ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL
CÁLCULO
Sumário

Nos termos da jurisprudência uniforme do STJ, no cálculo da majoração da remuneração do administrador de insolvência, o valor de 5% referido na actual redacção do artigo 23.º, n.º 7, do EAJ, não incide sobre o montante total apurado para satisfação dos créditos, mas sim sobre o resultado de uma operação aritmética prévia destinada a apurar o “grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”.

Texto Integral

Processo n.º 1375/14.0TBVCD-T.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
1. Nos presentes autos em que foi declarada a insolvência de AA e BB, a administrador da insolvência (AI) CC veio, por requerimento de 28.09.2023, apresentar proposta de rateio parcial, de acordo com a qual a remuneração variável respeitante ao montante a ratear seroa composto pelas seguintes parcelas:
- Remuneração variável a que se refere o artigo 23.º, n.º 4, al. b), da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro (5% do resultado da liquidação): 30.687,51 € acrescido de IVA, num total de 37.745,64 € [(5%x613.750,26€)+IVA];
- Majoração a que se refere o n.º 7, do mesmo artigo 23.º (5% do montante dos créditos satisfeitos): 28.800,23 € acrescido de IVA, num total de 35.424,28 € [(5%x576.004,62€)+IVA].
O valor global a pagar à AI ascende, nos termos desta proposta, a 73.169,92 €.
2. Por termo datado de 23.11.2023, a secretaria fez constar o seguinte:
«[c]oncordamos com o cálculo da remuneração variável parcial apresentado nos termos do artº 23º, nº 4, al. b), do EAJ, mas discordamos do cálculo da majoração, nos termos do artº 23º, nº 7, do EAJ.
No presente caso, afigura-se-nos que o cálculo apresentado não considerou o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, apresentando-se como um cumular de duas operações incidentes em ambos os casos “grosso modo” sobre o resultado da liquidação assim ignorando a variável “(…) do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos” prevista no nº 7 do artº 23º do citado Estatuto do Administrador Judicial, na redacção em vigor desde 11-04-2022.
Nesse sentido apontam igualmente os Acórdãos de 28-09-2022, 29-09-2022, 20-12-2022 e 24-01-2023, dos Tribunais da Relação de Coimbra, Évora, Lisboa e Porto, e o Acórdão de 18-04-2023, do Supremo Tribunal de Justiça.
Entendemos que, na situação em apreço, quanto à fixação da remuneração variável parcial, importará considerar o cálculo que a seguir apresentamos.
De acordo com o cálculo junto, a majoração prevista no artigo 23.º, n.º 7, do EAJ, deve ser fixada em 2.154,38 €, correspondente a 5% do grau de créditos satisfeitos [5%x(7,480%x576.004,62€)], pelo que o valor global da remuneração dever ser fixado em 40.395,52 € [(30.687,51€+2.154,38€)+IVA].
3. Os autos foram com vista ao MP, que manifestou a sua concordância com a informação prestada pela secretaria e promoveu se procedesse conforme aí sugerido.
4. Notificada para se pronunciar, a AI manifestou a sus discordância relativamente à interpretação da secretaria quanto ao cálculo da majoração a apurar no âmbito do artigo 23.º, n.º 7, do Estatuto do Administrador Judicial, pugnando pela fixação da remuneração variável e respectiva majoração nos termos por si propostos.
5. Em 21.12.2023 foi proferido o seguinte despacho:
«Do cálculo da remuneração variável:
O cálculo da remuneração variável (ainda que parcial, dado que estamos no âmbito do rateio parcial) nos presentes autos deve nortear-se pela nova redação dada ao art. 23.º EAJ, pela Lei n.º 9/2022, de 11.01, atento o art. 10.º desta lei.
Preceitua o art. 23.º EAJ, n.ºs 4, 6, 10 e 11, com a redação aplicável aos autos:
“4 — Os administradores judiciais referidos no n.º 1 auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes:
a) 10 % da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5;
b) 5 % do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6.
(…)
6 — Para efeitos do n.º 4, considera -se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.
7 — O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 % do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles [sublinhado nosso].
10 — A remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100 000 €.”
Após iniciais divergências jurisprudenciais, é hoje jurisprudência maioritária que a aplicação automática da majoração de 5% ao valor obtido com base na al. b) do n.º 4 e n.º 6, deve atentar previamente na percentagem dos créditos satisfeitos, sob pena de não ser respeitado a letra e o espírito da lei ao estabelecer que esse valor é “majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 % do montante dos créditos satisfeitos”.
Assim, há que encontrar primeiro uma percentagem dos créditos satisfeitos; pelo que, depois de obtido o valor inicial dos 5% nos termos do n.º 4, b), e de deduzir ao resultado liquido (receitas – despesas) esta primeira parcela da remuneração variável e o montante da remuneração fixa, obtemos, então, o valor disponível para a satisfação dos créditos. Com este valor disponível para a satisfação dos créditos vamos, então, encontrar a percentagem de créditos satisfeitos, através da regra de três simples e considerando o valor total dos créditos reconhecidos; aplicando esta percentagem ao valor disponível para a satisfação dos créditos encontramos o grau de satisfação dos créditos e a este resultado obtido vamos então aplicar a majoração de 5%, que se soma ao valor inicial da remuneração e a que acresce o IVA.
