PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Sumário

I - No processo de promoção e proteção pode, em determinados casos, ser tomada uma decisão sem que seja previamente ouvido o progenitor, representante ou quem tenha a guarda da criança ou jovem, conforme previsto no art. 85.º da LPCJP, nomeadamente no caso das medidas cautelares e de procedimentos judiciais urgentes, previstos nos arts. 37.º e 92.º da LPCJP.
II- O princípio do contraditório, consagrado no Código de Processo Civil, no art. 3.º, tem de ser entendido como garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.
III- No processo de promoção e proteção, especificamente, sendo um processo de jurisdição voluntária, aplica-se igualmente o princípio do contraditório, expressamente previsto no art. 85.º da LPCJP, sendo uma das manifestações desse princípio, em processo de promoção e proteção, a audição obrigatória, impondo-se, assim, que antes de decidir, o juiz a quo tivesse ouvido a mãe dos menores e até os próprios menores.
IV- Tendo a decisão recorrida sido proferida, a promoção do Ministério Público, sem ter sido dada qualquer possibilidade à apelante de se pronunciar, e não sendo mencionada qualquer impossibilidade ou dificuldade de audição prévia da progenitora, nem qualquer situação de urgência incompatível com tal prévia audição, foi omitido um ato que a lei prescreve, o qual se afigura suscetível de influir no exame e decisão da questão a decidir nos autos, pelo que se impõe declarar nula a decisão recorrida.

Texto Integral

Apelação n.º 999/13.7TMPRT-E.P1

Acórdão na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

RELATÓRIO:
O Ministério Público, agindo em benefício de AA, nascida a ../../2011, e de BB, nascido a ../../2013, ambos filhos de CC e de DD, com residência na Rua ..., ..., Porto, requereu a reabertura do PROCESSO JUDICIAL DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO, nos termos do disposto nos artigos 34.º, 72.º, 3, 73.º e 111.º, 1 da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (L.P.C.J.P.), aprovada pela Lei nº 147/99, de 01/09.
Alegando que as crianças se encontram sujeitas a uma relação conflitual dos progenitores, marcada por violência verbal, emocional e física, que a progenitora, com a qual vivem, se eximiu aos contactos efetuados pela CPCJ, impedindo a recolha do seu consentimento para a intervenção, entende que, é necessário aplicar uma medida de promoção e proteção que permita que as crianças, em meio natural de vida, possam beneficiar de uma intervenção técnica que monitorize de forma próxima o seu bem-estar global, as suas rotinas, os processos educativos a que estão expostas e a dinâmica entre os progenitores, aferindo da capacidade destes para promover o desenvolvimento integral dos filhos e fomentar e respeitar as ligações afetivas daqueles a cada um dos progenitores.
Nessa sequência, foi determinada a reabertura do processo de promoção e proteção, nos termos do estatuído no art. 111.º da LPCJP.
Realizadas as diligências necessárias, foi proferida a seguinte decisão:
“Considerando o teor do acordo que antecede, a posição assumida pelo Ministério Público e pela Segurança Social expressa nos relatórios já juntos aos autos, e tendo em atenção que os aludido acordos acautelam suficientemente os interesses do menor, no sentido de lhe proporcionar as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral, homologo por sentença o acordo que antecede- Art.º 113.º, n.º 1 e 2 da Lei 147/99, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 142/2015 de 8 de Setembro, sendo aplicada às crianças, BB, nascida em ../../2013 e AA, nascida em ../../2011, a medida de Promoção e Proteção de Apoio Junto dos Pais, a ser executada junto da mãe.
A medida terá a duração de 6 (seis) meses altura em que será revista.
Para acompanhamento da execução da medida ora aplicada, designo a Segurança Social.”.
Essa medida foi mantida por várias vezes, aquando da respetiva revisão, sendo a última vez em 04-10-2023.
Através de promoção de 25-01-2024, o Digno Magistrado do Ministério Público veio, na sequência de informações chegadas aos autos, promover que em revisão da medida de promoção e proteção que se encontrava em execução relativamente às referidas jovem e criança, AA e BB, no caso, a medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, a executar junto da mãe, medida que, através da decisão homologatória proferida no dia 3-10-2023, foi mantida por mais seis meses e com reavaliação aos três meses, fosse aplicada a favor das referidas jovem e criança, provisoriamente, por três meses e nos termos do disposto nos arts. 35.º, nº 1, al. f), 37.º e 62.º, nºs 1 e 3, al. b), todos da LPCJP, a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, a executar em Instituições, Casas de Acolhimento Residencial diferentes, a indicar pelo ISS.

