DIFERIMENTO DE DESOCUPAÇÃO DE IMÓVEL
DOENÇA
RAZÃO DE URGÊNCIA
Sumário

1 - A lei distingue a suspensão das diligências executórias do incidente de diferimento da desocupação do imóvel.
2 - Apenas a suspensão das diligências executórias prevista no artigo 863.º/3, do CPC tem como fundamento uma situação de doença súbita de alguém que esteja a viver no imóvel arrendado que pode pôr em risco a vida dessa pessoa se se avançar com a imediata desocupação do imóvel. Tal suspensão, quando determinada pelo agente de execução, tem de ser confirmada pelo juiz de execução, sob impulso do executado que tem um prazo de 10 dias para tal desiderato, contado desde a data em que a diligência executória foi suspensa.
3 - O diferimento da desocupação do local arrendado para habitação, previsto no artigo 864.º do CPC, funda-se em “razões sociais imperiosas”, a saber, a carência de meios do arrendatário (artigo 864.º/2/alínea a), do CPC) ou no facto de o arrendatário ser portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60% (artigo 864.º/2/alínea b), do CPC).
4 - O diferimento da desocupação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, o qual deverá ter em conta, para além das exigências da boa-fé, as circunstâncias previstas no corpo do artigo 864.º/2, do CPC.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Apelação n.º 2563/17.2T8SLV-B.E1
(2.ª Secção)
Relatora: Cristina Dá Mesquita
Adjuntos: Canelas Brás
Vítor Sequinho dos Santos

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
(…), co-executada na ação para execução de decisão judicial condenatória que lhe foi movida por (…), interpôs recurso do despacho proferido pelo Juízo de Execução de Silves, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o qual indeferiu o incidente denominado “diferimento da desocupação do imóvel”.

O despacho sob recurso tem o seguinte teor:
«Quanto ao incidente de desocupação do locado pendente:
(…)
Isto posto, do incidente propriamente dito.
Ancora-se a Executada no disposto no artigo 864.º, n.º 2, alínea b), do Código de
Processo Civil.
É esta a norma em causa:
1 - No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.
2 - O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao
beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.
3 - No caso de diferimento decidido com base na alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste.
Como resulta lapidarmente do artigo, este pedido deve ser apresentado dentro do prazo de oposição à execução e não na iminência do cumprimento da ordem de desocupação.
Recorde-se a Executada que a sentença que a mandou despejar o locado foi proferida a 20 de agosto de 2016. 2016, ou seja, há quase 8 anos.
De lá para cá, não só a Executada não cumpriu com a ordem judicial, como empreendeu todos os expedientes à sua mão para não cumprir. Incluindo a dedução de oposição à execução no ano de 2018.
Este Tribunal de Primeira Instância não cauciona este tipo de atuação, nem de litigância que lhe merece sério repúdio.
O incidente é manifestamente improcedente, porque deduzido fora de todos os prazos legais.
Notifique-se, incluindo a Sr.ª Agente de Execução».

I.2.
A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:

«1º- A 26 de Outubro de 2023, no âmbito de uma diligência de despejo, veio a Executada apresentar um atestado médico, onde se atestava que a se efetivar o despejo o mesmo colocaria em risco a vida da Executada.
2º- Na Sequência do atestado médico apresentado à Exma. Senhora Agente de Execução, a fim de obstar à diligência de despejo, veio a Executada, por requerimento datado de 06 de novembro de 2023, apresentou um requerimento para suspender o despejo.
3º- O Douto tribunal considerou o incidente é manifestamente improcedente, porque deduzido fora de todos os prazos legais.
4º- É do presente despacho que se recorre.
5º- A suspensão da execução verifica-se se o executado requerer o diferimento da desocupação do locado arrendado para habitação.
6º- Do requerimento apresentado pela Executada, depreende-se que com a apresentação do atestado médico na diligência de despejo, o qual comprovava que a continuação daquela diligência colocaria em risco a vida da executada, fui a base de sustentação do requerimento apresentado pela executada, apresentado tempestivamente, isto é, no prazo de 10 dias a que alude o artigo 863.º, n.º 4, do C.P.C..
7º- Pese embora a qualificação jurídica empregue no requerimento em causa possa não a ser a que melhor se enquadra ao caso concreto, duvidas não podem persistir que de Direito conhece o Douto Tribunal e que o mesmo dispunha de todos os meios e documentos para atender a que o estado de saúde da executada não é compatível com a diligência de despejo e para que oficiosamente pudesse decidir sobre a suspensão ou não da execução.
8º- Embora a designação do incidente não tivesse sido a mais correta, o que é facto, é que analisado o conteúdo do supra citado requerimento, o mesmo contem todos os elementos necessários, para o fim em vista, qual seja o de suspender a execução.
9º- A Recorrente, acompanhou o seu requerimento dos imprescindíveis relatórios médicos e, bem assim, de um atestado multiuso, onde se encontra plasmado que a mesma é detentora de uma incapacidade de 86 por cento, que é verdadeiramente impressionante.
10º- Aqui chegados, ante esta prova, ocorre questionar, um cidadão que se encontra nas condições acima descritas, deverá despejado da sua residência?
11º- A esse cidadão, neste caso a Recorrente, não lhe assiste o direito a morrer com dignidade?
12º- Revertendo ao processo em título, havendo uma colisão de direitos, qual deverá ser o direito a prevalecer, o direito á propriedade da Exequente ou o direito à vida e a morrer com dignidade da Executada.
13º-Tal como se encontra documentado nos presentes autos, a Recorrente encontra-se na recta final da sua vida, as graves doenças de que é portadora, aliado à sua idade, não são de molde a perspetivar que esta viva muito tempo.
14º- No entanto, se a mesma fosse despejada, como pretende de forma insensível a Exequente, isso constituiria uma verdadeira sentença de morte para a Executada, como decorre da experiência da vida, da qual os tribunais não se devem afastar.
15º- Encontra-se demonstrado que a Recorrente é portadora de uma incapacidade de 26% acima da que é prevista por lei para obstar o despejo, cumprindo dizer que se encontra a 14% de atingir a incapacidade total.
16º- O bem a que o legislador concede maior proteção é a vida e a dignidade da vida humana.
17º- Portugal é um estado de direito, artigo 2.º da CRP, assente na dignidade da pessoa humana.
18º- Retirá-la da habitação face ao quadro clinico que apresenta, equivale a decretar-lhe antecipadamente o atestado de óbito, pois impede-a de terminar a sua vida com a dignidade a que todo o ser humano tem direito, o que colide com os princípios basilares no nosso ordenamento jurídico, assentes na dignidade da pessoa humana, e do direito comunitário, sendo o Estado Português signatário dessas convenções.
19º- A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia reconhece um amplo catálogo de direitos aos cidadãos e residentes na União.
20º- A Carta inclui direitos civis e políticos, direitos económicos, sociais e culturais, onde se inclui fazer cumprir a lei e as garantias consagradas no direito internacional, com o qual o nosso país se comprometeu, onde se inclui a garantia que nenhuma pessoa ficará sujeita à condição de sem-abrigo em resultado de um desalojamento ou despejo.
21º- O que se pretende é proporcionar á Recorrente um final de vida com dignidade e sem riscos de vida antecipados, que era o que sucederia se o despejo se concretizasse, como decorre da experiência da vida.
22º- A Recorrente não dispõe de outro imóvel para habitar nem o seu estado precário de saúde lhe permite efetuar uma mudança de casa sem que com isso agrave ainda mais o seu já precário estado de saúde.
23º- O direito da Recorrente prevalece sobre o direito da Exequente, entendimento que encontra suporte na legislação a que atrás se fez referência, cumprindo destacar que as Convenções que versam os Direitos Humanos, quando confrontados , com situações como a sub judice, decidem invariavelmente a favor da dignidade da pessoa humana em detrimento do direito de propriedade, direito que é atendível, é certo, mas quando confrontado com o direito á vida e dignidade da pessoa humana deverá ceder.
24º- A dignidade do ser humano constitui não só um direito fundamental em si mesmo, mas também a própria base dos direitos fundamentais. Já a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 consagrava a dignidade do ser humano no seu preâmbulo: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.
25º- No seu acórdão de 9 de Outubro de 2001, no processo C-377/98, Países Baixos contra Parlamento Europeu e Conselho, Colect. 2001, pág. I-7079, nos pontos 70 a 77, o Tribunal de Justiça confirmou que o direito fundamental à dignidade da pessoa humana faz parte do direito da União.
26º- Resulta daí, designadamente, que nenhum dos direitos consignados na presente Carta poderá ser utilizado para atentar contra a dignidade de outrem e que a dignidade do ser humano faz parte da essência dos direitos fundamentais nela consignados. Não pode, pois, ser lesada, mesmo nos casos em que um determinado direito seja objecto de restrições.
27º- Por último se dirá que o requerimento e documentos clínicos juntos aos autos não mereceram por parte do tribunal a quo qualquer tipo de pronúncia, uma vez que aquele tribunal indeferiu liminarmente a pretensão da Recorrente
28º- O Douto despacho incorreu em violação do disposto nos artigos 863.º e 864.º do Código do Processo Civil , artigos 2.º e 8.º e seguintes da CRP e artigos 2.º, 6.º, 8.º e 25.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, entre outros, motivo pelo qual a douta decisão ora posta em crise se mostra, assim inquinada, devendo, pois, ser revogada nos termos supra requeridos
Termos em que, sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, deverá ser concedido integral provimento ao recurso interposto e revogado o douto despacho, nos termos supra expendidos, assim se fazendo, tão-somente, a habitual e sã JUSTIÇA!».

