.º, nº 3, da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, veio o requerido AA requerer que seja emitido mandado para a sua libertação imediata, por se encontrarem exauridos os 150 dias estipulados no artigo 30º, nº 3 da Lei nº 65/2003, de 23 de agosto – duração do prazo máximo de detenção até ser proferida decisão pelo Tribunal Constitucional.


O Exmo. Sr. Procurador-Geral-Adjunto, neste Tribunal deduziu douta promoção, na qual concluiu o seguinte:


“Assim, essencialmente pelo exposto, atenta a prova reunida nos autos, à acentuada gravidade objetiva dos factos, ao alarme social deles decorrente e intranquilidade pública provocada em qualquer país membro, aos pressupostos cautelares que o caso requer, às necessidades básicas e preliminares de estabilização das expectativas comunitárias na validade das normas penais violadas e das necessidades primárias de prevenção geral positiva ou de integração e às exigências imediatas de prevenção especial de neutralização ou de segurança no espaço territorial da União Europeia – U.E., atendendo que, ab initio, não se encontra afastada a probabilidade de repetição de comportamentos semelhantes em Portugal, e sobretudo às prementes necessidades de assegurar a execução dos presentes Mandado de Detenção Europeu – M.D.E. (European Arrest Warrant – E.A.W.) verificando-se ainda no caso concreto os pressupostos tipificadores da necessidade de aplicação de medidas cautelares, nos legais termos do artigo 204.º do Código de Processo Penal, mostrando-se ainda suficientes ou adequadas as medidas não detentivas ou institucionalizadas face à proibição acima assinalada, na convocação da citada disposição legal com o preceituado nos artigos 191.º, 194.º, 196.º, 198.º, 200.º n.º 1 alínea b) do mesmo compêndio legislativo, salvo melhor entendimento ou opinião, afigura-se-me, que se deverá:


a) declarar cessada e caduca a medida de coação de prisão preventiva, que deverá ser revogada, com a imediata restituição do requerido à liberdade, a concretizar no dia de amanhã (ultimo dia do prazo de 150 dias),


b) sujeitar o requerido à obrigação de se apresentar duas vezes por semana no posto das autoridades policiais competentes mais próximas da sua residência,


c) proibir o requerido de se ausentar do território nacional com a apreensão do passaporte e outros documentos pessoais como o Cartão de Cidadão, comunicando tal interdição aos comandos gerais da Guarda Nacional Republicana – G.N.R., Policia de Segurança Publica – P.S.P. e à A.I.M.A. – Agência para a Integração, Migrações e Asilo que sucedeu ao extinto S.E.F. – Serviço de Estrangeiros e Fronteiras,


d) a cumular, com as injunções decorrentes do T.I.R. – Termo de Identidade e Residência já prestado, regime coativo este, que de momento, no atual quadro normativo e por imposição legal, na cor das minhas lentes, se têm por conjuntamente adequado, proporcional (proibição do excesso – artigo 18.º da Constituição Política da República Portuguesa) e eficaz, o que se promove.


2 - Mais promovo:


a) Se dê conhecimento ao Senhor Presidente do Tribunal Constitucional – T.C. para os fins legais tidos por convenientes.


b) Se informe as autoridades judiciárias do Estado emitente que o requerido foi restituído à liberdade pelas razões expostas e aplicado outro regime coativo.”


A evidente necessidade de determinar a libertação do requerido, implica a prolação de uma decisão urgente, ou mesmo imediata. O que passamos a fazer de seguida.


Ora, como se deixou referido no despacho de 01/02/2024, no qual se decidiu manter inalterada a medida de coação anteriormente aplicada ao requerido AA, e assim que este continuasse a aguardar os ulteriores termos do processo em prisão preventiva, “é o quadro fáctico repetidamente descrito nas decisões sucessivamente proferidas, a sustentar concretamente o elevado perigo de fuga do requerido”, que também atualmente permanece incólume.


Ou seja, não sobreveio ao processo qualquer facto que pudesse alterar os pressupostos que determinaram a aplicação e sucessiva confirmação da medida de coação de prisão preventiva.


Porém, das disposições conjugadas dos nºs 1 e 3 do art.º 30º da Lei nº 65/2003, de 23/08, resulta claro que a detenção cessa, no caso de ter sido interposto recurso para o Tribunal Constitucional, decorridos que sejam 150 dias desde a data da detenção sem que aí tenha sido proferida decisão.


O requerido encontra-se detido à ordem dos presentes autos, desde o dia 15/10/2023.


No Tribunal Constitucional, por decisão de 11/03/2024, proferida pelo Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Relator, a quem foi distribuída a reclamação do despacho proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no qual havia sido liminarmente rejeitado o recurso interposto pelo requerido para aquele Tribunal, foi decidido que, antes de mais, se notificasse o reclamante para, querendo, se pronunciar, no prazo de 5 dias, sobre a possibilidade de não admissão do recurso interposto, não pelas razões que haviam sido dadas no despacho reclamado, mas com fundamento na sua inutilidade. Tornando-se assim impossível que naquele Tribunal Constitucional seja proferida, em tempo útil, uma decisão sobre a aludida reclamação, isto é, até ao termo do prazo de 150 dias legalmente estabelecido, e para que se pudesse manter a detenção do requerido e desse modo assegurar uma efetiva possibilidade de se executar o mandado de execução europeu, nos temos sucessivamente determinados e confirmados por acórdãos deste Tribunal da Relação do Porto e do Supremo Tribunal de Justiça.


A esgotar-se aquele prazo de 150 dias, urge, portanto, determinar a cessação da detenção em que o requerido se encontra.


Porém, resultando tal cessação apenas da verificação do prazo máximo de possibilidade legal de duração da detenção, mantendo-se quanto ao mais inalterados os pressupostos que a determinaram, assim como determinaram a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, impõe-se agora a substituição desta por outras medidas de coação, que, na medida do possível, salvaguardem as necessidades cautelares que o presente caso reclama, nomeadamente o elevado perigo de fuga, a que alude o art.º 204º, al. a), do CPP. Possibilidade de substituição esta que, aliás, resulta expressamente referida no art.º 30º, nº 1, da Lei nº 65/2003.


Daí que, considerando os princípios da legalidade, da necessidade, adequação e proporcionalidade, que enformam a aplicação das medidas de coação, nos termos previstos nos art.ºs 191.º, 194.º, 196.º, 198.º, 200.º n.ºs 1 alínea b), e 3, do CPP, determinando-se a cessação da detenção em que o requerido atualmente se encontra, deverá o mesmo passar a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito às medidas de coação referidas na douta promoção do Ministério Público.