Foi na sequência dessa promoção que foi proferida a decisão recorrida, datada de 30-01-2024, e que tem o seguinte teor:
“Vi o expediente policial enviado pela CPCJ ..., com a referência citius nº 37869391, de 18-1-2024.
Na verdade, encontra-se em execução relativamente à jovem AA, nascida a ../../2011 e à criança BB, que nasceu no dia ../../2013, a medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, a executar junto da mãe, medida que, por douta decisão homologatória proferida no dia 3-10-2023, foi mantida por mais 6 meses e com reavaliação aos 3 meses.
No relatório social com a referência citius nº 37943074, de 24-1-2024, o ISS concluiu o seguinte:
- Pese embora o prazo amplamente ultrapassado da medida e os apoios disponibilizados, numa conjugação de esforços dos diversos serviços envolvidos, a progenitora continua a mostrar-se bastante resistente à intervenção, assim como pouco consciente das necessidades educativas e psico emocionais dos filhos, desde já pela forma desajustada como reage perante as contrariedades (o que modela nos mesmos comportamentos idênticos), como desculpabiliza e desresponsabiliza os comportamentos do BB, incentivando-os e reforçando sentimentos de impunidade;
- A referida progenitora das crianças não só “tem incumprido com a intervenção terapêutica do BB, da qual se esperava que trouxesse maior equilíbrio para o mesmo, atentas as experiências traumáticas por que passou”, como também “tem incumprido com as suas próprias consultas de Psicologia, recomendadas em relatório forense, de modo a dotá-la, entre outros, de ferramentas comunicacionais e parentais, cuja necessidade é premente.
Em tal relatório, considerando esgotadas as estratégias de intervenção em meio natural de vida, persistindo a progenitora numa atitude parental inconsistente, potenciadora de instabilidade emocional para os filhos, transmitindo, em especial o BB, vários sinais de alarme, criança que, num episódio recente, viu ser-lhe aplicada medida disciplinar preventiva de 3 dias de suspensão das atividades letivas (estando em aberto a possibilidade de exclusão do menor do Projeto Educativo), não tendo a progenitora contestado a decisão, nem levado a AA às aulas (criança que também está a faltar às consultas de Psicologia), vincando o propósito de integrar os filhos no ensino regular;
- Paralelamente, têm percebido que a progenitora deturpa junto de outros alunos, os acontecimentos com o BB, instigando os mesmos contra os Técnicos do Projeto Educativo;
- Da articulação com o GEAV, resulta a indicação que o BB e a mãe mantêm acompanhamento irregular e, simultaneamente, que a progenitora não se mostra colaborante e recetiva às orientações terapêuticas, mantendo atitude de desculpabilização do filho e da própria e responsabilizando terceiros;
- O BB teve anteriormente duas consultas de Pedopsiquiatria no Hospital ..., as quais não tiveram continuidade, ficando a dúvida sobre se a progenitora expunha dificuldades no controlo do comportamento do filho, que, como referido, tem vindo em escalada;
- Após um dos episódios referidos, em que o BB foi acompanhado à urgência pediátrica por um Técnico da QPI, que teve oportunidade de relatar o descontrolo do BB, foi solicitada nova consulta de Pedopsiquiatria, que se prevê para março próximo.
Em tal relatório, não havendo indicação de retaguarda familiar ou outra, o ISS emitiu parecer no sentido da substituição da medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, a executar junto da mãe, pela medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, relativamente a ambas as crianças e a executar em casas diferentes, de modo a permitir à AA distanciar-se dos problemas do irmão e ter atenção personalizada, sendo desejável que, na medida do possível, que mantenha a frequência do Projeto Educativo da QPI, onde sugere integração satisfatória.
Desta feita, em revisão da medida de promoção e proteção que se encontra em execução relativamente às referidas jovem e criança, AA e BB, no caso, a medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, a executar junto da mãe e medida que, através da decisão homologatória proferida no dia 3-10-2023, foi mantida por mais seis meses e com reavaliação aos três meses, aplica-se a favor das referidas jovem e criança, provisoriamente, por três meses e nos termos do disposto nos arts. 35º, nº1, al. f), 37º e 62º, nºs 1 e 3, al. b), todos da LPCJP, a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, a executar em Instituições, Casas de Acolhimento Residencial diferentes e a indicar pelo ISS e emitindo-se os respetivos mandados de condução a enviar à PSP que deverá articular com o ISS e solicitando-se a esta entidade que providencie pela indicação das ditas casas de acolhimento residencial adequadas a receber tais jovem e criança.”.

