CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
DENÚNCIA DO CONTRATO
COLISÃO DE DIREITOS
CONSTITUCIONALIDADE
Sumário

I - O artigo 65º da Constituição da República Portuguesa implica para o Estado uma obrigação positiva de criação de um regime jurídico do arrendamento para habitação, que discipline o acesso dos cidadãos a uma habitação, pela via do arrendamento, devendo as rendas ser compatíveis com o rendimento familiar (cfr. o artigo 65º, nº 3), dado que o arrendamento habitacional constitui um dos instrumentos de satisfação ou de concretização do direito fundamental à habitação.
II - Independentemente, porém, de saber qual o grau de liberdade de que o legislador goza, em face do preceituado no artigo 65º da Constituição, na definição do regime jurídico do arrendamento urbano, é indubitável que as normas que reconhecem ao senhorio o direito de denúncia do contrato de arrendamento, com a antecedência legal fixada na lei, não infringem aquele preceito constitucional.
III - As normas do Código Civil respeitantes à denúncia do contrato de arrendamento para habitação pelo senhorio, visam resolver um conflito entre o direito à habitação e de propriedade do senhorio e o direito a habitação do inquilino.
IV - Em face desse conflito, a lei atribui preferência ao direito à habitação e propriedade do senhorio - o qual se fundamenta no direito de propriedade sobre o prédio urbano, direito este garantido pelo artigo 62º, nº 1, da Constituição - sobre o direito à habitação do inquilino - o qual se baseia no contrato de arrendamento urbano, que é renovável nos termos da lei.
V - É sempre forçoso que, em concreto, se questione a (in) constitucionalidade de normas, não sendo, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efectuada, em termos de se assacar ao acto judicial de “aplicação” a violação (directa) dos parâmetros jurídico-constitucionais.
VI - Ou seja, não cabe apurar e sindicar da bondade e do mérito do julgamento efectuado in concreto por um qualquer tribunal, mas antes e apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas, o que, no caso vertente, não foi, sequer, devidamente observado pelo recorrente.

Texto Integral

Recurso de Apelação - 3ª Secção
ECLI:PT:TRP:2024:4161/21.7T8MAI.P1






Acordam no Tribunal da Relação do Porto


1. Relatório
AA, residente na Avenida ..., ..., sala ...7, ... Maia instaurou acção declarativa sob a forma de processo comum contra BB, residente na Rua ..., ... Maia e contra CC, residente na Rua ..., ..., ... Maia, onde concluiu pedindo:
- seja reconhecida a denúncia do contrato de arrendamento, na data de 31 de março de 2021, declarando-se cessado e extinto nessa data o contrato de arrendamento identificado nos autos e, consequentemente:
- seja o 1.º réu condenado a despejar imediatamente o arrendado e entregá-lo ao autor livre de pessoas, coisas e animais e no bom estado e com todas as coisas que o recebeu e que o compõe;
- sejam condenados ambos os réus a pagar ao autor a indemnização mensal pela ocupação, que corresponde ao valor da renda de € 300,00, por cada mês, elevada ao dobro, isto é, no montante de € 600,00, por cada mês de ocupação, desde a citação até à efetiva entrega do locado, livre de pessoas, coisas e animais;
- sejam condenados ambos os réus a pagar ao autor juros vincendos à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento sobre todas as quantias que se mostrarem em dívida.
Alegou, em síntese, que é proprietário de um bem imóvel na Maia, tendo celebrado com o Réu um contrato de arrendamento, com início em 01 de abril de 2012 e fim, em 31 de março de 2017, que foi renovado ou prorrogado, por períodos de 1 ano, até 30/03/2021, uma vez que não foi denunciado no seu termo da renovação, até essa data.
Acrescentou, que por força das renovações/prorrogações, o contrato renovou-se até 30/03/2021, tendo este último período o seu termo em 30 de Março de 2021.
Mais alegou, que através de carta registada com aviso de recepção enviada em 01/10/2020 pelo autor, este exerceu o direito de denúncia/oposição à renovação, tendo denunciado o referido contrato de arrendamento celebrado em 19 de março de 2012 e iniciado a 01 de abril de 2012 para o termo do prazo da prorrogação, ou seja para 31 de março de 2021.
Acrescentou que o autor comunicou ao réu arrendatário a oposição à renovação e a extinção do contrato de arrendamento para 31 de março de 2021 e com seis meses de antecedência, cumprindo, por excesso, o aviso prévio e a antecedência legal.
Mais alegou, que até à data de 31 de março de 2021 o réu arrendatário não entregou o locado, tal como não o fez até à presente data.
Acrescentou que o 1º réu é responsável por cada mês que se vença no montante de € 600,00, desde a citação até à efectiva entrega do locado, nos termos dos n.ºs 1 e 2, do artigo 1045º do Código Civil, e a 2ª ré, em nome pessoal, assumiu a qualidade de fiadora do 1º réu, e renunciou ao benefício da excussão prévia, assumindo solidariamente com o arrendatário e como principal pagador o cumprimento de todas as cláusulas do contrato de arrendamento, os seus aditamentos e renovações até à efectiva restituição do arrendado, livre de pessoas e bens.