Pelo exposto, determino:


a) A cessação da detenção do requerido, em que atualmente se encontra, em cumprimento da medida de coação de prisão preventiva, com efeitos a partir do dia de amanhã, 13/03/2024, devendo o mesmo ser restituído à liberdade;


b) Que o requerido AA, para além do termo de identidade e residência já prestado, continue a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à obrigação de se apresentar duas vezes por semana no posto da autoridade policial competente mais próxima da sua residência,


c) Proibir o requerido de se ausentar do território nacional, determinando ainda a apreensão do seu passaporte e outros documentos pessoais que possibilitem a sua deslocação para o estrangeiro, como o Cartão de Cidadão, comunicando-se tal interdição aos comandos gerais da Guarda Nacional Republicana – G.N.R., Policia de Segurança Publica – P.S.P. e à A.I.M.A. – Agência para a Integração, Migrações e Asilo, que sucedeu ao extinto S.E.F. – Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.


d) De harmonia ainda com a douta promoção do Ministério Público, comunique ao Exmo. Senhor Presidente do Tribunal Constitucional para os fins tidos por convenientes;


e) E informe as autoridades judiciárias do Estado emitente da restituição do requerido à liberdade, ao qual foram aplicadas as descritas medidas de coação, pelas razões referidas na presente decisão.


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Determino ainda a tradução da parte essencial da decisão ora proferida, a partir de “Daí que, considerando os princípios da legalidade” até final, a fim de a mesma ser notificada pessoalmente ao requerido, nomeando para o efeito o intérprete/tradutor anteriormente indicado no processo, José Manuel Teixeira – art.ºs 91º, nº 2, 92º, nº 2, e 156º, nº 1, do Código de Processo Penal e 479º, nº 3, do Código de processo Civil, ex vi art.º 4º do CPP.


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Inconformado com o decidido, recorre o requerido AA para este Supremo Tribunal [é lapso manifesto, a menção feita no requerimento de interposição de recurso, de que o faz para o Tribunal da Relação do Porto], formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:


A. O presente Recurso, acolhe uma das matérias mais sensíveis no que tange à Cooperação Judiciária Internacional entre os Estados Membros, nomeadamente os regimes e correspondente articulação, sobre a execução de um Mandado de Detenção Europeu (doravante MDE), com a necessária verificação de procedimentos e prazos, sempre com o rigor das garantias de defesa do arguido.


B. Mas também SABE, PRETENDE E ESPERA que, as sobreditas garantias de defesa, não sejam postergadas, em cumprimento e obediência às normas nacionais e internacionais, bem como garantias constitucionais, porquanto o estado de execução (Portugal), durante todo o processo de execução do MDE, o Tribunal “a quo”, não se poupou a esforços em “aplicar”, ao presente MDE, todas as regras e medidas legais que considerou apropriadas, porquanto agora e por essas mesmas “possibilidades e garantias” na lei a aplicar, o arguido espera igual tratamento e reciprocidade, nomeadamente estabelecendo direitos da pessoa procurada e prazos e procedimentos a respeitar.


C. E também releva, que as medidas de que aqui se recorrem, apesar de não serem privativas da liberdade, não deixam de o ser, pois ao ser confiscado o passaporte e sobretudo o cartão de cidadão, estamos perante uma medida “privativa” e restritiva do ius ambulandi do arguido, pois nem sequer consegue o mesmo, identificar-se junto de qualquer instituição ou entidade publica e/ou privada;


D. No despacho em aqui em crise, determinou-se a alteração das medidas de coação, tendo por base um “acontecimento instrumental” no processo e assim com caráter “mandatório”, (porquanto foram exauridos os prazos máximos dos 150 dias), o objeto do presente recurso, diz naturalmente respeito à necessidade, adequação e proporcionalidade daquelas (art.º 193 e 194º do CPP), mas, tem subjacente uma questão prévia, da qual depende precisamente a verificação/continuação e regularidade do presente procedimento do MDE, porquanto o mesmo se encontra num “vazio legal”, em manifesta situação de caducidade do mesmo, o que expressamente se invoca;


E. Como sabemos, a Lei 65/2003 regula o processo judicial de execução do MDE na secção II do capítulo II dedicado à Execução do mandado de detenção europeu emitido por Estado membro estrangeiro, em termos que permitem distinguir entre uma fase declarativa e uma fase de execução da entrega da pessoa identificada no MDE.


F. A fase declarativa, que aqui nos interessa particularmente, desenrola-se entre o que pode chamar-se de fase preliminar, obrigatória, (que se vai desde a receção do MDE (art. 16º) até à declaração do detido sobre o consentimento e a sua homologação judicial (art. 20º, n.º3), e uma fase controvertida/ eventual, que visa dirimir a controvérsia suscitada com a oposição à entrega por parte da pessoa procurada, a qual se desenvolve até à decisão final, fundamentada, sobre a execução do MDE (arts 22º e 23º) e o respetivo recurso (arts 24º e 25º).


G. O processo de decisão sobre a execução do mandado de detenção europeu constitui um procedimento relativamente simplificado, compreendendo três momentos essenciais: a apreciação da suficiência das informações e da regularidade do mandado (conteúdo e forma) – artigo 16°; detenção e audição da pessoa procurada – artigos 17° e 18°; e decisão sobre a execução – artigo 22° da Lei n° 65/2003, de 23 de Agosto.


H. A decisão sobre a execução constitui o acto final da fase decisória sobre a execução do mandado, sendo os atos posteriores já propriamente executivos, e que supõem, anteriormente, uma decisão positiva sobre a execução. Diga-se, que in casu, ainda não existe;


I. O procedimento de entrega instituído pelo MDE tem de respeitar a Constituição Portuguesa na leitura que dela faz o TC, assim como os instrumentos jurídicos internacionais nomeadamente DEDH e Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, nas leituras que deles fazem o Tribunal de Justiça e TEDH.


J. A Lei do MDE, consagra, desde logo, uma evidente flexibilidade procedimental, porém, com um manifesto controle da verificação dos prazos do procedimento, fortalecendo o respeito pelos direitos fundamentais do reclamado, desse o momento da detenção e ao largo de toda a tramitação, o que constitui uma barreira intransponível à regularidade do MDE;


K. Ora, tratando-se de um processo judicializado os prazos de execução de um MDE, devem ser encontrados na conjugação da (I) fase de decisão de execução do mandado (artigo 30º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto) e (II) a fase de entrega (artigo 29º, nº 2 do mesmo instrumento cooperação judiciária entre Estados Membros da União Europeia);


L. Como sabemos, ao prazo de 150 dias da fase (estrita) de decisão de execução acrescem 10 dias – a seguir ao trânsito em julgado da decisão que define e estabelece a execução (para entrega à autoridade emissora);


M. A temática enunciada, está relacionada com o prazo para entrega da pessoa procurada ao Estado requerente. Ou seja, uma vez superado o processo jurisdicional (estrito) – audição do procurado, oposição e respetivos recursos (ordinários) – e definida a pretensão do Estado requerente no sentido positivo, isto é, da entrega do sujeito procurado – para nos atermos ao caso em análise – a entrega tem de se executar, impreterivelmente, dentro do prazo de 10 dias estipulado no artigo 29º da 65/2003, de 23 de Agosto, com a última alteração da Lei nº 115/2019, de 12 de Setembro.


N. Pelo que vai dito, importa por isso, avaliar concretamente, a situação processual do arguido, no momento, bem como as medidas de coação agora aplicadas, as quais não podem “existir” ou subsistir, pois, ora aplicadas na presença de um MDE caducado, porquanto não é possível aplicar qualquer medida de coação, decorrente também, dos princípios gerais do Processo Penal.