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Não se conformando com esta decisão, veio a progenitora da jovem a da criança, apresentar o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
“1- O presente Recurso tem como base a nulidade, por omissão do Tribunal a quo de formalidades essenciais, do despacho de 30/01/2024;
2- Nos autos de promoção e protecção dos menores AA, nascida em ../../2011 e BB, nascido em ../../2013, foi revista a medida de apoio junto de familiar (mãe) que lhes havia sido fixada, por despacho de 30/10/2023, pelo período de 6 meses, com reavaliação ao fim de 3 meses, sendo alterada para aplicação duma medida de acolhimento residencial, pelo período de 3 meses;
3- A Recorrente nunca foi notificada para audição ou, sequer, lhe foi disponibilizado o relatório social com a referência citius n.º 37943074, de 24/01/2024 que sustenta o douto despacho em crise, com vista o exercício do contraditório, antes da sua prolação;
4- Foi com o sobredito despacho em crise, que a Recorrente soube da sua existência e constância no processo, e teve acesso àquele, mediante consulta apenas na secretaria judicial;
5- Dispõe o n.º 1, do art. 85.º, da LPCJP que a pessoa que tem a guarda de facto da criança ou do jovem é obrigatoriamente ouvida sobre a situação que originou a intervenção e relativamente à aplicação e revisão das medidas de promoção e proteção, o que não foi feito, não existindo fundamentos de direito ou de facto que permitam ultrapassar a fase de audição da progenitora, por não verificados os pressupostos vertidos no n.º 2, do art. 85.º, da LPCJP;
6- Entende a Recorrente que a ausência do cumprimento desse imperativo legal, só se justificaria se fosse alegada e fundamentada uma situação de urgência incompatível com a audição da progenitora, situação que não se verifica, nem tal omissão foi apresentada ou fundamentada pelo Tribunal a quo;
7- Foi coarctada à Recorrente, de forma flagrante, a possibilidade desta se pronunciar quantos aos factos constantes do relatório social com a referência CITIUS n.º 37943074, de 24/01/2024;
8- Nesse sentido, vd Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 05/12/2013 proferido no processo 3501/06.3TBPTM-L.E1, do qual resulta que no âmbito dos processos de promoção e protecção de crianças e jovens em risco há a violação do princípio do contraditório, e concretamente do artigo 85º LPCJP, quando é tomada medida de promoção e protecção sem a audição prévia dos progenitores da criança.
9- Deverá assim ser declarada a nulidade da decisão constante do despacho de fls.., concluso em 30 de Janeiro de 2024, por violação de um preceito legal imperativo, o aludido Principio do Contraditório, constante do disposto no artigo 85º LPCJP, violação do princípio do processo justo e equitativo, sustentado no art.º 20.º da CRP, e, consequentemente, revogado o referido despacho, dando cumprimento ao referido preceito legal.
10- Ademais, a irregularidade decorrente da falta de exercício do contraditório é susceptível de influenciar a decisão da questão concreta a conhecer.
11- Entende a Recorrente que, face à ausência de contraditório quanto ao teor do referido relatório social com a referência citius n.º 37943074, de 24/01/2024, o Tribunal a quo não tomou, salvo devido respeito, conhecimento da globalidade dos factos que, cremos, sustentaria uma decisão bem diferente.
12- O douto despacho recorrido baseia-se no já citado relatório social, secundando:
[…]“Em tal relatório, considerando esgotadas as estratégias de intervenção em meio natural de vida, persistindo a progenitora numa atitude parental inconsistente, potenciadora de instabilidade emocional para os filhos, transmitindo, em especial o BB, vários sinais de alarme, criança que, num episódio recente, viu ser-lhe aplicada medida disciplinar preventiva de 3 dias de suspensão das atividades letivas (estando em aberto a possibilidade de exclusão do menor do Projeto Educativo), não tendo a progenitora contestado a decisão, nem levado a AA às aulas (criança que também está a faltar às consultas de Psicologia), vincando o propósito de integrar os filhos no ensino regular […]“a progenitora não se mostra colaborante e recetiva às orientações terapêuticas, mantendo atitude de desculpabilização do filho e da própria e responsabilizando terceiros”
13- O Tribunal a quo devia recolher a versão da progenitora, por modo a afastar a séria dúvida que se abate sobre o relatório, na medida em que decorre do mesmo que aquela podia/devia ter contestado uma decisão de suspensão preventiva das actividades lectivas, atento o comportamento do seu filho menor BB e quando, mais adiante, se relata que a sobredita progenitora tem uma atitude desculpabilizadora dos actos do filho.
14- A Recorrente foi diligente e zelosa, na medida em que, assim que na reunião da escola lhe foi dito que o menor estava expulso, prontamente se deslocou à DREN, no sentido de encontrar alternativa para acesso deste ao sistema de ensino, a Escola Básica ..., na cidade do Porto, tendo a menor AA sido igualmente transferida para esse estabelecimento de ensino, onde está enquadrada e se pretende manter, factos que não são do conhecimento do Tribunal a quo, atenta a falta do exercício do contraditório;
15- O relatório afirma que os menores incumprem as consultas de psicologia.
Acontece que, desde o despacho de revisão de 03/10/2023, a menor AA apenas faltou uma vez por estar doente e disso ter advertido a Psicóloga, já o menor BB sempre nelas compareceu, ora acompanhado pela mãe, ora pelo irmão mais velho – EE;
16- O Tribunal a quo, socorrendo-se, uma vez mais, única e exclusivamente do relatório social, proclama que inexiste qualquer rectaguarda familiar, mesmo quando esse mesmo relatório se contraria quando refere a disponibilidade do irmão EE para colaborar em tudo o que se revele necessário;
17- Todos estes novos factos devem ser apreciados pelo tribunal a quo, através do cumprimento do exercício do direito ao contraditório;
18- A Constituição da República Portuguesa protege a família e consagra o direito da criança poder desenvolver-se dentro desta, sendo uma das obrigações fundamentais do Estado e da sociedade em geral art.68.º da CRP;
19- Tal direito é, também, um dos direitos internacionais da Criança;
20- O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23 de Abril de 2009 (Proc. 11162.03.5TMSNT.A.L1-1, disponível em http://.dgsi.pt), consagra “ o interesse da criança ou jovem, deve ser realizado na medida do possível no seio do seu grupo familiar” A aplicação de medidas que provoquem o afastamento da criança ou do jovem da família e, consequente institucionalização, deve ser o último recurso a aplicar-se, notoriamente, pelo seu impacto e repercussão no desenvolvimento são dos menores.
21- Não estando evidenciados factos que demonstrem a incapacidade da progenitora em garantir o bem-estar dos menores, nem que aquela os exponha ao perigo, à insegurança, afecte a sua saúde, contribua para uma distorção na sua formação moral e escolar, deve ser mantida a medida de promoção e proteção determinada em 30-10-2023, de apoio junto dos pais a executar junto da mãe.
Nestes termos e nos melhores de Direito que doutamente serão supridos deve dar-se provimento ao recurso, ser declarado nulo o douto despacho recorrido por violação do disposto no artigo 85º, n.º 1 LPCJP, e, consequentemente, revogado o referido despacho substituindo-o por outro que determine a audição da progenitora e, consequentemente, manter as medidas promoção e protecção de apoio a executar junto da mãe, aplicadas por despacho de 30/10/2023.”.

