JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
ADEQUAÇÃO FORMAL
ATESTADO MÉDICO MULTIUSOS
PROVA PERICIAL
Sumário

I - A decisão do tribunal de primeira instância que, com fundamento na leitura conjugada dos arts. 423.º, n.º 3, e 425.º ambos do Cód. Proc. Civil, não admite a junção de documento requerida após o encerramento da audiência final mas antes de proferida a sentença, não integra qualquer violação do princípio da adequação formal consagrado no art. 547.º do Cód. Proc. Civil.
II - A admissibilidade de apresentação de prova documental está prevista e tratada pelo legislador no rito processual existente, o qual, não obstante consagrar o encerramento da discussão da causa como o momento final para a apresentação de documentos em primeira instância, permite excecionalmente subsequente apresentação com as alegações de recurso, nos termos conjugados dos arts. 651.º, n.º 1, e 425.º, ambos do Cód. Proc. Civil.
III - O recurso à adequação formal visa permitir a prática de ato não previsto, mas a sua utilização deve ser feita com ponderação e cautela, perante necessidades e situações que efetivamente justifiquem o recurso a tal alteração à forma e atos processuais legalmente previstos.
IV - A adequação formal só surge quando o juiz atua; a falta de utilização da adequação formal – que é o que os apelantes invocam como fundamento do recurso – não será passível de recurso: quando muito, poderá constitui uma nulidade processual (por omissão de observância do dever de gestão processual mediante a prolação de despacho de adequação formal), nos termos do disposto no art. 195.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil (omissão de ato que a lei prescreva), que apenas poderia ter sido arguida perante o tribunal a quo.
V - Não obstante o seu regime e finalidades específicos, o Atestado Médico Multiusos, instituído pelo Decreto-Lei nº 202/96, de 23 de outubro (alterado pelos Decretos Lei n.º 174/97, de 19 de Julho, n.º 291/2009, de 12 de Outubro, n.º 1/2022, de 03 de janeiro e n.º 15/2024, de 17 de janeiro), pode servir como um meio de prova indireta da incapacidade absoluta e definitiva alegada como fundamento do acionamento de contrato de seguro associado a contratos de mútuo bancário em que o segurado é mutuário.
VI - Tendo sido realizada prova pericial para aferição do grau de incapacidade de que a autora padece, tal meio de prova – pericial – assume relevância preponderante face à prova documental consistente em Atestado Médico Multiusos que atribui distinta percentagem de incapacidade, por tal meio de prova ser produzido com garantia de contraditório pelas partes e pela sua específica finalidade enquanto meio de prova pericial destinado precisamente à avaliação da incapacidade decorrente do sinistro e em discussão no processo.

Texto Integral

Processo 795/19.8T8PVZ.P1 – Apelação
Tribunal a quo Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim – J5
Recorrente(s) AA
BB
Recorrido(a/s) A... Companhia de Seguros, S.A.

Sumário
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Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