O. Tendo por base o despacho em crise e encontrando-se o arguido, atualmente, sem medida detentiva, mas com medidas de coação implementadas, igualmente estas RESTRITIVAS da sua liberdade, porquanto, (I) OS PRAZOS DE DETENÇÃO FORAM EXAURIDOS e (II) ATÈ À DATA NÃO HÀ QUALQUER DECISÃO SOBRE A EXECUÇÃO DO MDE, E POR ISSO AUSÊNCIA DE UMA DECISÃO TRANSITADA EM JULGADO, não restam dúvidas que o procedimento se mantido, é irregular e necessariamente as medidas de coação de aqui se recorre são ilegais, porquanto o MDE caducou.


P. Ou seja, na interpretação do arguido, o términus da fase de execução do procedimento – em que ainda nos encontramos –, pressupõe que, DEVERIA ter existido OBRIGATÓRIAMENTE uma decisão transitada em julgado, naquele período (e por isso fora o arguido libertado), mas que até ao momento não existe. Ou seja, atualmente o processo não “transitou” para a fase de entrega.


Q. Pelo que, a implementação de qualquer medida de coação ora aplicada, nos termos e nas condições sobreditas, não são razoáveis, e a sua manutenção traduzirá a situação ilegal, em que o recorrente se encontra;


R. Ora, no caso, e para os efeitos do que se referiu no numero anterior, as etapas ali mencionadas, ficaram imediatamente num “vazio legal”, quando a decisão do Tribunal da Relação ocorreu dentro do prazo indicado no nº 1 daquele preceito, a decisão do Supremo Tribunal de Justiça também ocorreu dentro do prazo referido no nº 2 do predito preceito, mas a decisão do Tribunal Constitucional NÃO foi proferida até ao momento e fora do prazo previsto no nº 3 do mesmo preceito. E, por isso, o arguido fora libertado.


S. Ora, in casu, e tendo em conta que não há decisão de mérito e muito menos decisão transitada em julgado, a fase de entrega, pressupõe, que o arguido esteja detido. Ora, como já não está em situação de detenção, nem pode vir a estar no presente MDE, como articular a entrega do visado, com a impossibilidade de uma nova detenção? O MDE CADUCOU!


T. Ora, não estando o procedimento de MDE, sequer na fase de entrega, e se levarmos em conta que: (I) a conjugação dos prazos MÁXIMOS de detenção das duas fases (executiva e de entrega) é de 160 dias, (II) encontrando-se o arguido no momento no dia 158 do procedimento, SEM QUE AINDA HAJA TRANSITO EM JULGADO e AINDA NÂO EXISTINDO SEQUER FASE PARA ENTREGA e (III) estabelecendo o artigo 26º da lei MDE, nos números 2 e 3, que “a decisão definitiva sobre a execução do MDE, deve ser tomada no prazo de 60 dias após a detenção da pessoa procurada”, quid iuris?


U. O MDE já caducou e não pode justificar novas medidas de coação, ou manutenção das mesmas, que são por isso ilegais.


V. O despacho viola os artigos 26º, 29º e 30º da Lei 65/2003, os artigos 17º e 23º da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho, tal como eles são interpretados pelo TJUE em jurisprudência reiterada e o artigo 5, n.º 1, al. f) tal como ele é interpretado em jurisprudência reiterada do TEDH.


W. Como melhor explanado supra em sede de alegações, o recorrente invoca expressamente diversas violações do primado internacional nomeadamente: (I) uma clara violação do artigo 3º da CEDH, (porquanto toda a pessoa tem direito à liberdade e segurança, pois ninguém pode ser privado da sua liberdade), (II) manifestas violações da liberdade a que tem direito, em clara violação dos artigos 5º, n.º 1, al. f) do CEDH, (III) nos termos do Artigo 6.º da CEDH, considera que todo o arguido tem Direito a um processo equitativo, e (IV) nos termos do n.º 3, al. a) e e) da CEDH, devem ser garantidos o direito a uma tradução idónea e regular, o que em conformidade com tramitação, nos autos não foi verificado, tudo em violação dos sobreditos preceitos legais;


X. É assim inconstitucional a interpretação normativa da conjugação dos artigos 30º nº3 e 29º, nº2, da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, quando interpretadas no sentido de que a soma destes dois prazos ali previstos, que é de 160 dias, não implica a caducidade do procedimento de MDE, por violação dos artigos, 27º, nº 1 e 32º, nº 1 da CRP, bem como do artigo 2º, protocolo 4º, adicional à convenção europeia, que defende que o exercício destes direitos de liberdade de circulação não podem ser objeto de restrições.


Y. De facto, para além de todas as considerações acima aduzidas, consideramos que na fase em que o arguido se encontra, atípica certamente, temos por assente que o prazo de 160 dias, deve ser a conjugação das duas fases existentes e constitui o limite intransponível para a subsistência do procedimento, pelo que jamais se poderão verificar tais requisitos de “sobrevivência” de um efeito regular MDE;


Z. O arguido não está detido, não se encontra em qualquer fase do procedimento objetiva e tipificada na Lei, tornando inequivocamente, assim o procedimento de execução do presente MDE, inútil e legal/processualmente extinto, porque caducado, pelo que, outra alternativa não resta a este Douto Tribunal se não, a de declarar, nos termos supra suscitados e invocados, a caducidade de procedimento do presente MDE, e assim extinguir as medidas de coação aplicadas e determinar o arquivamento dos autos, por inutilidade superveniente da lide;


TERMOS EM QUE,


Deverá ser dado provimento ao presente recurso, determinando-se:


A. A caducidade do procedimento MDE;


B. A extinção das medidas de coação aplicadas;


C. O arquivamento dos autos, por inutilidade superveniente da lide;


Assim se fazendo inteira e sã JUSTIÇA.


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O recurso foi admitido.


