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MANDADO DE DETENÇÃO
FACTOS
Sumário
O artigo 258 n.1 alínea c) do Código de Processo Penal de 1998, se não se basta com a mera indicação do preceito incriminador, também não exige uma narração descritiva dos factos constitutivos do tipo de crime indiciado.
Texto Integral
ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL (2.ª) DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I
1. No inquérito n.º .../03.5JAPRT dos serviços do Ministério Público de Valongo, a arguida B.......... foi detida, em cumprimento de mandados de detenção emitidos pelo Ministério Público e apresentada para interrogatório judicial, em 20 de Janeiro de 2004.
1.1. No início do interrogatório, o mandatário da arguida arguiu a nulidade dos mandados de detenção, em síntese, por não conterem a indicação do facto ou factos que motivaram a detenção.
Sobre esse requerimento recaiu despacho de não reconhecimento da invocada nulidade.
1.2. No termo do interrogatório, a Exm.ª Juiz sujeitou a arguida à medida de coacção de prisão preventiva por considerar fortemente indiciada a prática pela arguida de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, verificar-se, em concreto, perigo de continuação de actividade criminosa e mostrar-se essa medida de coacção a única adequada e suficiente, no caso.
1.3. Nessa altura, o mandatário da arguida requereu que lhe fossem facultadas cópias da sessão e de todos os elementos de prova aduzidos na decisão, com vista à interposição de recurso.
Sobre esse requerimento recaiu despacho de deferimento parcial, determinando a Exmª Juiz a entrega ao mandatário da arguida de cópia do auto de interrogatório e de diversas folhas de autos de transcrição de intercepções telefónicas.
2. A arguida B.......... veio interpor recurso dos três despachos supra mencionados, ou seja, da decisão que «julgou não verificada a nulidade do mandado de detenção», da decisão «que impôs a prisão preventiva» e da decisão «que não facultou os elementos de prova necessários à impugnação da afirmação da existência de fortes indícios do crime imputado».
Rematou a motivação com a formulação das seguintes conclusões:
«Quanto à primeira questão:
«1 – O mandado de detenção emitido é nulo.
«2 – É nulo, porquanto sendo o crime imputado passível de ser cometido através de 18 formas diferentes, e
«3 – Obrigando a lei a que, do mesmo constasse o facto imputado, de modo a, cumprindo norma fundamental, permitir a informação imediata e compreensível das razões da detenção.
«4 – O mesmo não só não contém o facto, como se limita a referir o tipo de crime, impedindo, pois, não só que se ajuize a legalidade da detenção, como se possa preparar a defesa.
«5 – Tal interpretação da norma é a única possível, face à evolução legislativa. Na verdade,
«6 – O Código de Processo Penal de 1929 passou de uma redacção original, onde se exigia que o mandado contivesse a “indicação da infracção a que respeita” para, na reforma introduzida pelo DL 185/72, de 31/5, passar a ser exigida a “indicação do facto que motivar a detenção, ou desse facto ...”
«7 – A alteração de tal norma deveu-se, essencialmente, à influência do Prof. Cavaleiro de Ferreira nos trabalhos preparatórios da reforma, pessoa que já na vigência da versão primitiva se insurgira contra a interpretação da norma anterior, quando entendida como bastando a indicação do preceito incriminador.
«8 – Tal interpretação foi ratificada pela norma constitucional ínsita no artigo 27.º, n.º 4, da CRP, que só pode ser respeitada se, efectivamente, o facto for comunicado.
«9 – A decisão recorrida violou tal norma constitucional e o artigo da lei ordinária que considera nulo o mandado sem tal indicação (artigo 258.º, n.º 1, alínea c), do CPP). Pelo que deve ser revogada, declarando-se a existência de tal nulidade e ordenando-se a sua supressão com as consequências legais.
«Quanto à segunda questão:
«10 – Não pode a recorrente impugnar a afirmação de que existem fortes indícios do crime cometido, por lhe terem sido recusados os elementos de prova aduzidos para tal afirmação.
«11 – Não se verifica, em concreto, o requisito aduzido para a aplicação de medidas coactivas para além do TIR, já que está demonstrado nos próprios autos que, após Julho de 2003, nenhum sinal se vislumbra que a recorrente possa ter querido continuar a delinquir.
«12 – Não está demonstrado que outras medidas coactivas, que não a de excepção, não satisfaçam as exigências cautelares do caso.
