PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
PRESUNÇÃO DE CUMPRIMENTO
CONSUMIDOR
Sumário

I - As prescrições presuntivas, consignadas no artigo 317º, alínea c) do CC, tiveram a sua origem no código napoleónico (artigos 2271º a 2273º) e radicavam na ideia de que determinadas dividas se não forem exigidas em curto prazo é porque foram pagas.
II - Estas presunções de cumprimento visaram obstar às dificuldades de prova do pagamento de certas dividas a que não era usual pedir ou guardar recibo.
III - O beneficiário de tais presunções deve, por tal razão, ser o consumidor comum que, por regra não tem a preocupação de solicitar e/ou guardar, por muito tempo, o recibo comprovativo do pagamento.
IV - As sociedades comerciais não se encontram nesta situação, uma vez que gozam de contabilidade organizada (nº 2 do art. 18º e 64º, 65º e 70º do Código Comercial), tendo a obrigação de guardar tais documentos pelo prazo de 10 anos (artigo 40.º do Código Comercial).

Texto Integral

Processo: 19529/22.3T8PRT.P1

Sumário (artigo 663º nº 7 do Código de Processo Civil)
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

AA veio deduzir ação de honorários contra A..., LDA., peticionando a condenação da ré no pagamento da quantia de € 50.023,71, acrescida de juros de mora vincendos.
Alega, em síntese, que, enquanto advogado, prestou serviços jurídicos à ré, no período de 15.09.2005 a 20.12.2017, de forma ininterrupta, os quais importam no valor global de € 34.368,75, acrescido de IVA no valor de € 7.904,81, conforme nota enviada à ré em 03.04.2018 e que não obteve pagamento, estando vencidos juros de mora no montante de € 7.750,15.
Sustentou, ainda, que sendo a ré uma entidade com contabilidade organizada, não beneficia da prescrição presuntiva prevista no art. 317.º, al. c), do CC.
A ré contestou, basicamente, para invocar o pagamento e a prescrição presuntiva associada a tal alegação.
Foi concedido ao autor o exercício do contraditório escrito quanto à exceção invocada na contestação, vindo o autor reiterar o não preenchimento dos pressupostos da prescrição presuntiva.
FOI PROFERIDA SENTENÇA QUE JULGOU A AÇÃO IMPROCEDENTE COM FUNDAMENTO NA PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA DA DIVIDA
São os seguintes os factos provados.
1. O autor deduziu a presente ação em 10.11.2022.
2. O A. é advogado, titular da cédula profissional n.º ..., exercendo a sua atividade em dedicação exclusiva a partir de 27 de março de 1995
3. A R., sempre com o NIF ..., tinha a forma jurídica de sociedade comercial anónima, passando depois a sociedade comercial por quotas, dedicando-se à construção, compra e venda de imóveis.
4. Desde 15 de setembro de 2005, que o A. prestou diversos serviços jurídicos à R., a seu pedido, de forma ininterrupta e que se prolongaram até 20 de dezembro do ano de 2017.
5. Em 03 de abril de 2018, foi enviada à R. a nota de despesas e honorários finais no valor de € 34.368,75 (trinta e quatro mil trezentos e sessenta e oito euros e setenta e cinco cêntimos),
6. Tendo a R. respondido por carta de 10 de maio de 2018, limitando-se a dizer que os honorários se encontravam pagos.
7. Por carta sob registo de 04 de julho de 2018, o A. comunicou à R. que o teor da sua carta de 10.05.2018 se deveria a lapso ou erro, pedindo esclarecimentos,
8. E por carta sob registo de 14 de janeiro de 2019 voltou a interpelar a R para pagamento da nota de despesas e honorários enviada em 03.04.2018.
9. No âmbito do processo Administrativo que correu termos na Câmara Municipal ... (CM...), em 15.09.2005, a pedido da Ré e para isso mandatado, o A requereu a revisão oficiosa de liquidação das taxas alegadamente devidas pela emissão do Alvará de Licença nº ..., no montante de € 690.995,17 (seiscentos e noventa mil novecentos e noventa e cinco euros e dezassete cêntimos).
10. Por despacho de 25.05.2006 da Diretora do Departamento Municipal Jurídico e de Contencioso da CM... decidiu-se pela não pronúncia sobre o pedido, legal e tempestivo, da referida revisão.
11. Perante o que o A, a pedido e mandatado pela R, apresentou Reclamação Graciosa do ato de liquidação das referidas taxas praticado em 03.07.2003 pela CM....
