PROCESSO DE INVENTÁRIO
RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS
ÓNUS DE PROVA
Sumário

I - O ónus da prova numa reclamação contra a relação de bens em inventário compete ao Reclamante (art.º 342º CC).
II - Já a cabeça de casal, não tendo suscitado exceções, fica desonerada da obrigação de prova; pode, porém, oferecer contraprova destinada a criar a dúvida no tribunal sobre os factos alegados pelo Reclamante e, conseguindo-o, a decisão é tomada contra ele: art.º 346º CC.
III - Quando o resultado da reapreciação pretendida pelas partes entra em contradição com outros factos provados e/ou não provados, impõe-se ao Tribunal da Relação proceder à expurgação dessas possíveis contradições, alterando outros pontos da matéria de facto, mesmo que não especificamente pretendidos pelas partes.

Texto Integral

Apelação nº 3628/21.1T8VNG.P1




ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO



I – Resenha do processado

1. AA requereu se procedesse a inventário judicial por óbito de BB, que faleceu intestado em ../../2020, com 81 anos, no estado de casado, em primeiras núpcias e sob o regime de comunhão de adquiridos, com CC.
Deixou os seguintes herdeiros:
a. CC (cônjuge sobrevivo);
b. DD (filho);
c. AA (filho);
d. EE (filha);
e. FF (filha);
f. GG (filho).
Tendo sido nomeada cabeça de casal a viúva CC, a mesma apresentou relação de bens na qual fez constar, em resumo: 10 veículos automóveis; 1 prédio urbano; 1 prédio rústico e várias verbas de passivo (créditos de alguns dos interessados), decorrentes de pagamento de impostos relacionados com os bens da herança.
O Requerente AA apresentou reclamação contra essa relação de bens, impugnando o valor atribuído aos veículos, bem como aos 2 imóveis; a omissão de relacionamento do recheio existente na habitação, de saldos bancários e do estabelecimento comercial “Circo” e bens móveis que o compõem.
A cabeça de casal impugnou todos os items reclamados.
Depois de variadíssimos requerimentos e contra-requerimentos, realizou-se a audição dos interessados e foram produzidas as provas tidas por pertinentes.
Foi então proferida a seguinte decisão:
«Face ao exposto, o Tribunal decide:
a) julgar parcialmente procedente a reclamação à relação de bens, determinando o aditamento à relação de bens das seguintes verbas:
“Verba 10A:
bens móveis que compunham o recheio da habitação do inventariado à data do óbito, composto por
- mobiliário de cozinha, mobiliário de quarto (cama, mesinhas de cabeceira e guarda-roupa), mobiliário da sala (dois sofás e uma estante e na sala superior mesa e duas estantes),
- eletrodomésticos (televisão e frigorifico),
- louças da cozinha, composto por um conjunto de pratos, panelas e talhares
- demais ornamentos/utensílios domésticos,
tudo no valor de €500,00.
Verba 10B:
Compropriedade de uma bancada de um circo, bancada atualmente na posse de GG, compropriedade com uma quota de 50%, sendo que a bancada tem pelo menos 47 degraus e um valor global de €5.000,00 (quota de 50% corresponde a €2500,00);
Verba 10C:
Compropriedade de Frente de circo (com arcos e iluminação), frente atualmente na posse de GG, compropriedade com uma quota de 50%, sendo que esta frente tem um valor global de €2.000,00 (quota de 50% corresponde a €1000,00).
Verba 10D:
Um aquecedor do circo, com um valor de 1 euro.
Verba 10E:
Um gerador, com um valor de 500 euros.
Verba 10F:
Cabos de eletricidade do circo, no valor de 1 euro.
Verba 10G:
Cem cadeiras do circo, com um valor de €400,00.
Verba 10H:
Dois Chapitôs, com um valor total de 1 euro.
Verba 10I
Um Interior do circo (cortinas e pista), num valor de 1 euro.
b) decide-se manter a descrição das plumas nos exatos termos descritos na relação de bens.
c) Absolver a cabeça de casal da restante parte da reclamação.»

2. Para assim decidir, foi considerada a seguinte factualidade:
Factos Provados
1. Em ../../2020 faleceu BB.
2. BB deixou, como sucessores:
i) CC, sua cônjuge á data da morte, em regime de comunhão de adquiridos;
ii) DD, filho;
iii) AA, filho,
iv) EE, filha,
v) FF, filha, e
vi) GG, filho.
3. AA veio instaurar o presente processo de inventário, tendo CC sido nomeada cabeça de casal.
4. À data da morte do inventariado BB, existiam na habitação bens móveis que compunham o recheio da habitação do inventariado à data do óbito, sita na Travessa ..., freguesia ... e ..., concelho de Vila Nova de Gaia e, composto por
- mobiliário de cozinha, mobiliário de quarto (cama, mesinhas de cabeceira e guarda-roupa), mobiliário da sala (dois sofás e uma estante e na sala superior mesa e duas estantes),
- eletrodomésticos (televisão e frigorifico),
- louças da cozinha, composto por um conjunto de pratos, panelas e talhares
- demais ornamentos/utensílios domésticos, no valor de €500,00.
5. À data da morte do inventariado BB, este era comproprietário, conjuntamente com o interessado GG, na proporção de 50%, de uma bancada de circo (atualmente na posse de GG), bancada com pelo menos 47 degraus e com um valor de €5.000,00.
6. À data da morte do inventariado BB, este detinha, conjuntamente com o interessado GG, na proporção de 50%, uma Frente de circo (com arcos e iluminação, atualmente na posse de GG), no valor de €2.000,00.
7. À data da morte do inventariado BB, este detinha um aquecedor, com um valor de 1 euro.
8. À data da morte do inventariado BB, este detinha um gerador, com um valor de 500 euros.
9. À data da morte do inventariado, este detinha cabos de eletricidade, no valor de 1 euro.
10. À data da morte do inventariado, este detinha 100 cadeiras, com um valor de €400,00.
11. À data da morte do inventariado, este detinha dois Chapitôs, com um valor total de 1 euro.
12. À data da morte do inventariado, este detinha interior do circo (cortinas) e pista), num valor de 1 euro;
13. O pónei Poncy, entretanto, já faleceu.
14. À data da morte do inventariado BB, existiam Duas Plumas, num valor de €50,00 e €97,50.
Factos não provados
1. À data da morte, BB tinha um saldo bancário na conta bancária n.º ...12 aberta em nome do inventariado, no Banco 1..., no valor de €8.632,40 (oito mil seiscentos e trinta e dois euros e quarenta cêntimos).
2. Existiam ainda saldos noutras contas bancárias.
3. Os bens na habitação que tinham um valor de €5000,00.
4. A bancada do circo tinha um valor de €25.000,00.
5. O inventariado detinha a totalidade da bancada mencionada no número 5. dos factos provados.
6. O inventariado detinha a totalidade da Frente de circo indicada no número 6. dos factos provados, e esta tinha um valor de €5.000,00.
7. À data da morte do inventariado, existiam dois Equipamentos de aquecimento pertencentes ao inventariado, num valor de €500,00.
8. Os cabos indicados no número 9. dos factos provados tinham um valor de €3.000,00.
9. À data da morte do inventariado, este detinha 3500 cadeiras, com o valor de €14.000,00.
10. Os chapitôs mencionados no número 11. dos factos provados tinham um valor de €5.000,00.
11. As cortinas e pista mencionados no número 12. dos factos provados tinham um valor de €2.000,00.
12. As plumas indicadas no número 13. dos factos provados tinham um valor de 2.000,00.