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo, em resumo, que a recorrente não tem razão; a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial contra a qual se insurge, foi aplicada provisoriamente, nos termos do disposto no art. 37.º da LPCJP e fundada em situações de perigo para as crianças, tratando-se, pois, de decisão urgente tomada a título cautelar; o art. 37.º da LPCJP prevê a tomada de decisão a título cautelar, sendo que a decisão tomada nos termos do referido normativo, não depende do cumprimento prévio do contraditório, designadamente nos termos do disposto no art. 85.º da LPCJP; a decisão recorrida contém suficiente fundamentação no sentido da aplicação, a título provisório e pelo período de três meses e nos termos do disposto nos arts. 35º, nº1, al. f), 37º e 62º, nºs 1 e 3, al. b), todos da LPCJP, da mencionada medida de promoção e proteção de acolhimento residencial a favor das jovem e criança; pelo que, não tendo sido violadas quaisquer disposições legais e não se verificando quaisquer nulidades, é de parecer que o recurso apresentado não merece provimento, devendo ser confirmada a decisão recorrida.

O recurso foi admitido como apelação, a subir de imediato, em separado e com efeito devolutivo.
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FUNDAMENTAÇÃO:
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante e o pedido que formula, a questão a decidir consiste em saber se deve ser declarado nulo o despacho recorrido, por omissão de formalidades essenciais, nomeadamente, por violação do disposto no artigo 85.º, nº 1 da LPCJP, e substituído por outro que determine a audição da progenitora, mantendo as medidas promoção e proteção de apoio a executar junto da mãe, aplicadas por despacho de 30/10/2023, invocando a apelante, ainda, a nulidade da decisão por a violação do direito ao contraditório ser suscetível de influenciar a decisão da questão concreta a conhecer.
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A matéria de facto a ter em conta é a que consta da decisão transcrita supra, nomeadamente:
No relatório de 24-1-2024, o ISS concluiu o seguinte:
- Pese embora o prazo amplamente ultrapassado da medida e os apoios disponibilizados, numa conjugação de esforços dos diversos serviços envolvidos, a progenitora continua a mostrar-se bastante resistente à intervenção, assim como pouco consciente das necessidades educativas e psico-emocionais dos filhos, desde já pela forma desajustada como reage perante as contrariedades (o que modela nos mesmos comportamentos idênticos), como desculpabiliza e desresponsabiliza os comportamentos do BB, incentivando-os e reforçando sentimentos de impunidade;
- A referida progenitora das crianças não só “tem incumprido com a intervenção terapêutica do BB, da qual se esperava que trouxesse maior equilíbrio para o mesmo, atentas as experiências traumáticas por que passou”, como também “tem incumprido com as suas próprias consultas de Psicologia, recomendadas em relatório forense, de modo a dotá-la, entre outros, de ferramentas comunicacionais e parentais, cuja necessidade é premente.
- Em tal relatório, foram esgotadas as estratégias de intervenção em meio natural de vida, persistindo a progenitora numa atitude parental inconsistente, potenciadora de instabilidade emocional para os filhos, transmitindo, em especial o BB, vários sinais de alarme, criança que, num episódio recente, viu ser-lhe aplicada medida disciplinar preventiva de 3 dias de suspensão das atividades letivas (estando em aberto a possibilidade de exclusão do menor do Projeto Educativo), não tendo a progenitora contestado a decisão, nem levado a AA às aulas (criança que também está a faltar às consultas de Psicologia), vincando o propósito de integrar os filhos no ensino regular;
- Paralelamente, têm percebido que a progenitora deturpa junto de outros alunos, os acontecimentos com o BB, instigando os mesmos contra os Técnicos do Projeto Educativo;
- Da articulação com o GEAV, resulta a indicação que o BB e a mãe mantêm acompanhamento irregular e, simultaneamente, que a progenitora não se mostra colaborante e recetiva às orientações terapêuticas, mantendo atitude de desculpabilização do filho e da própria e responsabilizando terceiros;
- O BB teve anteriormente duas consultas de Pedopsiquiatria no Hospital ..., as quais não tiveram continuidade, ficando a dúvida sobre se a progenitora expunha dificuldades no controlo do comportamento do filho, que, como referido, tem vindo em escalada;
- Após um dos episódios referidos, em que o BB foi acompanhado à urgência pediátrica por um Técnico da QPI, que teve oportunidade de relatar o descontrolo do BB, foi solicitada nova consulta de Pedopsiquiatria, que se prevê para março próximo.
- Em tal relatório, não havendo indicação de retaguarda familiar ou outra, o ISS emitiu parecer no sentido da substituição da medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, a executar junto da mãe, pela medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, relativamente a ambas as crianças e a executar em casas diferentes, de modo a permitir à AA distanciar-se dos problemas do irmão e ter atenção personalizada, sendo desejável que, na medida do possível, que mantenha a frequência do Projeto Educativo da QPI, onde sugere integração satisfatória.
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Decidindo:
O recurso versa apenas sobre uma questão de direito, estando em causa saber se foi violado o princípio do contraditório, previsto quanto aos processos de promoção e proteção, no art. 85.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), Lei n.º 147/99, de 01 de setembro, preceito que tem o seguinte teor:
Artigo 85.º
Audição dos titulares das responsabilidades parentais
1 - Os pais, o representante legal e as pessoas que tenham a guarda de facto da criança ou do jovem são obrigatoriamente ouvidos sobre a situação que originou a intervenção e relativamente à aplicação, revisão ou cessação de medidas de promoção e proteção.
2 - Ressalvam-se do disposto no número anterior as situações de ausência, mesmo que de facto, por impossibilidade de contacto devida a desconhecimento do paradeiro, ou a outra causa de impossibilidade, e os de inibição do exercício das responsabilidades parentais.