12. Já em 04.09.2006, a pedido e mandatado pela R, o A deu entrada da Ação Administrativa Especial nº 2091/06.1BEPRT no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (TAFP) contra o Município ... pedindo que fosse condenado a proceder à revisão oficiosa das taxas liquidadas pela emissão do Alvará de Construção nº 91/2003 com base no Regulamento e Tabela de Taxas publicado no D.R. nº 237, II série, apêndice nº 128, de 11.10.1999, mais tendo sido pedida a condenação do Município a restituir à Autora A..., Lda, a quantia de € 690.995,17 (seiscentos e noventa mil novecentos e noventa e cinco euros e dezassete cêntimos), bem como os juros, à taxa legal, desde a citação.
13. Ação onde, entre outros, foi apresentado Requerimento em 12.12.2006 concernente à propriedade da Ação interposta e em 22.01.2007 tendente ao esclarecimento de obscuridade ou ambiguidade do Despacho então notificado, nos termos do artº. 669º, nº 1, do CPC aplicável.
14. Em 06.03.2012 o A apresentou as Alegações para os efeitos do nº 4 do artº. 91º do CPTA.
15. Quanto ao resultado obtido, resultou da douta sentença proferida, que julgou a Ação procedente, e, por via disso, condenou a Entidade Demandada a pronunciar-se sobre o mérito do pedido de Revisão Oficiosa das Taxas Liquidadas pela emissão do Alvará de Construção nº 91/2003 formulado pelo A, no montante de € 690.995,17 (seiscentos e noventa mil novecentos e noventa e cinco euros e dezassete cêntimos).
16. O processo perdurou entre 04.09.2006 e finais de novembro de 2017.
17. Os serviços jurídicos prestados pelo A. à R. concluíram-se em 20 de dezembro de 2017.
18. A R. havia acordado remunerar os serviços prestados pelo A., atendendo aos objetivos conseguidos com o trabalho do A., à dificuldade do assunto, ao grau de criatividade intelectual da prestação do A, ao tempo despendido e às responsabilidades por si assumidas.
Factos não provados.
Com relevo para a decisão, não ficaram provados os seguintes factos:
a) A R. não pagou quaisquer montantes ao A. por conta dos serviços prestados por este.
b) A R. pagou ao A. os serviços prestados por este.
APELOU O AUTOR FORMULANDO AS SEGUINTES CONCLUSÕES:
(…)
III - Ao contrário do sustentado pela douta sentença a quo não pode operar in casu a invocada prescrição presuntiva (presunção de cumprimento).
IV - Tratando-se de uma relação contratual entre um profissional liberal e uma sociedade comercial, no exercício da sua atividade profissional e comercial de ambos, não é aplicável o preceito do art.º 317.º, al.ª c), do C. Civil. Isto porque o crédito de um profissional liberal sobre uma sociedade comercial, emergente de um contrato de prestação de serviços celebrado entre os dois, não cabe na previsão da alínea c) do artigo 317º do Código Civil. Neste sentido vide Acórdão da Relação de Lisboa de 21/11/2013.
V- O ‘escopo e finalidade das prescrições presuntivas encontra-se, assim, na proteção do devedor contra o risco de satisfazer duas vezes dívidas de que não é usual exigir recibo ou guardá-lo durante muito tempo – foi precisamente ‘para valer ao devedor de dívidas que costumam ser pagas rapidamente e de cujo pagamento não é habitual cobrar recibo que as prescrições presuntivas foram criadas.
VI - Justifica-se assim se considere não ser aplicável o regime da prescrição presuntiva quando esteja subjacente ao crédito judicialmente exigido uma obrigação relativamente à qual é usual, contra o pagamento, emitir-se documento de quitação e bem assim quando é expectável (quer porque é usual e regra, quer porque é dever legal) que o devedor proceda à guarda e conservação de tal recibo de quitação, designadamente em casos em que o devedor deve ter a preocupação de exigir o recibo comprovativo do pagamento e de o conservar no seu arquivo contabilístico, mais ou menos organizado.
VII - Os comerciantes (como é o caso das sociedades comerciais – art. 13º, nº 2 do Código Comercial) são especialmente obrigados a ter escrituração mercantil (nº 2 do art. 18º do Código Comercial), estando as sociedades comerciais obrigadas a manter escrituração organizada, fiável e verdadeira (veja-se o art. 64º do Código das Sociedades Comerciais) – a escrituração destina-se (…) comprovar todas as operações realizadas – mormente o cumprimento das suas obrigações perante os seus credores) (…).