3. Inconformada com tal decisão, dela apelou a cabeça de casal, formulando as seguintes conclusões:
a) A 08.05.2021, o interessado AA veio, no presente processo, apresentar requerimento de inventário por morte de BB, seu pai, tendo a aqui recorrente CC nomeada Cabeça de Casal por despacho de 02.06.2021, e, posteriormente, em 28.08.202, veio apresentar a relação de bens.
b) Em 09.11.2021, o sobredito interessado veio apresentar reclamação contra a relação de bens apresentada, alegando a omissão de determinados bens e requerendo a final a sua adição que, para o presente recurso importa, “bancada de ferro composta por 47 degraus” e, por sua vez, em 13.12.2023, a aqui recorrente, exerceu o seu direito de resposta.
c) Na sequência das audiências de produção de prova realizadas o Tribunal a quo proferiu a douta sentença a qual decidiu: “Face ao exposto, o Tribunal decide: a) julgar parcialmente procedente a reclamação à relação de bens, determinando o aditamento à relação de bens das seguintes verbas: Verba 10B: Compropriedade de uma bancada de um circo, bancada atualmente na posse de GG, compropriedade com uma quota de 50%, sendo que a bancada tem pelo menos 47 degraus e um valor global de €5.000,00 (quota de 50% corresponde a €2500,00);”.
d) No que respeita à matéria dada como provada e não provada pelo douto Tribunal, sob pena de prolixidade desde já se remete para o capítulo introdutório das alegações do presente recurso.
e) É sobre a decisão proferida pelo Tribunal a quo que, a agora Recorrente vem recorrer, impugnando toda a decisão da matéria de facto, relativo ao bem agora adicionado à relação de bens pela parcial procedência da reclamação à relação de bens.
f) Salvo o devido respeito, a decisão do Tribunal a quo enferma de erro de julgamento quanto à matéria de facto, por deficiente apreciação crítica e analítica dos meios de prova, essencialmente os que estavam e estão sujeitos à livre apreciação do Tribunal, como foi o caso da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, e os documentos juntos na audiência datada de 12.07.2023;
g) Nos termos da motivação, exara o Tribunal a quo que: “Por fim, o interessado GG afirmou que existiria uma bancada de ferro, com mais de 47 degraus, mas que lhe pertencia.”.
h) Não pode o Tribunal a quo na decisão recorrida decidir conforme decidiu, face aos depoimentos da Cabeça de Casal e do interessado GG.
i) O depoimento do Interessado GG, relativamente a esta matéria, no dia 23.06.2023, registada no sistema Habilus Média Studio, entre o minuto 02:04 a 02:14, e o minuto 04:46, bem evidencia que a descrição adoptada pelo reclamante e vertida na decisão recorrida não tem qualquer correspondência, nem tão pouco constitui uma unidade de medida, sendo até, completamente desconhecida.
j) De igual modo, descorou o Tribunal a quo, o depoimento do interessado GG, relativamente a esta matéria, no dia 12.07.2023, registada no sistema Habilus Média Studio, entre com início no minuto 03:16 e 03:39, onde se demonstra, ao invés do decidido como na decisão recorrida que, o interessado afirmou que a (sua) bancada tem mais de 47 degraus, todavia, desconhecendo que bem é que é reclamado com essa designação oferecida pelo reclamante e sobre quem pendia o ónus da prova, quanto a uma unidade de medida concreta, por exemplo, o seu cumprimento e largura metros, conforme consta do documento junto em audiência de julgamento datada 12.07.2023, com a referência CITIUS n.º 450460804, intitulado “Memória Descritiva da bancada”, de 02.03.2010, que, mais uma vez, não foi apreciado pelo Tribunal a quo.
k) Destarte, não pode a aqui recorrente aceitar a descrição aposta na sentença de “pelo menos 47 degraus”, quando o próprio reclamante a limitou a essa medida e a cabeça de casal e o interessado GG não a reconheceu com esse fator de medida, nem com qualquer outro, pelo que andou mal o Tribunal a quo ao considerar claro e evidente que a alegada bancada tinha pelo menos 47 degraus.
l) A decisão recorrida é ainda desajustada, dado que, face às declarações da aqui recorrente do interessado GG, decide pela compropriedade da bancada quando os elementos ao seu dispor enfermavam tal convicção.
m) Com exponencial relevo, descorou o Tribunal a quo as declarações da Cabeça de Casal relativamente a esta matéria, no dia 30.10.2022, registada no sistema Habilus Média Studio, minutos 03:13 a 04:27, onde é por esta afirmada que a bancada de ferro é propriedade plena do interessado, seu filho, GG, distinguindo cabalmente entre aquilo que era “nosso” (bens do casal) e o que era propriedade exclusiva do referido interessado.
n) A única bancada que a Cabeça de Casal refere que era do inventariado era a bancada de madeira, reconhecendo que a bancada de ferro nunca foi sua propriedade ou do inventariado, bem como foi o seu filho GG quem comprou os materiais e custeou com o seu dinheiro a sua construção (Declarações da Cabeça de Casal, relativamente a esta matéria, no dia 30.10.2022, registada no sistema Habilus Média Studio, minutos 12:00 a 12:39 e minutos 14:51 a 15:40).
o) Efectuada uma apreciação crítica e analítica do depoimento prestado pela Cabeça de Casal, não se pode aceitar a decisão do Tribunal a quo pela “compropriedade”, por um lado a cabeça de casal e mulher do inventariado descreve que foi o filho GG quem comprou o material para a construir a bancada, que a bancada não é “nossa”, nem o inventariado teve qualquer intervenção na sua construção, o que vem demonstrar o desajuste da decisão recorrida.
p) No que concerne à alegada compropriedade vertida na decisão recorrida, entende a recorrente que o Tribunal a quo procedeu a uma errada interpretação das declarações do interessado GG, decidindo em sentidos opostos face à natureza distinta de dois bens, mas que em uníssono mereciam a mesma decisão.
q) Face ao teor da prova testemunhal produzida e com relevo para a boa decisão da causa, o interessado GG demonstrou que a bancada foi por si construída, custeada e, pese embora estar ao serviço do circo do inventariado do qual era sócia, tal não impõe uma compropriedade conforme decidiu o Tribunal a quo (Declarações do Interessado GG, relativamente a esta matéria, no dia 23.06.2023, registada no sistema Habilus Média Studio, entre o minuto do minuto 01:19 a 03:50, entre o minuto do minuto 05:07 a 06:48).
r) Da prova produzida, resulta que o interessado apesar de trabalhar em parceria com o inventariado, a sociedade destes não se traduzia na compropriedade dos bens que a compunham, ou seja, não estamos a falar de um património comum, concretizando o interessado que existem bens que são da sua exclusiva propriedade, (o seu próprio circo, circo A...) (declarações do Interessado GG, relativamente a esta matéria, no dia 23.06.2023, registada no sistema Habilus Média Studio, entre o minuto do minuto 21:48 a 22:17).
s) Ademais, ao longo da sua inquirição, concretiza o interessado o molde e os termos do regime societário que vigorava entre este e o inventariado.
t) O interessado evidencia que existia uma nítida separação patrimonial entre aquilo que eram as compras de maior importância (que implicavam um maior investimento) realizadas pelo interessado e dais quais o inventariado não pretendia assumir e que, apesar de colocadas serviço do circo, não constituíam propriedade de ambos.
u) Quanto ao bem reclamado gerador de aquecimento, o Tribunal a quo deu como facto não provado (cfr. Facto não provado 7.) dado que e apesar de o interessado ter colocado ao serviço no circo do inventariado, foi este quem o comprou às suas expensas.
v) Ora, mesmo tratando-se de um bem em substituição de outro bem já velho ou obsoleto, por se tratar de um investimento exclusivo por parte do interessado e da qual o inventariado não teve qualquer intervenção, o Tribunal a quo decidiu pela sua não adição à relação de bens.
w) A bancada assume categoricamente as mesmas rédeas interpretativas quanto ao bem reclamado gerador, dado que a cabeça de casal e o interessado limitam que as reparações/substituições denominados “vulgares” era sempre suportado entre ambos, tudo o resto constituía património autónomo de cada “sócio” (Declarações do Interessado GG, relativamente a esta matéria, no dia 12.07.2023, registada no sistema Habilus Média Studio, entre o minuto do minuto 07:33 a 11:26.).
x) Ora, realizada a análise crítica e analógica à prova produzida e pelas regras da experiência e pelo senso comum de um homem médio, outra deveria ter sido a decisão do Tribunal a quo na sentença recorrida, ou seja, de que tinha sido feita a prova suficiente para afasta uma qualquer compropriedade da bancada, decidindo a final pela exclusiva propriedade do interessado.
y) Quanto à prova documental, “MEMÓRIA DESCRITIVA DA BANCADA” junto em audiência de julgamento datada 12.07.2023, com a referência CITIUS n.º 450460804, intitulado “Memória Descritiva da bancada”, de 02.03.2010, andou mal o Tribunal a quo ao decidir conforme decidiu.
z) A elaboração do mencionado documento decorre, por um lado, de uma imposição legal e, por outro, para a definição e determinação do que era a exclusiva propriedade da sociedade, do interessado e a do inventariado, não se compadecendo a recorrente com uma genérica compropriedade, bem como no facto de no acerbado documento, a memória descritiva da bancada é pertença de GG, bem como é este que figura como construtor, o que reflecte a sua propriedade.
aa) Tal documento foi explicado e encontra respaldo nas declarações do Interessado GG, relativamente a esta matéria, no dia 12.07.2023, registada no sistema Habilus Média Studio, entre o minuto do minuto 00:52 a 03:02.
bb) A decisão recorrida é assim incompreensível quando decide pela compropriedade da bancada, quando certo é que, da análise crítica e analógica à prova produzida e pelas regras da experiência e pelo senso comum de um homem médio, outra deveria ter sido a decisão do Tribunal a quo na sentença recorrida, ou seja, de que tinha sido feita a prova de que a bancada, existente, é da exclusiva propriedade do interessado GG, e não uma genérica compropriedade de um bem do qual o material foi comprado e pago exclusivamente por este acabando-a por construir
cc) Face à conjugação dos depoimentos da Cabeça de Casal e da Testemunha/interessado GG, bem como face à demais prova documental junta aos presentes autos, designadamente, a memória descritiva, o facto dado como provado n.º 5 deve ser dado como não provados e com a seguinte redacção: “Bancada de circo cujo valor se estima em €25.000,00 (cinco mil euros)” eliminando-se o facto dado como provado n.º5 da decisão recorrida por resultar inequívoca a propriedade exclusiva do interessado GG.
dd) Foram violados, entre outros, assim, por má interpretação, o disposto nos artigo 5.º, n.º 2, alínea a) e artigo 607.º, n.º 4, ambos do CPC.
Nestes termos e nos melhores de Direito deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, em consequência, revogar a decisão do Tribunal a quo na parte em que julgou procedente o aditamento à relação de bens da verba 10b: compropriedade de uma bancada de um circo, bancada atualmente na posse de GG, compropriedade com uma quota de 50%, sendo que a bancada tem pelo menos 47 degraus e um valor global de €5.000,00 (quota de 50% corresponde a €2500,00);” por outra que a julgue improcedente por não provada.

