REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REMISSÃO PARA PEÇAS PROCESSUAIS
Sumário

I - Embora tal técnica de redação seja de evitar, uma vez que não está sujeito a formalidades especiais, pode o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente ser total ou parcialmente elaborado mediante remissão para outras peças processuais, devidamente identificadas, contanto desse modo seja possível apreender, de forma imediata e inequívoca, os factos (objetivos e subjetivos) que, segundo o requerente, devem integrar o objeto do processo.
II - Se, no entanto, for de concluir que o requerimento para abertura de instrução, em virtude das remissões efetuadas, não cumpre a função de delimitação que lhe cabe assegurar, não poderá o mesmo ser recebido.

(da responsabilidade do relator)

Texto Integral

Processo n.º: 899/20.4T9PNF.P1
Origem: Juízo de Instrução Criminal de Penafiel (Juiz 2)

Recorrente: AA (assistente)
Referência do documento: 17840164





I
1. O aqui recorrente, assistente nos autos, impugna, com o presente recurso, decisão proferida no Juízo de Instrução Criminal de Penafiel (Juiz 2) do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, que rejeitou requerimento de abertura de instrução por si apresentado na sequência de despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público em inquérito em que era queixoso.
2. Este é, na parte aqui relevante, o texto da decisão recorrida:
«Determina o artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, que “podem constituir-se assistentes no processo penal, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação”, estabelecendo o n.º 3, alínea a), da mesma norma processual, que “os assistentes podem intervir em qualquer altura do processo, aceitando-o no estado em que se encontrar, desde que o requeiram ao Juiz até cinco dias antes do início do debate instrutório ou da audiência de julgamento, devendo os mesmos ser sempre representados por advogado (artigo 70.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Assim sendo, por estar em tempo, ter legitimidade para tal (artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal e artigo 113.º do Código Penal) estar devidamente representado por advogado (artigo 70.º, do Código de Processo Penal), e liquidou a taxa de justiça devida (artigos 519.º, do CPP), admite-se a intervenção, nos presentes autos, como assistente.
Notifique.

*
Proferido despacho de arquivamento, veio o assistente requerer a abertura de instrução, pretendendo que a arguida seja pronunciada.
Cumpre apreciar e decidir
Decorre do artigo 287.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal que a abertura de instrução pode ser requerida no prazo de vinte dias a contar do arquivamento, pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o ministério Público não tiver deduzido acusação.
Neste caso, é entendimento inquestionável e unânime que, a par dos requisitos do n.º 1 do artigo 287.º, e apesar de, no n.º 2, o legislador não impor especiais formalidades ao requerimento de abertura de instrução, o mesmo deverá conter igualmente, sob pena de nulidade, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis”.
Aliás, a necessidade de o requerimento de abertura de instrução ter que se apresentar estruturado da forma supra descrita, é reforçada pelo artigo 309.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que fere com nulidade a decisão instrutória que, entre outras situações, pronuncie o arguido por factos que constituam alteração substancial dos factos descritos no requerimento para abertura de instrução.
Assim, o requerimento de abertura de instrução, tal como o nosso legislador o desenhou, não se apresenta como uma mera possibilidade processual de impugnação do despacho de arquivamento, coisa que, no caso concreto, o assistente se limitou a fazer, devendo, se essa era apenas a sua intenção, ter optado por lançar mão do instituto da reclamação hierárquica, que não deste mecanismo processual (neste sentido, cf. Acórdão da Relação de Lisboa, in CJ, T. II, 2004, p. 125 e Germano Marques da Silva, in Do Processo Penal Preliminar, p. 254).
O requerimento do assistente para abertura de instrução, na sequência de um despacho de arquivamento do Ministério Público, constitui substancialmente uma acusação, devendo assim apresentar-se, e, como tal, desempenha a decisiva função que àquela é cometida – delimitar o objecto do processo – que deve manter-se o mesmo até ao trânsito em julgado da decisão (cf. neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07.03.2007 – P. n.º 06P4688 e Acórdão da Relação de Coimbra, de 27.09.2006 – P. n.º 60/03.2TANLS.C1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt) ainda que possa ser excessiva a exigência de uma acusação formal (conforme entendimento expresso no Acórdão da Relação de Lisboa, de 21.03.2001, in CJ, T. II, 2001, p. 133).
Mas, não é disso que se trata. Não são razões de mera forma processual que aqui se perseguem. Pelo contrário, do que se trata é também de permitir, através das exigências precedentes, que o arguido, notificado do requerimento de abertura de instrução, possa devidamente vir exercer o seu direito de defesa, salvaguardando-se, assim, o princípio do contraditório.
Ora, nos presentes autos, é notório, da leitura do requerimento para abertura de instrução, que o mesmo não contém, de forma suficiente, a descrição dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena, limitando-se a mostrar discordância em face da atuação do Ministério Público.
No caso vertente, não se acusa a arguida de ter feito algo concreto. Por exemplo, não se diz ‘no dia x (ou, em data não apurada, entre os dias x e y) o arguido fez isto’, cometendo, pelo o exposto, o crime de (...).
Como se constata, o assistente não faz referência a quaisquer factos necessários ao preenchimento dos elementos do tipo de ilícito (previstos nos artigos 191.º, 203.º, nº 1 e 212.º, 256.º, nº1, al. b), todos do Código Penal), apenas utiliza os meios de prova para refutar o despacho de arquivamento, o que seria apenas admissível caso o assistente tivesse recorrido hierarquicamente do despacho de arquivamento, o que não foi o caso.
E, se assim é, estamos perante uma situação de inadmissibilidade legal de instrução, que é uma das causas de rejeição do requerimento do assistente para a abertura de instrução, nos termos do disposto no art. 287º, n.º 3 in fine.
Contudo, embora bastante debatida na jurisprudência, a questão foi já objeto de um acórdão uniformizador (Acórdão n.º 7/2005, publicado no DR, Iª série A, n.º 212, de 4 de Novembro de 2005), que fixou jurisprudência no sentido de não haver lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art. 287º, n.º 2 do Código de Processo Penal, quando o mesmo é omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido. A isso obsta, desde logo, a estrutura acusatória do processo penal, que afasta desta área do direito alguns dos princípios do processo civil, entendido como um processo de partes, de disponibilidade de interesses privados.
Em face do raciocínio expendido, o requerimento de abertura de instrução é nulo, devendo o processo ser arquivado.
NOS TERMOS EXPOSTOS e das disposições legais citadas, rejeito, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente.
[...]».


