LEGITIMIDADE PROCESSUAL
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
Sumário

I – Ao apuramento da legitimidade processual – pressuposto processual que se reporta à relação de interesse das partes com o objeto da ação e que, a verificar-se, conduz à absolvição da instância – releva, apenas, a consideração do concreto pedido e da respetiva causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última e do mérito da causa. A legitimidade processual afere-se pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor, na petição inicial, e é nestes termos que tem de ser apreciada.
II – A legitimidade substancial ou substantiva respeita à efetividade da relação material. Prende-se com o concreto pedido e a causa de pedir que o fundamenta e, por isso, com o mérito da causa, sendo requisito da procedência do pedido. A verificação da ilegitimidade substantiva leva à absolvição do pedido.
III – Configurada nos termos como a autora a configura – factos que integram a causa de pedir e o pedido –, dúvidas não temos de que o réu pessoa singular é parte legítima processualmente, porquanto o seu interesse em contradizer e o prejuízo que lhe possa advir com a procedência da ação se exprime inequivocamente por esta procedência e pela sua condenação no montante peticionado.
IV – Saber se o direito invocado existe é, já o afirmamos, questão que está relacionada com o mérito do pedido, da ação; ou seja, saber se foi celebrada uma assunção de dívida (da ré sociedade) por parte do réu pessoa singular prende-se com o mérito da ação e não com a legitimidade processual.
Há, pois, que apurar se a autora e os réus tiveram conhecimento do negócio de confissão de dívida e acordo para pagamento, compreenderam o seu conteúdo e, de livre e consciente vontade, outorgaram o mesmo.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

RECURSO N.º 41251/22.0YIPRT.E1

Tribunal recorrido: Juízo Local Cível de Ourém
Apelante: (…) – Unipessoal, Lda.
Apelado: (…)

Sumário (elaborado pela relatora – artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil): (…)

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Acordam os Juízes que integram a 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – RELATÓRIO
1.1. (…) – Unipessoal, Lda. veio propor a presente ação declarativa sob a forma comum contra (…), Construções, Lda. e (…), pedindo a condenação destes no pagamento da quantia de € 6.273,82, acrescida de juros vencidos e vincendos até integral pagamento.
Alega para o efeito que:
- No âmbito das respetivas atividades desempenhadas, estabeleceu com a ré sociedade uma relação comercial e contratual, tendo-lhe fornecido, após requisição, bens e serviços diversos, pelo valor total de € 2.401,00;
- Uma vez que os réus apenas pagaram parcialmente a quantia em dívida e não tinham capacidade de liquidar o montante devido numa só vez, celebraram com a autora uma “Confissão de Dívida e Acordo de Pagamento”, na data de 15 de outubro de 2020, nos termos do qual a ré sociedade se confessou em dívida dos valores que não pagou;
- A ré sociedade faltou, desde logo ao pagamento da primeira prestação, assim se vencendo as prestações subsequentes.
- Além disso, a ré sociedade ficou obrigada a pagar os valores previstos nesse acordo para a situação de incumprimento do mesmo, designadamente o valor do preço do fornecimento das mercadorias pela autora, ainda em dívida, uma indemnização prevista como cláusula penal, e os juros de mora.
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1.2. Citados os réus, apenas o réu (…) contestou, arguindo a sua ilegitimidade passiva para ser demandado na presente ação, assim como arguiu a exceção de abuso de direito.
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1.3. Foi realizada audiência prévia, no âmbito da qual foi facultada às partes a discussão de facto e de direito da causa, nos termos do artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, dado que o tribunal pretendia conhecer imediatamente, em sede de saneador-sentença, do mérito da causa, sem que qualquer das mesmas tivesse vindo alegar mais nenhum argumento, para além do que constava já dos articulados.
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1.5. Proferiu-se despacho saneador no qual se julgou procedente a exceção de ilegitimidade passiva arguida pelo réu (…) e se absolveu o mesmo da instância.