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Respondeu ao recurso o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto do Tribunal da Relação do Porto, aderindo, globalmente, à argumentação do despacho recorrido, realçando, em síntese, i) que a pretendida caducidade do MDE pelo decurso do prazo previsto no art. 30º e inobservância dos prazos previstos no art. 26º, nºs 2 e 3 da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, e consequente inadmissibilidade legal, por afronta a direitos fundamentais pessoais, da aplicação de medidas de coacção, contraria o regime jurídico do mandado de detenção europeu e a jurisprudência conhecida, confundindo o recorrente os prazos gerais e meramente ordenadores do art. 26º, aplicáveis na fase de execução do mandado, com os prazos peremptórios do art. 30º, privativos do instituto da detenção e cujo decurso apenas implica a restituição do visado à liberdade com a aplicação de outro regime coactivo, sem qualquer interferência na validade e eficácia do MDE, sendo certo que do texto do referido regime jurídico não consta qualquer norma que refira a figura da caducidade do mandado e possa sustentar a tese do recorrente, ii) que as inconstitucionalidades invocadas pelo recorrente o foram de forma difusa, sem cumprir o ónus de especificação da norma violada ou da interpretação normativa feita pelo tribunal recorrido, violadoras do texto constitucional, iii) que nos termos do disposto no art. 24º, nº 1, a) da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, só é admissível recurso da decisão que mantiver a detenção ou a substituir por medida de coacção, não podendo o recurso extravasar esta matéria, designadamente, visando matérias contempladas nos acórdãos da Relação e do Supremo Tribunal de Justiça, ordenando a entrega do recorrente ao Estado emitente do mandado, iv) que o regime coactivo imposto ao recorrente no despacho recorrido é legal e adequado, em vista do fim visado pelo regime jurídico em referência, que é o de efectivar a detenção de uma pessoa que se encontre num Estado membro para ser entregue a outro Estado membro, mas com respeito pelos direitos fundamentais individuais, e concluiu, «Em jeito conclusivo, com o devido respeito, que para além de sincero é superlativo, os elementos de racionalidade jurídica, factual e intelectual em que se apoiam os alicerces da retórica argumentativa utilizada requintadamente pelo recorrente na presente instância recursória, não obstante a inteligência, argúcia e erudição que manifestamente apresentam, são francamente assépticos, estruturalmente frágeis, globalmente estéreis, tendencialmente omissos e todos sem cabimento legal, razões pelas quais, o recurso está votado ao insucesso e não merece provimento.


Nessa conformidade, essencialmente pelo exposto, sem necessidade de mais aturadas considerações, tudo visto, analisado e ponderado, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, à reflexão doutrinária e jurisprudencial que as questões equacionadas tem merecido, à plêiade, força e validade dos argumentos aduzidos, à dogmática vigente, numa interpretação sistémica, integrada e entrelaçada das normas legais pertinentes, compatibilizando o que é conciliável, não desvalorizando o que deve ser valorizável e face à altíssima complexidade de tudo o que é humano, bem como, no empoderamento de um acto prudencial de eliminação, esbatimento ou minimização do risco para patamares socialmente suportáveis inerente a qualquer decisão judicial cujo objecto diga directamente respeito aos direitos, liberdades e garantias como aquela que criteriosamente se proferirá e levando em conta as necessidades de execução efectiva do presente Mandado de Detenção Europeu – M.D.E. (European Arrest Warrant – E.A.W.), afigura-se-me que se deverá:


a) não admitir o recurso interposto no segmento em que suscita a caducidade do Mandado de Detenção Europeu – M.D.E. (European Arrest Warrant – E.A.W.) por inadmissibilidade legal, nos termos e pelos fundamentos supra expostos


b) julgar o presente recurso improcedente e manter-se o despacho recorrido nos seus precisos e exactos termos, devendo o requerido aguardar os ulteriores termos do processo na situação cautelar em que se encontra e sujeito às medidas de coação aplicadas, com todas as legais consequências substantivas e adjectivas.


COMO É DE JUSTIÇA»


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Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência, cumprindo agora decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO


A) Âmbito do recurso


Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.


Consistindo as conclusões num resumo do pedido, portanto, numa síntese dos fundamentos do recurso levados ao corpo da motivação, entre aquelas [conclusões] e estes [fundamentos] deve existir congruência.


Deste modo, as questões que integram o corpo da motivação só podem ser conhecidas pelo tribunal ad quem se também se encontrarem sumariadas nas respectivas conclusões. Quando tal não acontece deve entender-se que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso.


Por outro lado, também não deve ser conhecida questão referida nas conclusões, que não tenha sido tratada no corpo da motivação (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 335 e seguintes).


Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, a questão a decidir no presente recurso, sem prejuízo das de conhecimento oficioso é a da inadmissibilidade legal das medidas de coacção impostas no despacho recorrido, em consequência da caducidade da validade do MDE.


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B) Dos factos


Retira-se do despacho recorrido e dos actos processuais documentados no processo electrónico que a matéria de facto provada relevante a considerar, com vista à resolução da questão suscitada no recurso, é a seguinte:


- O MDE em execução nos autos, emitido pelo Tribunal da Comarca de Praga em 22 de Agosto de 2022, com a referência nº ... ....18, visa a entrega do requerido às autoridades judiciárias da República Checa, para efeitos de cumprimento da pena de prisão remanescente de onze anos três meses e vinte e oito dias de prisão, que lhe foi imposta por decisão do referido tribunal de 31 de Janeiro de 2020, com força executiva no dia 17 de Junho de 2021, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pela secção 282/1, 2C do C. Penal da República Checa;


- O requerido foi detido à ordem do referido MDE em 15 de Outubro de 2023, e a detenção foi validade e mantida, por via da aplicação de prisão preventiva, por despacho do Tribunal da Relação do Porto de 18 de Outubro de 2023;


- O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 29 de Novembro de 2023, decidiu ordenar a execução do mandado emitido contra o requerido, com a consequente entrega do mesmo às autoridades judiciárias do Estado de emissão – a República Checa;


- Inconformado com a decisão, recorreu o requerido para este Supremo Tribunal que, por acórdão de 29 de Dezembro de 2023, negou provimento ao recurso, confirmando o acórdão do Tribunal da Relação;


- Novamente inconformado com o decidido, o requerido recorreu do acórdão deste Supremo Tribunal para o Tribunal Constitucional, recurso que não foi admitido, tendo o requerido reclamado do despacho de não admissão do recurso, reclamação esta que se encontra ainda pendente;


- Em 12 de Março de 2024 o Tribunal da Relação do Porto proferiu o despacho recorrido no qual foi decidido, além do mais, ordenar a cessação da detenção do requerido, cumprida em regime de prisão preventiva, com efeitos a partir de 13 de Março de 2024, manter o requerido sujeito a termo de identidade e residência e sujeitá-lo, ex novo, para o decurso dos ulteriores termos do processo, à obrigação de apresentação periódica à autoridade policial, à obrigação de não se ausentar para o estrangeiro, com determinação da apreensão do passaporte e outros documentos pessoais que habilitem a sua deslocação para fora do território nacional, designadamente, o cartão de cidadão.


Inexistem factos não provados.


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C) Do direito


Da inadmissibilidade legal das medidas de coacção impostas no despacho recorrido [em consequência da caducidade da validade do mandado de detenção europeu]


1. O recorrente inicia a argumentação, dizendo que o recurso interposto tem por objecto a articulação entre a execução do MDE, designadamente, a verificação dos seus procedimentos e prazos, com as suas garantias de defesa, que não podem ser postergadas, mesmo não sendo as medidas de coacção aplicadas, privativas da liberdade, mas apenas limitativas do seu ius ambulandi, para introdutoriamente concluir que a exaurição do prazo de 150 dias previsto no nº 3 do art. 30º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto tem subjacente a questão prévia da continuação da regularidade do procedimento do MDE, por se encontra este num vazio legal, em manifesta situação de caducidade – conclusões A, B, C e D.


Depois, o recorrente debruça-se sobre o processo de execução do MDE previsto na lei referida, nele distinguindo uma fase declarativa – que subdivide em fase preliminar [arts. 16º a 20º] e fase controvertida [arts. 22º a 25º] – e uma fase executiva, que engloba os actos posteriores à decisão positiva definitiva sobre a execução/entrega – conclusões E, F, G e H.