I.3.
Não houve resposta às alegações de recurso.
O recurso interposto pela executada foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
A questão a decidir consiste em saber se o tribunal a quo incorreu em erro ao julgar que o requerimento apresentado pela executada e que foi objeto do despacho recorrido é extemporâneo.
II.3.
FACTOS
Para além da factualidade que emana da decisão recorrida, resultam dos autos os seguintes factos:
1 – Com data de 26/10/2023 foi lavrado auto de diligência pela sra. agente de execução, (…), com o seguinte teor:
«Pelas 15 horas do dia 26/10/2023, compareci na Rua (…), n.º 60, 1.º, direito, em Portimão, a fim de proceder à diligência de tomada de posse do imóvel objeto da presente execução. No local encontrava-se o sr. dr. (…) e dr. (…), que apresentaram cópia de atestado médico emitido em 23/10/23, prescrito pelo sr. dr. (…) e informaram que a executada (…) se encontra acamada, digo, passa grande parte do dia na cama, levantando-se por algumas horas. Chegada à fala com a executada esta referiu que “tem muitas dores no corpo”.
Perante a existência do referido atestado médico o agente de execução suspende a presente diligência, nos termos do artigo 863.º, n.º 3, do CPC.
Nada mais a (…)».
2 – Anexo ao referido auto de diligência encontra-se um atestado médico no qual se mostra aposta a assinatura do dr. (…).
3 – Mediante requerimento datado de 6/11/2023 e denominado Incidente de Desocupação do Locado, a executada veio a executada requerer o deferimento da desocupação do imóvel pelo prazo de 5 meses.
4 – Em anexo ao requerimento referido em 3) juntou o atestado médico emitido pelo dr. (…), datado de 23/10/2023, e um atestado médico de incapacidade multiuso relativo à executada/apelante.