Identificação das partes e indicação do objeto do litígio

AA e marido BB instauraram a presente ação declarativa, com processo comum, contra B... – Companhia de Seguros de Vida, S.A, atualmente denominada A... Companhia de Seguros de Vida, S.A, pedindo:
a) se declararem nulas e de nenhum efeito as cláusulas 8.2 da apólice nº ... e ... das condições especiais da apólice nº ...;
b) se reconheça que a incapacidade permanente atribuída à Autora preenche os pressupostos de inclusão na garantia da cobertura dos seguros, denominada de “invalidez absoluta e definitiva” por doença;
c) a Ré seja condenada:
i) a pagar ao Banco 1..., S.A. o valor em dívida relativo ao contrato de mútuo celebrado no valor atual de € 64.365;
ii) ao reembolso dos valores das prestações que pagaram ao Banco 1... S.A., desde a data do diagnóstico até efetivo e integral cumprimento por parte da Ré da obrigação mencionada, que até à data da petição computam em € 9.114,27 e das quantias que pagaram a título de prémios de seguro no âmbito das referidas apólices, no mesmo período, computadas em € 2.438,10;
iii) no pagamento dos juros de mora sobre as referidas quantias, calculados à taxa legal em vigor, desde a data do diagnóstico até efetivo e integral pagamento, computados € 1.130,21;
iv) no pagamento da quantia de € 5.000, a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Para tanto, alegaram terem celebrado com a ré dois contratos de seguro para cobertura de morte e invalidez absoluta e definitiva, como condição essencial para a concessão do crédito de € 68.000,00 que contraíram junto do Banco 2..., S.A., atualmente Banco 1..., S.A., mediante a celebração de contrato de mútuo para aquisição de imóvel (descrito Conservatória do Registo Predial da Póvoa do Varzim sob o nº ...- União de Freguesias ..., ... e ...), garantindo o pagamento do capital mutuado em caso de morte dos segurados autores e em caso de invalidez absoluta e definitiva.
Alegam ter-se verificado sinistro coberto pelo seguro, por a autora, em virtude e consequência de carcinoma diagnosticado em Junho de 2015 e dos tratamentos a que foi sujeita, ter ficado impossibilitada de exercer a profissão na atividade de restauração em estabelecimento explorado pelos autores, tendo também impacto na sua rotina, para vestir-se, pentear-se, cuidar da sua higiene e organizar a casa, levando mais tempo e necessitando da ajuda do marido.
Invocaram ainda a nulidade das cláusulas do contrato que estabelecem as condições para o acionamento da garantia em caso de invalidez absoluta e definitiva (com a sua consequente exclusão), por a exigência cumulativa de 1) grau de incapacidade permanente igual ou superior a 85 %, de 2) impossibilidade total e definitiva de exercer qualquer atividade remunerada e, ainda de 3) assistência permanente de uma terceira pessoa para realização dos atos elementares da vida, prevista na apólice n.º ..., se revelar desproporcional à caraterização do estado de invalidez absoluta que o seguro visou prevenir: precaver o eventual risco de ocorrência de uma situação – morte ou invalidez absoluta e definitiva – que não permita ou dificulte o pagamento das prestações em dívida do contrato de mútuo.

A Ré contestou, excecionando a ilegitimidade processual ativa dos autores por preterição de litisconsórcio necessário ativo, dada a falta de intervenção da instituição de crédito na qual os autores possuem o mútuo cujo pagamento se encontra garantido pelos contratos de seguro, por os autores pretenderem a condenação da ré no pagamento do valor correspondente ao capital em dívida do contrato de mútuo que celebraram com a instituição bancária.
Impugnando parcialmente os factos, contestou o preenchimento pela apelante da situação de invalidez definitiva e absoluta contratualmente prevista, razão pela qual declinou o pagamento do capital seguro.
Alegou ainda que a prestação principal a seu cargo é a garantia de pagamento de um determinado capital em caso de morte, sendo as restantes coberturas meramente complementares, pelo que, quanto à cobertura complementar para os casos de invalidez absoluta e definitiva, exige-se uma situação de quase total invalidez para fazer o que quer que seja, pelo que as cláusulas são válidas.
Quanto ao pedido de indemnização por danos não patrimoniais, referiu que o contrato não prevê essa cobertura.

Os autores requereram a intervenção principal provocada do Banco 1..., S.A, o que foi deferido por despacho de 19-11-2019 (Ref. 409480530).
Citado, o interveniente Banco 1..., S.A., arguiu a sua ilegitimidade passiva e a manifesta inviabilidade do pedido, por não ter qualquer obrigação de ressarcimento de obrigações advindas do Banco 2..., S.A., atentas as deliberações do Banco de Portugal de 3 e 11 de Agosto de 2014, inerentes à sua constituição e ao perímetro das transferências de passivos do Banco 2..., S.A., invocando a ineptidão da petição inicial.
Exercendo o contraditório, alegaram os autores que, sendo a intervenção principal do Banco uma intervenção do lado ativa, e não passivo, a apresentação da contestação se deve a equívoco, estando os seus fundamentos votados ao insucesso.

Foi dispensada a audiência prévia e proferido despacho saneador que julgou as exceções improcedentes e se pronunciou pela validade e regularidade dos restantes pressupostos processuais, tendo sido proferido despacho que fixou o valor da ação em € 82.047,58 e que procedeu à identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, tendo ainda elencado a matéria de facto assente por prova documental.