Neste mesmo sentido, poderá ver-se o Acórdão da Relação de Évora de 29.09.2022, Proc. 260/14.0TBTVR.E1 e Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto Proc. 2631/20.3T8OAZ-E.P1, Ac. RP de 24-01-2023, Processo 1910/17.1T8STS-F.P1 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.04.2023 (Proc. 3947/08.2TJCBR-AY.C1.S1), disponíveis in www.dgsi.pt.
Nesta medida, acompanhamos a apreciação da secretaria e a promoção que antecede no que respeita aos cálculos da remuneração variável do Administrador da Insolvência, para os quais remetemos, e, em consequência, fixa-se a remuneração variável parcial do AI no montante global de € 40 395,52 (já com o IVA incluído), ainda sem considerar a receita entretanto obtida pela Massa Insolvente e não contemplada no mapa de rateio parcial apresentado pela AI.
Assim, o valor a ser rateado pelos credores em rateio parcial é de € 570 917,32, conforme consta nos cálculos efetuados pela Secção de Conta.
Notifique a Sra. AI para, em 10 dias, apresentar mapa de rateio parcial em conformidade ou esclarecer se considera mais adequado à boa tramitação dos autos aguardar-se pelo rateio final, uma vez que entretanto já fora encerrada a liquidação e já fora a AI notificada para prestar de contas.
Tendo sido encerrada a liquidação, remeta os autos à conta.».

*
Inconformada, a AI veio apelar desta decisão, formulando as seguintes conclusões:
«I. Assenta o presente recurso no cálculo da majoração sobre remuneração variável determinada em função do “grau de satisfacção dos créditos verificados”, calculada e apurada nos termos do art.º 23.º n.º 7 da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro / Estatuto do Administrador Judicial, nos termos em que tal normativo vem interpretado pelo Tribunal a quo.
II. Com o devido respeito, o Tribunal a quo desconsiderou os pressupostos factuais e a redacção legal que subjaz ao confronto de interesses emergentes no presente recurso, no que tange à interpretação do cálculo da majoração que o legislador EXPRESSA e DECLARADAMENTE consignou. Na verdade;
III. Nos termos do disposto no art.º 23.º n.º 7 do EAJ “O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.”
IV. A redacção do art.º 23.º n.º 7 do EAJ é sobejamente clara, determinando EXPRESSAMENTE que a majoração da remuneração do administrador da insolvência corresponde a 5% do montante dos créditos satisfeitos.
V. Decorre DIRECTA e INEQUIVOCAMENTE da citada norma que a taxa de 5% deve ser aplicada sobre um montante - “importância, soma, verba”5 -, isto é, sobre um valor nominal.
VI. Pelo contrário, na génese da decisão recorrida encontra-se uma leitura, salvo melhor opinião, errada da redacção do art.º 23.º n.º 7 EAJ, uma vez que, com efeito, o que aí se encontra previsto é uma majoração em “5% do montante dos créditos satisfeitos” e não em “5% do grau de satisfação dos créditos”.
VII. De facto, a redacção que o legislador conferiu à norma é substancialmente diversa da interpretação da decisão recorrida e reflecte uma inequívoca opção por um regime distinto daquele que o tribunal a quo aplicou;
VIII. Tanto mais que, deve presumir-se que o legislador se soube expressar correctamente – cfr. art.º 9.º n.º 3 do CCivil -, e que não estamos perante qualquer lacuna ou erro na expressão do legislador.
IX. Assim, se o legislador pretendesse que a taxa de 5% prevista no art.º 23.º n.º 7 EAJ se aplicasse sobre uma percentagem não teria determinado expressamente que ela incidisse sobre um montante.
X. Neste sentido já se pronunciou favoravelmente, quer a doutrina – cfr. Parecer do Exmo. Sr. Dr. ALEXANDRE DE SOVERAL MARTINS, Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, datado de 20/11/2022 e; ARAÚJO, Nuno Marcelo da Nóbrega dos Santos de Freitas, “A remuneração do Administrador Judicial e a sua apreciação jurisdicional depois de Abril de 2022”, Data Venia, revista digital, ano 10, n.º 13, Abril de 2022, pp. 67 a 110 -;
XI. Quer a jurisprudência – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no Processo n.º 9849/14.6T8LSB-E.L1-1, datado de 20-09-2022; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no Processo n.º 22770/19.2T8LSBF.L1-1, datado de 20/12/2022; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no Processo n.º 3454/20.5T8STS-K.P1, datado de 10/01/2023; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no Processo n.º 1024/10.5TYVNG-N.P1, datado de 18/04/2023 e; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 12/07/2023.
XII. Em consonância com a posição ora propugnada, o Exmo. Sr. Dr. ALEXANDRE DE SOVERAL MARTINS, Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em Parecer datado de 20/11/2022, regista lapidarmente que “no âmbito do processo de insolvência de liquidação, a majoração a efectuar nos termos do art.º 23.º, 7, do EAJ deve ser calculada a partir do montante dos créditos satisfeitos, aplicando-se a esse montante a percentagem de 5%”.
XIII. No entanto, em sentido oposto, o Tribunal a quo entendeu aplicar a taxa de 5% sobre o grau de satisfação dos créditos reconhecidos, corporizado numa outra percentagem (de 7,480%).
XIV. Consabidamente, o julgador está vinculado às opções do legislador, na medida em que lhe está vedado adoptar decisões que não tenham o mínimo de correspondência na letra da lei, pelo que;
XV. Deverá o Tribunal aplicar o disposto no art.º 23.º n.º 7 do EAJ, nos termos da solução que o legislador entendeu exprimir de forma literal e cristalina.