«13 – A decisão recorrida ao ter aplicado a prisão preventiva, nas circunstâncias em que a aplicou violou os artigos 193.º, n.º 2, 202.º, n.º 1, alínea a), e 204.º, alínea c), todos do CPP, bem como o artigo 28.º, n.º 2, da CRP.
«Quanto à terceira questão:
«14 – Não foram facultados à recorrente os elementos de prova em que a decisão recorrida diz ter-se sustentado para concluir pela existência de fortes indícios do crime imputado.
«15 – Sem tais elementos, não pode o recorrente motivar de facto a oposição a tal afirmação.
«16 – O não fornecimento dos mesmos é justo impedimento para o exercício do direito ao recurso.
«17 – A interpretação que a decisão recorrida fez do artigo 86.º e 89.º do CPP, impedindo o acesso a tais elementos de prova, é inconstitucional por violação do artigo 32.º da CRP, conforme é entendimento uniforme do TC nos arestos referidos no requerimento que deu origem à decisão recorrida.
«18 – Revogando-se as decisões postas em crise nos termos reclamados, far-se-á justiça.»
3. Admitido o recurso e efectuadas as legais notificações, apresentou resposta o Ministério Público no sentido da improcedência do recurso, nas suas três vertentes.
4. Nesta instância, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta, aderindo à resposta do Ministério Público na 1.ª instância, foi de parecer de que o recurso não merece provimento.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal [Daqui em diante abreviadamente designado pelas iniciais CPP], a recorrente veio responder, sustentando, em síntese, que entre o primeiro interrogatório, em 19 de Julho de 2003 e o interrogatório de 20 de Janeiro de 2004, não se verificou qualquer alteração nos factos, de forma a justificar a aplicação de medida coactiva mais gravosa.
6. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
II
Cumpre decidir.
1. A primeira questão posta no recurso centra-se na arguida nulidade do mandado de detenção.
Preceitua o artigo 258.º do CPP que os mandados de detenção terão que obedecer, sob o ponto de vista formal, a determinados requisitos, que enumera no n.º 1, sob pena de nulidade.
Entre eles, «a indicação do facto que motivou a detenção ...» [alínea c)].
Não cremos que a exigência contida na primeira parte da alínea c) – aquela que o recurso convoca - reclame uma narração descritiva dos factos constitutivos do tipo de crime indiciado, bastando-se com uma referência genérica, que seja compreensível pela generalidade das pessoas, à conduta que conforma o crime que admite prisão preventiva.
Tanto mais que, também por imperativo legal (artigo 141.º, n.º 4, do CPP), no primeiro interrogatório judicial de arguido detido, o juiz deve expor ao arguido «os factos que lhe são imputados».
Este dever de expor ao arguido os factos que lhe são imputados, no início do primeiro interrogatório, só se pode compreender no entendimento de que os mandados de detenção não têm de conter a narração, especificamente concretizada, dos factos imputados, sob pena de se tratar de uma exigência redundante, por conformar uma inútil repetição do que já constava dos mandados de detenção.
Com isto não pretendemos sustentar que a indicação do facto que motivou a detenção se baste com a mera indicação do preceito incriminador [Sobre os diversos entendimentos, na matéria, pode consultar-se, v. g., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Editorial Verbo, 2003, pp. 191-193, que a recorrente segue, em alguns passos textualmente, sem indicação da fonte], de significado hermético para a generalidade das pessoas e só plenamente acessível aos técnicos de direito.
O que entendemos é que a indicação do facto que motivou a detenção se basta com a indicação da conduta que preenche o tipo incriminador, desde que ela seja descrita numa linguagem acessível à generalidade das pessoas.
Ora, no caso em apreço, os mandados de detenção não se limitam à mera indicação do tipo incriminador, indicam o facto que motivou a detenção – a prática do crime de tráfico de estupefacientes.
Na sociedade actual, a expressão «tráfico de estupefacientes» não é, de todo, um conceito normativo. Em si mesma, a expressão tem, hoje em dia, um significado puramente descritivo. E, por isso, a sua compreensão está ao alcance dos leigos, com o inequívoco significado genérico de «negócios de droga», embora o tipo incriminador compreenda diversas modalidades de conduta.
A indicação «da prática de crime de tráfico de estupefacientes» concretiza suficientemente o facto sobre o qual existem fortes indícios e já permite que o detido se prepare para o interrogatório subsequente. Com essa indicação, o detido já não será surpreendido pela exposição que o juiz lhe fará dos factos concretos que lhe são imputados.
