OBRIGAÇÃO NATURAL
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Sumário

I - As obrigações naturais fundam-se num mero dever de ordem moral ou social, não sendo o seu cumprimento judicialmente exigível, mas correspondendo a um dever de justiça, estão sujeitas ao regime das obrigações civis em tudo o que não se relacione com a realização coactiva da prestação (cf. artigos 402.º e 404.º do Código Civil).
II - O dever de ordem moral ou social em que se funda a obrigação não é definido por lei, nem o podia ser, cabendo por isso aos tribunais determinar, em relação a cada caso, se existe ou não um dever que justifique a qualificação da obrigação como natural.

Texto Integral

Apelação nº 478/21.9T8PVZ.P1
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim
Relator: Carlos Portela
Adjuntos: Isoleta Almeida Costa
António Carneiro da Silva

Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I.Relatório:
AA, devidamente identificada nos autos veio instaurar a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra BB e CC, também elas devidamente identificadas nos autos onde pede que as Rés sejam condenadas a:
a) Reconhecer o seu direito de propriedade sobre o prédio urbano sito na Praceta ..., nº ... 1º esquerdo, Póvoa de Varzim, identificado na petição inicial;
b) Restituir-lhe o prédio que ocupam, livre de pessoas e nas exactas condições em que se encontrava quando do falecimento de seu Pai, com todo mobiliário que o guarnece;
c) Pagar-lhe:
i) a título de indemnização, o valor de desde a sua ocupação abusiva, até a entrega efectiva do prédio;
ii) as quotas de condomínio já quitadas e aquelas que porventura tenha que pagar enquanto as Rés indevidamente ocupem o imóvel;
iii) todos os danos causados da culpa ou negligência enquanto permanecerem no imóvel.
Alega, em síntese, que é filha e única e universal herdeira de DD, falecido a 17 de Abril de 2020, motivo pelo qual se tornou proprietária do primeiro andar esquerdo do prédio sito na Praceta ..., Póvoa de Varzim, descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº ...; após o referido falecimento, as Rés ficaram a residir no imóvel, tendo acordado consigo em deixar o imóvel em determinado período temporal que não cumpriram, o que a levou a requerer notificação judicial avulsa, que as Rés receberam em 18 de Novembro de 2020, para desocupação no prazo de dez dias.
Refere que se encontra impedida de fruir do imóvel, que necessita de rentabilizar, pretendendo receber o valor mensal de € 400 pela ocupação desde 1 de Dezembro de 2020 até efectiva entrega.
Acrescenta que tem pago as quotas do condomínio, desde 2 de Agosto de 2020, despendendo o valor de € 573,28 no período decorrido até 1 de Novembro de 2021.
As Rés contestaram contrapondo que, em 1963, foram viver com o falecido, que dizia encontrar-se muito doente, dele cuidaram, ajudaram-no, viveram em comunhão de mesa e habitação, trabalharam juntos nos negócios que tinham no ... e partilhavam os rendimentos dos três; referiram que foi com esse negócio que ganharam dinheiro para comprar o apartamento em causa; quando regressaram a Portugal, em 2010, descobriram que havia uma dívida sobre o apartamento, relacionada com o procurador e, para fazer-lhe face, a contestante BB vendeu suas as jóias, no de € 11.650; após o falecimento, a contestante CC procurou a Advogada que tratava dos assuntos familiares, ficando a saber que havia dívidas começando a tratar dessas pendências.
Referiram que passados três meses sobre o falecimento, a Autora apareceu identificando-se como filha, ficou a saber dos bens existentes em Tribunal, foi buscar o veículo alegando que tinha de fazer dinheiro para pagar as dívidas do pai, pagar à tia e aos Advogados e que, visto a tia ter 93 anos e a prima 68 anos, não teriam de sair do apartamento, podendo ficar ali até à morte da última, em compensação pela vida em comum com o pai e a ajuda que lhe deram; após regressar ao Brasil, mudou de discurso afirmando que não iria pagar nada e queria o apartamento para o vender de imediato.
Deduziram reconvenção pedindo:
a) A condenação da Autora no pagamento das dívidas do falecido DD no montante de € 3.300,21, acrescida do valor de honorários devido à Sr.ª Advogada;
b) O reconhecimento do usufruto a seu favor até à morte da última;
c) Em alternativa, no pagamento de uma compensação total de € 56.5650, caso saiam da casa de morada de família.