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Citado, apenas o Réu BB apresentou contestação.
Alegou que foi declarado insolvente e que a acção deveria ter sido interposta contra a massa insolvente, e esta representada pelo seu administrador da insolvência.
Acrescentou que não dispõe imediatamente de uma outra habitação, para deixar o locado, e que não tem condições económicas, dado que está insolvente, para num curto espaço de tempo arrendar uma outra habitação.
Alegou, ainda, que o Autor age com abuso de direito pois bem sabe que o Réu sobrevive com muitas dificuldades.
Mais alegou, que urge apurar se a assinatura que consta na carta de denuncia foi efectuada pelo punho do A..
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Na resposta apresentada, o Autor pugnou pela condenação do Réu como litigante de má-fé em multa e indemnização condigna.
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Foi homologada por sentença a desistência do pedido relativamente ao Réu CC.
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Foi proferido despacho saneador, no qual se julgou improcedente a excepção de incompetência material deduzida pelo Réu.
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Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal.
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Foi proferida sentença, que julgou procedente a acção e, em consequência:
i) Declarou reconhecida a denúncia do contrato de arrendamento, na data de 31 de março de 2021, declarando-se cessado e extinto o contrato de arrendamento identificado nestes autos, nessa data de 31 de março de 2021, e, consequentemente:
ii) Condenou o Réu a despejar imediatamente o arrendado e entregá-lo ao autor livre de pessoas e coisas e animais, em bom estado e com todas as coisas que recebeu e que o compõe;
iii) Condenou o Réu a pagar ao Autor a indemnização mensal pela ocupação, que corresponde ao valor da renda de 300,00€, por cada mês, desde a citação até à efetiva entrega do locado, livre de pessoas, coisas e animais.
iv) À quantia referida em iii), por se tratar de obrigações de natureza pecuniária e face ao disposto no art.º 559.º e 806.º do Código Civil, acrescem juros de mora à taxa legal supletiva para as obrigações civis (atualmente) de 4%, até efectivo pagamento;
v) Absolveu o Réu do pedido de condenação como litigante de má fé.
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Não se conformando com a decisão proferida, veio o Réu BB interpor recurso de apelação, em cujas alegações conclui da seguinte forma:
I.Padece a Douta Sentença do vício de inconstitucionalidade, por desrespeitar os princípios basilares do direito à habitação, face à situação socioeconómica, do Apelante, uma vez que esteve insolvente, e que mesmo assim, nada deve a título de rendas, pois sempre pagou a renda assiduamente.

II. Deve por isso mesmo ser considerada nula e sem efeito.

III. Viola o direito à habitação (consagrado no art. 65.º, da Constituição), pois que tal direito reveste, acima de tudo, natureza programática, dirigida ao Estado, e está contemplada na lei, a parte essencial do direito à habitação, ao estabelecer casos em que o assegura, casos esses que assentam na justa ponderação dos interesses do arrendatário e do senhorio.

IV. O Estado, no âmbito da sua função soberana enquanto legislador, assegurou, em termos razoáveis, o direito à habitação.

V. A dignidade da pessoa humana, tem, no caso, que ser conjugada com o direito à habitação a que alude o citado art. 65º. Na verdade, a dignidade da pessoa humana é que legitima e justifica, designadamente, a garantia de condições dignas de existência, que, por seu turno, é indissociável do direito à habitação.

VI. O incumprimento por parte do Estado e demais entidades públicas das referidas obrigações constitucionais constitui uma omissão constitucional.