Foi admitida e realizada prova pericial consistente na realização de perícia médica à autora (realizada por perito da Delegação do Norte do INML, em moldes singulares), tendo sido juntos aos autos:
– Em 27-10-2020 (Ref. 27147021), relatório preliminar;
– Em 20-01-2021 (Ref. 27923071), primeiro relatório da perícia médico-legal de psiquiatria;
– Em 22-04-2021 (Ref. 28679893), relatório da perícia médico-legal de avaliação do dano intermédio;
– Em 20-08-2021 (Ref. 29735491), segundo relatório da perícia médico-legal de avaliação do dano intermédio;
– Em 04-11-2021 (Ref. 30401162), segundo relatório da perícia médico-legal de psiquiatria;
– Em 10-11-2021 (Ref. 30467993), relatório da perícia médico-legal de avaliação do dano final;
– Em 23-03-2022 (Ref. 31755254), resposta do perito do INML a pedido de esclarecimento da autora;
– Em 21-06-2022 (Ref. 32600154), resposta do perito de psiquiatria do INML a pedido de esclarecimento da autora.

Após realização da audiência final (em 28-02-2023, Ref. 445815824), e antes da prolação da sentença, os autores, em 18-04-2023 (Ref. 35400797), requereram a junção aos autos do Atestado Médico de Incapacidade Multiuso definitivo, datado de 28.03.2023 e posteriormente enviado à autora, onde lhe é atribuído um grau de incapacidade de 0,8715, e que tal incapacidade se reporta a 2020, invocando só ter sido possível efetuar tal junção neste momento, nos termos do artigo do artigo 423.º, n.º 3, primeira parte do Código de Processo Civil.
A ré seguradora, em 27-04-2023 (Ref. 35479238) pronunciou-se pela não admissão da junção requerida, por o documento não ser essencial para a decisão da causa e pronunciou-se sobre o seu valor.
Em 10-07-2023 (Ref. 445848965) foi proferido despacho que não admitiu o documento apresentado pelos autores por, tendo a audiência final sido encerrada no dia 28 de fevereiro, estando os autos conclusos para sentença, o documento em causa ter sido emitido em momento posterior ao limite temporal de junção de documentos na primeira instância, o qual é coincidente com o encerramento da discussão, atento o disposto nos arts. 423.º, n.º 3 e 425.º, ambos do Cód. Proc. Civil.

Foi ainda proferida sentença, que julgou a ação (parcialmente) improcedente, concluindo nos seguintes termos:
Em face do exposto, o Tribunal, reconhecendo, embora, a nulidade das cláusulas identificadas no ponto 4) da fundamentação de facto, no segmento respeitante à exigência de recorrer à assistência permanente de uma terceira pessoa para efetuar cumulativamente os atos elementares da vida corrente e apresentação de um grau de incapacidade igual ou superior a 85%, julgando a ação não provada e improcedente, absolvendo a Ré A... – Companhia de Seguros de Vida, S.A. dos pedidos formulados pelos Autores AA e marido BB identificados no relatório sob as alíneas b) e c).