Alegaram que despenderam € 2.260,90 no funeral, € 166 na reparação do veículo, € 250,81 em quotas de condomínio, €136, 98 em electricidade, €167,59 relativamente ao Acordo A..., € 15,10 de despesas de correio, € 80 aos bombeiros voluntários, € 222,83 de IMI estando ainda por apurar os honorários da Advogada do falecido.
Referem que a Autora propôs o valor de € 25.000, caso quisessem entregar o imóvel, acrescido de € 5.000 quando vendesse o imóvel, incluindo € 15.000 emprestados para a compra do automóvel e € 11.650 que emprestou para pagar as dívidas.
A Autora replicou argumentando que o pai nunca dependeu de qualquer ajuda das Rés, cada um administrava o seu dinheiro da melhor forma e aquele mantinha as despesas da casa em dia, permitindo que aquelas morassem com ele; referiu, ainda, que sempre se dispôs a pagar as despesas com o funeral, mas as Rés não justificaram os levantamentos da conta do falecido após o óbito.
Na sequência de prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, a Autora alegou que pretende que as Rés lhe paguem o valor mensal de € 400 a título de ocupação até à entrega da fracção, por referência ao valor médio da renda, pois está impedida de a usufruir e de a rentabilizar; quantificou 573,28 as quotas de condomínio pagas no período de 2 de Agosto de 2020 a 1 de Novembro de 2021.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador que apreciou oficiosamente a excepção de ineptidão da petição inicial e da reconvenção, por omissão de causa de pedir relativamente aos pedidos supra identificados em c) iii) e b), respectivamente;
No mesmo despacho foi emitida pronúncia concluindo-se pela validade e regularidade dos restantes pressupostos processuais.
A reconvenção foi admitida relativamente aos pedidos identificados supra em a) e c).
Foi identificado o litígio e foram enunciados os temas da prova, sem reclamação.
Procedeu-se a julgamento com observância do legal formalismo no culminar do qual se proferiu sentença onde se julgou a acção parcialmente procedente e se condenaram as Rés BB e CC a reconhecer que a Autora AA, enquanto única herdeira de DD, sucedeu-lhe como proprietária da respondente a habitação sita no Bloco ..., tipo T-2, no primeiro andar esquerdo com uma garagem na cave com o nº ..., integrada no prédio submetido ao regime da propriedade horizontal descrito na Conservatória de Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o nº ...;
Mais se condenaram as Rés a restituir à Autora a fracção identificada em a), livre de pessoas e nas condições em que se encontrava aquando do falecimento e a pagar-lhe, a título de indemnização pela ocupação, desde 5 de Dezembro de 2021, o montante mensal de € 400 até à entrega efectiva do imóvel.
Mais se absolveram as Rés do restante pedido.
Julgou-se a reconvenção parcialmente procedente condenando a Autora/ Reconvinda AA a pagar às Rés/Reconvintes BB e CC a quantia de € 2.260,96.
Mais se absolveu a Autora/Reconvinda dos restantes pedidos.

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As Rés vieram interpor recurso desta decisão, apresentando desde logo e nos termos legalmente previstos as suas alegações.
A Autora respondeu.
Foi proferido despacho no qual se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo.
Recebido o processo nesta Relação emitiu-se despacho onde se teve o recurso como o próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Enquadramento de facto e de direito:
Ao presente recurso são aplicáveis as regras processuais da Lei nº 41/2013 de 26 de Junho.
É consabido que o objecto do recurso sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, estão definidas pelo conteúdo das conclusões vertidas pelas rés/apelantes nas suas alegações (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do CPC).
E é o seguinte o teor dessas mesmas conclusões:
Salvo o devido respeito pelo que é muito, a recorrente considera que o Tribunal apreciou mal os factos dados como provados e que motivaram a Decisão.
Ora, importa desde já referir-se que, analisado o conjunto dos factos provados e a motivação da sentença, verifica-se uma clara contradição entre ambos.
Verificando-se, também, uma contradição clara entre os “factos não provados” e a matéria constante da motivação.
Na verdade, as Apelantes consideram que a douta sentença fez uma incorrecta interpretação dos factos e, consequentemente, menos acertada aplicação da lei.