XVI. Conforme determina a citada norma, deve, no caso sub judice, aplicar-se a taxa de 5% sobre o valor de 576.004,62 € (montante dos créditos satisfeitos [613.750,26 € - 37.745,64 €]), de onde resulta uma majoração da remuneração variável do administrador da insolvência no valor de 28.800,23 € [576.004,62 € x 5%], acrescido de IVA à taxa legal em vigor.
XVII. Com o devido respeito, a decisão recorrida viola, no entendimento da recorrente, o disposto no art.º 23.º n.º 7 da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, com a redacção introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro;
XVIII. Devendo a mesma ser objecto de revogação e substituída por outra que, da lavra dos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação, além da quantia de 30.687,51 €, já fixada a título de remuneração variável, a que alude o art.º 23.º n.º 4, alínea b) do EAJ, fixe a majoração da remuneração variável da recorrente, a que alude o art.º 23.º n.º 7 do EAJ, em 28.800,23 €, montantes esses acrescidos de IVA à taxa legal em vigor».
O Ministério Público apresentou resposta a esta alegação, pugnando pela total improcedência da apelação.
*
II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
A única questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, traduz-se em saber se a majoração da sua remuneração variável foi correctamente fixada ou se, pelo contrário, os critérios legais impõem a sua alteração.
*
III. Fundamentação
1. Nos termos do disposto nos artigos 60.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) e 22.º do EAJ, o AI tem direito, pelo exercício das funções que lhe são cometidas, à remuneração prevista no seu estatuto, quando for nomeado pelo juiz, ou à remuneração prevista na assembleia de credores, quando for eleito por esta, bem como ao reembolso das despesas necessárias ao cumprimento daquelas funções.
A remuneração do AI e o reembolso das despesas constituem dívidas da massa insolvente (cfr. artigo 51.º, n.º 1, al. b), do CIRE) e são suportadas por esta (cfr. artigo 29.º do EAJ), a não ser nas situações expressamente previstas na lei.
A remuneração no AI nomeado por iniciativa do juiz – como sucedeu no presente caso – é fixada nos termos previstos no artigo 23.º do EAJ, na redacção introduzida pelo artigo 5.º da Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, que entrou em vigor no dia 11.04.2022 e é imediatamente aplicável aos processos pendentes, nos temos da norma transitória consagrada no seu artigo 10.º, n.º 1 (neste sentido, vide o ac. do TRL, de 20.09.2022, proc. n.º 9849/14.6T8LSB-E.L1-1, rel. Fátima Reis Silva, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode encontrar a demais jurisprudência citada sem indicação da fonte).
Em conformidade com o referido artigo 23.º, a remuneração do AI é composta por uma parte fixa de 2 mil euros (cfr. n.º 1) e uma parte «variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente» (cfr. n.º 4)
Como escreve Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Coimbra 2021, p. 81), «[c]ompreende-se a intenção do legislador: a parte fixa permite maior certeza na remuneração e a parte variável constitui como que uma motivação para o bom exercício da actividade», pois a (parte variável da) remuneração será tanto mais elevada quanto maior for o resultado da liquidação e a satisfação dos créditos reclamados.
Nos termos daquele n.º 4, do artigo 23.º, o valor da parte variável da remuneração «é calculado nos termos seguintes:
a) 10 % da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5;
b) 5 % do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6».
No presente caso, tendo sido determinada a liquidação do património dos insolventes, releva esta al. b), para cujos efeitos se considera «resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência» (cfr. n.º 6).
Acrescenta o n.º 7, do mesmo artigo 23.º, que «[o] valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 % do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles».
Em suma, para além da remuneração fixa, cujo valor não está em causa neste recurso, o AI tem direito a uma remuneração variável, correspondente a 5% do resultado da liquidação da massa insolvente, o qual é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos.
2. No caso concreto não existe qualquer discordância quanto à interpretação dos critérios previstos no artigo 23.º, n.ºs 4, al. b), e 6, do EAJ, e, por essa razão, não ocorrem divergências no cálculo do resultado da liquidação da massa insolvente – que o Tribunal a quo, em consonância com a proposta apresentada pela AI, com os cálculos apresentados pela secretaria e com a posição defendida pelo o Ministério Público, fixarou em 613.750,26 € – e no subsequente cálculo de 5% deste valor – que todos aceitam ser de 30.687,51 €, a que deve acrescer o respectivo IVA.
3. As divergências surgem apenas quanto à interpretação do critério de cálculo da majoração prevista naquele n.º 7 e, consequentemente, quanto ao resultado obtido.
Na tese defendida pela AI, a majoração prevista nesta norma equivale a 5% do valor dos créditos satisfeitos – valor que, no caso concreto, ascendeu a 576.004,62 €, pelo que a majoração corresponde a 35.424,28 € (5% x 576.004,62 €), acrescida do respectivo IVA.
Na tese adoptada na decisão recorrida, aquela majoração equivale a 5% de uma parte do valor dos créditos satisfeitos, a qual deve traduzir o grau o de satisfação dos créditos, o que pressupõe o cálculo prévio desse grau de satisfação – no caso concreto esse grau de satisfação foi de 7,480%, incidindo os 5% previstos na norma em apreço sobre aquela percentagem dos créditos satisfeitos, pelo que a majoração corresponde a 2.154,38 € [5% x (7,480% x 576.004,62 €)].