VII. O direito à habitação também pode ser realizado por via do direito de arrendamento, cumprindo ao Estado, além do mais, fomentar a oferta de casas para arrendar.

VIII. O direito à habitação justifica seguramente limitações à propriedade no caso de prédios arrendados e não só (…). Mas essas limitações devem obedecer a um princípio de equidade e de proporcionalidade.

IX. No caso sub júdice o Apelante sempre pagou a renda, e continua a pagar, nada devendo ao senhorio, e por isso o Autor numa ótica constitucional não poderia denunciar o contrato de arrendamento.

X. A propriedade tem uma “função social” a ponderar sempre que há conflito de interesses entre o inquilino e o senhorio.

XI. Assim, entendemos que a decisão recorrida viola o direito à habitação, constitucionalmente consagrado, com a agravante de estarmos perante um inquilino cumpridor, que paga a sua renda a tempo e horas, nada devendo ao senhorio.

XII. Existe violação do direito à habitação, quando foi satisfeito o direito do senhorio, em receber a renda, facto que aconteceu e acontece, cabendo ao Estado assegurar, se for caso disso, o direito à habitação do Apelante, a disso carecer.

XIII. Neste contexto, ao ter-se decidido que a denuncia do contrato de arrendamento operou, sem rendas em divida, mal foi reconhecido ao Autor, nos termos da lei constitucional, o direito, a que lhe seja entregue o locado no imediato.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
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2. Factos