Com efeito, da prova produzida relativa à vida em comum das Apelantes com falecido pai da Autora, resulta de forma clara, manifesta e inequívoca de que contribuíram para uma vida em comum, pelo que deveria a Autora sido condenada nos termos peticionados na Reconvenção.
A Meritíssima Juiz a quo, na motivação ao reproduzir as afirmações da Autora aquando da análise ao depoimento desta, a nosso ver não considerou que as afirmações da Autora, são uma verdadeira confissão.
(…) afirmou que, logo que o Pai faleceu, propôs à tia e à prima ficarem no apartamento até à sua venda, que arrendaria um apartamento menor suportando a renda até à morte da tia, (…)
Ora estas afirmações da Autora deveriam ser entendidas como uma confissão para a boa decisão da causa, pelo que aqui se detecta desde logo um primeiro erro da decisão recorrida.
Tanto mais, que estas afirmações da Autora é a correspondência do que as Rés alegaram na Contestação, quando descrevem a visita que a Autora lhes fez quando veio a Portugal.
Sendo assim, obviamente que não faz sentido não ter sido valorada esta confissão na decisão final a favor das Apelantes e ter sido considerado que (…) “Não resultou qualquer confissão deste depoimento de parte.” discordamos completamente.
Por outro lado, a testemunha EE, foi a que mais contribuiu para a descoberta da verdade tanto assim que, a Meritíssima Juiz a quo, considerou tratar-se de (…) depoimento coerente, espontâneo, objectivo, o mais relevante de todos pela proximidade que manteve com DD, de quem era pessoa de confiança, como decorre da circunstância de lhe tratar dos assuntos pessoais após o regresso a Portugal. (…)
Essa testemunha afirmou que:
(…) DD era muito reservado, tomava conta de tudo de forma totalitária e não aceitava opiniões, nem palpites acerca do negócio. (…) esclareceu que a Ré BB era costureira tinha poupanças em Portugal e recebia uma pensão, tendo ajudado DD a pagar a dívida existente quando regressaram a Portugal em 2010.
Nesta medida,
(…) demonstrado que em Outubro de 2017, a Reconvinte BB entregou a DD o montante de € 15.000 para a aquisição do veículo ligeiro de passageiros marca Toyota, matrícula ..-TQ-...
Considerando que o veículo foi entregue à Autora, em Setembro de 2020, como bem da herança, podemos concluir que o mesmo ficou registado exclusivamente em nome de DD. (…)
E ainda,
(…) que DD tinha um Peugeot ..., que teve alguns acidentes e a dada altura, como “não tinha mais jeito”, foi necessário comprar o Toyota com mudanças automáticas, que custou quase € 16.000, tendo sido a Ré BB quem emprestou dinheiro para a compra, o que sabia por lhe ter sido dito por DD. (...)
Perante este depoimento, com todo o respeito, a decisão teria de ser sempre a da compensação às Apelantes.
O valor dos 15.000€, devia ter sido considerado para compensação, concluindo assim de que a Autora fica favorecida injustamente pelo enriquecimento sem causa, nos termos dos artigos 473º e 474º do C. Civil.
E mais,
(…)» na cópia da participação para efeito da liquidação do imposto de selo, de fls. 20 a 22 vº (junta com a petição inicial), onde se descrevem os bens da herança por óbito de DD, com realce para o veículo, adquirido em 3 de Outubro de 2017, que permitiu a sua identificação no ponto 20) da fundamentação de facto; a junção, na audiência final, de cópia do cheque bancário, emitido pela Banco 1... em 4 de Outubro de 2017, à ordem de DD, no montante de € 15.000, permite-nos associar esse valor à aquisição (na participação do óbito para liquidação do imposto de selo realizada pela Autora, a mesma identifica o valor de aquisição de € 15.000), assim como à sua origem em conta titulada pela Ré BB que deu essa ordem ao Banco; (…)
Em suma, temos no processo indicadores precisos de que a Ré BB, emprestou o valor de 15.000€ ao irmão.