O relator do pressente acórdão já se pronunciou anteriormente sobre esta questão, tendo subscritos diversos acórdãos, como relator e como adjunto, em que defendeu a tese aqui preconizada pela recorrente (de que são exemplos os acórdãos proferidos nos processos n.º 965/15.8T8AMT-E.P1 e 861/20.7T8STS-E.P1, em que interveio naquela primeira qualidade), com os fundamentos assim explanados no último dos referidos acórdãos:
De acordo com o artigo 20.º do estatuto do administrador da insolvência estabelecido na Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho (que viria ser revogada pela Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro), a remuneração do AI nomeado pelo juiz era igualmente composta por uma parte fixa, regulada no n.º 1 daquele artigo por remissão para uma portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça, e uma parte variável, regulada no n.º 2 por remissão para a mesma portaria, acrescentando-se ainda o seguinte no n.º 4: «O valor alcançado por aplicação da tabela referida no n.º 2 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos factores constantes da portaria referida no n.º 1».
Esta Portaria veio a ser publicada em 20 de Janeiro de 2005, com o n.º 51/2005, prevendo-se no seu artigo 1.º o valor fixo da remuneração (já então de 2 mil euros) e aprovando-se no seu artigo 2.º as tabelas, anexas à mesma Portaria, que estabeleciam a remuneração variável do AI nos termos dos n.ºs 2 e 4 do referido artigo 20.º.
A tabela constante do Anexo II, a que se referia aquele n.º 4, era composta por duas colunas, constando da primeira diversas linhas com a “percentagem dos créditos admitidos que foi satisfeita” apresentada por ordem crescente (“até 5”, “de mais de 5 até 10”, “de mais de 10 até 20”, etc.) e constando da segunda coluna o mesmo número de linhas com o corresponde “factor aplicável” (“1”, “1,05”, “1,10”, etc.).
A majoração da remuneração variável era, assim, calculada através da aplicação de um determinado factor, que variava com consoante a percentagem dos créditos satisfeitos.
Com a entrada em vigor da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, a remuneração do administrador judicial nomeado pelo juiz, aí se incluindo o administrador da insolvência, passou a estar regulada no artigo 23.º do EAJ.
Na sua redacção inicial, a majoração estava prevista no seu n.º 5, nos seguintes termos: «O valor alcançado por aplicação das tabelas referidas nos n.ºs 2 e 3 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos fatores constantes da portaria [dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da justiça e da economia] referida no n.º 1».
Sucede que esta Portaria nunca chegou a ser publicada, pelo que as tabelas anexas à Portaria n.º 51/2005, de 20 de Janeiro, continuaram a ser utilizadas, ainda que de forma não consensual e não isenta de dúvidas, por serem a única forma de cálculo prevista em acto normativo cuja formulação se adequava aos critérios consagrados no novo EAJ.
Com as alterações introduzidas neste estatuto pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, o artigo 23.º deixou de remeter para quaisquer outros actos normativos, passando a definir directamente os critérios aplicáveis ao cálculo das diversas parcelas que integram a remuneração do administrador judicial.
Ficou, assim, definitivamente arredado o recurso aos critérios previstos na Portaria n.º 51/2005, de 20 de Janeiro, a qual, de resto, não é invocada na decisão recorrida nem nos pareceres da secretaria e do Ministério Público que a precederam.
Perante a actual redacção do n.º 7, do artigo 23.º, do EAJ, não vislumbramos qualquer fundamento legal para se fazer apelo ao valor percentual dos créditos satisfeitos e, muito menos, para fazer incidir os «5% do montante dos créditos satisfeitos» a que a norma alude apenas sobre aquela percentagem dos créditos satisfeitos, assim reduzindo a majoração a 5% desta percentagem.
Embora a redacção da norma em apreço não prima pela clareza, o que dela se extrai é que a majoração corresponde a 5% dos créditos satisfeitos.
Na verdade, a expressão “em 5% do montante dos créditos satisfeitos” contida no actual artigo 23.º, n.º 7, do EAJ, serve para concretizar o conceito de majoração “em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”, não traduzindo estas duas expressões critérios distintos, cumuláveis ou complementares.
O mesmo já sucedia com o anterior artigo 20.º, n.º 4, da Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho, cuja expressão “pela aplicação dos factores constantes da portaria referida no n.º 1” servia igualmente para concretizar o conceito de majoração “em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”. Nesta norma também não se fazia qualquer alusão à “percentagem de créditos admitidos que foi satisfeita”, expressão que apenas surgia na Portaria n.º 51/2005, não como factor de majoração, mas apenas para definir esse factor – entre 1 e 1,60 – pelo qual era multiplicado o valor a majorar, daí resultando que a majoração poderia ir de zero (se a percentagem dos créditos satisfeitos não excedesse os 5%) a sessenta por cento do valor base da remuneração variável (se a percentagem dos créditos satisfeitos excedesse os 70%).
Da redacção do artigo 20.º, n.º 4, da Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho, tal como da redacção originária do artigo 23.º, n.º 5, do EAJ, jamais se poderia extrair qualquer referência ao valor percentual dos créditos satisfeitos como elemento relevante para a majoração da remuneração variável, o que apenas sucedia por força da Portaria n.º 51/2005 e, ainda assim, repetimos, apenas por via indirecta, ou seja, não como factor de majoração, mas apenas enquanto elemento de referência do factor de majoração a aplicar.
Como bem afirmou o recorrente (…), «a percentagem aplicada decorria da tabela que consta no Anexo II da referida Portaria, e não da expressão “em função do grau de satisfação dos créditos” inscrita n.º 5 [agora n.º 7] do artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial».