3. O texto do requerimento assim objeto de rejeição é o seguinte (os sublinhados são da nossa responsabilidade):
«[...]
2- Da Abertura de Instrução
A Instrução visa comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito.
No presente caso, está em causa a segunda situação perante a decisão de arquivamento do inquérito.
Demonstra-se adiante a errada decisão que foi o proferimento do despacho de arquivamento do inquérito, discorrendo-se as razões de facto e de direito da discordância relativa a tal arquivamento, indicando os actos de instrução que se pretende sejam levados a cabo, os meios de prova que não foram considerados no inquérito e os factos que, através de uns e de outros, se espera provar, e indicando os factos que fundamentam a punibilidade da conduta da Arguida, assim como as disposições legais aplicáveis.
O Ofendido apresentou Queixa-crime contra a Arguida pela prática, como autor moral, de um crime de furto, p.p. pelo artigo 203º e um crime de dano, p.p. pelo artigo 212º, ambos do Código Penal.
Na sequência da diligência de exame ao local dos factos realizada no dia 11/01/2022, novos factos foram apurados, motivo pelo qual se complementou a queixa-crime inicialmente apresentada com outra contra a Arguida, como autor moral, um crime de introdução em local vedado ao público, p.p. pelo artigo 191º e um crime de alteração de marcos, p.p. pelo artigo 212º, ambos do Código Penal, mas igualmente, como autor material, um crime de falsificação de documento, p.p.pelo artigo 256.º, nº1, alínea b) do Código Penal.
Toda essa nova factualidade apurada na sequência daquela diligência de exame ao local dos factos realizada no dia 11/01/2022 encontra-se sobeja e exaustivamente exposta no requerimento apresentado pelo Ofendido em 26/01/2022, para onde se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
O Douto Despacho de Arquivamento escudou-se na questão da titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel rústico onde, e relativamente ao qual, tais actos ocorreram, entendendo que não resultou suficientemente esclarecida a quem pertence o direito de propriedade de tal imóvel rústico, sendo que para a verificação dos sobreditos ilícitos se exige que se trate de imóvel alheio, integrado, portanto, no património do Ofendido, para ter o entendimento de que a matéria indiciária recolhida nos autos não ser suficiente para integrar os elementos objectivos dos tipos contidos nos crimes em apreço, não se afigurando previsível que à Arguida fosse aplicada qualquer pena em julgamento.
Não se pode estar mais em desacordo.
Desde logo, porque a questão da titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel rústico onde, e relativamente ao qual, tais actos ocorreram, a exigência de que para a verificação dos sobreditos ilícitos se exige que se trate de imóvel alheio, integrado, portanto, no património do Ofendido, apenas pode ter relevância, com o devido respeito, relativamente ao crime de furto, ao crime de dano, na parte referente aos eucaliptos, e ao crime de alteração de marcos.
Quanto aos demais crimes em causa, a questão suscitada é absolutamente irrelevante ou não deve ser colocada, como se explica.
O crime de introdução em local vedado ao público e o de dano, ocorrem, não só na parte de terreno onde pode essa questão ser relevante, ou seja, na parte de terreno alegadamente pertença da Arguida, mas o mesmo foi praticado também em parte do terreno pertença do Ofendido e relativamente à qual a Arguida não suscita a questão da titularidade do direito de propriedade.
Efectivamente, na diligência de exame ao local dos factos realizada no dia 11/01/2022 foi possível constatar o derrube de uma parte do muro de vedação do terreno de modo a dar acesso a veículo até ao local do abate dos eucaliptos; tal foi bastante evidente pela existência de sulcos de rodado numa parte do terreno cuja titularidade do direito de propriedade não está em causa pertencer à família do Ofendido.
Tudo patente na reportagem fotográfica que se efectuou no local por ocasião da diligência de exame ao local dos factos realizada no dia 11/01/2022 e que consta dos presentes Autos, mas que não terá sido levada em devida consideração no inquérito, mas que constitui prova de que se verificou, pois, o dano nessa parte do muro de vedação do terreno e a introdução em local vedado ao público em terreno que a Arguida não suscita a questão da titularidade do direito de propriedade, não coloca em causa que seja propriedade da família do Ofendido.
O crime de falsificação de documento, no caso concreto, é praticado através declarações falsas que pretendem a implantação da descrição nº...58, donde advém o terreno descrito sob o nº...22 e com artigo matricial nº...29, que a Arguida reclama como sendo de sua propriedade (o que não se contesta, porque o que está em causa é o local da sua implantação e não quem detém a titularidade do direito de propriedade sobre o mesmo), onde melhor conveio à Arguida, e isso foi em parte do terreno descrito sob o nº...59, do qual o Ofendido é um dos proprietários.
Tudo isto se encontra devida e exaustivamente esclarecido no referido requerimento apresentado nos presentes Autos pelo Ofendido em 26/01/2022 e devidamente suportado pela documentação junta com o mesmo e pela escritura de compra feita pela Câmara Municipal ... para construção do existente depósito de abastecimento de água no prédio descrito sob o nº...60 da Freguesia ..., resultante da desanexação operada naquele terreno descrito sob o nº...59, do qual o Ofendido é um dos proprietários, mas, prova esta, que não terá sido levado em devida consideração no inquérito, mas que constitui prova de que se verificou.
Pretende o Ofendido ser ouvido relativamente a toda esta matéria.
Deste modo, matéria probatória suficiente existe nos Autos, desde logo a confissão da Arguida de que foi a mandante, que resulta da diligência de exame ao local dos factos realizada no dia 11/01/2022, para fundamentar a punibilidade da conduta da Arguida, devendo ser proferido despacho de pronuncia.
Efectivamente, a Arguida foi a mandante, agindo deliberada, livre e conscientemente, com o propósito, concretizado, de destruir coisa alheia, bem sabendo que tal conduta, para além de censurável, era proibida por lei, cometendo, assim, pelo exposto, como autor moral, um crime de dano, p.p. pelo artigo 212º do Código Penal, e de, sem consentimento ou autorização de quem de direito, entrar e permanecer em lugar vedado e não livremente acessível ao público, bem sabendo que tal conduta, para além de censurável, era proibida por lei, cometendo, assim, a Arguida, pelo exposto, como autor moral, um crime de introdução em local vedado ao público, p.p. pelo artigo 191º do Código Penal, e ainda, de com a intenção de causar prejuízo a outras pessoas, os legítimos proprietários do terreno descrito sob o nº...59, do qual o Ofendido é um dos proprietários, procurando privá-los de algo que legitimamente lhes pertence, e de obter para si benefício ilegítimo, consubstanciado na apropriação de parcela de terreno que sabe não lhe pertencer, mas sim ao Ofendido e restantes pessoas inscritas como proprietárias do terreno descrito sob o nº ...59, fez constar falsamente do documento que serviu para instruir a ap. .../14092005 do referido prédio com a descrição nº ...58, facto juridicamente relevante, alterando tal descrição, nomeadamente quanto às suas confrontações, por forma a fazer crer que este se situa em local que, verdadeiramente, não é o correcto, não é o real, no caso “dentro” do terreno descrito sob o nº ...59, do qual o Ofendido é um dos proprietários, bem sabendo que tal conduta, para além de censurável, era proibida por lei, Cometendo, assim, a Arguida, pelo exposto, um crime de falsificação de documento, p.p.pelo artigo 256.º, nº1, alínea b) do Código Penal.
[...]».