4. O Requerente AA contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso.
Por outro lado, interpôs recurso subordinado, com as seguintes conclusões:
N. O recorrido e interessado não se conforma com a Decisão recorrida na parte em que ali se julga decidido por provado nos pontos 5 e 6 dos factos provados que a bancada de circo com pelo menos 47 degraus e a frente circo (com arcos e iluminação) eram propriedade em 50% do inventariado e do interessado GG, atualmente na posse deste último.
O. Pois na verdade da prova produzida não resultou minimamente demonstrado e muito menos provado que o interessado GG tenha adquirido, por qualquer meio ou forma, 50% do direito de propriedade da bancada e 50% do direito de propriedade da frente de circo, ao seu falecido pai e/ou a qualquer outrem.
P. Bem como não resulta qualquer evidência dos autos que tenha ocorrido qualquer pagamento de parte da referida bancada e frente de circo pelo dito interessado ao inventariado e/ou a quem quer que fosse e muito menos da quota-parte fixada em 50% pelo Tribunal a quo.
Q. Igualmente não resultou provado que o inventariado e o aludido interessado fossem sequer sócios.
R. Antes sim se provou que o circo “B...” era propriedade do inventariado, factualidade essa, confessada aliás pelo próprio interessado GG nas declarações que prestou em julgamento (Cfr. gravação Citius minutos 6:55 a 7:10).
S. Pelo que não pode o interessado aceitar a conclusão a que chegou o Tribunal a quo nos pontos 5 e 6 dos factos provados, designadamente que a bancada de circo com pelo menos 47 degraus e a frente circo (com arcos e iluminação) eram propriedade em 50% do inventariado e do interessado GG.
T. Uma vez que se provou que a bancada e frente de circo eram bens da herança e por essa razão se impõem que sejam relacionados para futura partilha por todos os herdeiros.
U. Mais se provou que o interessado GG era menor quando começou a trabalhar no circo com o seu pai e que este lhe pagava um salário/ordenado, logo não eram sócios ou comproprietários, factualidade esta confessado pelo próprio (Cfr. gravação Citius minutos 5:55 a 6:00).
V. As declarações do sobredito interessado foram ainda corroboradas pelas prestadas pelos demais interessados AA, DD e EE, todos igualmente filhos do inventariado e conhecedores dos factos.
W. Pelo que nesta parte, se entende que o Tribunal a quo fez uma errada interpretação da prova produzida em julgamento, o que constitui um erro no julgamento de facto, porquanto a prova obtida à materialidade impugnada conduziria, no nosso humilde entendimento, à obtenção de uma diferente conclusão, in casu, de que a referida bancada de circo e frente de circo pertencem na sua totalidade à herança e não somente na proporção de 50%. e, por conseguinte, fazem parte dos bens que compõem a herança ainda indivisa e a partilhar.
X. Resultando assim violados pelo Tribunal a quo os preceitos ínsitos nos artigos 607, n.º 4 e 5 e 195.º do CPC, a qual se impõe ser verificada pelo Tribunal ad quem, o que se requer com as demais consequências legais.
Pelo que a tudo o que antecede, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pela recorrente/cabeça de Casal e bem assim ser julgado procedente, por provado, o recurso subordinado do interessado AA.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
5. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, são as seguintes as questões a decidir:
a) - No recurso da cabeça de casal, pretende-se a eliminação da verba 10-B, mandada aditar pela decisão recorrida. Para tanto, convoca
· Reapreciação da matéria de facto no tocante ao facto provado nº 5;
· Se é de alterar a decisão quanto ao aditamento da verba 10-B.
b) – No recurso subordinado,
· Reapreciação dos factos provados nº 5 e 6 quanto à compropriedade.