Inconformados, os autores apelaram desta decisão, apresentando as seguintes conclusões e juntando com as alegações de recurso um documento, consistente no Atestado Médico de Incapacidade Multiuso definitivo, datado de 28.03.2023 (cuja junção haviam requerido ao tribunal a quo com o requerimento de 18-04-2023, Ref. 35400797):
1.º - A sentença recorrida padece de fortes e fatais patologias, nomeadamente errado enquadramento e aplicação do Direito que culmina em absolvição parcial (e maioritária) da recorrida relativamente aos pedidos formulados pelos Recorrentes.
2.º - Para decidir de tal forma, o tribunal a quo justificou que a situação da Recorrente não se enquadra numa situação de invalidez.
3.º - Tão pouco se dignou admitir prova cabal dos factos, a qual evitaria o presente recurso por levar, inevitavelmente, à procedência (total) da ação.
Assim sendo,
4.º - A sentença recorrida, salvo o devido respeito, não poderá transitar em julgado por ser uma conclusão diversa e oposta aquilo que a prova produzida impunha.
5.º - Desde logo por toda a prova produzida, mas em específico os depoimentos terem sido “globalmente, objetivos e coerentes (…)”, cfr. as nossas transcrições no capítulo das Alegações que antecede.
6.º - Por contrário, na página 21 da sentença o tribunal a quo já coloca em causa os depoimentos prestados, nomeadamente nas declarações de parte.
7.º - Atentas as declarações prestadas pelo Recorrente, a 28.02.2023, pelas 14hr14, em que se baseou o tribunal a quo para afirmar – como o fez – que nas declarações do Recorrente “…houve muitos pontos contrariados pelas informações clínicas…” sendo certo que, eventualmente, a parte das declarações prestadas e que eventualmente o Recorrente possa não ter respondido de forma perentória corresponde a matéria de índole manifestamente técnico-medicinal, do qual o Recorrente não tem qualquer conhecimentos técnicos naquela matéria.
8.º - Ou sequer é entusiasta naqueles assuntos.
9.º - Do mesmo modo e partindo do princípio da parcialidade dos sujeitos processuais, o que permite discernir se uma determinada testemunha, num qualquer processo judicial, não está apenas a reforçar “a característica subjetivista e a tendência de transmitir uma imagem” mais benéfica para a parte que a arrolou?
10.º - Concretizando, o que permite não tecer as mesmas considerações pela testemunha arrolada pela recorrida – Dr. CC – médico que afirmou expressa e perentoriamente ser avençado pela Ré? Sobretudo sendo avençado, também não existe – em abstrato – uma tendência para “transmitir uma imagem” mais benéfica para a parte que a arrolou?
11.º - Das transcrições da prova gravada presentes no capítulo de Alegações que antecede no capítulo das alegações, como bem se entende, estão presentes declaração subjetivas, na medida em que retratam a vida e vivência normal do Recorrente com a Recorrente, mas traduzem a verdade material sem que se queira ou se possa, com tais declarações – de forma alguma – que tenham o sentido e alcance que o tribunal a quo imputa a estas (e, nas palavras da sentença, em geral) declarações de partes.
12.º - Sobretudo porque, daquilo que se transpôs, mas ainda é mais cristalino nas gravações de áudio deste depoimento, foram declarações espontâneas, imparciais, coesas e coerentes.
13.º - Portanto, face a toda a prova produzida (documental ou não) bem assim juízos de razoabilidade e critério do homem médio – até pelas patologias aqui em causa serem de conhecimento medianamente comum da sociedade – dúvidas não podem existir de que a matéria dada como não provada deveria ter sido, por contrária, dada como provada.
14.º - Nomeadamente as alíneas c), d), e), g), h), i), j), k), e l).
Acresce que,
15.º - Na página 31 e 32 da sentença a quo, conforme se discorreu supra, o tribunal de primeira instância andou manifestamente mal.
Pois,
16.º - Desde logo, porque a invalidez é um conceito multifacetado que envolve limitações físicas, cognitivas e sociais que afetam a capacidade de uma pessoa realizar atividades diárias, mas também os fatores sociais, psicológicos e culturais que moldam a experiência de pessoas com invalidez.
17.º - Por outro lado, conforme preceitua o Supremo Tribunal de Justiça, a 17.11.2020, nos autos de processo n.º 4093/18.6T8VCT.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt, “tal “invalidez absoluta e definitiva do segurado”, terá que ser entendida, à luz da interpretação feita por um declaratário normal, nos termos do artigo 236º do C. Civil, como correspondendo a uma situação em que, por doença ou acidente, o segurado fique impossibilitado de trabalhar e auferir rendimentos que lhe permitam obter meios de subsistência e de fazer face à obrigação que assumiu perante a entidade bancária “.
18.º - Nenhuma dúvida pode existir relativamente ao facto de que a Recorrente ficou com invalidez absoluta e definitiva, quer pelos aludidos critérios de razoabilidade, quer também por toda a prova produzida que demonstra a estrondosa alteração das circunstâncias em que a Recorrente vive nos dias de hoje e aquelas em que vivia na data da subscrição da apólice de seguro em crise.
19.º - E não se pode conceber que o tribunal de primeira instância tenha fundamentado a sentença da forma como o fez, uma vez que com tal atuação, com o devido respeito, não quis “ver” a verdade material do caso concreto em julgamento.