II.4.
Apreciação do objeto do recurso
No presente recurso está em causa uma decisão do tribunal recorrido que indeferiu o requerimento da executada, que esta denominou de “incidente de diferimento de desocupação de imóvel”, com fundamento na extemporaneidade do mesmo.
A recorrente não põe em causa que se mostra decorrido o prazo legal para apresentação de um pedido de diferimento da desocupação do local arrendado, que é o prazo concedido para a dedução de oposição à execução, como decorre do disposto no artigo 864.º/1, do Código de Processo Civil. O que ela parece vir alegar é que com o requerimento que foi objeto da decisão recorrida pretendeu solicitar ao juiz a confirmação da suspensão de diligências executórias que se mostra prevista no artigo 863.º/4, do Código de Processo Civil, pois diz que respeitou o prazo de 10 dias ali previsto, e que o tribunal dispunha de todos os elementos que lhe permitiriam decidir da suspensão da execução.
Vejamos.
Não é controverso que estamos perante uma execução que tem por objeto a entrega de um imóvel arrendado à executada para a sua habitação.
De acordo com o disposto no artigo 862.º do CPC à execução para entrega de coisa imóvel arrendada são aplicáveis as disposições previstas nos artigos 859.º a 861.º com as alterações constantes dos artigos 863.º a 866.º.
Nos termos do disposto no artigo 863.º do Código de Processo Civil a execução que tem por objeto a entrega de imóvel arrendado ao executado suspende-se:
1) quando o executado requerer o diferimento da desocupação do local arrendado para habitação, motivada pela cessação do respetivo contrato, nos termos do disposto no artigo 864.º do CPC – artigo 863.º/1; ou
2) quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda – artigo 863.º/3 [1] [2].
No caso previsto no artigo 863.º/3 do CPC – isto é, quando se mostre por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local por razões de doença aguda – o agente de execução lavra certidão da ocorrência, junta os documentos exibidos e adverte o detentor, ou a pessoa que se encontra no local, de que a execução prosseguirá salvo se, no prazo de 10 dias, solicitarem ao juiz a confirmação da suspensão, juntando ao requerimento os documentos disponíveis, dando do facto imediato conhecimento ao exequente ou ao seu apresentante. E o executado – ainda que não seja a pessoa cuja saúde justifica a suspensão das diligências executórias – tem o ónus de requerer ao juiz de execução a confirmação da suspensão dessas diligências, no prazo de 10 dias (artigo 864.º/4, do CPC). Seguidamente, no prazo de cinco dias, o juiz da execução, ouvido o exequente, decide manter a execução suspensa ou ordena o levantamento da suspensão e a imediata prossecução dos autos (artigo 863.º/5, do CPC). Diferentemente, o diferimento da desocupação do local arrendado para habitação, previsto no artigo 864.º do CPC, funda-se em “razões sociais imperiosas[3], a saber, a carência de meios do arrendatário (artigo 864.º/2/alínea a), do CPC) ou no facto de o arrendatário ser portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60% (artigo 864.º/2/alínea b), do CPC).