5.1. Reapreciação da matéria de facto
§ 1º - Por razões de coerência, impõe-se que a reapreciação da matéria de facto seja feita de forma concertada e conjunta, apreciando-se o recurso principal e o subordinado concomitantemente, até porque respeitam a matéria similar.
A cabeça de casal pretende ver não provado o facto provado nº 5.
O interessado AA discorda dos factos provados nº 5 e 6, na parte em que aí se considera que ao finado só pertencia uma quota de 50% (compropriedade com o interessado GG), concluindo que o finado detinha a propriedade plena e exclusiva de tais bens.
Relembrando os factos:
5. À data da morte do inventariado BB, este era comproprietário, conjuntamente com o interessado GG, na proporção de 50%, de uma bancada de circo (atualmente na posse de GG), bancada com pelo menos 47 degraus e com um valor de €5.000,00.
6. À data da morte do inventariado BB, este detinha, conjuntamente com o interessado GG, na proporção de 50%, uma Frente de circo (com arcos e iluminação, atualmente na posse de GG), no valor de €2.000,00.
O M.mº Juiz fundamentou assim a sua decisão:
«A bancada a que DD fez referência é uma anterior bancada que existiu no circo, e que a cabeça de casal afirmou que, entretanto, teve de ser desmontada e serviu de lenha.
Foi então substituída por uma bancada de ferro.
Atendendo às declarações do interessado GG, extraímos que os dois, inventariado e GG, a determinado momento, exploraram o negócio do circo em conjunto. E que, à medida que o inventariado envelhecia, cada vez mais o negócio era explorado mais pelo interessado GG. E se nesse negócio a bancada teve de ser substituída, pensamos que pertenceria a ambas as pessoas que detinham aquele negócio.
Com efeito, tendo sido necessário substituir a bancada de madeira (como GG também explicou), é seguro afirmar que a nova bancada, que foi contruída em 2003 por GG (segundo este), pertencia a ambos: a GG e ao inventariado, num negócio que geriam em conjunto.
É o que nos faz mais sentido.
Não acreditámos em GG quando afirmou que a bancada lhe pertencia em exclusivo. Tal como não acreditámos no reclamante AA quando afirma que a bancada pertencia em exclusivo a o inventariado.
Será antes um misto: pertencia aos dois (GG e seu pai, o inventariado).
(…)
As mesmas considerações que fizemos para a bancada se podem agora fazer para a frente do circo.
O interessado GG afirma que a frente de circo lhe pertencia.
No que é contrariado pelo reclamante AA.
O Tribunal entende é que, o inventariado e GG, a determinado momento, exploraram o negócio em conjunto. A explicação de que a frente do circo estava colocada num circo do inventariado mas que lhe pertencia (a GG) não nos mereceu credibilidade.»