Este preceito encontra-se inserido no capítulo relativo às disposições processuais gerais que se aplicam aos processos de promoção e proteção instaurados nas comissões de proteção ou nos tribunais, e acaba por estabelecer quanto ao processo de promoção e proteção em concreto, o que já resulta do disposto no art. 3.º, nºs 2 e 3 do Código de Processo Civil que prevê o princípio do contraditório.
Contudo, tal como no processo civil existem casos, como alguns procedimentos cautelares, em que se dispensa a pronúncia prévia da parte, a qual pode sempre reagir após tomada a decisão, vem-se entendendo que também no processo de promoção e proteção pode, em determinados casos, ser tomada uma decisão sem que seja previamente ouvido o progenitor, representante ou quem tenha a guarda da criança ou jovem, nomeadamente no caso das medidas cautelares e de procedimentos judiciais urgentes, previstos nos arts. 37.º e 92.º da LPCJP.
Neste sentido, decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09-02-2010, proferido no processo nº 2609/09.8TBVFX-A.L1-1, citado pelo Ministério Público na sua resposta, e disponível no site da dgsi, onde se diz que “numa situação de emergência, o decretamento de uma medida provisória de promoção e proteção, não depende da prévia observância do contraditório, o qual, à semelhança do que por vezes ocorre com os procedimentos cautelares previstos no CPC, é assegurado à posteriori, ou seja, após a notificação da decisão tomada, por via de recurso ou formulação de requerimento de revisão/cessação da medida provisória tomada (…)”.
E isto compreende-se, tendo em conta a especificidade do processo de promoção e proteção, o qual, nos termos do art. 1.º da LPCJP, tem por objeto a promoção dos direitos e a proteção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral.
De acordo com o disposto no art. 3.º da mesma lei:
“1 - A intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo. (…)”.
Por sua vez, o art. 4.º do mesmo diploma legal, estabelece como princípios orientadores da intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo, entre outros, o superior interesse da criança e do jovem; a proporcionalidade e atualidade, no sentido de a intervenção dever ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade; a responsabilidade parental, devendo a intervenção ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem; a prevalência da família; a obrigatoriedade da informação e a audição obrigatória e participação.
No entanto, embora considerando todos os princípios a levar em conta, nunca será de esquecer o superior interesse da criança ou jovem, sendo este que, em casos excecionais, pode permitir, no que para o caso interessa, que seja dispensado o contraditório em momento anterior à decisão, quando esta se afigure urgente e seja provisória.
Assim, o art. 37.º da LPCJP, dispõe que “1 - A título cautelar, o tribunal pode aplicar as medidas previstas nas alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo 35.º, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 92.º, ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente.”, sendo que tais medidas têm sempre a duração máxima de seis meses e devem ser revistas no prazo máximo de três meses.
Como resulta do preceito citado, com exceção da medida de confiança para adoção, todas as demais podem ser decididas a título cautelar, o que resulta também do art. 35.º, nº 2.
As medidas cautelares, por outro lado, podem ser aplicadas enquanto se procede ao diagnóstico da situação, mas também em situações de emergência nos termos previstos no art. 92.º, nº 1, como o próprio art. 37.º refere, ou seja, nomeadamente, quando exista perigo atual ou iminente de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou jovem, medidas que, nesse caso, até devem ser objeto de decisão provisória, no prazo de quarenta e oito horas, o que, como é fácil de ver, dificilmente permitirá o exercício do contraditório.