4. A notitia criminis na origem do presente processo tinha o seguinte teor:
«[...]
Vem apresentar
QUEIXA-CRIME
Contra
[...], com última morada conhecida na Rua [...],
Nos termos e com os fundamentos seguintes:

O Queixoso é um dos proprietários do prédio rústico sito na Freguesia ..., Concelho de Penafiel, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...28 e descrito na Conservatória do Registo Predial Competente sob o número ...59/19891016 (Vide docs. Nº1 e 2).

O Queixoso no passado dia 1 de Novembro de 2019 de visita à localidade onde se situa o terreno supra descrito, encontrou pessoa conhecida que lhe informou que numa determinada área do terreno, onde se encontravam plantados alguns eucaliptos, estes haviam sido cortados.

De imediato o Queixoso se deslocou ao local do terreno onde constatou a veracidade do que lhe fora relatado e verificou que os eucaliptos que aí estavam plantados foram cortados e levados para fora do terreno.

Mais conseguiu apurar que os eucaliptos haviam sido cortados e levados para venda a terceiros.

O terreno de que o Queixoso é um dos proprietários, onde estavam plantados os eucaliptos encontra-se todo murado no seu perímetro, o que não foi, contudo, obstáculo para a realização dos actos supra descritos.

O Queixoso não conseguiu apurar o autor material dos actos de entrada no terreno, corte dos eucaliptos e venda dos mesmos, mas conseguiu apurar que foi a senhora BB a mandante, agindo deliberada, livre e conscientemente, com o propósito, concretizado, de destruir coisa alheia ou torna-la inutilizável e de ilegítima apropriação para si de coisa móvel alheia, subtraindo-a aos legítimos proprietários, um dos quais o Queixoso, bem sabendo que tal conduta, para além de censurável, era proibida por lei,

Que cometeu, assim, pelo exposto, como autor moral, um crime de furto, p.p. pelo artigo 203º e um crime de dano, p.p. pelo artigo 212º, ambos do Código Penal.
Requer-se:
A V. Exa. se digne receber a presente Queixa e ordenar se promovam averiguações em inquérito, seguindo-se demais termos.
[...]».