VIII - Precisamente porque é de todo em todo inadmissível (por desconforme aos comandos legais de manutenção de escrituração ou contabilidade organizada – essencial ao cumprimento da obrigação de prestar contas, estabelecida nos arts. 65º a 70º do Código das Sociedades Comerciais) que uma sociedade comercial (como é o caso da apelada) desenvolva o seu giro comercial sem dispor de contabilidade organizada (de escrituração) e, assim, dos meios documentais, mantidos em arquivo, que facilmente demonstram as operações em que intervenha perante terceiros (designadamente dos pagamentos feitos a fornecedores e a quem presta serviços necessários ao exercício da sua atividade), não faz sentido aplicar-se a presunção de cumprimento relativamente a créditos de que seja titular passivo uma sociedade comercial e respeitantes a serviços que lhe sejam prestados por profissionais liberais.
IX - A inaplicabilidade do regime da prescrição presuntiva em tal circunstância assenta na consideração de que nenhuma tutela especial demanda o devedor, pois não corre o risco de ter de cumprir duas vezes (por estar impedido de comprovar, com o documento de quitação, a satisfação da obrigação) – nestes casos o devedor não tem qualquer dificuldade de prova do pagamento, pois que é legalmente exigido à sociedade comercial que conserve em arquivo da sua contabilidade os recibos de quitação concernentes aos pagamentos feitos no exercício da sua atividade.
X - De concluir, assim, cumprindo o desiderato exigido à jurisprudência (a jurisprudência, enquanto ‘ciência interpretativa, encerra em si pensamento normativo de realização do direito, correspondente às expectativas prático-sociais dos sujeitos, realizando o direito na solução do caso concreto com a consciência jurídica geral, com as expectativas jurídico-sociais de validade e justiça’, pois só ‘assim a justiça será o fundamento necessário da interpretação jurídica’), interpretando a ‘norma em referência à unidade do sistema jurídico (art. 9º, nº 1 do Código Civil), frente ao «Princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica»’, uma unidade ‘intrinsecamente coerente a ser interpretada em projecção da ideia de direito, tradutora de uma concebida ordem social justa, que a fundamenta’, sempre cuidando de evitar solução injusta no resultado (solução injusta no resultado que não pode ser entendida como vontade da lei – art. 9º, nº 3 do Código Civil) e, acima de tudo, na aplicação dialética do facto à norma, atender, mais do que à ratio legis, à ratio iuris – que não beneficia da presunção de cumprimento estabelecida no art. 317º, c) do CC o devedor sociedade comercial que, possuindo (por imposição da lei) contabilidade organizada, tem o dever de registar e manter em arquivo os pagamentos efetuados.
XI - O entendimento contrário representaria uma intolerável (atentas as expectativas jurídico-sociais de validade e justiça) concessão à introdução de desproporção e desequilíbrio nas regras da repartição do ónus de prova (com perversos resultados na aplicação da justiça) – inverter-se-ia o ónus da prova favorecendo, injustificadamente, devedor que de tal ajuda não necessita.
XII - Não beneficia, pois, a apelada (sociedade comercial, legalmente obrigada a possuir contabilidade organizada e a registar e manter em arquivo os pagamentos efetuados) da presunção de cumprimento estabelecida no art. 317º, c) do CC., pelo que assiste o direito do apelante a haver da apelada as quantias peticionadas.
XIII – E não beneficiando a apelada da presunção de cumprimento, incumbe-lhe a prova do pagamento, nos termos do art. 342º, nº 2 do CC – o cumprimento (a satisfação da prestação a que o devedor está vinculado – art. 762º do CC) é facto extintivo da obrigação - é o modo paradigmático de extinção da obrigação.
XIV - Cumprimento que a apelada, alegando-o, não logrou provar, tendo assim o apelante o direito a haver os honorários correspondentes aos serviços prestados à apelada.
XV - Concluindo-se, por isso, que a douta sentença sob recurso violou o disposto nos arts.º 317. alínea c) e, bem assim, nos arts.ºs 342º., nº 2 e 762º do Código Civil.
Requereu a revogação da sentença e que a exceção de prescrição seja julgada procedente, decretando que o apelante tem o direito a haver os honorários correspondentes aos serviços prestados à apelada.