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1.4. É desta decisão que, inconformada, dela apela a autora, extraindo da motivação do recurso as seguintes conclusões (transcrição):
1. O presente recurso visa discutir a matéria de direito proferida pelo Tribunal a quo, referente à procedência da exceção dilatória de ilegitimidade passiva do Réu (…), visando a reapreciação da mesma, com a revogação daquela e a sua substituição por outra que julgue totalmente improcedente a mencionada exceção dilatória, condenado também o Réu Nuno Ferreira, enquanto pessoa singular, ao pagamento da dívida em questão.
2. O presente processo foi proposto contra a Recorrida sociedade comercial (…), Construções, Lda. e contra o Recorrido … (legal representante daquela sociedade).
3. O processo não foi proposto contra o Recorrido (…) por mera aleatoriedade e sem qualquer fundamento para tal.
4. O Recorrido (…) declarou assumir a dívida daquela sociedade Recorrida perante a ora Recorrente, através do mecanismo da assunção de dívida, previsto no artigo 595.º do Código Civil.
5. Reconhece a Recorrente que a relação comercial foi estabelecida entre a própria e a Recorrida sociedade comercial (…), pessoa coletiva independente do seu legal representante.
6. Também reconhece a Recorrente que os bens e serviços foram solicitados pela Recorrida (…) e foram prestados apenas e tão só a esta última.
7. Da mesma forma, as faturas que vieram a ser emitidas pela Recorrente foram-no também tão só em nome da Recorrida (…).
8. Compreende e reconhece a Recorrente que aquela sociedade comercial é totalmente independente do seu representante legal (Recorrido …), não havendo confusão quanto a esta matéria nem sendo esse o objeto do presente recurso.
9. Deveria o Tribunal a quo ter decido igualmente pela condenação do Recorrido (…) ao pagamento solidário da dívida perante a Recorrente, por este ter vindo, através do negócio de confissão de dívida e acordo de pagamento, a assumir a dívida da sociedade comercial da qual é legal representante.
10. O negócio da confissão de dívida e acordo de pagamento é a razão pela qual o Recorrido (…) consta nos presentes autos enquanto pessoa singular e tem interesse em demandar e em agir, mais especificamente, a cláusula 4ª daquele negócio.
11. A cláusula 4ª do negócio da confissão de dívida e acordo de pagamento é clara, devendo entender-se que o Recorrido (…) não atuou nesse negócio apenas na qualidade de gerente e legal representante da Recorrida (…), mas, ao invés, também como pessoa singular.
12. Através da cláusula 4ª do referido negócio veio a operar uma transmissão singular de dívida, uma assunção de dívida, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 595.º do Código Civil.
13. Mais, sempre se deverá entender ter operado uma assunção de dívida cumulativa, na qual ambos os Recorridos (sociedade comercial … e …) são solidariamente responsáveis pelo pagamento da dívida perante a Recorrente.
14. O Recorrido (…) fica vinculado à obrigação primitiva exatamente nos mesmos termos e em simultâneo com o primitivo devedor.
15. Não houve lugar a qualquer declaração expressa da credora, ora Recorrente, em exonerar a primitiva devedora (Recorrida sociedade comercial …) pelo que esta continua a ser devedora.
16. Pese embora, dita o artigo 595.º do Código Civil, que a assunção de dívida opera através de um negócio entre i) antigo e novo devedor (ratificado pelo credor) ou ii) novo devedor e credor (com ou sem o consentimento do antigo devedor); a verdade é que tal negócio de confissão de dívida e acordo de pagamento foi para além dos requisitos legalmente previstos para o efeito.
17. O negócio de confissão de dívida e acordo de pagamento contou com a intervenção de i) antigo devedor (Recorrida …); ii) novo devedor (Recorrido …, pessoa singular); iii) credora, ora Recorrente.
18. O referido negócio contou com a intervenção de todos os envolvidos (!).
19. Trata-se de um contrato trilateral, totalmente válido e eficaz.
20. Não se deverá entender que por não se tratar de um negócio que segue, linearmente, os trâmites previstos no artigo 595.º do Código Civil, que o mesmo não representa uma verdadeira e eficaz assunção de dívida.
21. A jurisprudência tem reconhecido validade e eficácia a este tipo de contratos, como assunção de dívida.
22. É também prática usual que os legais representantes de sociedade se venham, posteriormente, a assumir como devedores de algumas das dívidas originais daquelas.