§ 2º - Começando a reapreciação pelos elementos mais objetivos, os documentos:
Com pertinência para os bens aqui em apreço no recurso ─ bancada de circo, com pelo menos 47 degraus, e uma frente de circo, com arcos e iluminação ─, o Reclamante apenas pediu as declarações de parte de sua mãe (cabeça de casal) e dos seus 5 irmãos, bem como a realização de perícia para encontrar o valor dos bens reclamados.
A cabeça de casal, na sua resposta à reclamação, juntou um documento emitido pela ADAPCDE, “registo de caraterísticas, propriedade e utilização de circo itinerante”, emitido em 02/02/2010, do qual se extrai: que o circo B... era propriedade do finado; que era composto por “estrutura da tenda, cobertura e bancadas”, comprado em 2008 a HH; que as estruturas e cobertura foram fabricadas em Itália, construídas/importadas em 1999; “número máximo de módulos de bancadas” - 24; lotação por módulos de bancadas – 16/17; lotação máxima – 500 = (400 + 100 cadeiras individuais)”.
O Reclamante veio impugnar tal documento, exibindo um outro, emitido pela mesma ADAPCDE, mesmo nº e data de registo e de idêntico teor no que aqui interessa.
Posteriormente, o Reclamante juntou ainda:
· um documento designado “equipamentos de diversão”, emitido em 2012 (com validade por um ano), emitido pelo ISQ, ao designado “Circo C...”, onde consta apenas o nome do finado e onde se refere (para efeitos de acreditação das regras de segurança), no que aqui importa, que “No interior existe uma cabine de som, uma pista central delimitada e cadeiras e bancadas para o público em geral”. Mas também se dá nota de “nº passageiros: 500”.
· um outro documento, designado “memória descritiva”, emitido em 2010, relativo ao “Circo B...”, onde se dá nota que a “lotação é feita com cadeiras individuais e duas bancadas (…) lotação máxima prevista é de 500 lugares sentados”.
Mais tarde, juntou declaração médica, emitida em 2022, onde se refere que o finado padecia de “demência” desde 2014, sendo acompanhado em neurologia, e que “durante o ano de 2020 verificaram-se registos de visitas domiciliárias associadas ao maior grau de dependência do utente”.
Ainda mais tarde, já após a audição da cabeça de casal, juntou um conjunto de fotografias, referentes ao interior duma tenda de circo, onde se vislumbra algumas bancadas (que se nos afigura serem 9).
No decurso da audiência da sua inquirição, o interessado GG juntou aos autos os seguintes documentos:
· “memória descritiva de bancada do tipo corrido”, emitido em 2010, referente a GG, onde se descreve uma “bancada modular (cada módulo tem de 1,2 m) com estrutura em aço, com passeios e assentos em madeira. Tem 8 filas e possui escadas com espelho de 6 em 6 módulos, possui gradeamento em aço na parte posterior e nas laterais”, que foi fabricada em 2001, por GG e que a montagem é toda manual. Possuía 80 m de comprimento por 5m de profundidade. Sendo que a lotação era de 1000 pessoas.
· Um “certificado de inspeção” do IEP (entidade inspetora do Instituto Eletrotécnico Português), emitido em 2010, válido por um ano, certificando que o “Circo B...” cumpria as regras de segurança, por solicitação do finado.
Concluindo, se olharmos apenas à prova documental, temos de concluir pela existência de 2 bancadas pois na diversa documentação se dá nota da diferença, seja pelas caraterísticas, pelas dimensões ou pela lotação que comportavam. Acresce que a que pertenceria ao circo B... teria sido fabricada em Itália, em 1999, enquanto que a referida pelo Reclamante GG se refere ter sido fabricada por ele próprio em 2001.
De qualquer forma, em nenhum dos documentos se refere uma “bancada composta por 47 degraus”, como reclamado.
Concluindo, a olhar apenas à prova documental, teríamos de concluir que não foi feita prova da existência duma tal bancada como integrante do património do finado em 2020, data da sua morte. Nem, fazendo apelo a um possível juízo de presunção, que o finado alguma vez tenha tido uma bancada de 47 degraus.
Nenhum dos documentos alude sequer à “frente de circo”.