Nestes termos, não vemos como se possa ver na norma em apreço a consagração de dois critérios distintos – de um lado o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos e, do outro lado, 5 % do montante dos créditos satisfeitos. O que a lei diz com clareza é que a majoração é feita em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos e, na concretização deste critério – que antes era feita por Portaria – esclarece que a mesma corresponde a 5 % do montante dos créditos satisfeitos.
Por esta razão, discordamos do ac. do TRL, de 20.12.2022 (proc. n.º 7269/14.1T2SNT-F.L1-1, rel., Manuela Espanadeira Lopes), quando afirma que a tese aqui preconizada se traduz numa interpretação ab-rogante da norma do artigo 23.º, n.º 7, do EAJ, na medida em que desconsidera um segmento da mesma, e do ac. do TRC, de 25.10.2022 (proc. 318/12.0TBCNT-V.C1, rel. Emídio Francisco Santos), onde se afirma que «nenhum dos sentidos em confronto é excluído pela letra do n.º 7 do artigo 23.º do estatuto», pois «a letra da lei tanto relaciona a majoração da remuneração variável com o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos como a associa ao montante créditos satisfeitos», mas conclui que só a interpretação adoptada na decisão recorrida «dá conteúdo útil a tudo que se afirma no preceito», ao passo que a outra solução «despreza um dos segmentos» do mesmo. Discordamos igualmente do ac. do TRC, de 28.09.2022 (proc. n.º 2495/20.7T8ACB.C1, rel. Maria Catarina Gonçalves), quando considera haver uma contradição insanável entre a segunda parte daquele n.º 7 (reconhecendo que a sua literalidade «parece apontar para uma remuneração que corresponderia (em qualquer caso) a 5/prct do valor dos créditos satisfeitos») e a primeira parte do mesmo número. Muito pelo contrário, cremos que a interpretação que preconizamos é a única que confere coerência à forma como ao legislador expressou o seu pensamento (cfr. artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).
Sem conceder, ainda que se entendesse que o legislador quis, efectivamente, consagrar dois critérios distintos e cumuláveis, não vemos qualquer fundamento sólido para afirmar que o “grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos” se traduz no “valor percentual dos créditos satisfeitos”, a não ser por recurso a uma Portaria já revogada e, ainda assim, conferindo a este critério uma relevância que o mesmo não tinha mesmo quando essa Portaria estava em vigor.
No sentido da solução por nós preconizada se pronunciou o ac. do TRL, de 20.12.2022 (proc. n.º 415/13.4TYLSB-E.L1-1, rel. Fátima Reis Silva), onde, depois de se afirmar e fundamentar desenvolvidamente que «grau não equivale a percentagem», se escreve o seguinte: «O n.º 1 do art. 23º deixou de remeter para qualquer Portaria, passando a regular, ele próprio o modo de cálculo. No que aqui nos releva, foi completamente eliminada qualquer referência à percentagem de créditos satisfeitos que nos permita continuar a entender que o grau de satisfação dos créditos referido ainda no nº7 do art. 23º é a percentagem de satisfação dos créditos e não apenas um maior grau de satisfação de créditos não relacional. A esta leitura acresce uma questão, para nós essencial: eliminada a portaria, o passo material dos cálculos que acha a percentagem dos créditos satisfeitos e faz incidir sobre o valor desta os 5% da remuneração, não está, rigorosamente, previsto. O que a lei prevê é, apenas que se aplique 5% ao montante dos créditos satisfeitos – sendo este montante, como já vimos, um grau de satisfação de créditos».
Deste modo, afirma-se no mesmo acórdão que, diferentemente do que é asseverado no ac. do TRE, de 29.09.2022 (proc. n.º 260/14.0TBTVR.E1, rel. Tomé de Carvalho), a letra da nova lei não indica que o legislador não pretendeu alterar o modo de cálculo anteriormente previsto. E acrescenta-se que os trabalhos preparatórios apontam nesse sentido, identificando como fonte inspiradora da norma que veio a ser aprovada um projecto de lei, cuja formulação previa como critério de majoração o grau de satisfação dos créditos, e um projecto de portaria, que concretizava o respetivo cálculo pela aplicação de 5% ao montante dos créditos satisfeitos, eliminando-se, pela revogação expressa e pela abolição de qualquer referência expressa, a ligação à percentagem de créditos satisfeitos.
Acrescenta-se no mesmo acórdão que «[e]ste elemento indicativo não retira à inserção da norma na Lei nº 9/2022, a sua ligação com a transposição da Diretiva 1023/2019 e com as finalidades ali enunciadas de assegurar que “a remuneração dos profissionais se reja por regras que sejam compatíveis com o objetivo de uma resolução eficiente dos processos.” – cfr. art. 24º nº4 da Diretiva. Esta constatação, ligada com a evidência de que o legislador pretendeu aumentar a remuneração dos profissionais de insolvência e incentivar a diligência na composição e liquidação da massa insolvente, permitem-nos confirmar a interpretação do n.º 7 que vimos defendendo, numa perspetiva de interpretação teleológica e sistemática – o legislador, prosseguindo estes objetivos, claramente rompeu com um modelo de cálculo anterior, nomeadamente escolhendo passar a regular, diretamente na lei, esse modelo, rasurando o anterior modelo regulamentar. E fê-lo mediante a eleição de regras de cálculo que se desligam dos créditos reclamados, do passivo do devedor, valorando exclusivamente o produto do trabalho do administrador, ou seja, a composição e valor da massa insolvente».