5. Por seu turno, o aludido requerimento apresentado pelo recorrente em 26/01/2022, tinha o seguinte teor:
«[...]
Na sequência da diligência de exame ao local dos factos realizada no passado dia 11/01/2022, novos factos foram apurados.
Desde logo a confissão da Arguida de que foi a mandante do acto de corte e venda dos eucaliptos.
Mas mais:
- Logo no início da diligência foi possível verificar-se o derrube de uma parte do muro de vedação do terreno de modo a dar acesso a veículo até ao local do abate das árvores; tal foi bastante evidente pela existência de sulcos de rodado numa parte do terreno cuja titularidade do direito de propriedade não está em causa pertencer à família do Ofendido;
- Foi também possível verificar-se, no local de abate das árvores, a alteração de marcos, com, inclusivamente, a introdução de novos marcos pré-inexistentes; Tudo, certamente, patente na reportagem fotográfica que se efectuou no local.
E tudo isto:
- Fazendo parte de plano, juntamente com outros factos a que adiante nos referiremos, tudo com vista a justificar a apropriação desta parte do terreno que se encontra integrada na descrição predial ...59, artigo matricial ...28, da Freguesia ...;
- E sem o conhecimento e, obviamente, consentimento ou autorização dos legítimos proprietários do terreno supra indicado com descrição predial ...59 e artigo matricial ...28, entre os quais se encontra o Ofendido, conforme certidão predial já junta aos Autos.
Cometeu, assim, a Arguida, pelo exposto, como autor moral, um crime de introdução em local vedado ao público, p.p. pelo artigo 191º e um crime de alteração de marcos, p.p. pelo artigo 212º, ambos do Código Penal.
Pelo que se REQUER a V. Exa., recebendo a presente Queixa, que o presente inquérito sirva igualmente para averiguação destes crimes, seguindo-se demais termos.
Mas estes factos foram apenas instrumentos para se atingir um fim maior: o da invocação do direito de propriedade sobre aquela parte do terreno de onde se abateram as árvores.
E para isso, foi ainda necessária a prática de um outro crime, menos perceptível na diligência realizada, pois foi necessário, para esse efeito, o recurso a análise de outra documentação, e que, por isso, se junta.
A Arguida juntou, tanto quanto se recorda, mas se não o fez, fazê-mo-lo agora, certidão predial de um prédio descrito sob o nº...02 e com artigo matricial nº...29, da Freguesia ... (Vide doc. nº1) de onde consta ser a Arguida a actual proprietária do mesmo, na consumação do que antes havíamos dito sobre a invocação do direito de propriedade sobre aquela parte do terreno de onde se abateram as árvores.
E é interessante a verificação do histórico deste terreno:
- Advém, como se constata pelo documento (nº1) junto, da descrição nº...58 à época inscrito na matriz predial sob o nº...77;
- O terreno aí descrito, por seu lado, era formado pelos prédios descritos sob os nºs ...87, ...88 e ...89;
- O terreno descrito sob o nº...58 tinha como confrontações (e isto é que é interessante e primordial e relevante neste caso):
Nascente: Caminho de Servidão;
Norte: CC (e esta referência é a do terreno com descrição predial ...59, artigo matricial ...28, da Freguesia ..., pertença, entre outros do Ofendido); Poente e Sul: ... (referência a propriedade da família da Arguida).
Constata-se, e enfatiza-se, a informação de que este terreno (descrição ...58), nesta descrição, apenas confronta com o do Ofendido (descrição ...59) a Norte. Mas como anteriormente se referiu, este terreno era formado pelos prédios descritos sob os nºs ...87, ...88 e ...89. Nenhum destes prédios, nas suas respectivas descrições, tinha qualquer indicação de confrontar a Norte com o terreno do Ofendido (descrição ...59), como se constata pelo documento junto (nº1); confrontando antes com um terreno referido como de “...” (descrição ...69 e matriz ...27 – conforme doc nº2 que se junta). Este último terreno (“...”) confronta a Norte como o descrito sob o nº...59 do qual o Ofendido é um dos proprietários; e a Sul com – imagine-se – DD, ascendente da Arguida e de quem esta adquiriu a propriedade do terreno descrito sob o nº...02 e com artigo matricial nº...29, que advém daquele descrito sob o nº ...58.
Perdoe-se a longa e, eventualmente, fastidiosa introdução, mas é realmente necessária para melhor se compreender o alcance dos actos da Arguida, mormente o relacionado com este último crime por ela praticado: o de falsificação de documentos.
Como se constata pela análise supra, o terreno descrito sob o nº...02 e com artigo matricial nº...29, que advém daquele descrito sob o nº ...58, e que a Arguida reclama como sendo de sua propriedade (o que não se contesta, porque o que está em causa é o local da sua implantação e não quem detém a titularidade do direito de propriedade sobre o mesmo), quando muito confrontava a Norte, e apenas a Norte, com o terreno descrito sob o nº...59, do qual o Ofendido é um dos proprietários. Pensa-se haver certeza ao dizer que a Norte confrontava igualmente com aquele designado “...”(Junta-se documentação de localização para melhor compreensão: Vide docs. nº3 e nº4).
Mas, pela documentação junta, nunca aquele terreno descrito sob o nº...02 e com artigo matricial nº...29, que advém daquele descrito sob o nº ...58, esteve como que implantado “dentro” do descrito sob o nº...59, do qual o Ofendido é um dos proprietários, como faz crer a sua nova descrição indicada em 2005.
Aliás, outro facto determinante de tal impossibilidade é a confrontação referida no prédio descrito sob o nº...60 da Freguesia ... (Vide doc. nº5), resultante da desanexação operada naquele terreno descrito sob o nº...59, do qual o Ofendido é um dos proprietários, operada pela compra feita pela Câmara Municipal ... para construção do existente depósito de abastecimento de água, onde é patente que nenhuma confrontação é com a Ofendida ou com alguém de sua família, mas antes com:
- Sul: ... e caminho público
Restantes: EE e outros, ou seja, os restantes herdeiros de CC, entre os quais o Ofendido, conforme consta da análise do documento ora junto como nº5 e o documento nº2 junto com a queixa-crime.
Mas a pergunta fulcral é: então o que sucedeu?
A resposta é simples: A Arguida em 2005 promove a inscrição da sua aquisição sucessória naquela descrição nº ...58, alterando-a, por mera declaração, nomeadamente nas suas confrontações, por forma a implantá-lo onde melhor lhe conveio, e isso foi em parte do terreno descrito sob o nº...59, do qual o Ofendido é um dos proprietários.
Deste modo, a Arguida, com a intenção de causar prejuízo a outras pessoas, os legítimos proprietários do terreno descrito sob o nº...59, do qual o Ofendido é um dos proprietários, procurando privá-los de algo que legitimamente lhes pertence, e de obter para si benefício ilegítimo, consubstanciado na apropriação de parcela de terreno que sabe não lhe pertencer, mas sim ao Ofendido e restantes pessoas inscritas como proprietárias do terreno descrito sob o nº...59, fez constar falsamente do documento que serviu para instruir a ap. .../14092005 do referido prédio com a descrição nº ...58, facto juridicamente relevante, alterando tal descrição, nomeadamente quanto às suas confrontações, por forma a fazer crer que este se situa em local que, verdadeiramente, não é o correcto, não é o real, no caso “dentro” do terreno descrito sob o nº...59, do qual o Ofendido é um dos proprietários.
Cometeu, assim, a Arguida, pelo exposto, um crime de falsificação de documento, p.p.pelo artigo 256.º, nº1, alínea b) do Código Penal.
Pelo que se REQUER a V. Exa. que o presente inquérito sirva igualmente para averiguação deste outro crime, seguindo-se demais termos.
Mais se REQUER o seguinte:
Nos termos do previsto no artigo 16º, alínea a) do Código do Registo Predial, o registo é nulo quando for falso ou tiver sido lavrado com base em títulos falsos. O Ministério Público pode, nos termos do previsto no artigo 16.º-B, nº2 e nº1, mediante apresentação de requerimento fundamentado, solicitar perante o serviço de registo que se proceda à anotação ao registo da invocação da falsidade dos documentos com base nos quais ele tenha sido efetuado, o que se REQUER. Mais:
REQUER-SE, igualmente, que o Ministério Público promova a competente ação judicial de declaração de nulidade, cujo registo conserva a prioridade correspondente à anotação.
[...]».