RESPONDEU A RÉ A SUSTENTAR A SENTENÇA.
Nada obsta ao mérito.

O OBJETO DO RECURSO.
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as matérias que sejam de conhecimento oficioso (artigos 635º, n.º 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do código de processo civil).
Atentas as conclusões da recorrente as questões a decidir são as seguintes:
1-Saber se a um crédito decorrente de honorários de atividade de advogado sobre uma sociedade comercial se aplica a prescrição presuntiva do artigo 317º, alínea c), do CC.
O MÉRITO DO RECURSO:
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Dá-se aqui por reproduzida a fundamentação supra.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
I.
A prescrição é um instituto geral do direito que extingue a exigibilidade de uma obrigação pelo decurso do tempo e que visa quanto à pessoa do devedor essencialmente relevá-lo de prova a qual se torna mais difícil com o distanciamento temporal da situação. A não haver prescrição qualquer pessoa poderia a todo o tempo ser demandada. (Neste sentido, Menezes Cordeiro, Tratado De Direito Civil V Parte Geral pp 198 e 199 3ª ed Almedina).
Tem a sua origem na inatividade do credor e podendo ser usada ou não pelo devedor, é imperativa quanto aos prazos definidos na lei, (artigo 300º do Código Civil).
O prazo ordinário de prescrição é de 20 anos, aplica-se quando a lei não fixe hipóteses especiais e é independente da boa ou má fé do devedor, (artigo 309º do CC).
Com este prazo são articulados prazos mais curtos de prescrição, como o de cinco anos (artigo 310º do CC), cujas situações têm em comum “um direito de base dotado de certo porte; prestações periódicas que dele dependem”. (Menezes Cordeiro ibidem pp 215).
São ainda estabelecidos prazos curtos de seis meses e de dois anos (artigos 316º e 317º do CC), para as denominadas prescrição presuntivas que se baseiam numa presunção de cumprimento da divida (artigo 312º do CC).
II
No caso, visado no presente acórdão, estamos perante um crédito de honorários de advogado resultante de atividade prestada no exercício de profissão liberal, pelo que, se trata de crédito, por este lado, subsumível ao disposto no artigo 317º, alínea c) do CC, o qual dispõe: “prescrevem no prazo de dois anos (…) os créditos pelos serviços prestados no exercício de profissões liberais e pelo reembolso das despesas correspondentes”.
A questão a decidir e que não tem resposta pacífica na jurisprudência é apenas a de saber se, se, aplica esta prescrição quando o devedor é uma sociedade comercial com escrita organizada, como é o caso da ré.
A sentença de forma, assaz, fundamentada entendeu que esta prescrição presuntiva de pagamento se aplica aos devedores que são sociedades comerciais convocando em abono da sua interpretação o direito comparado e ainda na jurisprudência o acórdão da Relação de Coimbra de 21-10-2014 (ANABELA LUNA DE CARVALHO) 309674/11.7YIPRT.C1/in dgsi (sítio onde se podem consultar todos os acórdãos aqui citados), com o seguinte sumário: “O que releva para o efeito de aplicação do art. 317 alª c) do C.C. é a natureza dos serviços em causa e não a qualidade da pessoa (singular ou sociedade), que presta, ou a quem os serviços são prestados. 2.-Sendo o crédito derivado de serviços que substancialmente se enquadram no exercício duma profissão liberal, resulta indiferente que, no caso, estes tenham sido prestados a uma sociedade ou a uma pessoa singular, pois que, quer da letra quer do espírito da norma resulta que o critério de subsunção ao preceito em análise se define unicamente pela natureza dos serviços em causa, e não da entidade que os recebe, ou da entidade que os presta” e bem assim, os Ac. do STJ de12-09-2006,( NUNO CAMEIRA) 06A1764; e desta Relação do Porto, de 22.05.2017 (CORREIA PINTO) 104226/15.8YIPRT.
III
Em sentido contrário, ao acolhido na sentença e na jurisprudência citada, pronunciaram-se, o acórdão do TRC de 20-02-2019 (FONTE RAMOS) 87336/17.6YIPRT.C1., o acórdão do STJ de 14-01-2014 (SALRETA PEREIRA) 355/11.1TBSTS.P1.S1, o acórdão desta Relação do Porto de 23-02-2012 (RAMOS LOPES) 154791/10.9YIPRT-A.P1, os acórdãos do TRL de 12-12-2013 (VÍTOR AMARAL) 273/08.0TBSEI.L1-6; de 21-11-2013(VÍTOR AMARAL) 196990/12.8YIPRT.L1-6; e de 12-10-2010 ( GOUVEIA BARROS) 843/08.7TJLSB.L1-7.