20.º - Não reconhecendo a Justiça que o caso concreto sindica e merece, contribuindo assim para o desacreditar dos cidadãos na Justiça.
21.º Pois não só os juízos de razoabilidade impunham nesse sentido, como também não promoveu qualquer diligência no sentido de apurar a verdade e justa composição do litígio, conforme lhe impunha o artigo 411.º e 604.º n.º 3, ambos do CPC, nomeadamente através de uma perícia médica a designar pelo tribunal a quo que iria permitir todas as questões que o tribunal revelou ter na redação da sentença recorrida.
22.º- Por contrário, se o tribunal a quo tivesse procedido a essa prova pericial seria indiscutível para o tribunal a incapacidade absoluta e definitiva da Recorrente.
23.º - Prova disso mesmo é o atestado multiusos definitivo, datado de 28 de março de 2023 mas com reporte a 2020, que a Recorrente tem uma incapacidade permanente global de 87,15% (oitenta e sete vírgula quinze porcento), cfr. documento n.º 1 que se juntou em sede de Alegações de recurso.
24.º - Impõe-se questionar: com 87.15%, (oitenta e sete vírgula quinze porcento), é razoável considerar alguém apta para o trabalho? É realmente razoável considerar que esse grau de incapacidade permite, sem grandes dores, laborar de forma tranquila? E a Justiça deve realmente alhear-se à justiça deste caso concreto e impor à Recorrida a submissão a dores e fortes desconfortos em prol de, à luz do tribunal a quo, essa percentagem de incapacidade não ser grave o suficiente para ser considerada inválida? Transitando em julgado a sentença recorrida, quer realmente a Justiça que a invalidez apenas se obtenha com 100% de incapacidade permanente global (ou seja em estado vegetativo)?
25.º - Com o devido respeito, constate-se o alhear do tribunal a quo à boa decisão da causa, nomeadamente ao não exercício do princípio da adequação formal aquando da junção deste documento antes da prolação da sentença.
26.º - Ainda assim e a propósito deste documento ora junto, não se pode conceber o que foi dito pelo tribunal de primeira instância, no final da página 30 da sentença recorrida: “No confronto com a incapacidade fixada nos atestados médicos de incapacidade multiusos, importa referir, antes de mais, que os mesmos têm repercussões fiscais, no âmbito da aposentação antecipada por doença, na isenção de taxas moderadoras, mas não relevantes no âmbito de uma ação destinada ao cumprimento de um contrato de seguro, na medida em que a tramitação processual compreende a instrução da causa com recurso a perícias por forma a proporcionar ao Julgador informações seguras. para decidir em matéria técnica que não domina.
27.º- Daqui se conclui que:
Por um lado, o errado total descrédito dos atestados médicos multiusos que, sem prejuízo de terem diversos fins, nomeadamente fiscais, traduzem uma realidade fáctica e material do próprio detentor do atestado. Desacreditar neste tipo de documento probatório é, por consequência, pôr em causa o conteúdo atestado e os seus subscritores; é também admitir a possibilidade de legalmente fraudar a Lei no sentido em que uma pessoa é fiscalmente inválida, mas materialmente apta para o trabalho.
- Por outro lado, põe a nu o poder-dever instrutório por parte do tribunal de primeira instância, no qual deveria sub-rogar-se às partes e, perante a prova (indiciária para aquele tribunal), ter ordenado as diligências que se lhe apraziam necessárias e adequadas, nomeadamente a perícia médica da Recorrente.
28.º- Depois, tendo em conta o que se expos no capítulo anterior, o tribunal confessa-se tecnicamente incompetente (no sentido médico da problemática) para aferir do grau gravidade da invalidez, mas concluí a sentença na sua página 32 a formular juízos de valor acerca de questões inquestionavelmente de natureza médica e psiquiátrica.
29.º - Como pode o tribunal a quo num primeiro momento referir que devem as partes auxiliá-lo com prova pericial e, noutro, substitui-se a esses próprios peritos que deveria ter requerido e conclui desta forma?
30.º - Tendo o tribunal a quo concluído – e bem! – pela nulidade das cláusulas contratuais impugnadas em primeira instância, de igual forma deveria ter concluído pela situação de invalidez da Recorrente.
31.º - Concluindo inevitavelmente pela procedência da ação, condenando a recorrida nos termos peticionados na petição inicial.
NESTES TERMOS, NOS DAS DISPOSIÇÕES LEGAIS MENCIONADAS E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V.ªS EX.ªS DOUTA E SABIAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÃO SER ACEITES, POR TEMPESTIVAS E LEGAIS, AS PRESENTES ALEGAÇÕES E CONCLUSÕES DE RECURSO, SENDO EM CONSEQUÊNCIA E APÓS OS ULTERIORES TERMOS, PROFERIDO ACÓRDÃO NO SENTIDO DE:
a) Declarar que o documento n.º 1 referido nas Nossas Alegações e Conclusões, poderia e deveria ter sido admitido pelo tribunal a quo em nome da boa decisão da causa;
Improcedendo o pedido anterior da alínea a),
b) Admitir a junção, nesta sede, do aludido documento n.º 1.
Sem prescindir e em consequência,
c) Reconhecer a incapacidade absoluta e definitiva para o trabalho por parte da Recorrente.
d) Revogar a sentença recorrida no que tange à não consideração da Recorrente como inválida;
e) Condenar os recorridos nos termos peticionados na primeira instância.