23. Todos os intervenientes participaram no negócio e quiseram que o mesmo representasse uma assunção de dívida (!), caso contrário não teriam inserido a cláusula 4ª no referido negócio de confissão de dívida e acordo de pagamento.
24. A referida cláusula sempre fez parte do negócio, desde o primeiro instante, tendo sido inserida no contrato porque era a vontade das partes que assim sucedesse.
25. O Tribunal a quo decidiu além daquela que era a real e efetiva vontade das Partes, e em desrespeito pelo negócio celebrado entre aquelas, tendo decidido que o Recorrido (…) é parte ilegítima nos autos.
26. O Tribunal a quo sobrepôs-se à vontade de todos os intervenientes do negócio, não tendo legitimidade para o faz, sendo que a sua decisão se consubstanciou numa interpretação abusiva da letra do negócio.
27. O Tribunal a quo faz “tábua rasa” da cláusula 4ª do negócio.
28. Verifica-se ainda a existência de três declarações de vontade, todas bem explícitas e claras, das quais: i) declaração de vontade do Recorrido (…) em assumir a dívida da sociedade da qual é legal representante; ii) declaração de vontade da sociedade Recorrida, em aceitar a verificação de uma transmissão singular de dívida;
iii) declaração de vontade da credora, ora Recorrente, em aceitar a transmissão singular de dívida.
29. Tratam-se de declarações expressas, presentes no negócio de confissão de dívida.
30. Não há qualquer outro sentido a dar à cláusula 4ª do negócio que não seja a de pretender que se efetive uma verdadeira e válida assunção de dívida.
31. Pelo que as Partes, ao colocarem tal cláusula no negócio, quiseram que assim se verificasse.
32. Mesmo que assim não se entenda, é lícito às Partes celebrar negócios atípicos e inominados, de acordo com a liberdade de celebração e estipulação prevista nos artigos 405.º e 406.º do Código Civil.
33. O Recorrido (…) é devedor da obrigação de pagamento da dívida para com a Recorrente.
34. Resulta do princípio “pacta sun servanda” que os contratos são para cumprir, na sua integralidade.
35. É abuso de direito, em venire contra factum proprium, que o Recorrido Nuno Ferreira alega ser parte ilegítima nos presentes autos, quanto o mesmo assumiu e reconheceu ser devedor da dívida em questão para com a Recorrente, enquanto pessoa singular.”
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1.5. Não houve contra alegações.
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1.6. Por despacho proferido em 21 de março de 2024, o recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata e nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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1.7. Efetuada a apreciação liminar, colhidos os vistos legais e realizado o julgamento, nos termos do artigo 659.º do Código de Processo Civil, cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Âmbito do recurso
O objeto e o âmbito do recurso são delimitados pelas conclusões das alegações, nos termos do disposto no artigo 635.º, n.º 4, do Código de Processo Civil. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil). Similarmente, não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, Almedina, pág. 109).
Tendo em conta o supra exposto, a única questão a decidir é a de determinar se o réu (…) é parte legítima para ser demandado na presente ação, devendo fazer-se a distinção entre legitimidade processual e legitimidade substantiva.
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2.2. A decisão recorrida julgou procedente a exceção dilatória de ilegitimidade do réu (…) e conheceu do mérito da ação, julgando a mesma parcialmente procedente, condenando a ré (…), Construções, Lda. no pagamento à autora da quantia de € 3.541,00, referente à dívida de capital, e a quantia de € 590,82, referente aos juros de mora vencidos, e ainda a quantia de € 1.500,00, referente à indemnização prevista na cláusula penal pelo incumprimento e, ainda dos juros moratórios vencidos desde a data em que a ré sociedade foi citada para a presente ação, calculados sobre o valor do capital, à taxa legal que vigorar na altura para os juros civis, e que se cifra, desde 1 de Maio de 2003, em 4% e vincendos até integral pagamento.
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2.4. Apreciação do recurso
A única questão a decidir é a de determinar se o réu (…) é parte legítima para ser demandado na presente ação, devendo fazer-se a distinção entre legitimidade processual e legitimidade substantiva.