Seguidamente, após afirmar a necessidade de adequação do procedimento do MDE às imposições da Constituição da República Portuguesa e dos instrumentos jurídicos internacionais, e de afirmar que a Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, não obstante a flexibilidade procedimental que prevê, assegura o controlo dos prazos nela fixados, como barreira intransponível à regularidade do MDE, em respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos reclamados –conclusões I e J – o recorrente passa à definição da pedra angular da sua posição, dizendo que ao prazo de 150 dias da fase de decisão da execução, a seguir ao trânsito da respectiva decisão acrescem os 10 dias para a entrega do cidadão reclamado ao Estado da emissão, devendo esta ser executada, impreterivelmente, dentro desse prazo de 10 dias, previsto no art. 29º da lei referida pelo que, tendo por base o despacho recorrido, encontrando-se o recorrente sem medida de coacção detentiva mas sujeito a medidas de coacção, tendo os prazos de detenção sido exauridos e não existindo até à data decisão transitada em julgado sobre a execução do MDE, o procedimento deste, a ser mantido, é irregular e as medidas de coacção a que está sujeito são ilegais, porque o MDE caducou pois que, tendo a decisão da Relação ocorrido no prazo previsto no nº 1 do art. 30º da mesma lei, e tendo a decisão do Supremo Tribunal de Justiça ocorrido no prazo previsto no nº 2 do mesmo artigo, a decisão do Tribunal Constitucional, porque não proferida até hoje, não poderá respeita o prazo previsto no nº 3 também do mesmo artigo, razão pela qual, foi restituído à liberdade, e pressupondo o termo da fase de execução do procedimento, ainda em curso, obrigatoriamente, a prolação de uma decisão transitada em julgado no prazo de 150 dias a contar da detenção, as medidas de coacção aplicadas não são razoáveis e impõem-lhe uma situação ilegal – conclusões K, L, M, N, O, P, Q e R.


O recorrente reforça a argumentação, alegando – conclusões S, T, U, V, W e X – que não estando o procedimento do presente MDE na fase de entrega, levando em conta os prazos máximos de detenção das duas fases (executiva e de entrega) que é de 160 dias, faltando dois dias para ser atingido sem que haja decisão transitada e, menos ainda, o início da fase de entrega, e pressupondo esta a detenção da pessoa a entregar, não estando o recorrente detido e não o podendo vir a estar no presente procedimento, é impossível a sua entrega, sendo certo que se mostra igualmente esgotado o prazo de 60 dias após a detenção para a prolação da decisão definitiva de entrega, previsto no nº 2 do art. 26º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, estando o MDE caducado e não podendo, por isso, justificar novas medidas de coacção, violando o despacho recorrido os arts. 26º, 29º e 30º desta lei, bem como os arts. 17º e 23º da Decisão Quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho e os arts. 3º, 5º, nº 1, f) e 6º, nº 3, a) e e) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e sendo inconstitucional a interpretação normativa dos arts. 29º, nº 2 e 30º, nº 3 daquela lei, no sentido de que a somas dos prazos neles previstos, de 160 dias, não implica a caducidade do procedimento de MDE, por violação do disposto nos arts. 27º, nº 1 e 32º, nº 1 da Lei Fundamental, bem como, por violação do art. 2º do Protocolo nº 4 Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.


E conclui que devendo o prazo de 160 dias, resultante da conjugação das duas fases, constituir o limite intransponível para a subsistência regular do procedimento de MDE, a situação de não detenção em que se encontra torna o procedimento inútil e processualmente extinto, por caducidade, devendo ser esta reconhecida, com a consequente extinção das medidas de coacção aplicadas e determinação do arquivamento dos autos, por inutilidade superveniente – conclusões Y e Z.


Sintetizados os argumentos do recorrente, vejamos se lhe assiste razão.


2. É sabido que a Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13.06.2002, que criou a Ordem de Detenção Europeia, veio substituir o sistema clássico do complexo e lento processo de extradição, por um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, fundado em procedimentos expeditos e com prazos reduzidos, mas sempre com salvaguarda dos direitos constitucionais de defesa.


Em execução da decisão-quadro, o legislador português, através da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, aprovou o regime jurídico do mandado de detenção europeu, definindo-o, no nº 1 do seu art. 1º, como, uma decisão judiciária emitida por em Estado membro com vista à detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade, estabelecendo o nº 2 do mesmo artigo que, o mandado de detenção europeu é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente lei e na Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho.


O MDE é, assim, uma decisão judiciária emitida por um Estado membro – Estado de emissão – visando a detenção e entrega por outro Estado membro – Estado de execução – de pessoa procurada, seja para efeitos de procedimento criminal, seja para efeitos de cumprimento de pena ou de medida de segurança privativas da liberdade, que se executa com base no princípio do reconhecimento mútuo e sem controlo da dupla incriminação do facto, nos casos previstos no nº 2 do art. 2º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, e com controlo da dupla incriminação, nos casos subsumíveis à previsão do nº 3 do mesmo artigo.


Trata-se de um regime simplificado de entrega, entre autoridades judiciárias de diversos Estados membros, de pessoas condenadas ou suspeitas, para efeitos de execução de sentenças que apliquem pena de prisão ou medida de segurança de duração não inferior a quatro meses, ou de procedimento criminal por factos puníveis, pela lei do Estado de emissão, com pena ou medida de segurança privativas da liberdade de duração máxima não inferior a doze meses.


Sendo o MDE executado com base no princípio do reconhecimento mútuo, certo é que a lei não define o seu conteúdo e a sua extensão, os quais devem ser densificados com recurso ao direito da UE e à jurisprudência do TJUE relativa à interpretação das respectivas disposições.


O núcleo do princípio do reconhecimento mútuo consiste em a decisão definitiva da autoridade judiciária competente e em conformidade com o direito do respectivo Estado membro, dever ter efeito directo e pleno em todo o território da União Europeia, o que significa que as autoridades competentes do Estado membro onde a decisão pode ser executada, devem prestar a sua colaboração à respectiva execução, como se fosse decisão tomada por autoridade competente deste mesmo Estado (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Julho de 2023, processo nº 107/23.6YRGMR.S1, in www.dgsi.pt). Como se pode ler neste aresto, a autoridade judiciária do Estado de execução está obrigada a executar o MDE que, emitido em conformidade com o formulário anexo, observe os requisitos legais, ficando reservado àquela autoridade o controlo da execução e de emissão da decisão de entrega, que só pode ser recusada nos casos de não execução obrigatória e não execução facultativa (arts. 11º, 12º e 12º-A da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto) ou na falta de prestação de garantias que possam ser exigidas (art. 13º da mesma lei), conforme, decisões do TJUE, entre outras, proferidas no acórdão de 11 de Março de 2020, processo C-314/18 e no acórdão de 26 de Outubro de 2021, processos apensos C-428/21 PPU e C-429/21 PPU.