IV
No essencial a jurisprudência que sustenta a aplicabilidade do regime do artigo 317º, alínea c) do CC, aos devedores que são sociedades comerciais, fundamenta-se no entendimento que o espírito da norma tem em vista a natureza da atividade prestada e não a qualidade dos sujeitos.
Por sua vez, a jurisprudência que defende a inaplicabilidade desta prescrição aos devedores que são sociedades comerciais, sustenta-se, essencialmente, no entendimento que a finalidade das prescrições presuntivas (que se fundam numa presunção de cumprimento) é a de liberar o devedor das dificuldades de prova de pagamento das obrigações assumidas no seu quotidiano, portanto, reside na proteção do devedor contra o risco de satisfazer duas vezes dívidas que costumam ser pagas rapidamente e de cujo pagamento não é usual exigir recibo ou guardá-lo durante muito tempo, pelo que uma sociedade comercial possuindo contabilidade organizada, tem o dever de documentar nesta todos os pagamentos, não deverá beneficiar desta presunção de cumprimento.
V
As prescrições presuntivas tiveram a sua origem no código napoleónico em cuja versão original (artigos 2271º a 2273º, que determinou o artigo 2275º, se previa prescrições de seis meses (professores, albergueiros, trabalhadores) e de um ano (médicos, oficiais de diligências, mercadores, hospedeiros de estudantes e domésticas e de cinco anos (louvados conforme os casos), todavia previa-se que “aqueles aos quais essas prescrições serão oponíveis, poderão requerer sob juramento àqueles que as oponham sobre a questão de saber se a coisa foi realmente paga”.(Menezes Cordeiro ob cit pp 217).
“Resultou, daqui, a ideia de prescrição presuntiva: dada a natureza específica das dividas aí em causa, a lei parte do princípio de que, se não forem rapidamente exigidas, é porque estão pagas. Apenas pelo juramento se poderia provar que assim não foi, juramento esse depois convolado para confissão”. (Menezes Cordeiro, ibidem. pp 218).
Entre nós a prescrição presuntiva foi acolhida pelo Código de Seabra (artigos 538º a 541º) presumindo-se que havia cumprimento, numa presunção a ilidir pelo referido juramento.
O Código de processo civil de 1939 aboliu o juramento o que deu lugar a diversas teorias ((i) que as presunções presuntivas foram abolidas tendo sido reconduzidas às civis (ii) que se mantinham podendo ser ilididas por confissão (iii) ou por qualquer outro meio. (ibidem, pp 218).
Na preparação do Código Civil a questão foi ponderada por Vaz Serra. “Haveria que manter a situação existente, reanimar as prescrições presuntivas ou suprimi-las reconduzindo-as ao regime geral. Conclui-se que as prescrições de muito curto prazo só poderiam manter-se como presuntivas”. (ibidem. pp 218).
VI
Com efeito, as prescrições presuntivas baseiam-se na presunção de cumprimento (artigo 312º do CC. “(…)De um modo geral elas reportam-se a débitos marcados pela oralidade ou próprios do dia a dia. Qualquer discussão a seu respeito ou ocorre imediatamente ou é impossível de dirimir em consciência”. (Menezes Cordeiro ibidem pp 219).
Todavia, remetê-las para a prescrição extintiva (com um prazo curto) poderia ter um efeito nocivo (conduzir a um laxismo do devedor assente na fácil prescrição extintiva e aumento de litigiosidade com os credores à mínima demora intentaram ações para evitar a prescrição, (ibidem pp 219).
O decurso dos prazos não seria assim e só por si extintivo cabendo ao credor a prova (ainda que limitadamente exequível) de que a divida se mantém, (artigo 313º e 314º do CC).
VII
Desta sumarização da génese das prescrições presuntivas, se pode concluir que as mesmas tiveram causa exatamente na dificuldade do devedor - em certos tipos de dividas - fazer a prova do seu pagamento, e daí que o sujeito beneficiário da presunção de cumprimento deva ser “o consumidor comum que, em regra, não possui contabilidade organizada e não tem a preocupação de solicitar e/ou guardar, por muito tempo, o recibo comprovativo do pagamento”. (Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 4.ª edição, pág. 795).