Por último,
(…) “A presente ação coloca muitas questões morais que se prendem com o facto de as Rés terem vivido por longos anos, quer no Brasil, quer em Portugal, com o falecido Pai da Autora, convivendo e prestando-lhe cuidados, fazendo-lhe companhia, acompanhando-o directamente na doença, com eventual desconhecimento sobre a existência de uma filha e eventuais expectativas de serem nomeadas suas herdeiras. (…)
No entanto, não tomou posição quanto a esta questão e no nosso entender, e com todo o respeito, que é muito, deveria tê-lo feito em prol da justiça.
Nada se decidiu quanto à entrega de uma vida, pelas Rés ao falecido pai da Autora, que por sua vez, e em lado oposto só aparece “em cena” após o falecimento do pai e para reivindicar o património deste.
Património esse que ficou claro de variadíssimas formas as Rés ajudaram a construir conforme os depoimentos da maioria das testemunhas que foram unanimes em afirmar que tanto a irmã BB como a sobrinha CC viveram em comunhão de vida com o falecido DD e residem até então na casa de morada de família convictas de que esta seria a sua casa até à morte da última.
A Apelante BB, tem 96 anos e uma saúde muito frágil e a sua filha CC 71, a vida destas três pessoas desde 1963 é em conjunto, debaixo do mesmo tecto como família e em comunhão de vida.
É desde aquela data que estas duas senhoras cuidaram do DD até ao seu último suspiro de vida dele! Viveram com ele e para ele!
Pelo que impera um dever de ordem moral.
Este dever de ordem moral ou social que se funda na obrigação não é definido por lei, nem o podia ser, cabe aos tribunais determinar, em relação a cada caso, se existe ou não um dever que justifique a qualificação da obrigação como natural.
NESTES TERMOS
E nos mais de direito aplicáveis, deverão as presentes alegações e, consequentes conclusões, obter provimento e, por via delas ordenar-se a revogação da sentença pelo Tribunal a quo por outra em conformidade, absolvendo.se as Apelantes nos termos em que foram condenadas e ainda ser a Recorrida condenada a entregar o valor de 15.000,00€ nos termos supra expostos, tudo com as legais consequências devidas.
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Quanto à Autora esta conclui a sua resposta nos seguintes termos:
Não houve qualquer confissão por parte da Autora.
O veículo Toyota era de propriedade do Sr. DD.
As rés não tem qualquer direito de permanecer no imóvel e estas sim, têm o dever moral de o devolver a legítima proprietária que há anos vem amargando prejuízos pela sua não utilização.
Na realidade a mesma sempre buscou resolver a situação da melhor forma, mas pelo que ficou demonstrado, nunca foi a intenção das rés. Estas, que sempre buscaram “levar o máximo de vantagem”, o que seria um enriquecimento sem causa, pois nunca foram proprietárias do imóvel e nem do veículo, como querem fazer acreditar, e já estão há quase três anos a residir no imóvel, sem ter qualquer direito sobre o mesmo e lesando a autora no seu direito de propriedade.
Portanto, conclui-se que as Alegações e Conclusões apresentadas pelas rés, são vazias e infundadas, com intuito meramente protelatório, pois a decisão proferida pelo Tribunal a quo, está muito bem fundamentada com as provas dos autos e com a jurisprudência dos Tribunais, à qual se adere integralmente, é a certa e é a que melhor se ajusta ao caso “sub judice”.
A douta sentença em crise não está assim ferida de nenhuma nulidade e fez uma exacta e correcta aplicação da lei, não violando qualquer disposição legal, mormente a citada pelas Apelantes.
Não merece, pois, nenhuma censura a sentença ora em crise.
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Perante o exposto, são as seguintes as questões suscitadas no presente recurso:
1ª) A impugnação da decisão de facto (a contradição entre os factos provados e a motivação da sentença e no que resulta em termos confessórios das declarações prestadas pela Autora e nas declarações prestadas pela testemunha EE);
2ª) A revogação da decisão proferida com a absolvição das Rés da condenação operada e a condenação da Autora no pagamento da quantia de 15.000,00 €.
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Vejamos, pois, da procedência (ou não) de tais pretensões recursivas.
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É o seguinte o teor da decisão de facto antes proferida:
Resultaram provados os seguintes factos fixados por acordo das partes, como se extrai do despacho proferido em 23 de Maio de 2022, da análise dos documentos juntos e da prova produzida em julgamento relativamente à matéria controvertida por referência aos temas de prova:
1. A Autora, nascida a ../../1982, está registada como filha de DD e de FF [documento de fls. 7 a 8 e alínea A) do despacho em referência].