Em suma, o MDE é um instrumento destinado a reforçar a cooperação entre as autoridades judiciárias dos Estados-membros da União Europeia, entre os quais se contam a República Checa e a República Portuguesa.


3. Revertendo para a situação de facto temos, em síntese, que:


- O recorrente foi detido no dia 15 de Outubro de 2023, à ordem do MDE em execução nestes autos, para ser entregue à República Checa, para cumprimento de uma pena remanescente de onze anos três meses e vinte e oito dias de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes;


- Por acórdão de 29 de Novembro de 2023, o Tribunal da Relação do Porto ordenou a execução do MDE e consequente entrega do recorrente às autoridades judiciárias da República Checa;


- O recorrente recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 29 de Dezembro de 2023, negou provimento ao recurso, confirmando o acórdão da Relação;


- O recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, que não foi admitido pelo Supremo Tribunal de Justiça;


- O recorrente reclamou para o Tribunal Constitucional, do despacho de não admissão do recurso, reclamação que se encontra pendente;


- Por despacho de 12 de Março de 2024, o Tribunal da Relação do Porto determinou a cessação da detenção do recorrente, cumprida em prisão preventiva, com efeitos a partir do dia seguinte, portanto, de 13 de Março, manteve a sua sujeição a termo de identidade e residência e sujeitou-o, ex novo, à obrigação de apresentação periódica à autoridade policial e à obrigação de não se ausentar para o estrangeiro, com apreensão de passaporte e outros documentos pessoais habilitantes da sua deslocação para fora do território nacional.


Já sabemos que o MDE se traduz numa decisão judiciária emitida por um Estado membro com vista à detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade (art. 1º, nº 1 da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto).


Detenção e entrega são, pois, os únicos objectivos deste instrumento legal, visando a primeira a efectivação da segunda. Mas porque implicam restrições a direitos fundamentais, designadamente, ao direito à liberdade, o regime jurídico contempla diversas normas de salvaguarda dos mesmos.


Assim, detida a pessoa procurada e apresentada ao juiz relator, determina o nº 3 do art. 18º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, que este procede à audição do detido, no prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, e decide sobre a validade e manutenção desta, podendo aplicar-lhe medida de coacção prevista no Código de Processo Penal.


Esta norma é completada pelo art. 30º da mesma lei que, sob a epígrafe «Prazos de duração máxima da detenção», dispõe:


1 – A detenção da pessoa procurada cessa quando, desde o seu início, tiverem decorrido 60 dias sem que seja proferida pelo tribunal da relação decisão sobre a execução do mandado de detenção europeu, podendo ser substituída por medida de coacção prevista no Código de Processo Penal.


2 – O prazo previsto no número anterior é elevado para 90 dias se for interposto recurso da decisão sobre a execução do mandado de detenção europeu proferida pelo tribunal da relação.


3 – Os prazos previstos nos números anteriores são elevados para 150 dias se for interposto recurso para o Tribunal Constitucional.


4 – A detenção da pessoa procurada cessa ainda quando tiverem decorrido os prazos referidos nos nºs 2, 3 e 5 do artigo anterior.


Cumpre notar que a detenção ordenada no âmbito da execução de um MDE não significa, em bom rigor, a sujeição do detido à medida de coacção de prisão preventiva. Trata-se, antes, de uma medida específica visando apenas assegurar a entrega da pessoa procurada ao Estado da emissão, fundada no risco de fuga desta, razão pela qual, em regra, deve a detenção manter-se até à entrega, sem prejuízo de poder ser modificada, como expressamente previsto no nº 3 do art. 18º da lei referida, quando se revele desnecessária a sua efectivação (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Novembro de 2012, processo nº 211/12.6YRCBR.S1, in www.dgsi.pt).


Por outro lado, resulta evidente das normas dos arts. 18º, nº 3 e 30º, em referência, a preocupação da lei em não permitir limitações desproporcionadas ao direito à liberdade, prevendo a possibilidade de substituição da detenção por medidas de coacção previstas no C. Processo Penal, e estabelecendo prazos peremptórios relativamente curtos para a duração da detenção.


O que a Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto estabelece no seu art. 30º, são os prazos máximos de duração da detenção, em função de determinadas etapas do procedimento do MDE: 60 dias até à prolação do acórdão da relação sobre a execução do mandado; 90 dias, no caso de ser interposto recurso da decisão da relação e; 150 dias, no caso de ser interposto recurso para o Tribunal Constitucional. Portanto, estes são os prazos que a detenção não pode exceder até à decisão sobre a execução do MDE em cada uma das instâncias.


In casu, a detenção do recorrente iniciou-se a 15 de Outubro de 2023 e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto que ordenou a execução do MDE foi proferido a 29 de Novembro de 2023 portanto, quarenta e cinco dias após o início da detenção, tendo, pois, sido observado o prazo previsto no nº 1 do art. 30º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto.


Por sua vez, o recurso interposto do acórdão da Relação foi decidido por acórdão deste Supremo Tribunal de 29 de Dezembro de 2023 portanto, setenta e cinco dias após o início da detenção, tendo, pois, sido observado o prazo previsto no nº 1 do art. 30º referido.


Tendo sido interposto recurso para o Tribunal Constitucional, que não foi admitido, e estando pendente, neste tribunal, a reclamação apresentada pelo recorrente, o prazo de 150 dias, contado desde o início da detenção, esgotou-se a 13 de Março de 2024, razão pela qual foi determinada a cessação da detenção neste dia, pelo despacho recorrido.


Perante isto, pretende o recorrente que não estando o procedimento do MDE na fase de entrega, tendo em conta que o somatório do prazo máximo da fase executiva – 150 dias – e do prazo máximo da fase de entrega – 10 dias – é de 160 dias, e que estes já se mostram decorridos sem que haja decisão de entrega com trânsito em julgado, acrescendo que nem sequer está iniciada a fase de entrega quando ela pressupõe a detenção da pessoa a entregar, quando [o recorrente] não está detido e já não o pode vir a ser no presente procedimento, está impossibilitada a sua entrega às autoridades judiciárias da República Checa, sendo igualmente certo que se mostra excedido o prazo de 60 dias, após a detenção, para a prolação de decisão definitiva de entrega, previsto no nº 2 do art. 26º da lei em referência, tudo isto determinando a caducidade do MDE e a ilegalidade da aplicação das novas medidas de coacção fixadas no despacho em crise.


Sucede que não assiste razão ao recorrente, pelos motivos que passamos a expor.


a. O recorrente confunde três prazos com distinta natureza, que são os prazos previstos nos arts. 26º, 29º e 30º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, chegando a adicionar dois deles, para suportar a construção jurídica feita que, com ressalva do devido respeito, não nos parece correcta.


Começando, simplificadamente, por dividir o procedimento de MDE previsto na Secção II – Processo de Execução, da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, no que designaremos, sem especiais preocupações de rigor jurídico, por fase executiva, abrangendo os arts. 15º a 28º e 30º, e por fase de entrega, abrangendo os arts. 29º e 31º, verificamos que o facto processual que as distingue é o trânsito em julgado da decisão de execução do mandado (nº 2 do art. 29º), ou seja, só com o trânsito em julgado da decisão sobre a execução do MDE é que se abre a fase de entrega (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Setembro de 2008, processo nº 08P2911, in www.dgsi.pt).