2.1 Factos provados
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. Encontra-se registada a favor do autor é a propriedade do prédio urbano, fração autónoma designada pela letra “H”, correspondente a uma habitação, tipo T1, no primeiro andar esquerdo traseiras, com entrada pelo n.º ...82 da R. ..., Maia, da qual faz parte um arrumo e um lugar de garagem com entrada pelo nº ...60, e cuja fração integra o prédio em regime de propriedade horizontal sito na morada descrita da freguesia da Cidade da Maia, concelho da Maia, prédio inscrito no Serviço de Finanças da Maia sob o artigo matricial urbano n.º ...14... da freguesia Cidade da Maia, concelho da Maia e descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia, sob o número ...88 da aludida freguesia ....
2. O autor celebrou em 19/03/2012, por documento particular, contrato de arrendamento com o réu, tendo por objeto o imóvel referido em 1.
3. O prédio arrendado constitui a casa de morada de família do réu.
4. Do contrato de arrendamento consta e está contratado que o arrendamento incidia e incide sobre o prédio descrito no artigo 1º destinado a habitação, pelo prazo limitado ou certo de cinco anos e com inicio em 01 de abril de 2012 e fim em 31 de março de 2017, com prorrogações, renovável, de períodos de um ano, no caso e enquanto não for denunciado pelas partes ou oposição à renovação, que a renda mensal inicial era de 300,00€ (trezentos euros), a ser paga por transferência bancária e até ao dia 08 do mês a que respeitar.
5. Do contrato de arrendamento ainda consta e está contratado que o inquilino não poderá fazer obras ou benfeitorias sem prévia autorização ou consentimento do senhorio, ficando estipulado que as que fizer ficam pertencendo ao prédio, não podendo o inquilino alegar retenção ou pedir por elas qualquer indemnização.
6. Atualmente, a renda mensal que o réu paga é de 300,00€.
7. O contrato de arrendamento, com início em 01 de abril de 2012 e fim em 31 de março de 2017, foi renovado ou prorrogado, por períodos de 1 ano, até 30/03/2021.
8. Por força das renovações/prorrogações, o contrato renovou-se até 30/03/2021, tendo este último período o seu termo em 30 de Março de 2021.
9. Mais estipularam no referido contrato de arrendamento que o senhorio tem a possibilidade de denunciar o referido contrato.
10. Através de carta registada com aviso de receção enviada em 01/10/2020 pelo autor denunciou o contrato de arrendamento celebrado em 19 de março de 2012 e iniciado a 01 de abril de 2012 para o termo do prazo da prorrogação, ou seja, para 31 de março de 2021.
11. O réu arrendatário ficou, assim, notificado e interpelado para o termo do prazo que se efetivava em 31 de março de 2021 e para, nessa data, entregar ao autor o prédio arrendado, livre e devoluto de pessoas e bens, com tudo o que compõe e no estado de conservação e limpeza que o recebeu, desocupando a totalidade ocupada do prédio do autor.
12. Até à data de 31 de março de 2021 o réu arrendatário não entregou o locado, tal como não o fez até à presente data.
13. O autor, mercê da moratória criada pela pandemia de covid - 19 e terminada a mesma, na data de 8 Julho de 2021, enviou carta ao 1º réu, a solicitar a entrega do prédio, mas o réu não entregou o locado, mantendo-se atualmente no mesmo.
14. CC em nome pessoal, assumiu a qualidade de fiador do réu, no contrato de arrendamento aqui em causa, garantindo as obrigações do 1º réu no aludido contrato de arrendamento e renunciou ao benefício da excussão prévia, assumindo solidariamente com o arrendatário e como principal pagador o cumprimento de todas as cláusulas do contrato de arrendamento, os seus aditamentos e renovações até efetiva restituição do arrendado, livre de pessoas e bens.
15. O Réu foi declarado insolvente tendo o processo de insolvência sido encerrado.
16. A mãe do Réu vive com o mesmo.
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3. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar e decidir:
Das conclusões formuladas pelo recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que a questão a resolver no âmbito do presente recurso consiste em apurar da constitucionalidade do regime legal aplicado.
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4. Conhecendo do mérito do recurso:
O problema de constitucionalidade que vem posto a este Tribunal pode reconduzir-se, ao cabo e ao resto, à seguinte questão mais geral: será inconstitucional, por violação do direito fundamental à habitação, condensado no artigo 65º da Lei Fundamental, a faculdade, reconhecida pelas citadas normas, ao senhorio de denunciar o contrato de arrendamento urbano, para o termo do prazo ou da renovação, mediante acção judicial, e uma vez verificados os requisitos previstos no artigo 1097º do Código Civil, na redacção conferida pela Lei n.º 6/2006, de 27.02?
Adiantaremos, desde já, que não.
O artigo 65º da Constituição da República Portuguesa dispõe como segue:
“1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.
2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:
a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social;
b) Promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais;
c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada;
d) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução.
3. O Estado adoptará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.
4. O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística.
5. É garantida a participação dos interessados na elaboração dos instrumentos de planeamento urbanístico e de quaisquer outros instrumentos de planeamento físico do território.”
O preceito transcrito da Constituição reconhece a todos os cidadãos o direito a uma morada decente, para si e para a sua família; uma morada que seja adequada ao número dos membros do respectivo agregado familiar, por forma a que seja preservada a intimidade de cada um deles e a privacidade da família no seu conjunto; uma morada que, além disso, permita a todos viver em ambiente fisicamente são e que ofereça os serviços básicos para a vida da família e da comunidade.
Para a efectivação de um tal direito, a Constituição comete ao Estado as seguintes tarefas:
a) “programar e executar uma política de habitação”, devidamente articulada com uma “adequada rede de transportes e de equipamento social”;
b) “incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações”, que visem “resolver os respectivos problemas habitacionais” e “fomentar a criação de cooperativas de habitação e a auto-construção”;