Afirmar que o propósito legislativo de manter o regime ou os critérios anteriormente vigentes é revelado pela similitude entre a anterior e a actual redacção do n.º 7, do artigo, 23.º do EAJ, revela-se um argumento pobre, pois é inegável que a existência ou a ausência de remissão para uma Portaria ou outro acto normativo pode fazer – e fez – toda a diferença.
Contra a solução interpretativa aqui adoptada não se argumente que, se fosse esse o pensamento do legislador, este teria escrito apenas que “o valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 é majorado em 5% do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles”. Tal argumento é totalmente reversível: se o legislador quisesse manter o recurso ao valor percentual do grau de satisfação dos créditos admitidos tê-lo-ia simplesmente trasladado da Portaria revogada para a nova lei, o que não fez.
Não se argumente, também, que o critério aqui preconizado potencia a atribuição de remunerações excessivas, tendo em conta o trabalho efectivamente desenvolvido, assim prejudicando os interesses da massa insolvente e dos seus credores, o que não pode ter estado no propósito do legislador. A verdade é que o legislador se preocupou em afastar esse risco e em garantir a correcção dos desequilíbrios que o critério de cálculo adoptado seria susceptível de gerar, consagrando um tecto remuneratório de 100 mil euros (cfr. artigo 23.º, n.º 10, do EAJ) e a possibilidade de redução da remuneração superior a 50 mil euros «tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções» (cfr. n.º 8 do mesmo artigo). Saber se estes mecanismos são os mais ajustados ou eficazes, tal como saber se a opção do legislador foi a mais correcta do ponto de vista da política legislativa, são questões que extravasam a tarefa do julgador.
Em conclusão, por tudo quanto ficou exposto, entendemos que o critério de majoração adoptado na decisão recorrida não corresponde ao actualmente vigente, afigurando-se mais consentâneo com a mesma o critério propugnado pelo recorrente.
No acórdão que vimos citando alude-se, de seguida, a diversa jurisprudência e doutrina no mesmo sentido, mas também a jurisprudência em sentido contrário, designadamente aos dois acórdãos do STJ então publicados, subscritos pelo mesmo colectivo de Juízes Conselheiros (acórdãos de 18.04.2023, proc. n.º 3947/08.2TJCBR-AY.C1.S1, e de 16.05.2023, proc. n.º 453/11.1TBCDN-M.C1.S1, ambos relatados por Maria Olinda Garcia).
A propósito destes arestos do STJ acrescenta-se ali o seguinte:
Analisados estes acórdãos, em tudo semelhantes, verifica-se que os mesmos não acrescentam argumentos novos ao debate em curso nas instâncias. (…)
Por fim, é prematuro afirmar ser esta uma jurisprudência firme ou, mesmo, dominante no Supremo Tribunal.
Posteriormente, o debate jurisprudencial prosseguiu. E embora as divergências persistam nos Tribunais da Relação, confirmou-se a uniformidade da jurisprudência da 6.ª secção do STJ – única com competência nesta matéria –, estando publicados acórdãos subscritos pelos diversos Juízes Conselheiros que integram a referida secção, sufragando a defendida na decisão recorrida, seguindo a mesma linha de argumentação.
A título de exemplo, o ac. do STJ, de 17.10.2023 (proc. n.º 1892/19.5T8AVR-L.P1.S1, rel. Maria Olinda Garcia), um dos mais recentemente publicados sobre o assunto, debruçando-se sobre um acórdão da Relação que havia adoptado a solução aqui preconizada pela recorrente, fundamentou assim a sua decisão:
3.3.2. O acórdão recorrido apresenta uma fundamentação dialogicamente compreensível, que este tribunal, naturalmente, respeita. Mas da qual diverge.
Apesar de serem legítimas as diferentes correntes interpretativas que se têm registado sobre o tipo de problema em análise nos presentes autos, decorre do art.14º do CIRE que a intervenção do STJ em matérias insolvenciais visa a orientação da jurisprudência, em nome da certeza e segurança na aplicação do direito.
Assim, na 6ª Secção do STJ, à qual cabe a competência especializada em matéria de insolvência, formou-se jurisprudência, decorrente de um entendimento unânime, no sentido de que o n.7 do artigo 23º do EAJ deve ser interpretado em sentido diverso daquele que se encontra sustentado no acórdão recorrido.
Deste modo, devem ser reiterados no presente caso os argumentos que determinaram o STJ a seguir, no acórdão proferido em 18.04.2023 (no processo n. 3947/08.2TJCBR-AY.C1.S1)2, interpretação divergente daquela que é sustentada no acórdão recorrido quanto à questão normativa em causa.
Extrata-se a fundamentação desse acórdão nos seguintes termos:
A formulação literal do n.7 do art.23º do EAJ não é isenta de dificuldades interpretativas.
Tais dificuldades identificam-se também quanto à determinação do sentido e alcance de outras disposições que regem a remuneração do administrador judicial (tanto enquanto administrador de insolvência, como enquanto administrador judicial provisório), das quais aqui se não cuidará porque o objeto do presente recurso se restringe ao n.7 do art.23º3.
A remuneração do administrador judicial em processo de insolvência, havendo liquidação, é integrada por uma parte fixa (art.23º, n.1) quantificada em €2.0004 e por uma parte variável, subdividida em dois vetores: um previsto nos números 4 e 6 do art.23º e outro previsto no n.7 (majoração). É apenas este segundo vetor da remuneração variável que está em causa no presente recurso.
Dispõe o n.7 do art.23º do Estatuto do Administrador Judicial:
«O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.»