6. O recorrente verbera à decisão recorrida (reproduzem-se as «conclusões» com que termina o seu arrazoado):
«A) O presente Recurso vem interposto da Douta Decisão proferida no processo em referência e que rejeitou, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Assistente;
B)- O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Assistente também é uma impugnação processual do despacho de arquivamento e que “…utiliza os meios de prova para refutar o despacho de arquivamento…”, mas dizer que “… o mesmo não contém, de forma suficiente, a descrição dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena, limitando-se a mostrar discordância em face da actuação do Ministério Público.”, ou que no requerimento de abertura de instrução “… não se acusa a arguida de ter feito algo concreto.”, não fazendo o Assistente “… referência a quaisquer factos necessários ao preenchimento dos elementos do tipo de ilícito…”, é, sempre com o devido respeito, absolutamente falso;
C)- No requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Assistente acusa- se a Arguida de ter feito algo de concreto, existe a referência aos factos necessários ao preenchimento dos diversos tipos de crime em causa e está contida a descrição dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena à Arguida, independentemente da questão subjectiva da sua suficiência ou não conforme se encontra plasmada no Douto Despacho ora posto em crise mas relativamente à qual nem o próprio legislador se refere: exige-se, tout court, a existência de narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança;
D)- A exigência legal é a de “… narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível (sublinhado nosso), o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.”, e não há como afirmar que o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Assistente não cumpre com tais exigências legais;
E)- Não se pode esquecer que o objectivo primeiro da instrução é o de comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, estando, no presente caso, em causa a segunda situação perante a decisão de arquivamento do inquérito, pelo que não se pode esquecer aquele objectivo primeiro e não dar primazia à substância em detrimento da forma, sendo excessiva a exigência de uma acusação formal;
F)- Primordial é a substância, em detrimento da forma; importante é o cumprimento da exigência legal de “… narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível (sublinhado nosso), o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.”; importante é “… permitir, através das exigências precedentes, que o arguido, notificado do requerimento de abertura de instrução, possa devidamente vir exercer o seu direito de defesa, salvaguardando-se, assim, o princípio do contraditório.”, e tudo isto deve ser possível de afirmar estar contido no requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Assistente; E é-o no presente caso;
G)- Deste modo, dando-se provimento ao presente recurso, deve ser revogado o Douto Despacho ora posto em crise e proferido Acórdão no sentido de admissibilidade da abertura de instrução, seguindo-se os seus demais termos processuais.
[...]».