Passando ao caso dos autos, constata-se que o processo de acompanhamento dos menores teve início no ano de 2017.
Quanto à menor AA resulta que teve sempre um comportamento exemplar, estando, não obstante, sujeita a medida de acompanhamento há mais de seis anos.
Relativamente ao menor BB, a situação afigura-se diferente, mostrando-se necessária uma intervenção efetiva que permita resolver a situação, e não continuar com medidas provisórias que nada têm vindo a resolver, o que vale igualmente para a intervenção junto da progenitora, resultando dos autos que as decisões se vêm baseando em relatórios da Segurança Social, sem que existam relatórios do pedopsiquiatra ou do psicólogo, esses, sim, importantes para aferir a real situação do menor.
Em qualquer caso, para que possa ser aplicada a medida de acolhimento cautelar, nos termos do art. 37.º da LPCJP, como referido, ter-se-ão que verificar os pressupostos dessa norma, nomeadamente, “enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente”, ou, então, em situações de emergência nos termos previstos no art. 92.º, nº 1, como o próprio art. 37.º refere, ou seja, quando exista perigo atual ou iminente de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou jovem.
Não é, contudo, o que ocorre no caso, estando os menores já sujeitos a uma medida de promoção e proteção, e não resultando dos autos que ocorra alguma das situações referidas que imponha a fixação de uma medida cautelar, nomeadamente, uma qualquer situação de emergência, com perigo atual ou iminente de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou jovem.
Entende-se, pois, que não se verificam os pressupostos para que seja aplicada uma medida cautelar, ainda mais, uma medida que retire os menores da família.
Aliás, a maior parte da jurisprudência do STJ vem entendendo que é admissível alargar a providência do habeas corpus à medida de promoção e proteção de crianças e jovens de “acolhimento residencial”, atenta a sua natureza e finalidade, uma vez que não deixa de ser uma medida limitativa da liberdade e de direitos fundamentais.

Posto isto, e face ao que se deixa dito, o princípio do contraditório, consagrado no Código de Processo Civil, no art. 3.º, em cujo n. 3 se dispõe que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”, tem de ser entendido como garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.
No processo de promoção e proteção, especificamente, sendo um processo de jurisdição voluntária, aplica-se igualmente o princípio do contraditório, estando expressamente previsto no já citado art. 85.º da LPCJP.
Também o já referido art. 4.º da LPCJP, na sua alínea j), prevê como princípio, a audição obrigatória e participação, na medida em que a criança e o jovem, em separado ou na companhia dos pais ou de pessoa por si escolhida, bem como os pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua guarda de facto, têm direito a ser ouvidos e a participar nos atos e na definição da medida de promoção dos direitos e de proteção, impondo-se, assim, por força do citado art. 85.º da LPCJP, que antes de decidir, o juiz a quo tivesse ouvido a mãe dos menores e até os próprios menores.
Deste modo, a aplicação da medida de acolhimento, deveria ter sido precedida do procedimento regular previsto na lei (art. 100.º e ss.), e designadamente, no que para o caso interessa, com observância do disposto no art. 104.º, quanto ao exercício do contraditório, e com a audição dos menores e da progenitora, nos termos do art. 107.º, todos da LPCJP.
Ora, no caso, a decisão recorrida foi proferida, a promoção do Ministério Público, sem ter sido dada qualquer possibilidade à apelante de se pronunciar.
Por outro lado, na mesma decisão também não é mencionada qualquer impossibilidade ou dificuldade de audição prévia da progenitora, nem qualquer situação de urgência incompatível com tal prévia audição.
Conclui-se, assim, que foi omitido um ato que a lei prescreve, o qual se afigura suscetível de influir no exame e decisão da questão a decidir nos autos, pelo que se impõe declarar nula a decisão recorrida que determinou a aplicação da medida de acolhimento em instituição, dos menores AA e BB, e, bem assim, de todos os termos subsequentes que dela dependam absolutamente.
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DISPOSITIVO:
Face ao exposto, acordam os Juízes da 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, em julgar a apelação procedente, e, consequentemente, anulam a decisão recorrida, bem como todos os termos subsequentes que dela dependam absolutamente.
Sem custas (art. 4.º, nº 1, alíneas a) e i), do Regulamento das Custas Processuais.

Porto, 2024-03-21
Manuela Machado
Isoleta de Almeida Costa
Isabel Silva