Entende a apelante que o réu (…) é parte legítima porquanto declarou assumir a dívida da sociedade ré perante si, através do mecanismo da assunção de dívida, previsto no artigo 595.º do Código Civil.
Reconhece que a relação comercial foi estabelecida entre si e a sociedade ré (…), pessoa coletiva independente do seu legal representante, reconhecendo, igualmente, que os bens e serviços foram solicitados pela ré e foram prestados apenas e tão só a esta última.
Porém, alega que deveria o Tribunal a quo ter decido igualmente pela condenação do recorrido (…) ao pagamento solidário da dívida perante si, por este ter vindo, através do negócio de confissão de dívida e acordo de pagamento, a assumir a dívida da sociedade comercial da qual é legal representante.
Entende o recorrido e a decisão sob recurso que o primeiro é parte ilegítima, porque, que segundo a decisão sob recurso, o réu (…) apenas interveio no contrato de compra e venda de mercadorias, celebrado com a autora, na qualidade de gerente e representante legal da ré sociedade, tendo sido apenas esta que se comprometeu a pagar o preço das mercadorias fornecidas pela autora no âmbito daquele contrato de compra e venda, na qualidade de compradora das mesmas. E porque assim aconteceu, foi a ré sociedade que ficou devedora de parte do preço das mercadorias, no negócio de confissão de dívida e de acordo de pagamento, apenas ela se confessou devedora daqueles valores previstos no negócio. Para além disso, apenas a ré sociedade se comprometeu a proceder ao pagamento dos valores em dívida, em prestações, e nos termos do acordo em causa, tendo o réu (…) assinado como gerente e representante legal da ré sociedade e, portanto, não confessou a dívida em causa, nem se comprometeu a proceder ao pagamento dos valores em dívida nos termos previstos nesse acordo.
Vejamos se assim é.
Afigura-se-nos que, salvo o devido respeito, o senhor juiz a quo confunde os conceitos de legitimidade processual e legitimidade substantiva.
O conceito de legitimidade processual está consagrado no artigo 30.º do Código de Processo Civil, segundo o qual “o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar”, sendo que “o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação”, consagrando tal preceito legal o princípio geral de que “são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
Conforme entendimento consolidado na jurisprudência, de que é exemplo o acórdão do TRP de 04.10.2021, “ao apuramento da legitimidade processual – pressuposto processual que se reporta à relação de interesse das partes com o objeto da ação e que, a verificar-se, conduz à absolvição da instância – releva, apenas, a consideração do concreto pedido e da respetiva causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram esta última e do mérito da causa. A legitimidade processual afere-se pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo Autor, na petição inicial, e é nestes termos que tem de ser apreciada”.[www.dgsi.pt].
A legitimidade processual distingue-se da legitimidade material ou substantiva, que se traduz num complexo de qualidades representativas dos pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando por isso ao mérito da causa, e que a verificar-se conduzirá à absolvição do pedido [acórdão do STJ de 18.10.2008, in www.dgsi.pt.].
Como todos sabemos, o Código de Processo Civil – na configuração da legitimidade – optou por uma fórmula prática. Ao falar em relação material controvertida aponta para aquilo que o autor tenha querido apresentar em juízo.
A lei, aderindo à solução proposta pela jurisprudência dominante, declara que o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer, interesse que se exprime pelo prejuízo decorrente da procedência da ação e que, na falta de indicação contrária, consideram-se, para efeitos de legitimidade, titulares do interesse relevante, os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor. A intenção do legislador foi, nitidamente, a de desvalorizar a legitimidade enquanto pressuposto processual com o propósito de dar prevalência à decisão de mérito relativamente à decisão de pura forma, circunscrevendo as situações de ilegitimidade àqueles casos em que da própria exposição da situação da situação de facto controvertida, cuja existência tem de pressupor, se exclui a individualização por parte de alguns dos sujeitos presentes na causa – neste sentido, Maria José de Oliveira Capelo, Interesse Processual e Legitimidade Singular nas Acções de Filiação, BFC, Studia Iuridica, 15, pág. 179.