2. DD, falecido a 17 de Abril de 2020, era filho de GG e de HH [documento de fls. 15 e 15 vº e alínea B) do despacho em referência].
3. Por escritura pública celebrada no dia 6 de Agosto de 2020, no Cartório Notarial da Dr.ª II, sito na Rua ..., ..., em Braga, Dr. JJ, Dr. KK e Dr.ª LL, declararam ter conhecimento que no dia 17 de Abril de 2020, na freguesia e concelho de Vila do Conde, falecera DD, no estado de solteiro, não deixara testamento nem qualquer outra disposição de última vontade, sucedendo-lhe como sua única e universal herdeira a filha AA, não havendo outras pessoas que segundo a lei lhe prefiram ou com ela possam concorrer na sucessão [documento de fls. 18 a 19 vº e alínea C) do despacho em referência].
4. Existe uma fracção autónoma designada pela letra “AK”, correspondente à habitação sita no Bloco ..., tipo T-2, no primeiro andar esquerdo com uma garagem na cave com o nº ..., integrada no prédio submetido ao regime da propriedade horizontal descrito na Conservatória de Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o nº ..., sito na Rua ..., nºs ...., ... e ... e Praceta ..., nºs ..., ... e ... [certidão de fls. 83 e alínea D) do despacho em referência].
5. A aquisição, por compra, da fracção identificada em 4) encontra-se registada a favor de DD pela Ap. ... de 18 de Setembro de 2007 [certidão de fls. 83 e alínea E) do despacho em referência].
6. As Rés residiam com DD na fracção identificada em 4) [alínea F) do despacho em referência].
7. A Autora deu entrada de notificação judicial avulsa, correspondente ao processo nº 1408/20.T8PVZ, para que as Rés, no prazo de dez dias, lhe entregassem o imóvel descrito em 4) e respectivo mobiliário, livre de pessoas, com os fornecimentos de água, electricidade integralmente pagos, bem como o condomínio [documento junto em 3 de Novembro de 2021 e alínea G) do despacho em referência].
8. As Rés foram notificadas por oficial de justiça em 24 de Novembro de 2020 [documento junto em 3 de Novembro de 2021 e alínea H) do despacho em referência]
9. As Rés continuam a residir na fracção identifica em 4) [alínea I) do despacho em referência].
10. A Autora pagou € 680,77 relativamente às quotas de condomínio da fracção identificada em 4), no período compreendido entre Agosto de 2020 e Fevereiro de 2022 [resposta aos artigos 19º da petição inicial e 6º do articulado de aperfeiçoamento apresentado em 3 de Novembro de 2021].
11. A ocupação da fracção pelas Rés impede a Autora de a utilizar ou auferir renda pela sua cedência temporária a terceiros [resposta ao artigo 18º da petição inicial].
12. O valor da fracção no mercado de arrendamento é de, pelo menos 400/mês [resposta ao artigo 4º do articulado de aperfeiçoamento apresentado em 3 de Novembro de 2021].
13. A Ré BB nasceu a ../../1927, sendo filha de GG e de HH [resposta ao artigo 38º da contestação].
14. A Ré CC nasceu a ../../1952, sendo filha da co-Ré [resposta ao artigo 38º da contestação].
15. Em data não concretamente apurada, as Rés foram residir no Brasil com DD [resposta ao artigo 15º da contestação].
16. A Ré BB trabalhou como modista contribuindo para o sustento da casa que partilhava com o irmão e a Ré CC [resposta aos artigos 18º, 19º da contestação].
17. A Ré CC fez parte dos quadros de pessoal administrativo do negócio de venda de batatas e cebolas por atacado que o tio explorava no ... [resposta ao artigo 24º da contestação].
18. No ano de 2010 DD e as Rés regressaram a Portugal [resposta ao artigo 26º da contestação].
19. DD era um homem com personalidade forte, autoritário, tomava as decisões de maior importância, vivendo as Rés submissas à sua vontade [resposta ao artigo 28º da contestação].
20. A Ré BB contribuiu com o montante de € 15.000 para a aquisição do veículo ligeiro de passageiros marca Toyota, matrícula ..-TQ-.., por DD em Outubro de 2017 [resposta ao artigo 30º da contestação].