A interpretação seguida no acórdão recorrido implica desconsiderar um segmento literal do n.7 do art.23º; precisamente aquele onde se lê: «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos».
Amputando a norma deste segmento literal, ela apresentaria a seguinte configuração:
«O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado (…) em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos (…)».
Com tal literalidade, o n.7 do art.23º expressaria claramente a tese sufragada pelo acórdão recorrido.
Porém, desconsiderar um segmento de uma norma (como se dele tivesse sido amputada) equivale a fazer uma interpretação ab-rogante dessa norma, ou seja, significa concluir que o legislador expressou aquilo que não queria dizer, e que, portanto, tal disposição não pode ter qualquer sentido normativo útil.
O intérprete concluiria, como afirma Oliveira Ascensão «(…) que esse texto proclamado como lei não contém, apesar das aparências, nenhuma regra.»
Porém, tendo presentes o “princípio do aproveitamento das leis” e a “presunção de racionalidade da legislação”, no percurso interpretativo do conjunto das regras que disciplinam a remuneração do administrador de insolvência, chega-se à conclusão que não existe oposição com qualquer outra norma que permita sustentar uma interpretação ab-rogante (lógica ou valorativa) do segmento literal «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos» do n.7 do art.23º.
Efetivamente, numa análise intra-sistemática, conclui-se que esse segmento do n.7 não conflitua com qualquer outro dos números do art.23º (que preveem hipóteses distintas da hipótese de majoração da remuneração do administrador). Ampliando o campo de análise às demais normas que, direta ou indiretamente, respeitam à matéria da remuneração do administrador, também não é identificável qualquer disposição de natureza especial ou de prioridade sistemática que pudesse esvaziar de sentido lógico ou normativo o segmento do n.7 do art.23º que aqui está em equação.
Conclui-se, portanto, não existir fundamento para fazer uma interpretação ab-rogante do referido segmento dessa norma.
Considerando que o legislador se pode expressar de modo imperfeito, mas que não cria disposições inócuas, deverá o intérprete encontrar um sentido normativamente útil para o referido segmento do n.7 do art.23º, tendo presentes os parâmetros previstos no art.9º do Código Civil.
Nestes termos, e num percurso dialógico com a interpretação do acórdão recorrido, cabe apurar se as alterações introduzidas pela Lei n.9/2022 permitirão uma interpretação restritiva do n.7 do art.23º, teleologicamente orientada pelo propósito legislativo de aumentar a majoração da remuneração do administrador.
Para se responder a tal questão, e perceber se a Lei n.9/2022 teve como propósito alterar o critério normativo destinado a encontrar a fórmula da majoração, há que ter presente a evolução legislativa das disposições reguladoras da majoração da remuneração do administrador de insolvência.
Que a Lei n.9/2023 alterou a percentagem a aplicar ao montante a ser considerado para efeitos de majoração não existem dúvidas, pois a nova redação dada ao n.7 do art.23º é clara ao consagrar uma percentagem de 5%, em vez da percentagem que se encontrava estabelecida, entre 1% a 1.6%, pela Portaria n.51/2005, de 20 de janeiro (que, nessa matéria, ficou esvaziada de sentido normativo).
Questão diferente, e é essa que ocupa o objeto do presente recurso, é a de saber a que montante se aplica aquela percentagem de 5%.
Como já referido, a atual redação do n.7 do art.23º do EAJ foi introduzida pela Lei n.9/2022. Porém, a expressão «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos» não surgiu ex novo com a reforma introduzida por essa lei; ela já constava das normas que antecederam o n.7 do art.23º.
Tal expressão tem um lastro legislativo que remonta à Lei n.32/2004 (antigo Estatuto do Administrador da Insolvência)8, cujo artigo 20º, n.4 dispunha:
«O valor alcançado por aplicação da tabela referida no n.º 2 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos factores constantes da portaria referida no n.º 1.»
A portaria para a qual esta norma remetia era a Portaria n.51/2005, de 20 de janeiro, do Ministério das Finanças e da Administração Pública e do Ministério da Justiça, cujo Anexo II continha uma tabela onde se encontravam previstos os fatores de majoração da remuneração do administrador, estabelecendo uma lista de correspondência entre a percentagem dos créditos reclamados que foram satisfeitos e o respetivo fator de majoração (entre 1% e 1,6%).
Quando a Lei n.32/2004 foi revogada pela Lei n.22/2013 (que estabeleceu o Estatuto do Administrador Judicial) aquela norma passou a corresponder ao n.5 do artigo 23º do EAJ, com o seguinte teor:
«O valor alcançado por aplicação das tabelas referidas nos n.os 2 e 3 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos fatores constantes da portaria referida no n.º 1. »
Continuou a fazer-se a remissão para a referida Portaria n.51/2005, a qual continuou em vigor, apesar de ter ficado desatualizada, pois literalmente continuava a referir-se ao artigo 20º da Lei 32/2004 (revogada pela Lei 22/2013).
Com a alteração introduzida no art.23º pelo DL n.52/2019 (de 17 de abril), o alcance normativo do n.5 deste artigo não se alterou, tendo a alteração consistido apenas num ajustamento à numeração que antecedia esta norma. O seu teor passou a ser o seguinte:
«O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 3 e 4 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos fatores constantes da portaria referida no n.º 1.»