No caso dos autos, defende a apelante que os factos que alegou na petição de inicial corroboram o interesse do réu Nuno Martins em contradizer, porque, da procedência da ação, lhe advém um prejuízo, nos termos do artigo 30.º do Código de Processo Civil.
Vejamos, então, o que alega a apelante, conjugadamente com os documentos juntos aos autos, mormente com o documento junto em 27 de fevereiro de 2023, com a petição inicial, intitulado “Confissão de Dívida e Acordo de Pagamento”.
Alega que:
- No âmbito das respetivas atividades desempenhadas, as partes estabeleceram uma relação comercial e contratual, tendo a autora fornecido, após requisição dos réus, bens e serviços diversos.
- A autora emitiu em nome da ré sociedade duas faturas que não foram pagas no seu valor integral;
- Situação que perfaz com que a autora detenha um crédito sobre os réus no valor de € 3.501,00;
- A autora desenvolveu os seus melhores esforços e encetou diversos contactos para que os réus liquidassem o montante em dívida.
- Uma vez que os réus não têm capacidade de liquidar o montante devido numa só vez, estes celebraram com a autora uma “Confissão de Dívida e Acordo de Pagamento”, na data de 15 de outubro de 2020.
- Tal acordo não foi cumprido e a autora pede, a final, a condenação dos réus no pagamento da quantia de € 6.273,82, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento.
Em sede de resposta à exceção de ilegitimidade arguida, a autora melhor concretiza que foi celebrado o referido acordo de confissão de dívida e acordo de pagamento, tendo nele sido aposta uma cláusula 4ª, da qual se pode ler que “A Primeira Outorgante (leia-se …, Construções, Lda.) declara submeter-se na pessoa do seu legal representante, conforme o disposto no artigo 595.º, do Código Civil”, o que significa que operou uma transmissão singular da dívida, de acordo com o regime previsto para a assunção de dívida, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 595.º e seguintes do Código Civil.
Por sua vez, a decisão recorrida, entendeu:
“Compulsados os autos constata-se que foi celebrado um contrato de compra e venda de mercadorias entre a Autora e a Ré sociedade (…). Através desse contrato a Autora comprometeu-se a fornecer mercadorias do seu comércio à Ré Sociedade. (…)
Resulta ainda dos autos que a Autora cumpriu os termos desse contrato, procedendo ao fornecimento de várias mercadorias à Ré sociedade. (…) Consequentemente, seria a Ré sociedade que deveria à Autora o pagamento do preço das mercadorias.
Extrai-se ainda dos autos que a Ré sociedade (…) não cumpriu na totalidade a sua obrigação do contrato de compra e venda referido supra, não procedendo ao pagamento de parte do preço das mercadorias que a Autora lhe forneceu. Devido a esse incumprimento da obrigação da Ré sociedade, esta assinou um documento de confissão de dívida. Além disso, nesse documento a Autora e a Ré sociedade realizaram igualmente um acordo de pagamento dos valores do preço de fornecimento de mercadorias que se encontravam em débito, nas prestações previstas nesse documento.
Resulta assim destes factos que em ambos os negócios, apenas a Ré sociedade se constituiu devedora dos valores em débito.
(…)
Por outro lado, como era ela que devia parte do preço da aquisição das mercadorias à A., na qualidade de compradora das mesmas, no negócio de confissão e acordo de pagamento, apenas a Ré sociedade (…) se confessou devedora dos valores em dívida que se encontram descritos nesse negócio. (…).
Por sua vez, o Réu (…) interveio nesses dois negócios, designadamente o contrato de compra e venda de mercadorias, e no acordo de pagamento dos valores em dívida, apenas como gerente e legal representante da Ré sociedade (…).
Para justificar a instauração da presente acção contra o Réu (…), e a cobrança ao mesmo dos valores em causa nos autos, veio a Autora alegar que naquele negócio de acordo de pagamento, teria havido uma transmissão de dívida da Ré sociedade para o Réu (…), no âmbito do instituto da assunção da dívida.