As sociedades comerciais não se encontram nesta situação, uma vez que gozam de contabilidade organizada e como se refere nas alegações do recorrente são obrigados a ter escrituração mercantil, ou contabilidade organizada (nº 2 do art. 18º e 64º, 65º e 70º do Código Comercial), tendo a obrigação de guardar tais documentos pelo prazo de 10 anos (artigo 40.º do Código Comercial).
Temos assim, para nós, que este prazo de prescrição previsto no artigo 317º, alínea c) do Código Civil, não deve aplicar-se a créditos por serviços prestados no exercício de atividades liberais, quando o devedor é uma sociedade comercial, dado que sobre a mesma recai a exigência legal de obter recibo comprovativo do pagamento e da sua conservação no seu arquivo contabilístico, mais ou menos organizado. Em tais casos não estão presentes os riscos que esta prescrição visou afastar – a dificuldade da prova do pagamento.
Concedemos, em tais termos, razão ao Recorrente.
VIII
Afastada a prescrição da divida em face dos factos provados (nºs 4, 5) e dos nãos provados (alínea b) é de concluir pelo dever da ré pagar a divida acionada.
Com efeito,
Como vem referido na sentença recorrida e citamos: “a ação é de pagamento dos honorários devidos em contrapartida dos serviços de advogado prestados pelo autor à ré, no período de 15.09.2005 a 20.12.2017.
Face à alegação do autor e falta de impugnação da ré, os factos revelam a constituição da ré na obrigação do pagamento dos honorários por serviços de advogado prestados a si pelo autor, de acordo com o regime do contrato de mandato, nos termos dos arts. 1157.º, 1158.º, n.º 2, 1167.º, als. b) e c), do CC., com a especificidade dos honorários de advogado prevista atualmente no art. 105.º do EOA (aprovado pela Lei 145/2015, de 09.09)”.
Assim sendo e como corolário dos princípios insertos nos artigos do Código Civil (405º) " as partes são livres de contratar dentro dos limites da lei" (406º), uma vez celebrado, o contrato torna-se vinculativo “pacto sunt servanta”, deve pois ser pontualmente cumprido, devendo a obrigação ser efetuada integralmente (artigo 763º nº1 do C.C), conduzindo a violação deste dever ao incumprimento num dos quatro segmentos porque se reparte: artigos 790.º a 797.º e 813.º a 816.º - impossibilidade de cumprimento e mora não imputáveis ao devedor - artigos 798.º a 808.º - falta de cumprimento e mora imputáveis ao devedor - artigos 809.º a 812.º - fixação contratual dos direitos do credor - e 817.º a 836.º - realização coativa da prestação.
IX
No caso dos autos a obrigação de pagar o preço devido constituiu-se conforme acordo das partes na data na data em que foi interpelada ao cumprimento, que como resulta dos autos foi a de 03.04.2018.
É exceção, o cumprimento da obrigação/pagamento, uma vez que o pagamento configura uma causa extintiva do crédito do autor, pelo que cabe à ré a sua alegação (artigo 572º nº 2 do Código de Processo Civil) e prova nos termos do artigo. 342.º, n.º 2, do CC, sendo certo que tal pagamento não foi provado.
Existe não cumprimento na modalidade de retardamento da prestação sempre que, tendo a obrigação prazo certo ou, tendo havido interpelação, o devedor por causa que lhe é imputável não cumpre tempestivamente, (artº 804º nº1 e 2 do C.C.).
Pelo que a partir da data da interpelação, se, tem a ré como constituída em mora.
A mora no pagamento da obrigação pecuniária acarreta, a responsabilidade civil obrigacional, sendo que neste tipo de obrigações o dever de indemnizar equivale aos juros legais correspondentes ao tempo que a mora perdurar, (artº artigo 805º nº 1 a) e 2 e 559º, do CC).
Merece acolhimento nos termos expostos o recurso.
SEGUE DELIBERAÇÃO:
PROVIDA A APELAÇÃO. REVOGADA A SENTENÇA, CONDENANDO-SE A RÉ A PAGAR AO AUTOR A QUANTIA RECLAMADA DE € 34.368,75, ACRESCIDA, DE IVA À TAXA EM VIGOR E DE JUROS LEGAIS, DESDE 03 DE ABRIL DE 2018, E ATÉ EFETIVO PAGAMENTO.
Custas pela Recorrida.

Porto, 21 de março, de 2024
Isoleta de Almeida Costa
Francisca Mota Vieira
António Paulo Vasconcelos