21. Após o falecimento de DD, a Ré CC procurou a Advogada que tratava dos assuntos familiares, Dr.ª MM, tomando conhecimento que havia multas de trânsito para pagar [resposta ao artigo 32º da contestação].
22. Em momento posterior ao óbito referido em 2), as Rés pagaram consumos de energia do período compreendido entre 27 de Janeiro a 26 de Abril de 2020, no montante global de € 200,82 [resposta ao artigo 51º d) da contestação].
23. Em Maio de 2020, as Rés pagaram o montante de € 222,83 referente à primeira prestação de IMI da fracção identificada em 4) [resposta ao artigo 51º h) da contestação].
24. Em 6 de Julho de 2020 as Rés pagaram o montante de € 94,68 devido no âmbito do plano prestacional acordado entre A... e DD [resposta ao artigo 51º e) da contestação].
25. A Ré CC custeou o funeral de DD no montante de € 2.260,96 [resposta ao artigo 51º a) da contestação].
26. Em Setembro de 2020 a Autora veio a Portugal apresentando-se às Rés como filha de DD [resposta ao artigo 33º da contestação].
27. Durante essa estadia a Autora obteve a entrega do veículo identificado em 20) com vista à sua venda [resposta ao artigo 36º da contestação].
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Não se provou que:
a) foi com o negócio referido em 17) que as Rés e DD ganharam dinheiro para comprar o apartamento referido em 4);
b) DD tomava para si a gestão dos dinheiros da família;
c) para fazer face a uma dívida sobre o apartamento (questão relacionada com o procurador) a Ré BB viu-se obrigada a desfazer-se das suas jóias, incluindo o cordão em ouro com 2 metros e 248 gr, tudo no valor de € 11.650;
d) as Rés indicaram à Autora o apartamento como sendo de DD e da demandada BB;
e) no momento referido em 27) a Autora disse que tinha de “fazer dinheiro para pagar as dívidas do pai, dar à tia e pagar aos advogados dela e à advogada do pai”;
f) a Autora afirmou que, visto a tia BB ter 93 anos e a prima 68 anos de idade, nunca teriam de sair do apartamento apesar de ser seu por herança do pai, “que podiam ficar até à morte da última, que estivessem tranquilas” e que “nunca as iria prejudicar pois sabia que elas é que viveram e ajudaram o pai toda a vida, logo o apartamento seria para viverem nele como compensação da vida em comum”;
g) as Rés tivessem custeado:
i) reparação automóvel: € 166;
ii) quotas de condomínio: € 250,81;
iii) despesas de correio: € 15,10;
iv) Bombeiros Voluntários: € 80;
h) Os valores de dívidas de electricidade e o acordo A... fossem de € 136,98 e € 167,59, respectivamente;
i) a Autora propôs às Rés uma compensação de € 25.000,0, caso quisessem entregar o imóvel, acrescido de € 5.000 quando o vendesse;
j) as Rés realizaram uma série de levantamentos na conta à ordem de DD, após o falecimento.
As restantes alegações não constam dos factos elencados supra por não se mostrarem relevantes para decidir as questões suscitadas, por serem respeitantes a matéria conclusiva ou de Direito ou destinadas ao cumprimento do ónus de impugnação especificada.”
*
Como antes já vimos, neste seu recurso as rés/apelantes querem ver alterada a decisão de facto que foi proferida pela 1ª instância.
E fundamentam tal pretensão, por um lado, numa pretensa “contradição entre os factos provados e a motivação da sentença” e por outro lado na forma incorrecta como foram valoradas as declarações prestadas pela Autora em julgamento.
A propósito desta pretensão impõe-se dizer, desde logo, o seguinte:
Da leitura das alegações de recurso, quer do seu corpo quer das suas conclusões, o que numa primeira análise parece resultar é a vontade das rés/apelantes de arguirem a nulidade prevista na primeira parte da alínea b) do nº1 do art.º 615º do CPC, ou seja a oposição entre os fundamentos de facto e a decisão de direito que foi proferida.
No entanto o que de facto se verifica é algo bem diferente.
Assim, o que as rés/apelantes pretendem é, desse logo, que sejam valoradas de forma diferente as declarações prestadas pela Autora e o depoimento prestado pela testemunha EE.