(…)
Por outro lado, verifica-se que a Autora invoca a cláusula quarta do negócio de confissão de dívida e acordo de pagamento, para justificar a sua pretensão de que teria havido por parte do Réu (…) uma assunção da dívida da Ré sociedade (…), que se encontra referida supra. Estabelece esta cláusula que: “A primeira outorgante (no caso, a Ré sociedade …) declara submeter-se na pessoa do seu legal representante, conforme o disposto no artigo 595.º do Código Civil”.
Ora, salvo o devido respeito, ao contrário do sustentado pela Autora, consideramos que apenas esta cláusula não permite concluir pela consumação de um negócio válido de assunção da dívida pelo Réu (…) em relação ao débito em causa nos autos da Ré sociedade (…).
(…)
Além disso, para que o negócio de assunção de dívida fosse válido e eficaz, teria de ser produzida, no acordo de pagamento referido supra, uma declaração expressa ou tácita por parte do Réu (…) a assumir a dívida da Ré sociedade que está em causa nesse acordo.
Ora, verifica-se que, tendo em conta que o Réu (…) não é parte no negócio de acordo de pagamento, ele também não produziu qualquer declaração no âmbito do mesmo. Designadamente, o Réu (…) não produziu qualquer declaração de assunção da dívida da Ré sociedade em causa nesse documento.
Pelo contrário, a referida cláusula 4ª consiste numa declaração unilateral da sociedade, sem qualquer intervenção do Réu (…). Designadamente, este deveria igualmente declarar que aceitaria as condições constantes dessa cláusula, para que a mesma se tornasse eficaz em relação a ele.
Para além disso, encontra-se igualmente omitida no documento do acordo de pagamento, a declaração do credor, no caso concreto a Autora, a ratificar a assunção da dívida. Conforme referimos é elemento essencial para se concluir pela validade da assunção da dívida, a declaração de ratificação da mesma pelo credor.
Por fim, referira-se que consideramos que a referida cláusula 4ª é totalmente ambígua, sem nexo e incompreensível. Não resulta assim claro qual o objectivo da mesma. Designadamente, pelo facto de constar da cláusula a citação do artigo 595.º do Código Civil, de forma alguma se poderá concluir que a mesma tenha como objectivo a realização da assunção da dívida por parte do Réu (…) em relação ao débito da Ré sociedade em causa nesse documento.
Deste modo, ao contrário do que sustenta a Autora, não ficou demonstrado nos autos que ocorreu a assunção da dívida por parte do Réu (…) em relação ao débito da Ré sociedade em causa nesse documento. Em conformidade, também não ficou demonstrado que o Réu (…) se constituiu co-devedor, com a Ré sociedade, do crédito que a Autora será titular sobre a mesma, que está em causa no documento do acordo de pagamento.”
Não podemos concordar com a posição tomada pelo tribunal de 1.ª instância.
Ora, configurada nos termos acima expostos os factos que integram a causa de pedir e o pedido, dúvidas não temos de que o réu (…) é parte legítima processualmente, porquanto o seu interesse em contradizer e o prejuízo que lhe possa advir com a procedência da ação se exprime inequivocamente por esta procedência e pela sua condenação no montante peticionado.
O réu (…) tem legitimidade processual para ser demandado.
Saber se o direito invocado existe é, já o afirmamos, questão que está relacionada com o mérito do pedido, da ação, podendo o respetivo conhecimento depender ou não de produção de prova, tudo dependendo da factualidade que se possa considerar assente findos os articulados.
Ou seja, saber se foi celebrada uma assunção de dívida (da ré sociedade) por parte do réu Nuno Martins prende-se com o mérito da ação e não com a legitimidade processual.
Neste conspecto, temos de concluir pela procedência do recurso e, consequentemente pela necessidade de revogação da decisão recorrida.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que integram a 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Évora, em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida.
A responsabilidade pelas custas será determinada a final, em conformidade com o vencimento que se vier a apurar.
Notifique.
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Évora, 23 de abril de 2024
(o presente acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos seus signatários)
Maria José Cortes (Relatora)
Francisco Xavier (1.º Adjunto)
Maria João Sousa e Faro (2.ª Adjunta)