A ré/apelada apresentou resposta às alegações, pronunciando-se pela não admissão da junção de documento, quer pelos motivos invocados pelo tribunal a quo, quer por os recorrentes não terem requerido agora, em sede de recurso, tal junção, defendendo ainda que o documento em causa não tem a virtualidade de alterar a decisão proferida.
Defende ainda a rejeição do recurso quanto à impugnação da decisão de facto, por incumprimento do disposto no art. 640.º do CPC, dado não terem indicado quais os meios de prova que, em concreto, devem levar à alteração de cada um dos factos não provados.
Pronunciou-se pelo acerto da apreciação da prova efetuada pelo tribunal recorrido e da subsunção jurídica dos factos, concluindo pela manutenção da sentença recorrida.

II. Objeto do recurso:

Atentas as conclusões das alegações de recurso, são as seguintes as questões a apreciar:
Questões prévias
Revogação da decisão/despacho que não admitiu o requerimento de junção do atestado médico multiusos
Subsidiariamente, pronúncia sobre a admissão do referido atestado médico multiusos apresentado com as alegações de recurso
Questão de facto
Admissibilidade do recurso quanto à impugnação da decisão de facto
Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Questão de direito
Preenchimento do risco garantido no contrato de seguro ‘incapacidade absoluta e definitiva da recorrente’.

III. Apreciação dos fundamentos do recurso:

1. Questões prévias

A matéria de facto (emergente da tramitação do processo) relevante para apreciação das questões prévias suscitadas é a seguinte:
1 – Em 28-02-2023 (Ref. 445815824) realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com a produção dos meios de prova, tendo sido encerrada a audiência final e determinada a oportuna abertura de conclusão para prolação de sentença.
2 – Em 07-03-2023 (Ref. 445848946) foi aberta a conclusão eletrónica para o efeito.
3 – Em 18-04-2023 (Ref. 35400797) os autores apresentaram requerimento com o seguinte teor:
«(…) AA e BB AA., nos autos à margem referenciados,
Vem requerer a V.ª Ex.ª o seguinte:
A junção aos autos do Atestado Médico de Incapacidade Multiuso definitivo, datado de 28.03.2023 e posteriormente enviado á aqui A., onde lhe é atribuído um grau de incapacidade de 0,8715, e que tal incapacidade se reporta a 2020.
Ora requer a sua junção por só ter sido possível neste momento e nos termos do artigo do artigo 423, nº 3 primeira parte do Código de Processo Civil:
“Após o limite temporal previsto no numero anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento, ….”
Junta: 1 Documento (Atestado Médico de incapacidade Multiuso) (…)».
4 – O documento em causa consiste num Atestado Médico de Incapacidade Multiuso com data de 28-03-2023, subscrito pela Presidente de Junta Médica Dr.ª DD, a qual atesta que «(…) de acordo com a TNI – Anexo I, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, o utente [a aqui autora] é portador de deficiência que, nesta data e conforme o quadro seguinte, lhe confere uma incapacidade permanente global de: 87% (…) susceptível de variação futura, devendo ser reavaliado no ano de … DEFINITIVO. (…)