7. Em resposta, concluiu o Ministério Público junto da 1.ª instância:
«1. Nos autos de inquérito n.º 899/20.4T9PNF que correram termos no Departamento de Investigação e Ação Penal - 2.ª Secção de Penafiel - foi proferido despacho final – cfr. fls. 205/206 – que determinou o arquivamento dos autos por ter sido entendido, em síntese, "...que. compulsados todos os sobreditos elementos probatórios recolhidos, não resultou suficientemente esclarecida a quem pertence o direito de propriedade do referido imóvel, se ao denunciante ou à arguida, sendo que para a verificação dos sobreditos ilícitos exige-se que se trate de imóvel alheio, in casu, integrado no património de AA.
A resolução de tal dúvida realizar-se-á através dos meios civis, cabendo a cada cidadão cuidar dos seus interesses privados, mormente dos seus interesses patrimoniais, cuja solução para eventuais conflitos se deve encontrar, em primeira linha, no direito privado (Neste sentido Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. II. pág. 300).
Convém ainda reafirmar o carácter subsidiário e residual do direito penal. O direito penal só intervirá em questões que ultrapassem a esfera da autonomia privada Tal como refere José António Barreiros “o ilícito penal enquanto ultima ratio da censurabilidade social, começa onde existe algo mais do que se encontra no ilícito civil.”
Pelo exposto, em virtude de entendermos que a matéria indiciaria recolhida nos autos não é suficiente para integrar os elementos objectivos dos tipos contidos nos crimes em apreço, não se afigurando, pois, previsível que à arguida viesse a ser aplicada qualquer pena em julgamento (cfr. art. 283º. nº 2 do C. P. Penal), determino o arquivamento do presente inquérito, nos termos do art 277º, n.º2. do Código de Processo Penal. (...)
2. Inconformado, o Recorrente interpôs o presente recurso, no qual formulou as 7 "conclusões'' reproduzidas no local próprio, cujo teor aqui damos por reproduzidas, alegando, em síntese, que, em seu entender, constam do R.A.I. todos os necessários factos suscetíveis de preencher os elementos constitutivos, objetivos e subjetivos, do tipo dos crimes que entende terem sido indiciariamente praticados pela Arguida e. consequentemente, o Tribunal "a quo " deveria ter admitido tal requerimento e declarado aberta a instrução:
3. Porém, compulsado o seu R.A.I. se constata que, contrariamente ao pelo mesmo alegado, tal não se verifica;
4. Com efeito, tal como é bem salientado no despacho recorrido, não resulta do R.A.I.. que o Recorrente tenha imputado à Arguida a prática de algo em concreto, nomeadamente indicando de que comportamento (s) se tratou, quando ocorreu (eram), onde ocorreu (eram), se tal (tais) comportamento (s) foi (foram) praticado (s) com dolo ou negligência, e que tipo legal de crime (s) terá (am) sido (de forma suficientemente indiciária) por ela praticado (s) em consequência de tal (ais) comportamento (s): ou seja, que tenha feito a descrição de factos suficientes que preencham os elementos constitutivos, objetivos e subjetivos, do tipo dos crimes que pretende ver imputados à Arguida;
5. Do exposto resulta que o Recorrente não fez constar do seu R.A.I. factos suscetíveis de consubstanciar a imprescindível "acusação alternativa". necessária quando o objeto da instrução, como no caso dos presentes autos, é um despacho de arquivamento, e não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento, pelo que está correta e não merece censura a decisão do Tribunal "a quo " de rejeitar tal requerimento:
Termos em que o recurso deve improceder, mantendo-se inalterada a decisão recorrida.
[...]».
8. O Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se nos termos a seguir reproduzidos:
«[...]
Inconformado com a decisão proferida a 29/10/2023 que rejeitou o requerimento de abertura da instrução (RAI), dela interpõe recurso o assistente AA.
Em síntese, o recorrente:
- critica o despacho recorrido por ter feito deficiente apreciação do RAI, tendo erradamente considerado que o mesmo não continha referência aos factos necessários ao preenchimento dos diversos tipos de crime em causa, ou seja, que dele não constava uma descrição dos factos que fundamentam a aplicação à arguida de uma pena ou de uma medida de segurança;
- defende a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por decisão no sentido de admissibilidade da abertura de instrução.
O Ministério Público na primeira instância respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
Antecipamos que se adere às considerações expostas na resposta ao recurso apresentada pelo Exmo. Procurador da República.
Vejamos.
(In)admissibilidade da rejeição do RAI.
Entende o assistente que o requerimento de abertura de instrução não podia ter sido rejeitado, porém, sem razão.
Constata-se que, no caso dos autos, a rejeição do RAI teve como fundamento a absoluta omissão da descrição de factos essenciais quanto à tipificação dos crimes imputados à arguida, a saber; de furto, introdução em local vedado ao público, alteração de marcos, falsificação de documento, ps. e ps. respetivamente pelos artºs 203.º nº 1, 191º, 216º, 256.º, nº1 al. d), todos do C. Penal.
No nosso modesto entendimento, nenhuma censura poderá ser apontada a tal decisão.
Na verdade, da conjugação dos art.ºs 287.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, do CPP, resulta linearmente que, face aos princípios do acusatório e do contraditório que regem o processo penal, o requerimento de abertura da instrução, quando requerida pelo assistente na sequência de despacho de arquivamento, deve conter todos os elementos de uma acusação, descrevendo os factos imputas ao arguido em termos de estes poderem integrar os elementos objetivos e subjetivos de um tipo de crime.
Como bem se saliente no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2/11/2015, “o requerimento de abertura de instrução deve equivaler in totum a um despacho acusatório, com a descrição, narração factual bem apontada e delimitada e, bem assim, deve conter o elemento subjetivo da infração, não sendo admissível em qualquer um dos elementos constitutivos a ideia de subentendimento”.
Por outro lado, é maioritário o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o requerimento de abertura de instrução do assistente que não obedeça a tais exigências, deve ser objeto de rejeição, embora se discuta se o respetivo fundamento deve ser reportado ao n.º 3 do art.º 287.º do Código de Processo Penal (inadmissibilidade legal da instrução) – como é defendido, por exemplo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4/6/2013 – ou antes ao art.º 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. b), do CPP (acusação manifestamente infundada) – como é defendido, por exemplo, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/9/2019.
Ora, o Acórdão do STJ n.º 7/2005, de 4/11/2005, veio fixar jurisprudência no sentido de que: «não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente á narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».
Chamado a apreciar a constitucionalidade do artigo 287.º do CPP, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 636/2011, de 20/12/2011 (publicado no Diário da República, II Série, de 26/11/2012), decidiu: «não julgar inconstitucional a norma contida conjugadamente nos n.ºs 2 e 3 do artigo 287.º do CPP, na interpretação segundo a qual, não respeitando o requerimento de abertura de instrução as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo n.º 2 do artigo 287.º do CPP, e não ocorrendo nenhuma das causas de rejeição previstas no n.º 3 do mesmo preceito, cabe rejeição imediata do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente (não devendo antes o assistente ser convidado a proceder ao seu aperfeiçoamento para suprir as omissões/deficiências constatadas)».
A tudo acresce que a doutrina fixada pelo STJ no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015, publicado no DR, I Série, de 27-01-2015 («a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art.º 358.º do Código de Processo Penal») deve, no nosso modesto entendimento, ser aplicada, por identidade de razão, aos requerimentos para abertura da instrução apresentados por assistentes.
Analisemos, pois, a situação dos autos, de forma a avaliar se o recorrente deu cumprimento a tais exigências legais.
A 06/07/2023 e após ter efetuado a pertinente investigação, o Exmo. Magistrado do Ministério Público titular arquivou o Inquérito, ao abrigo do previsto no artigo 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, “… em virtude de entendermos que a matéria indiciária recolhida nos autos não é suficiente para integrar os elementos objectivos dos tipos contidos nos crimes em apreço, não se afigurando, pois, previsível que à arguida viesse a ser aplicada qualquer pena em julgamento (cfr. art. 283º, nº 2 do C. P. Penal)…”.
Inconformado, o aqui assistente veio requerer a abertura de instrução, pretensão essa que lhe foi rejeitada pelo despacho ora sindicado.
Lendo-se o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente verifica- se que o mesmo, salvo o devido respeito, pouco ou nada diz quanto aos factos em apreço nos autos, limitando-se, no essencial, a avançar as razões da sua discordância (legítimas, certamente) com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público.
Com efeito, o assistente aflora muito tenuemente a factualidade alegadamente em causa, não tendo feito qualquer referência à forma como se terão desenvolvido os factos denunciados, o que imporia ao juiz de instrução, dada a forma como alegou, a busca nos elementos probatórios dos factos que poderiam consubstanciar a prática dos imputados crimes.
Em bom rigor, é forçoso concluir-se que o assistente também tem dúvidas quanto a tal matéria e, por isso, é que afirma no RAI “…. que se pretende sejam levados a cabo, os meios de prova que não foram considerados no inquérito …”.
Ora, como bem se refere no despacho recorrido e se realça na resposta ao recurso pelo Ministério Público, a ser assim, não se percebe muito bem o fundamento para o assistente requerer a abertura da instrução, porquanto melhor teria sido requerer a intervenção hierárquica, nos termos do artigo 278.º do CPP.
Em suma, bem andou o Mm.º Juiz ao ter rejeitado o RAI do aqui recorrente.
[...]».