Concluímos, pelo exposto, que a decisão que não declarou a nulidade dos mandados de detenção, arguida pela recorrente, não merece qualquer censura.
2. A recorrente reage, também, ao despacho que a sujeitou à medida de coacção de prisão preventiva por não se verificarem exigências cautelares que a justifiquem.
2.1. O recurso aos meios de coacção em processo penal respeita os princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade como emanação do princípio constitucional da presunção da inocência do arguido, contido no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição.
O artigo 191.º, n.º 1, do CPP, ao mesmo tempo que consagra o princípio da legalidade ou da tipicidade das medidas, afirma o princípio da sua necessidade ao estatuir que «a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar».
Os princípios constitucionais da excepcionalidade e da necessidade da prisão preventiva (artigos 27.º, n.º 3, e 28.º, n.º 2) conferem à mais gravosa das medidas de coacção uma natureza excepcional, não obrigatória e subsidiária, consagrada no n.º 2 do artigo 193.º do CPP.
Esta natureza significa que a aplicabilidade da prisão preventiva se restringe aos casos em que, verificados qualquer dos requisitos gerais do artigo 204.º e o requisito especial do artigo 202.º, ambos do CPP, as restantes medidas de coacção se mostram inadequadas ou insuficientes.
O juiz, face ao caso concreto, tem de decidir, em prudente critério, sobre a necessidade da prisão preventiva, impondo-se a «necessidade da injustiça de uma prisão antes do julgamento quando se mostrem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção, quando não baste a imposição ao arguido de outro tipo de restrições à sua liberdade ou à sua esfera jurídica» [João Castro e Sousa, «Os meios de coacção no novo Código de Processo Penal», Jornadas de Direito Processual Penal, Livraria Almedina, Coimbra, 1988, p. 152].
2.2. No caso em apreço há indícios fortes, que resultam, designadamente, da compreensão conjugada dos resultados obtidos com as escutas telefónicas, as buscas e as vigilâncias policiais [E que vieram a conduzir à dedução de acusação contra a recorrente, em 12 de Março de 2004], de que a recorrente se dedicou ao tráfico de estupefacientes durante alguns meses e, pelo menos, até Julho de 2003, de forma conjugada com outros, assumindo, no concerto com outros, um papel de liderança e desenvolvendo essa actividade no período de suspensão da execução de uma pena de prisão, pela prática de crime de tráfico de estupefacientes, e mesmo depois de ter razões para desconfiar que estava a ser vigiada pela polícia.
Este quadro evidencia um concreto perigo de continuação de actividade criminosa.
Nem o facto de se encontrar em pleno período de suspensão da execução de uma pena de prisão (pelo mesmo tipo de crime), nem as desconfianças de que estaria a ser vigiada pela polícia foram de molde a inibir a recorrente.
Por outro lado, a recorrente, no desenvolvimento de actividades conjugadas com outros, assumiu papéis de destaque e de liderança, o que determina o perigo concreto de que, em liberdade (mesmo que sujeita a medidas de coacção não absolutamente restritivas da liberdade), prossiga a actividade, ainda que na assunção de funções de orientação e coordenação do desempenho de executores puramente materiais.
Por isso, entendemos que se verifica [A recorrente não quis questionar a verificação do requisito especial do artigo 202.º, n.º 1, alínea a), do CPP] o requisito geral contido na alínea c) do artigo 204.º do CPP - perigo de continuação de actividade criminosa - para aplicação de qualquer medida de coacção, à excepção da que se contém no artigo 196.º do CPP, e que a medida de coacção de prisão preventiva é a única adequada e suficiente no caso.
2.3. Ainda que não haja indícios de que a recorrente prosseguiu a sua actividade a partir de Julho de 2003, essa falta de indícios, que não significa, necessariamente, cessação da actividade, não anula nem, sequer, enfraquece as exigências cautelares que decorrem dos factos, fortemente indiciados, praticados até essa data.
Por outro lado, não se tratou, no caso, de alteração das medidas de coacção (em Janeiro de 2004) sem que se verificasse um agravamento das exigências cautelares a partir de Julho de 2003 (data do primeiro interrogatório).