Assim, torna-se evidente que os prazos previstos nos arts. 26º e 30º respeitam à fase executiva e os prazos previstos no art. 29º respeitam à fase de entrega.


b. Na decorrência das fases definidas, porque no procedimento dos autos ainda não foi proferida decisão de execução do mandado com trânsito em julgado, ainda o mesmo se encontra na fase de execução, razão pela qual, esgotado que foi o prazo de 150 dias, previsto no nº 3 do art. 30º da lei em referência, viu o recorrente cessada a sua detenção. Com efeito, o prazo em causa, é o prazo de duração máxima da detenção sem que se verifique aquele trânsito.


Deste modo, sendo o trânsito da decisão de execução do mandado o marco que separa a fase de execução da fase de entrega, quer o decurso do prazo ocorra antes do trânsito, quer este [trânsito] ocorra antes daquele [decurso], tais incidências não terão qualquer repercussão na fase seguinte, na fase de entrega.


É que, com a fase de entrega inicia-se um novo prazo, o prazo máximo de 10 dias para a entrega da pessoa procurada, a contar da decisão definitiva da execução do MDE (nº 2 do art. 29º da lei em referência). No caso de não ser possível a entrega no prazo de 10 dias, por facto de força maior ocorrido num dos Estados membros, o tribunal [da República Portuguesa] e a autoridade do estado de emissão devem de imediato estabelecer contactos, a fim de ser acordada uma nova data para a entrega, que deverá ter lugar no prazo de 10 dias a contar da nova data acordada (nº 3 do mesmo art. 29º). Por fim, no caso especial de ter sido temporariamente suspensa a entrega, o tribunal informa imediatamente a autoridade judiciária de emissão da cessação da suspensão e ambos devem acordar numa nova data para a entrega, que deverá ter lugar no prazo de 10 dias a contar da nova data acordada (nºs 4 e 5 do mesmo art. 29º).


Sendo os prazos previstos no art. 29º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto fixados para a fase de entrega, porque a entrega, em regra, pode não contar com a colaboração da pessoa procurada, impondo a sua detenção, como único meio de possibilitar à República Portuguesa, enquanto Estado de execução, o cumprimento da obrigação assumida para com a República Checa, enquanto Estado de emissão, entendemos que, independentemente de no decurso da fase de execução se ter esgotado o prazo máximo de detenção a esta fase aplicável, é legalmente admissível nova detenção do recorrente, tendo por limite os prazos fixados nos nºs 2 e 3 do referido art. 29º, a fim de ser efectivada a sua entrega.


Conforme já dito, porque se integram em fases diferentes do procedimento de MDE, há que distinguir entre o prazo máximo de duração da detenção do art. 30º e o prazo para a entrega da pessoa procurada, detida ou em liberdade, previsto no art. 29º da lei em referência, embora este acresça ao primeiro (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Setembro de 2008, supra referido).


Assim, carece de fundamento legal o entendimento do recorrente segundo o qual, porque se esgotou o prazo máximo de detenção previsto no art. 30º, nº 3 da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, sem que tenha sido proferida decisão com trânsito em julgado sobre a execução do MDE, ocorreu a caducidade do respectivo procedimento, por já não poder voltar a ser detido, o que impossibilita a efectivação da sua entrega à República Checa.


Na verdade, a única consequência do decurso daquele prazo é a prevista no nº 4 do mesmo artigo, a cessação da sua detenção, e que efectivamente foi determinada pelo despacho recorrido.


Note-se, aliás, que a lei em referência não prevê casos de caducidade do procedimento de MDE.


No mais, cabe aguardar o trânsito da decisão sobre a execução do MDE. E porque a República Portuguesa, conforme já dito, está obrigada a executá-lo, bem andou o despacho recorrido ao, nos termos do disposto no art. 30º, nº 1 da lei em referência, e prevenindo o manifesto perigo de fuga por parte do recorrente, evidenciado nos autos, fixar-lhe novas medidas de coacção, não detentivas, previstas no C. Processo Penal.


c. Por último, e no que à invocação do prazo de 60 dias previsto no nº 2 do art. 26º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto respeita, como igualmente conduzindo à caducidade do procedimento de MDE, embora tal prazo seja, conforme dito, aplicável à fase executiva, ele tem um campo de aplicação distinto dos prazos previstos no art. 30º da mesma lei.


Os prazos previstos no art. 26º respeitam à decisão sobre a execução do MDE, e como claramente resulta dos seus nºs 3 e 5, não são prazos peremptórios, mas meramente ordenadores, e por isso, não determinam a caducidade do procedimento, quando ultrapassados, antes visam compatibilizar a celeridade que lhe é inerente com a necessária garantia dos direitos fundamentais (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Abril de 2018, processo nº 843/17.6YRLSB.S1 e de 6 de Junho de 2007, processo nº 07P2182, ambos in www.dgsi.pt).


Aliás, assim não se entendendo, sendo a interposição de recurso uma das razões para que a decisão sobre a execução do MDE não possa ser executado no prazo previsto no nº 2 do art. 26º, e havendo lugar, por isso, à sua prorrogação por mais 30 dias, daqui decorrendo um prazo total de 90 dias, sempre resultaria incongruente que a lei preveja no nº 4 do art. 30º, que a detenção da pessoa procurada se possa manter por 150 dias.


Não sendo, pois, peremptório o prazo em causa, a sua ultrapassagem não constitui fundamento legal para a caducidade do procedimento de MDE, caducidade que a lei em referência, conforme já dito, não prevê.


d. Afirma o recorrente que o despacho recorrido, para além de violar o disposto nos arts. 26º, 29º e 30º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, viola igualmente os arts. 17º e 23º da Decisão Quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho e os arts. 3º, 5º, nº 1, f) e 6º, nº 3, a) e e) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.


O art. 17º da DQ 2002/584/JAI do Conselho, de 23 de Agosto, com o título «Prazos e regras relativos à decisão de execução do mandado de detenção europeu», tem a seguinte redacção:


1. Um mandado de detenção europeu deve ser tratado e executado com urgência.


2. Nos casos em que a pessoa procurada consinta na sua entrega, a decisão definitiva sobre a execução do mandado de detenção europeu deve ser tomada no prazo de 10 dias a contar da data do consentimento.


3. Nos outros casos, a decisão definitiva sobre a execução do mandado de detenção europeu deve ser tomada no prazo de 60 dias após a detenção da pessoa procurada.


4. Em casos específicos, quando o mandado de detenção europeu não possa ser executado dentro dos prazos previstos nos nºs 2 ou 3, a autoridade judiciária de execução informa imediatamente a autoridade judiciária de emissão do facto e das respectivas razões. Neste caso, os prazos podem ser prorrogados por mais 30 dias.