9. Cumpridos os legais trâmites importa decidir.


II
10. O presente recurso merece provimento.
11. 1. O requerimento de abertura de instrução em causa nos presentes autos contém, em si e por remissão para outras peças processuais, os elementos necessários à delimitação dos factos que imputa à aqui arguida.
12. a) Decorre expressamente da lei que «[o] requerimento [para abertura de instrução] não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º (…)» (cf. artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal; os sublinhados são nossos).
13. Por força da remissão aludida, o requerimento para abertura de instrução há de ainda conter, no que aqui nos interessa, «sob pena de nulidade: a) As indicações tendentes à identificação do arguido; b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; (…) d) A indicação das disposições legais aplicáveis (…)» (citado artigo 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal; os sublinhados são, de novo, nossos).
14. As exigências em apreço e a consequência legalmente cominada para a sua não observância são fáceis de compreender: por força do princípio acusatório que estrutura o nosso processo penal, o julgador apenas pode «investigar e julgar dentro dos limites que lhe são postos por uma acusação fundamentada e deduzida por um órgão diferenciado» (assim, por todos, Figueiredo Dias, Direito processual penal, reimpr., 2004, pp. 136-137; Claus Roxin/Bernd Schünemann, Strafverfahrensrecht, § 13, n.ºs m. 4-6), efeito de vinculação temática este que naturalmente se estende tanto aos factos que integrem o objeto do processo, mas igualmente à pessoa do seu (alegado) agente (ou agentes).
15. Por isso mesmo, a falta de identificação do suposto agente do crime, ou da descrição dos factos que alegadamente terá ele praticado, impede que a acusação cumpra adequadamente a função de delimitação (do objeto do processo e de identificação da pessoa do arguido contra quem o processo se dirige) que lhe cabe assegurar (a propósito, vd., por outros, C. Roxin/B. Schünemann, cit., § 40, n.º m. 12; Werner Beulke/Sabine Swoboda, Strafprozessrecht, § 13, n.º m. 285); como sublinham paradigmaticamente os dois últimos autores indicados, se não for claro em relação a que pessoa e a que concretos factos a acusação se refere, não pode dizer-se que exista uma acusação válida.
16. Este, portanto, até pelos seus efeitos gravosos, o critério da invalidade prevista no artigo 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal: esta só se verificará quando, a partir do seu texto, ou da articulação entre este e outros elementos constantes dos autos para que ela inequivocamente remeta, não seja possível determinar, de forma inequívoca, contra quem uma acusação (pública ou particular) é formulada, ou por que factos o é. Ou, dito de outro modo, quando de todo em todo a acusação não possa cumprir minimamente a sua aludida função de delimitação e, dessa forma, servir de baliza à subsequente atividade (porventura também investigatória) do Tribunal de julgamento.
17. Isto que se diz a propósito da acusação vale, mutatis mutandis e por força da já aludida remissão legal, para o requerimento para abertura de instrução, ao qual será de exigir que balize, nos termos expostos, o âmbito temático da ulterior atividade do Juiz de Instrução, permitindo, do mesmo passo, que a pessoa contra quem a instrução é requerida saiba que factos lhe são imputados e contra os quais se há de defender.
18. b) No caso dos autos, e bem vistas as coisas, nenhuma dúvida pode subsistir quanto à identidade da pessoa contra quem a denúncia apresentada pelo assistente nos autos e aqui recorrente foi formulada, e contra quem pretende ele que corra a instrução pelos factos em causa nos autos.
19. Por seu turno, contém também – sobretudo por remissão, é certo –, o requerimento para abertura de instrução, os factos que o assistente nos autos e aqui recorrente imputa à arguida no processo.
20. Com efeito, o aqui recorrente, no seu requerimento para abertura de instrução, refere-se expressamente à queixa-crime que apresentou contra a arguida – onde lhe imputou, depois da exposição dos factos que na sua opinião sustentariam tal acusação – a prática «como autor[a] moral, de um crime de furto, p.p. pelo artigo 203º e um crime de dano, p.p. pelo artigo 212º, ambos do Código Penal», sendo que esta invocação da queixa apresentada não pode deixar de entender-se como sendo também para os factos que aí descreve e de que entende haver prova bastante para os dar como indiciados no âmbito destes autos.
21. E, do mesmo modo, refere o ora recorrente, no seu requerimento para abertura de instrução, que «complementou a queixa-crime inicialmente apresentada com outra contra a Arguida, como autor[a] moral, um crime de introdução em local vedado ao público, p.p. pelo artigo 191º e um crime de alteração de marcos, p.p. pelo artigo 212º, ambos do Código Penal, mas igualmente, como autor[a] material, um crime de falsificação de documento, p.p.pelo artigo 256.º, nº1, alínea b) do Código Penal» mediante apresentação oportuna de requerimento «para onde se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido».
22. Assim sendo, e pese embora os termos em que redigiu o seu requerimento de abertura de instrução não sejam os mais felizes, nem muito menos, porventura, os tecnicamente mais adequados, é manifesto que o recorrente incorporou nele, ainda que sobretudo por remissão, tanto o teor da queixa-crime por si inicialmente apresentada, bem como o requerimento através do qual «complementou» essa mesma denúncia inicial, peças onde precisamente descreve todos os factos que imputa à arguida (e suscetíveis de integrarem tanto o tipo objetivo, como o tipo subjetivo, das infrações criminais imputadas).
23. Verifica-se, assim, que o requerimento para abertura de instrução deixa claro que o objeto da instrução pretendida é constituído pelos factos descritos tanto na queixa-crime, como no requerimento ulteriormente apresentado em 26/01/2022, pelo assistente e aqui recorrente.
24. Por seu turno, vistas tais peças processuais, que atrás se transcreveram, pode constatar-se que aí constam, porventura misturados com mais juízos de valor do que o que seria desejável, os factos que o recorrente imputa à arguida nos autos, todos eles por referência à única data que consegue ele precisar, a de 01/11/2019, altura em que, «de visita à localidade onde se situa o terreno supra descrito, encontrou pessoa conhecida que lhe informou que numa determinada área do terreno, onde se encontravam plantados alguns eucaliptos, estes haviam sido cortados», o que significa que todos os factos aqui em causa terão ocorrido anteriormente, embora em data que ao recorrente não é possível precisar (e que a lei, como se viu, também não exige que precise).
25. Em suma, não sujeitando a lei o requerimento para abertura de instrução a especiais formalidades, nem proibindo genericamente a fundamentação por remissão (seja para os atos do Tribunal, seja para os atos dos demais sujeitos processuais), forçoso é concluir que, pese embora de forma indireta, contém o requerimento para abertura de instrução aqui em causa todos os elementos necessários para balizar a subsequente atividade do Juiz de Instrução, estando em condições de ser admitido, se a isso nada mais obstar.
26. Coisa diferente seria se o assistente, nas peças processuais que convoca para compor o conteúdo do seu requerimento de abertura de instrução, não fizesse, de uma forma clara, referência aos concretos factos que imputa à pessoa (ou pessoas) contra quem move o processo, e/ou os mesmos não fossem suficientes para integrarem a conduta ilícita-típica em questão. Tal não é, porém, e como se disse, o que ocorre no caso vertente.
27. 2. Face à decisão que irá ser proferida, não há lugar ao pagamento de quaisquer custas (artigos 515.º, n.º 1, alínea b), a contrario, e 522.º do Código de Processo Penal).