É que, como se destaca no despacho recorrido, a actividade da recorrente não era conhecida, em toda a sua extensão e implicações, à data do primeiro interrogatório. Não se tratou, portanto, de valorar diferentemente os elementos indiciários já conhecidos mas de valoração de indícios que, embora anteriormente recolhidos, só foram plenamente conhecidos no segundo interrogatório.
Nada há, portanto, a censurar à decisão que sujeitou a recorrente à medida de coacção de prisão preventiva.
3. Finalmente, a recorrente impugna o despacho que não deferiu integralmente a sua pretensão de lhe serem entregues todos os elementos de prova aduzidos na decisão que a sujeitou à medida de coacção de prisão preventiva.
Recordemos que, após a prolação do despacho que sujeitou a recorrente à medida de coacção de prisão preventiva, o seu mandatário requereu o seguinte:
«Por pretender interpor recurso da decisão ora proferida requer que lhe sejam facultados imediatamente cópia integral da presente sessão bem como de todos os elementos de prova aduzidos na decisão referida, nomeadamente as folhas para que remete ...».
A decisão recorrida remete para os autos de transcrição de escutas telefónicas de fls. 89 e s., 91 a 93, 94 e s., 96 e s., 98 e s., 100 e s. e 111 e s., para a busca documentada a fls. 124 e s., para a escuta telefónica de fls. 46 e s. e para o auto de diligência externa de fls. 19 e 21.
Pelo despacho recorrido foi determinada a entrega ao mandatário da recorrente de cópia do auto de interrogatório e dos autos de transcrição de intercepções telefónicas de fls. 89 e s., 91 a 93, 94 e s., 96 e s., 98 e s., 100 e s. e 111 e s.
Não cremos que o indeferimento parcial do requerido possa sustentar, validamente, uma ofensa das garantias de defesa da recorrente, particularmente do direito ao recurso.
Para além de, durante o interrogatório, ter sido especificamente confrontada com as escutas realizadas (cujos autos foram entregues, à excepção do de fls.46 e s.), a recorrente assistiu à busca a que se refere o despacho e, também durante o interrogatório, foi confrontada com os documentos apreendidos nessa busca. Por isso, não pode ignorar o conteúdo dessa diligência, podendo rebatê-la eficazmente mesmo sem cópia.
Quanto aos elementos de que não foram fornecidas cópias é preciso ter em conta que se trata ou de diligência que não afecta apenas a recorrente ou de escuta telefónica a outra pessoa. Se mais não fora, por esses elementos atingirem direitos fundamentais de terceiro, mostra-se justificado que não tivessem sido fornecidos à recorrente.
Ou seja, no caso em apreço, a Exm.ª Juiz procedeu a uma apreciação, em concreto, dos interesses conflituantes em presença e, no asseguramento das garantias de defesa da recorrente, facultou-lhe o acesso a elementos probatórios do inquérito.
A recorrente conhece, necessariamente, os elementos probatórios que resultam da busca, a que assistiu, e com os quais foi especificamente confrontada no interrogatório. À recorrente foram facultados os registos de escutas aos telefones que utilizava. Por isso, o despacho recorrido não se traduz numa restrição excessiva dos direito de defesa da recorrente.
No acórdão do Tribunal Constitucional referido pela recorrente [Acórdão n.º 127/97, publicado no Diário da República, II Série, n.º 100, de 30 de Abril de 1997], escreveu-se, a dado passo:
«Neste quadro legal [O nosso], não é possível sustentar que os princípios do contraditório e da igualdade de armas imponham ao legislador que consagre, em todos os casos, um acesso irrestrito e ilimitado aos autos na fase de inquérito pelo arguido, seja para recorrer do despacho que impôs a prisão preventiva, seja para requerer a sua revogação ou substituição e, porventura, recorrer do despacho que sobre tal requerimento vier a ser proferido (artigo 212.º do CPP). De facto, as circunstâncias podem variar de caso para caso, no que toca ao tipo de crime investigado e ao próprio grau de desenvolvimento das actividades de recolha de prova.»
A interpretação dos artigos 86.º e 89.º do CPP contida no despacho recorrido não viola, pelo exposto, o artigo 32.º da Constituição.
III
Termos em que, pelos fundamentos expostos, acordamos em negar provimento ao recurso e confirmar todas as decisões recorridas.
Por ter decaído, vai a recorrente condenada em 3 UC de taxa de justiça.
Porto, 26 de Maio de 2004
Isabel Celeste Alves Pais Martins
David Pinto Monteiro
Agostinho Tavares de Freitas