§ 3º - Para além da prova documental, foram ouvidos todos os interessados e a cabeça de casal em declarações de parte.
Ouvidos todos os depoimentos, ressalta a animosidade existente entre todos e que a família está dividida em dois blocos: dum lado, a cabeça de casal/mãe e o filho GG; do outro, os restantes irmãos (DD, o Reclamante AA, EE e FF).
Quanto à razão de ciência (no tocante ao possível conhecimento do que existia à data da morte do inventariado), todos referiram, à exceção do GG, que desde muito cedo deixaram de ter convivência assídua com os pais e com o local onde estes viviam. [[1]]
Assim, a FF disse que saiu de casa dos pais quando casou, há 30 e tal anos e só lá ia visitar os pais muito dificilmente, atenta a gravidade da doença de uma filha, que tem dependente; a EE, também não viver com os pais desde que casou, há 38 anos, tendo ido com o marido para Espanha; se bem que mais tarde, referiu que agora já vivia numa casa em Portugal perto dos pais e ia lá com frequência conviver com eles; o AA, que vive desde setembro de 2022 em ...; antes disso, que sempre teve a sua caravana, pelo que ia andando de terra em terra. Chegou a trabalhar com o pai, “ás vezes fazia o mês de setembro com ele”, sempre que o pai precisava, chamava-o, por exemplo os espetáculos do período de Natal; houve anos que não esteve com o pai; de forma permanente, trabalhou com o pai até aos 23 anos, quando casou e “fui à minha vida”. O DD, vive em Gaia.
À exceção da FF, todos se identificaram como artistas de circo e deram nota duma vida itinerante. Mas todos foram unânimes em dizer que o único que ficou sempre a viver perto dos pais, e a trabalhar no circo com o pai, foi o irmão GG.
Face a tal circunstancialismo, bem se pode perceber a falta de rigor e as divergências entre os diversos depoimentos:
· ─ segundo a FF, havia uma bancada, base de ferro, com madeira onde sentar, degraus não sabe, construída por um senhor que trabalhava com o pai e tinha jeito para soldar. Não foi o irmão a construir, que era muito novo, muito pequeno. O irmão só lhe fez manutenção depois. Nos últimos tempos, anda em vida do pai, quem geria o circo era o irmão GG, “os meus pais andavam com o meu irmão”, “depois o Alzheimer começou a…”, “tanto que houve uma fase em que o meu pai me dizia que eram sócios, que dividiam tudo, eram sócios os 2; depois mais tarde acho que só passou a ser com o meu irmão, deixou de haver uma sociedade…”. Era o que a minha mãe me dizia, porque o meu pai já não dizia muito bem as coisas”. A mãe e o irmão disseram-lhe que já não havia sociedade. A frente circo, com arcos e iluminação – não sabe se existia à data da morte, sabe que o pai tinha “material de circo”.
· ─ já a EE depôs no sentido de existirem 2 bancadas, uma em madeira e outra em ferro e ainda existem, pelo menos uma. Confrontada com as divergências do que disseram os outros irmãos e mãe, respondeu: “é que eu já não estou com os mais desde que me casei, há 38 anos”. Feita de novo a pergunta, mantém que “à data da morte, existiam 2, uma em madeira e outra em ferro e ainda existem, pelo menos uma”. Mas logo adianta “mas também lhe digo já a verdade, os meus irmãos, eu não estava lá, mas dizem que eles já queimaram a de madeira; isto é o que eles dizem, eu não estava lá”. Antes do pai falecer, só viu a de ferro. De degraus não sabe, que não percebe nada disso, mas sabe que a bancada quem a montava eram os irmãos”. Afiançou existir a frente circo (arcos + iluminação).
· ─ no depoimento do AA: existia uma bancada à data da morte; foi retirada de casa há 2 dias, em camiões; tinha mais de 47 lugares. A mãe chegou a emprestar a bancada. A bancada “não estava toda montada dentro desse circo, de certeza; é porque havia mais bancada, havia bancada de 2 circos e o meu pai fazia muitos negócios a alugar as bancadas”; “a bancada ocupava mais espaço que um único circo”. Quando não eram usadas, estavam dentro de um armazém do pai. Quanto à frente circo: os arcos foi um sobrinho e um funcionário do pai que fizeram; o irmão mais novo também deve ter ajudado que na altura estava lá em casa, mas foi o pai que pagou tudo. O material está tudo dentro de camiões que pertencem ao irmão.
· ─ de acordo com o DD: a bancada era do pai, com tábuas de madeira e “está montada neste momento em … como é que se chama àquilo… está alugada”; eram 58 degraus e o restante em tábua de assento; “fomos nós que a fizemos, portanto sabemos o que é que está feito”; “E neste momento está alugada em S. João da Pesqueira, porque o meu irmão GG a levou”. “havia bancada de madeira há 30 anos atrás”. Na altura o pai gastou mil e tal contos nela, só em ferro e madeira. A bancada foi feita “o meu filho II tinha 10-12 anos, agora tem 38, é só fazer as contas”; “quem fez a bancada fomos nós, eu, um empregado preto, escuro, chamava-se JJ, mais 2 ou 3 e o meu filho também ajudou … na altura, este meu irmão GG, era assim deste tamanho. Nunca lá trabalhou, pois era criança. Não era a bancada de madeira, o pai já não fazia bancadas de madeira há mais de 30 anos, já não se usava no circo”. Quanto à frente de circo – existe, “é a que o irmão GG tem no circo dele, os arcos, as grades”; “foi o pai que comprou, 6000 e tal lâmpadas, mais os fios”.
· ─ por fim, segundo o depoimento do GG: o pai teve 2 bancadas, uma de madeira, que já não existe. Começou a construir-se uma de ferro, para a substituir, e foi até construída por ele, mais um funcionário “que já não está entre nós” e mais outras pessoas. A bancada que existe atualmente foi construída em 2003 (tinha ele cerca de 18-20 anos, vai fazer 41) e há documentação que o comprova; a bancada pertencia-lhe a ele, porque foi ele que a fez, “eu comprei o material”; sempre trabalhou com o pai e “fiz algumas coisas com o intuito de continuar a minha vida”. A sua bancada é maior que 47. Há 2 circos “A...”, que são dele, o 1º criado depois que se separou dum 1º casamento. Numa sessão seguinte, já depois de terem sido juntos os seus documentos, e sobre a sua “memória descritiva bancada” referiu o seguinte: esta bancada vem na substituição da bancada de madeira, vem na substituição de material; não conhece a media “47 degraus”, “eu não conheço essa medida que está aí descrita, não consigo sequer decifrar… acho que não existe nada no País com essas medidas”. Ao longo dos anos, “a bancada era restaurada, era pintada, substituição de espigões, todas essas coisas que eu fazia…sou o único na casa que fazia soldaduras”. “O ferro foi comprado a cru e depois foi feita a bancada, foi cortado, foi soldado, foi feita dessa forma, foi feito um 1º molde, depois desse molde foram feitos vários moldes, que dá este comprimento de 80 metros”. Sobre a frente de circo (arcos de iluminação) – existia à data da morte, “são meus, fui eu que fabriquei”, com ajuda de muita gente, não sabe o valor do material, a parte de madeira são paletes que foram dadas.
Quanto ao depoimento da mãe e cabeça de casal, a credibilidade do seu depoimento ficou logo de início completamente abalada, por duas circunstâncias, ao referir (i) “não sabe em que ano nasceu, nem quantos anos vai fazer porque teve um esgotamento”; “sabe que o marido faleceu em maio, mas não sabe o ano”; (ii) “o mal disto tudo é que eles querem a bancada de ferro, que não é nossa, é desse meu filho, e eles como têm ciúmes dele, porque eu estou com ele, ele nunca nos abandonou, foi ele que aguentou o pai e aguentou-me a mim até à data”.
Sobre a bancada 47 degraus, referiu “a única bancada que tinham era de madeira; o filho com quem está, andou a fazer uma de ferro porque aquilo já estava tudo podre, tinha que se ir partindo para, foi para lenha”. “O meu filho, como estava a trabalhar com a gente, foi fazendo uma de ferro, o GG”. “A bancada, a que é do filho GG está no trailer dele, foi ele que a foi fazendo aos bocados conforme ia ganhando, há 2 ou 3 anos, ou mais”.
Sobre a frente circo, com arcos e iluminação disse nada saber.
Concluindo: destes depoimentos é impossível estabelecer a prova da existência duma “bancada de 47 degraus”. Existem divergências perceber e falta de rigor entre os diversos depoimentos a todos os níveis. Desde logo, porque o próprio Reclamante nunca forneceu as caraterísticas da bancada que reclamou, à exceção dos 47 degraus, que ninguém confirmou.
Adiantou-se também nos depoimentos uma possível “sociedade” entre o inventariado e o seu filho GG. Mas é possível ver com clareza que todos confundem 2 realidades distintas: a exploração dum negócio (circo), com a propriedade dos bens usados nessa exploração. E na mesma confusão cremos ter-se incorrido na fundamentação da sentença.
Ao que parece, esta sociedade não passava de um simples quinhoar nos lucros por parte do GG, quiçá como compensação pelo trabalho que desempenhava. Este extrato do depoimento do interessado GG, bem o demonstra:
─ Eu trabalhava com o meu pai… o proprietário do circo B... era o meu pai
─ Disse na última sessão que era sócio do seu pai, em que regime estava?
─ Eu trabalhei sempre com o meu pai, saí da escola… o regime era, havia a receita que era feita no momento, com altos e baixos, ele ficava com uma parte, a parte dele e eu ficava com a minha; fazia da parte dele o que bem entendia, eu fazia da minha parte o que eu bem entendia; era o regime era esse, nós tirávamos as despesas de combustíveis, o pessoal que estaria na altura a trabalhar, isso também não era sempre certo, hoje tínhamos 2 funcionários, amanhã tínhamos 3 e era feito dessa forma, tirávamos as despesas locais, as de licenciamento, todas essas coisas era retirado. A restante receita era rachada a meio e ele fazia da parte dele o que bem entendia e eu fazia da minha parte o que eu bem entendia.
─ Quem era o responsável por fazer as reparações e substituir o material?
─ Concerteza o meu pai com a idade que tinha e a minha mãe não eram eles que faziam, nem eu ia, nem era de mim que eu ia pô-lo com essa responsabilidade, era eu que fazia, tenho habilidade para pintar, sei trabalhar com compressores, sei trabalhar com várias coisas, eu fazia a manutenção do que sabia; as outras coisas, era contratadas fora, e essas despesas eram deduzidas inhantes de rachar o dinheiro a meias
─ E o material que era preciso ser comprado? Também o comprava?
─ Quando começava a haver necessidade de adquirir alguma coisa, ele decidia se dava para… por exemplo, na questão duma lâmpada, isso são coisas vulgares que nós trocamos no momento e metemos para despesas, isso não é muito importante se passa a ser duma pessoa ou doutra. Na questão de aquecimentos, algum equipamento, aí houve essa questão de ponderarmos, será que vai comprar, se calhar o meu pai dizia-me, se calhar não compro, e eu se calhar dizia, eh pá, não, eu vou comprar e mete-se aqui a trabalhar… quando nós nos separarmos, o que é teu é teu, o que é meu, é meu. É esse formato (…)
De acordo com o art.º 342º nº 1 e 2 do Código Civil (CC), incumbia ao Reclamante o ónus da prova da existência dos bens que reclamou no património do finado.
Já a cabeça de casal, tendo-se limitado a impugnar o alegado, fica desonerada da obrigação de prova; pode, porém, oferecer contraprova destinada a criar a dúvida no tribunal sobre os factos alegados pela contraparte e, conseguindo-o, a decisão é tomada contra o Reclamante: art.º 346º CC. [[2]]
Resulta destas regras, e da prova produzida (documentos e declarações de parte) que, pese embora as boas intenções da Justiça Salomónica que decorre da fundamentação da decisão, a mesma não poder manter-se no tocante à bancada de 47 degraus nem à frente circo.
Consequentemente, há que proceder à eliminação do facto provado nº 5 (recurso principal), bem como dos factos provados nº 5 e 6 (recurso subordinado).