c) “estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria” [cfr. artigo 65º, nº 2, alíneas a), b) e c)].
O Estado há-de, além disso, “adoptar uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar” (cfr. artigo 65º, nº 3); e, juntamente com as autarquias locais, há-de exercer um “efectivo controlo do parque imobiliário”, procedendo “às expropriações dos solos que se revelem necessárias” e definindo “o respectivo regime de utilização” (cfr. artigo 65º, nº 4)
O “direito à habitação”, ou seja, o direito a ter uma morada condigna, como direito fundamental de natureza social, situado no Capítulo II (direitos e deveres sociais) do Título III (direitos e deveres económicos, sociais e culturais) da Constituição, é um direito a prestações. Ele implica determinadas acções ou prestações do Estado, as quais, como já foi salientado, são indicadas nos nºs 2 a 4 do artigo 65º da Constituição (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, p. 680 - 682). Está-se perante um direito cujo conteúdo não pode ser determinado ao nível das opções constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, e cuja efectividade está dependente da chamada “reserva do possível” (Vorbehalt des Möglichen), em termos políticos, económicos e sociais [cfr. J.J. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, Coimbra Editora, 1982, p. 365, e Tomemos a Sério os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, Separata do Número Especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia” - 1984, Coimbra, 1989, p. 26; J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 (Reimpressão), Coimbra, Almedina, 1987, p. 199 ss., 343 ss.].
O direito à habitação, como direito social que é, quer seja entendido como um direito a uma prestação não vinculada, recondutível a uma mera pretensão jurídica (cfr. J.C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 205,209) ou, antes, como um autêntico direito subjectivo inerente ao espaço existencial do cidadão (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p.680), não confere a este um direito imediato a uma prestação efectiva, já que não é directamente aplicável, nem exequível por si mesmo.
O direito à habitação tem, assim, o Estado - e, igualmente, as regiões autónomas e os municípios - como único sujeito passivo - e nunca, ao menos em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios. Além disso, ele só surge depois de uma interpositio do legislador, destinada a concretizar o seu conteúdo, o que significa que o cidadão só poderá exigir o seu cumprimento, nas condições e nos termos definidos pela lei. Em suma: o direito fundamental à habitação, considerando a sua natureza, não é susceptível de conferir por si mesmo ao arrendatário um direito, jurisdicionalmente exercitável, de impedir que o senhorio denuncie o contrato de arrendamento, nas condições definidas na lei.
Estas considerações são suficientes para demonstrar que o artigo 1097º do Código Civil, nunca poderá infringir o disposto no artigo 65º da Constituição.
A referida norma não infringe, pois, o disposto no artigo 65º da Constituição.
Acrescentar-se-á, no entanto, mais uma nota.
É certo que o artigo 65º da Constituição implica para o Estado uma obrigação positiva de criação de um regime jurídico do arrendamento para habitação, que discipline o acesso dos cidadãos a uma habitação, pela via do arrendamento, devendo as rendas ser compatíveis com o rendimento familiar (cfr. o artigo 65º, nº 3), dado que o arrendamento habitacional constitui um dos instrumentos de satisfação ou de concretização do direito fundamental à habitação.
Independentemente, porém, de saber qual o grau de liberdade de que o legislador goza, em face do preceituado no artigo 65º da Constituição, na definição do regime jurídico do arrendamento urbano, é indubitável que as normas que reconhecem ao senhorio o direito de denúncia do contrato de arrendamento, com a antecedência legal fixada na lei, desde que se verifiquem os requisitos, não infringe aquele preceito constitucional.
Com efeito, as normas do Código Civil respeitantes à denúncia do contrato de arrendamento para habitação pelo senhorio, visam resolver um conflito entre o direito à habitação e de propriedade do senhorio e o direito a habitação do inquilino. Em face desse conflito, a lei atribui preferência ao direito à habitação e propriedade do senhorio - o qual se fundamenta no direito de propriedade sobre o prédio urbano, direito este garantido pelo artigo 62º, nº 1, da Constituição - sobre o direito à habitação do inquilino - o qual se baseia no contrato de arrendamento urbano, que é obrigatoriamente renovável nos termos da lei.
Ora, é perfeitamente legítimo, sob o ponto de vista constitucional, que, na hipótese de colisão entre aqueles dois direitos - um (o do senhorio) alicerçado no direito fundamental de propriedade privada, com assento na Constituição, e outro (o do arrendatário) baseado no contrato -, o legislador dê primazia ao do senhorio.
Eis como, também por esta razão, a norma do artigo 1097º, do Código Civil, não viola o artigo 65º da Constituição ou qualquer outro preceito constitucional.
Refira-se, em jeito de nota final, que é sempre forçoso que, em concreto, se questione a (in) constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efectuada, em termos de se assacar ao acto judicial de “aplicação” a violação (directa) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe apurar e sindicar da bondade e do mérito do julgamento efectuado in concreto por um qualquer tribunal, mas antes e apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas, o que não foi, sequer, devidamente observado pelo recorrente.
Pelo que se impõe confirmar a decisão recorrida, o que dita o não provimento da apelação.
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Sumariando, em jeito de síntese conclusiva:
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5. Decisão
Nos termos supra expostos, acordamos neste Tribunal da Relação do Porto, em julgar não provido o recurso de apelação, confirmando a decisão recorrida.
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Custas a cargo do apelante.
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Notifique.





Porto, 21 de Março de 2024
Relator: Paulo Dias da Silva
1.º Adjunto: Isabel Silva
2.º Adjunto: Isabel Peixoto Pereira

(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)