III
28. Pelo exposto, acordam os da 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto em, julgando procedente o presente recurso, revogar a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que, nada mais obstando, declare aberta a instrução e determine a ulterior tramitação que no caso couber.

29. Sem Custas (artigos 515.º, n.º 1, alínea b), a contrario, e 522.º do Código de Processo Penal).






Porto, 20 de março de 2024.
(acórdão assinado eletronicamente).

Pedro M. Menezes (relator)
Pedro Afonso Lucas
Maria Joana Grácio (vencida, de acordo com a declaração que junta) [Declaração de voto: Voto vencida, pois entendo, tal como defendi no Proc. n.º 1016/14.5T3AVR.P1, de 29-04-2020, de que fui relatora, acessível in www.dgsi.pt, que o requerimento para abertura da instrução (RAI) não pode ser elaborado por remissão para peças processuais, salvo situações pontuais e circunscritas a pontos de facto restritos, como uma data ou o local dos factos, mas não para toda uma narrativa acusatória. A tal se opõe a estrutura acusatória do processo penal, que obriga a que o objecto do processo seja fixado com rigor e precisão, exigências não compatíveis com uma remissão factual, ou até uma dupla remissão, caso o JIC recorra à faculdade prevista no art. 307.º, n.º 1, do CPPenal.
Também o sentido do texto legal aponta para esta solução ao mencionar-se no art. 287.º, n.º 2, do CPPenal que o RAI deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito; no art. 307.º do CPPenal as razões de facto e de direito enunciadas no RAI e no art. 309.º do CPPenal os factos descritos no RAI.
Por outro lado, quando o legislador entendeu autorizar a faculdade de remissão fê-lo de forma inequívoca, como resulta do apontado art. 307.º, n.º 1, do CPPenal ou do art. 391.º-B, onde se prevê, no âmbito do processo abreviado, a possibilidade de a identificação do arguido e a narração dos factos poderem ser efectuadas, no todo ou em parte, por remissão para o auto de notícia ou para a denúncia. E neste caso (dos processos abreviados), em plena coerência com a impossibilidade de dupla remissão, não há lugar a fase de instrução (art. 286.º, n.º 3, do CPPenal).
Acresce que o Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 35/2012, de 25-01, em consonância com o seu anterior acórdão n.º 358/2004 - onde ficou expresso que «[c]abe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo» - deixou, a meu ver, bem claro que perfilha o entendimento exposto, decidindo «[n]ão julgar inconstitucional a norma extraída dos artigos 287º e 283º do CPP, quando interpretada no sentido de que a “sua formulação de “descrição sintética dos factos”, não permite que estes sejam descritos por remissão”».
Como tal, teria mantido a decisão recorrida.].