§ 4º - Foi suscitada a este Tribunal a reapreciação de pontos específicos da matéria de facto, o que acabou de se efetuar.
O Reclamante imputou a propriedade plena e exclusiva do inventariado da bancada e da frente de circo. O M.mº Juiz acabou por concluir por uma compropriedade desses bens, por parte do inventariado e do interessado GG, assim o fazendo consignar nos factos provados e factos não provados.
Este Tribunal acaba de concluir não se ter provado a tese da reclamação, ou seja, que as bancada e frente de circo fossem propriedade plena e exclusiva do inventariado.
Nessa medida, quando o resultado da reapreciação pretendida pelas partes entra em contradição com outros factos provados e/ou não provados, impõe-se ao Tribunal da Relação proceder à expurgação dessas possíveis contradições, alterando outros pontos da matéria de facto, mesmo que não especificamente pretendidos pelas partes.
Na verdade, «I. Cumprido pelo recorrente o ónus de impugnação a que alude o artigo 640º do CPC e tendo a Relação reapreciado os meios de prova indicados  relativamente aos pontos de facto impugnados pelo recorrente, não está o Tribunal da Relação impedido de alterar outros pontos da matéria de facto, cuja apreciação não foi requerida, desde que essa alteração tenha por finalidade ou por efeito evitar contradição entre a factualidade que se pretendia alterar e foi  alterada e outros factos dados como  assentes  em sede de julgamento.» [[3]]
Consequentemente, e por forma a evitar contradições, há que alterar a matéria de facto considerada na sentença em conformidade, nos seguintes termos:
· Dos factos provados, eliminam-se os factos nº 5 e 6;
· Dos factos não provados, eliminam-se os factos 4, 5 e 6;
· Aditam-se ao elenco dos factos não provados, os seguintes factos:
Ø À data da morte do inventariado BB, este era proprietário de uma bancada de circo composta por 47 degraus, no valor estimado de € 25.000,00.
Ø À data da morte do inventariado BB, este era proprietário de uma frente de circo (com arcos e iluminação), no valor estimado de € 5.000,00.