A ser deste modo, estamos pois perante uma verdadeira impugnação da decisão da matéria de facto proferida e não já em face da arguição da nulidade antes melhor identificada.
E impugnando-se, como se impugna, a referida decisão de facto estavam as rés/apelantes obrigadas ao cumprimento dos ónus previstos no art.º 640º do CPC, o que manifestamente não cumprem no que toca ao previsto nas alíneas a) e c).
Se não vejamos.
É verdade que para além do que fixou referido as rés/apelantes indicam as passagens das declarações da Autora e do depoimento da testemunha EE nas quais fundam o seu recurso.
Nestes termos pode pois afirmar-se que se estão cumpridos os ónus previstos no nº 1, alínea b) e no nº2 alínea a) do art.º 640º do CPC.
No entanto o que também se verifica é que não se indicam os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados nem referem a decisão, que no seu entender, e a tal propósito deve ser proferida.
Ora vem sendo aceite por todos que a inobservância deste ónus primário – em específico, a referida falta de cumprimento do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 640º, determina a imediata rejeição do recurso.
E isto sem sequer se discutir se a aludida falta de cumprimento desse ónus deve ocorrer nas conclusões da alegação, ou se basta que se verifique no corpo das alegações.
Como temos vindo a defender noutras decisões, o nosso entendimento é o de tal ónus deve ser satisfeito (também) nas conclusões da alegação.
E pela simples razão de que os ónus ínsitos nas referidas alíneas do art.º 640º do CPC, integrando um ónus primário, têm por função delimitar o objecto do recurso (cf. art.º 635º/4 CPC) e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto.
Voltando aos autos e mais concretamente às alegações das rés/apelantes o que se constata de modo evidente é que as mesmas se limitam, de uma forma vaga e genérica, a manifestar o seu desagrado com a decisão proferida, não indicando os pontos de facto (provados e/ou não provados) que em seu entender devem ser modificados, nem propondo a decisão que em substituição daquela deve ser agora proferida.
E a ser assim e atento o que decorre no corpo do nº1 do art.º 640º do CPC, rejeita-se sem mais o recurso da decisão de facto aqui interposto pelas rés/apelantes.
E mantendo-se como se mantém a decisão de facto resulta evidente que também não merece provimento a segunda das questões suscitadas pelas rés/apelantes neste seu recurso.
Vejamos, pois, recordando aqui o que foi feito constar na parte final da decisão recorrida e que foi, recorde-se, o seguinte:
“Pretendem as Reconvintes que a Autora lhes 5.000 após a venda da fracção, alegando que a mesma teria feito uma proposta de compensação nesses valores se lhe entregassem o imóvel.
Essa proposta não foi demonstrada. A sê-lo, estaríamos no campo das obrigações naturais, ou seja, fundadas num mero dever de ordem moral/social, sem serem judicialmente exigíveis.
A presente acção coloca muitas questões morais que se prendem com o facto de as Rés terem vivido por longos anos, quer no Brasil, quer em Portugal, com o falecido Pai da Autora, convivendo e prestando-lhe cuidados, fazendo-lhe companhia, acompanhando-o directamente na doença, com eventual desconhecimento sobre a existência de uma filha e eventuais expectativas de serem nomeadas suas herdeiras.
Porém, ainda que possa existir um dever de justiça da Autora em relação às Rés, não cabe ao Tribunal imiscuir-se, porquanto tal extravasa a tutela jurídica a que está adstrito.”
Ficou já visto que as rés/apelantes se insurgem contra este entendimento, alegando que no caso está em causa um dever de ordem moral do qual resulta uma obrigação que o tribunal deve, em seu entender, qualificar como natural e que justifica a procedência deste seu pedido.
É consabido que as obrigações naturais se fundam num mero dever de ordem moral ou social, o seu cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça (art.º 402º do CC).
Sabe-se, igualmente, que estas obrigações estão sujeitas ao regime das obrigações civis em tudo o que não se relacione com a realização coactiva da prestação (art.º 404º), pois, o seu cumprimento não é judicialmente exigível.
Por outro lado, é aceite por todos que não pode ser repetido o que for prestado em cumprimento de uma obrigação natural, excepto se o devedor não tiver capacidade para efectuar a prestação (art.º 403º).