Com a Lei n.9/2022, a previsão que até então se encontrava no n.5 do art.23º passou para o n.7 deste artigo, tendo desaparecido a remissão para a Portaria n.51/2005. Ao mesmo tempo, o legislador operou uma alteração relativamente às percentagens que antes constavam dessa portaria. Assim, em vez da percentagem que variava entre 1% e 1.6%, aplicáveis ao montante resultante do fator de satisfação, a lei 9/2022 estabeleceu uma percentagem fixa de 5%, que passou a constar do n.7 do art.23º.
Constata-se, assim, que com a Lei n.9/2022 o legislador não abandonou o critério normativo correspondente à expressão «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos», que já vinha da Lei n.32/2004.
Todavia, na nova redação do n.7, ao procurar explicitar o objeto de referência daquela percentagem, o legislador referiu-se ao «montante dos créditos satisfeitos», o que sustenta a tese no sentido de os 5% respeitarem à totalidade dos créditos satisfeitos, rectius, ao montante total destinado à satisfação dos créditos.
Apesar de literalmente imperfeita, essa expressão [montante dos créditos satisfeitos] não é necessariamente contraditória com o segmento literal que a antecede.
Na realidade, o montante a que se chega depois de aplicado o fator correspondente ao grau de satisfação dos créditos não deixa de ser um montante de créditos satisfeitos, ou seja, um montante destinado à satisfação de créditos.
Feito este percurso histórico, pode concluir-se que se o legislador da Lei n.9/2022 tivesse pretendido alterar o critério normativo (que já vinha da Lei n.32/2004) dificilmente se compreenderia que não o tivesse feito de forma clara, abandonando a expressão «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos».
Porém, não se identifica qualquer argumento sólido para sustentar essa eventual mudança de orientação legislativa. É inequívoco que a Lei n.9/2022 pretendeu favorecer o administrador, alterando a percentagem da majoração para 5%, em vez dos valores mais reduzidos que constavam da Portaria n.51/2005. Mas não é possível concluir que o legislador o tivesse pretendido favorecer em mais do que isso.
Ao manter o valor da remuneração fixa (em 2.000 €), no n.1 do art.23º, não parece que o legislador tenha dado um sinal de pretender melhorar significativamente a remuneração do administrador independentemente dos resultados alcançados pelo seu labor em cada caso concreto. Neste sentido, é possível concluir que o legislador terá pretendido fazer depender uma maior remuneração de um maior grau de empenho do administrador na satisfação do interesse dos credores.
Por outro lado, tendo presente que a Lei n.9/2022 transpôs a Diretiva 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, importa indagar se (nos considerandos ou no articulado) tal Diretiva contém alguma referência à remuneração do administrador.
Entre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos de insolvência, encontra-se o artigo 27º daquela Diretiva, o qual se refere à supervisão e à remuneração do administrador.
No n.4 deste artigo dispõe-se que:
«Os Estados-Membros asseguram que a remuneração dos profissionais se reja por regras que sejam compatíveis com o objetivo de uma resolução eficiente dos processos.»
Embora desta disposição não resulte um comando legislativo destinado a modelar diretamente as normas reguladoras da remuneração do administrado, o apelo a um propósito de eficiência compatibiliza-se melhor com uma majoração calculada «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos» (como consta do n.7 do art.23º do EAJ) do que com uma interpretação que não depende de qualquer grau de satisfação.
Pode ainda acrescentar-se que, caso subsistissem dúvidas interpretativas quanto à definição do critério de calculo da majoração que o legislador terá pretendido consagrar no n.7 do art.23º, constatando-se que determinado critério favorece mais os interesses do administrador, enquanto que o critério alternativo favorece mais os interesses dos credores, sempre os princípios estruturantes do regime da insolvência haveriam de ser ponderados para dissipar tais dúvidas. E a resposta encontrar-se-ia no artigo 1º do CIRE, nos termos do qual o processo de insolvência tem como finalidade a satisfação dos credores, nomeadamente através da repartição do produto da liquidação do património do devedor.
Em síntese, tendo-se formado jurisprudência unânime no STJ em sentido diverso daquele que é defendido no acórdão em revista, esta decisão terá de ser revogada.
Como se sublinha neste aresto, decorre do artigo 14.º do CIRE que a intervenção do STJ em matérias insolvenciais visa a orientação da jurisprudência, em nome da certeza e segurança na aplicação do direito.
Por conseguinte, tendo em conta a uniformidade alcançada no STJ, tendo igualmente em conta que a persistência de diferentes correntes jurisprudenciais a respeito desta questão redunda numa indesejável desigualdade na remuneração de funções idênticas, o relator deste acórdão entende dever rever a sua anterior posição, passando a adoptar a posição uniforme do STJ, que coincide com o entendimento que já vinha sendo preconizado pela Sras. Desembargadoras Adjuntas e que, por essa razão, sempre obteria vencimento.
3. Voltando ao caso concreto, os cálculos da secretaria relativos à remuneração variável da AI, validados pela decisão recorrida, foram realizados em consonância com a tese defendida pelo STJ, que coincide com a posição adoptada naquela decisão, o que, de resto, não foi questionado pela recorrente, pelo que se impõe confirmar a decisão recorrida.
Sendo, assim, improcedente a apelação, as respectivas custas são da responsabilidade da recorrente, nos temos do disposto no artigo 527.º, n.º 1, do CPC.
*
IV. Decisão
Pelo exposto, os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto julgam improcedente a apelação e confirmam a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
*
Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
………………………………
………………………………
………………………………
*
Porto, 19 de Março de 2024
Artur Dionísio Oliveira
Alexandra Pelayo
Márcia Portela