5.2. Reapreciação da subsunção dos factos ao direito
A herança constitui o conjunto de bens, direitos e relações jurídicas que integram o património deixado pelo falecido, que ainda não foi partilhado: art.º 2024º e 2025º do CC.
Nessa medida, uma das questões principais a apurar num inventário é saber quais os bens que integravam esse património do inventariado.
Quanto ao recurso principal, não se tendo provado que o inventariado era proprietário de uma “bancada de circo com 47 lugares” (tese do Reclamante), esse bem não pode integrar a relação de bens.
Assim, na procedência do recurso, há que julgar improcedente a reclamação quanto a esse bem.
Quanto ao recurso subordinado, e na medida em que se pretendia ver como provada a propriedade plena por parte do inventariado dessa mesma bancada e da frente circo, tal pretensão só pode soçobrar.
O objetivo duma reclamação contra a relação de bens é o de apurar se os bens reclamados pertenciam ao património do inventariado, designadamente a propriedade, em qualquer medida.
Se nenhuma forma de propriedade foi demonstrada, não pode o recurso proceder.


6. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto:
a) Determinar a reformulação da matéria de facto em conformidade com o § 4º do ponto 5.1. deste acórdão;
b) Julgar procedente o recurso principal (da cabeça de casal);
c) Julgar improcedente a apelação do Reclamante, AA.
d) Custas do recurso principal e recurso subordinado a cargo do Reclamante AA, face ao decaimento.





Porto, 21 de março de 2024
Relatora: Isabel Silva
1º Adjunto: Manuela Machado
2º Adjunto: Paulo Dias da Silva
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[[1]] Sobre a importância da razão de ciência na avaliação da prova testemunhal referia Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, IV volume, 1987, pág. 442-443: «tem a maior importância esta exigência da lei, porque a razão da ciência é um elemento de grande valor para a apreciação da força probatória do depoimento…Desceu a lei a estas minúcias, porque uma vez destruída ou abalada a razão da ciência, o depoimento perde o valor ou fica notavelmente enfraquecido; e para a parte contrária poder atacar a razão da ciência e o tribunal poder avaliar até que ponto é exacta a razão invocada, muito interessa saber as condições e circunstâncias especiais de que a [...] testemunha se socorre para justificar o seu conhecimento.».
[[2]] De registar que esta dúvida não é uma dúvida subjetiva ou arbitrária (por coerência lógica, não tendo o juiz presenciado os acontecimentos, sempre lhe seria legítimo um estado de dúvida); terá de ser uma dúvida objetivável: em resultado de um conjunto de dados que lhe advêm dos meios de prova produzidos, o juiz depara-se com a circunstância de, face às regras da experiência, serem possíveis e com o mesmo grau de probabilidade as duas versões sobre o mesmo facto ou, existindo só uma, que ela tenha efetivamente acontecido.
Terá de ser, portanto, uma dúvida sustentada em dados concretos, que o juiz terá de expressar.
[[3]] Acórdão do STJ, de 17/06/2021, processo nº 472/15.9T8VRL.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.