5. Enquanto não for tomada uma decisão definitiva sobre a execução do mandado de detenção europeu pela autoridade judiciária de execução, o Estado-Membro de execução deve zelar por que continuem a estar reunidas as condições materiais necessárias para uma entrega efectiva da pessoa.


6. Qualquer recusa de execução de um mandado de detenção europeu deve ser fundamentada.


7. Sempre que, em circunstâncias excepcionais, um Estado-Membro não possa observar os prazos fixados no presente artigo, deve informar a Eurojust do facto e das razões do atraso. Além disso, um Estado-Membro que tenha sofrido, por parte de outro Estado-Membro, atrasos repetidos na execução de mandados de detenção europeus, deve informar o Conselho do facto, com vista à avaliação, a nível dos Estados-Membros, da aplicação da presente decisão-quadro.


Como se vê, os nºs 2, 3, 4, 5 e 7 deste artigo têm integral correspondência com os nºs 1 a 5 do art. 26º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto [o nº 6 do art. 17º, relativo à recusa de execução, não estando contemplado no art. 26º da lei em referência é, para a questão de que cuidamos, irrelevante].


Por seu turno, o art. 23º da DQ, com o título «Prazo para a entrega da pessoa», tem a seguinte redacção:


1. A pessoa procurada deve ser entregue o mais rapidamente possível, numa data acordada entre as autoridades interessadas.


2. A entrega deve efectuar-se no prazo máximo de 10 dias, a contar da decisão definitiva de execução do mandado de detenção europeu.


3. Se a entrega da pessoa procurada no prazo previsto no n.º 2, for impossível em virtude de caso de força maior num dos Estados-Membros, a autoridade judiciária de execução e a autoridade judiciária de emissão estabelecem imediatamente contacto recíproco e acordam uma nova data de entrega. Nesse caso, a entrega deve ser realizada no prazo de 10 dias a contar da nova data acordada.


4. A entrega pode ser temporariamente suspensa por motivos humanitários graves, por exemplo, se existirem motivos válidos para considerar que a entrega colocaria manifestamente em perigo a vida ou a saúde da pessoa procurada. A execução do mandado de detenção europeu deve ser efectuada logo que tais motivos deixarem de existir. A autoridade judiciária de execução informa imediatamente do facto a autoridade judiciária de emissão e acorda com ela uma nova data de entrega. Nesse caso, a entrega deve ser realizada no prazo de 10 dias a contar da nova data acordada.


5. Se, findos os prazos referidos nos n.ºs 2 a 4, a pessoa ainda se encontrar detida, deve ser posta em liberdade.


Como se vê, também aqui existe integral correspondência entre os diversos números do art. 23º e os diversos números do art. 29º da lei em referência [com excepção do nº 5 do art. 23º da DQ, relativo à libertação da pessoa procurada, quando ultrapassados os prazos previstos nos seus nºs 2 e 4, que, algo incompreensivelmente, não consta do art. 29º da lei].


Pois bem.


Não ignoramos que os tribunais portugueses estão obrigados a interpretar o direito nacional em conformidade com o direito da União Europeia e, portanto, com as decisões quadro emanadas dos seus órgãos (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Julho de 2023, processo nº 257/23.9YRLSB-A.S1, in www.dgsi.pt).


Porém, resulta do que se deixou dito em a., b. e c., que antecedem, não se mostrarem violados os arts. 26º, 29º e 30º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, na interpretação feita e que, em nosso entender, se mostra conforme à DQ. Com efeito, não só o procedimento de MDE em causa não se encontra na fase de entrega, estando, por isso, fora do âmbito da previsão do art. 23º da DQ, como os prazos previstos no art. 17º da mesma decisão não são peremptórios, ao que acresce, estar cessada a detenção do recorrente.


Por outro lado, e no que à violação dos arts. 3º, 5º, nº 1, f) e 6º, nº 3, a) e e) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem concerne, porque o recorrente não se encontra já detido, em estrita obediência ao disposto no art. 30º, nº 4 da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, não vemos como possa ter sido violada a mencionada alínea f) do nº 1 do art. 5º da Convenção. Também não vemos como possa ter sido violado o art. 3º da Convenção quando este, pura e simplesmente, proíbe o emprego de tortura e a submissão a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes, quando é evidente que tal não ocorreu, nem ocorre, nos autos. É também deslocada a referência à violação das alíneas a) e e) do nº 3 do art. 6º da Convenção, pois o recorrente em lado algum do recurso interposto refere falta de informação tempestiva, e devidamente traduzida de qualquer acusação contra si deduzida, nem a falta de assistência por intérprete.


Em suma, entendemos não terem sido violadas as normas indicadas.


e. Por último, afirma o recorrente ser inconstitucional a interpretação dos arts. 29º, nº 2 e 30º, nº 3 daquela lei, no sentido de que a soma dos prazos neles previstos, de 160 dias, não implica a caducidade do procedimento de MDE, por violação do disposto nos arts. 27º, nº 1 e 32º, nº 1 da Lei Fundamental e do art. 2º do Protocolo nº 4 Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.


Uma vez que os arts. 29º, nº 2 e 30º, nº 3 da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, manifestamente, e pelas razões sobreditas, não foram interpretados com o sentido que lhe dá o recorrente, sentido que, aliás, nada tem de normativo, posto que não se mostra desligado do caso concreto, não pode considerar-se verificada a invocada inconstitucionalidade.


Refira-se, para concluir, que também não se mostra violado o art. 2º do Protocolo nº 4, pois a situação objecto dos autos, no que à aplicação, ex novo, de medidas de coacção respeita, integra a previsão da excepção contemplada no seu nº 3.


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Em conclusão:


- O Mandado de Detenção Europeu – definido no art. 1º, nº 1 da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto – tem como únicos objectivos a detenção e entrega da pessoa procurada, visando a primeira a efectivação da segunda;


- Esgotado o prazo máximo de detenção da pessoa procurada, previsto no nº 3 do art. 30º da referida lei, sem que tenha sido proferida decisão com trânsito em julgado sobre a execução do Mandado de Detenção Europeu, impõe-se a sua cessação, podendo a pessoa procurada ser sujeita a outras medidas de coacção, não detentivas, a fim de a República Portuguesa poder cumprir a obrigação de entrega;


- O decurso do prazo máximo de detenção da pessoa procurada, previsto no nº 3 do art. 30º da referida lei, sem que tenha sido proferida decisão com trânsito em julgado sobre a execução do Mandado de Detenção Europeu, não determina a caducidade do procedimento.


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Improcedem, pois, as conclusões do recurso.


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III. DECISÃO


Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.


Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UCS. (art. 34º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, art. 513º, nºs 1 e 3, do C. Processo Penal, e art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).


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Providencie a secção, como vem sendo ordenado noutros recursos do mesmo recorrente, pela notificação da tradução do presente acórdão a partir da página 15 – «3. Revertendo para a situação de facto temos, em síntese, que: (…)», até final, ao recorrente, logo que junta aos autos.


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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).


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Lisboa, 18 de Abril de 2024


Vasques Osório (Relator)


Celso Manata (1º Adjunto)


Jorge Gonçalves (2º Adjunto)