Como refere Almeida Costa, Noções de Direito Civil, 2ª edição, pág.361, “para que se verifique uma situação deste tipo, fora dos casos expressos, impõe o referido preceito (art.º 402º, todos do C.Civil) a concorrência de um requisito negativo e dois positivos. A saber: 1) que a prestação não seja judicialmente exigível; 2) mas que a respectiva obrigação se baseie num dever moral e social; 3) e que o seu cumprimento corresponda a um dever de justiça”.
No que toca à circunstância de a obrigação se dever basear num dever moral e social, dizem Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, pág.351.2, “o dever de ordem moral ou social em que se funda a obrigação natural não é definido por lei, nem podia sê-lo, antes ao tribunal cabendo a determinação casuística sobre se existe ou não um dever que justifique a qualificação da obrigação com natural”.
Assim, não haverá uma obrigação natural quando o fundamento da prestação seja um dever de gratidão, de reconhecimento e a intenção, por parte do autor, de gratificar, retribuir ou compensar um serviço realizado gratuitamente.
As obrigações naturais decorrem de deveres de justiça que não são, porém, deveres jurídicos. Claro que os deveres de justiça dependem das concepções sociais e morais predominantes de cada sociedade.
Seguindo o que sobre o assunto refere Almeida Costa, Obra citada, pág. 374, para se detectarem obrigações naturais, fora dos casos especificados expressamente na lei, compete aos tribunais, “de harmonia com as concepções sociais predominantes e as circunstâncias concretas de cada caso, averiguar, primeiro, se existe um dever moral e social, e, seguidamente se esse dever moral social é tão importante que o cumprimento envolva um dever de justiça. Exige-se que o dever de uma pessoa para com outra não respeite somente a consciência moral, mas algo mais, que respeite também à sua consciência jurídica”.
Já Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 4ª ed., págs. 630/631, escreve que “para que haja obrigação natural, é necessário que exista, como fundamento da prestação, um dever moral ou social específico entre pessoas determinadas, cujo cumprimento seja imposto por uma recta composição de interesses (ditames da justiça).”. (Neste sentido e entre outros cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22.01.2011, processo 81/04.8TBVLF.C1.S1, relatado pelo Conselheiro Garcia Calejo, da Relação de Coimbra de 03.12.2009, processo 4371/07.0TJCBR.C1, relatado pelo Desembargador Gregório de Jesus e data Relação do Porto de 16.01.2018, processo 35337/17.0YRPRT.P1, relatado pelo desembargador Rodrigues Pires, todos em www.dgsi.pt.).
No caso dos autos a questão que se coloca, será a de saber se as prestações e pagamentos realizados pelas Rés no período em que viveram em comunhão de vida com o pai da Autora, o falecido DD, nomeadamente o “empréstimo” da quantia de 15.000,00 €, melhor referida em 20) dos factos provados, corresponderam a um dever de justiça.
E a resposta a dar a esta questão, só poder ser em nosso entender negativa.
Isto porque resulta evidente que o comprovado contributo da Ré BB com o montante de € 15.000,00 para a aquisição do veículo ligeiro de passageiros marca Toyota, matrícula ..-TQ-.., pelo seu irmão DD em Outubro de 2017, não “se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça.”.
Sendo assim, tem pois razão o Tribunal “a quo” quando considerou que tais “deslocações patrimoniais sem causa justificativa” poderiam em abstracto subsumir-se no instituto do enriquecimento sem causa.
E tem igualmente razão quando entendeu que, apesar disso, cabia às Rés a alegação e a prova dos requisitos de tal instituto previstos no art.º 473º do Código Civil (cf. art.º 342º, nº1 do CC).
Mais ainda por força da sua natureza supletiva.
Nestes termos, também nós consideramos que não tendo as Rés deduzido este seu pedido tendo por base tal instituto e logrando provar os requisitos de facto e de direito que a sua procedência impunha, bem se decidiu pois quando se julgou improcedente tal pedido de restituição.
Assim sendo e sem mais impõe-se negar provimento ao recurso aqui interposto e confirmar a decisão proferida.
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Sumário (cf. art.º 663º, nº7 do CPC):
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III. Decisão:
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão proferida.
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Custas a cargo (cf. art.º 527º, nºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.

Porto, 21 de Março de 2024
Carlos Portela
Isoleta de Almeida Costa
António Carneiro da Silva