A petição de diferimento da desocupação, se não for indeferida liminarmente ao abrigo do disposto no artigo 865.º/1, do CPC, é notificada ao exequente, que a pode contestar no prazo de 10 dias, após o que o juiz decide no prazo de 20 dias a contar da sua apresentação (artigo 865.º/2, do CPC).
O diferimento da desocupação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, o qual deverá ter em conta, para além das exigências da boa-fé, as circunstâncias previstas no corpo do artigo 864.º/2, do CPC.
Regressando ao caso concreto, vem a recorrente defender que «embora a designação do incidente não tivesse sido a mais correta, o que é facto, é que analisado o conteúdo do supra citado requerimento, o mesmo contem todos os elementos necessários, para o fim em vista, qual seja o de suspender a execução» e que «a Recorrente acompanhou o seu requerimento dos imprescindíveis relatórios médicos e, bem assim, de um atestado multiuso, onde se encontra plasmado que a mesma é detentora de uma incapacidade de 86 por cento».
O julgador está vinculado ao princípio do pedido, isto é, a decisão proferida deve corresponder ao pedido formulado pelo autor, sob pena de nulidade da mesma (artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC). Com efeito, é o autor, enquanto titular do interesse feito valer em juízo, quem melhor saberá o que pretende obter do recurso à via judicial, e é no pedido que expressa tal pretensão. Como se refere no sumário do Acórdão do STJ de 19-01-2017, processo n.º 873/10.9T2AVR.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt, «a decisão judicial, enquanto prestação do dever de julgar, deve conter-se dentro do perímetro objetivo e subjetivo da pretensão deduzida pelo autor, em função do qual se afere também o exercício do contraditório por parte do réu, não sendo lícito ao tribunal desviar-se desse âmbito ou desvirtuá-lo».
Ora, como vimos, a lei distingue a suspensão das diligências executórias do incidente de diferimento da desocupação do imóvel, sendo que apenas o primeiro tem como fundamento uma situação de doença súbita de alguém que esteja a viver no imóvel arrendado que pode pôr em risco a vida dessa pessoa se se avançar com a imediata desocupação do imóvel. Aquela, quando determinada pelo agente de execução, tem de ser confirmada pelo juiz de execução, sob impulso do executado que tem um prazo de 10 dias para tal desiderato, contado desde a data em que a diligência executória foi suspensa.
No caso em apreço:
(i) o pedido da apelante formulado no requerimento que foi objeto de decisão no despacho sob recurso consistiu expressamente no deferimento da desocupação do imóvel pelo prazo de cinco meses, que é, justamente, o tempo que corresponde ao prazo máximo consentido pelo incidente de diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação, como resulta do disposto no artigo 865.º/4, do Código de Processo Civil.
(ii) naquele seu requerimento a executada não só denomina o incidente como “diferimento da desocupação do imóvel” como invoca expressamente o regime legal correspondente, invocando que tem uma incapacidade comprovada de 86% «acima da que é prevista por lei para obstar ao despejo» (sic); e
(iii) pese embora o requerimento da executada haja sido efetivamente precedido de uma suspensão das diligências de apreensão do imóvel arrendado e da sua entrega à exequente em virtude da invocação de razões de saúde da executada e da exibição de um atestado médico no ato, a verdade é que no requerimento que originou o despacho recorrido não há qualquer alusão àquele concreto incidente ou é feito um pedido de confirmação da suspensão que foi determinada pela sra. agente de execução. E bem se compreende tal omissão na medida em que do atestado médico que foi exibido à sra. agente de execução não consta o prazo durante o qual se devia suspender a diligência ou a referência a uma doença “súbita” que pudesse pôr em risco a vida da ocupante do imóvel em caso de desocupação imediata, o que significa que não estão preenchidos os requisitos para a suspensão da apreensão do imóvel e da subsequente entrega do mesmo à exequente. Refira-se, ainda, que do próprio requerimento não há qualquer alusão a uma doença imprevista que pudesse motivar e levar à confirmação da suspensão da execução prevista no artigo 863.º/3, do CPC pois o que ali é referido é que a executada é portadora de uma «doença do foro oncológico e que o seu estado de saúde é frágil».
Ou seja, de uma interpretação do referido requerimento à luz das regras previstas nos artigos 236.º e ss. do Código Civil não se pode senão concluir que aquilo que a executada peticionou foi o diferimento da desocupação do imóvel.
Em face de todo o exposto, e em face da extemporaneidade do incidente de diferimento da desocupação, não merece censura o despacho recorrido, o qual se deverá, pois, manter.


Sumário: (…)

III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.
As custas na presente instância de recurso são da responsabilidade da recorrente sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.
Notifique.
DN.
Évora, 23 de abril de 2024
Cristina Dá Mesquita (Relatora)
Mário João Canelas Brás (1.º Adjunto)
Vítor Sequinho dos Santos (2.º Adjunto)

__________________________________________________
[1] A pessoa em causa pode ser quer o executado quer qualquer pessoa que resida em economia comum com o executado.
[2] “Doença aguda” significa doença súbita, inesperada, por contraposição a doença crónica que é uma doença que que não põe em risco a vida da pessoa num prazo curto, logo não é uma emergência médica.
[3] Dispõe o artigo 864.º do CPC, epigrafado Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação, que:
«1 – No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.
2 – O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.
3 – (…)».