(…) Obs. A Incapacidade reporta-se a 2020.
5 – Em 27-04-2023 (Ref. 35479238) a ré, exercendo o contraditório, pronunciou-se no sentido da não admissão da junção por o documento não se revelar essencial para a boa decisão da causa e, sem prescindir, alegando que não lhe pode ser atribuído o efeito probatório pretendido pelos Autores dado que «(…) é um atestado de incapacidades multiusos, válido essencialmente para efeitos fiscais e para atribuição ao utente de determinados benefícios fiscais e outros (isenção de taxas moderadoras, reforma antecipada, etc). (…) emitido mediante critérios muito distintos dos seguidos para efeitos de avaliação do dano corporal em direito civil, que será o que releva nos presentes autos. (…)».
6 – Em 10-07-2023 (Ref. 445848965) foi proferido o despacho recorrido, o qual tem o seguinte teor:
«O artigo 423º nº 3 do Código de Processo Civil estatui que o limite temporal previsto no nº 2 – vinte dias antes da audiência da data de realização da audiência –, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
Por sua vez, o artigo 425º dispõe que depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.
A audiência final foi encerrada no passado dia 28 de Fevereiro, estando os autos conclusos para sentença.
O atestado multiusos junto pelos Autores em 18 de Abril foi emitido em 28 de Março do corrente ano, em momento posterior ao limite temporal de junção de documentos na primeira instância, coincidente com o encerramento da discussão.
Pelo exposto, não admito o documento junto com o requerimento referência 45330431.
Notifique.»

1.1. Revogação da decisão/despacho que não admitiu o requerimento de junção do atestado médico multiusos
Fundam os apelantes a revogação do despacho proferido pelo tribunal a quo na alegação de que tal documento devia ter sido admitido ao abrigo do exercício do princípio da adequação formal.
O princípio da adequação formal encontra-se consagrado no art. 547.º do Cód. Proc. Civil, que dispõe nos seguintes termos: O juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo.
No caso em análise, a decisão proferida pelo tribunal a quo é uma decisão conforme com a tramitação processual prevista na lei. Como é referido na decisão recorrida, da leitura conjugada do art. 423.º, n.º 3, com o art. 425.º, ambos do Cód. Proc. Civil, resulta que, nos termos da tramitação processual prevista no Cód. Proc. Civil, a possibilidade de junção de documentos em primeira instância tem como limite o momento processual do encerramento da discussão em primeira instância, ou seja, após as alegações orais a que se reporta a al. e) do n.º 1 do art. 604.º do Cód. Proc. Civil.
Não se nos afigura que se possa afirmar (que é que os recorrentes pretendem) que a adequação formal prevista no art. 547.º do Cód. Proc. Civil impunha – por violação do dever consagrado na referida disposição legal – ao tribunal a quo decisão diferente daquela que foi proferida, a qual foi proferida em observância da tramitação processual legalmente prevista, nem que seja passível de recurso e revogação a decisão proferida, com o argumento invocado no recurso de ‘não exercício do princípio da adequação formal aquando da junção deste documento antes da prolação da sentença’, que se traduziria numa admissão em violação do que dispõem os referidos arts. 423.º e 425.º do Cód. Proc. Civil.
Consideramos que o regime estabelecido no Cód. Proc. Civil quanto à admissibilidade de meios de prova, nomeadamente, quanto ao momento da apresentação dos documentos, assume pertinente relevância no âmbito da disciplina e ordem processuais, pela sua importância ao nível do conhecimento, designadamente, pelas partes, do iter processual que lhes permite orientar a sua atuação com previsibilidade e segurança, surgindo a forma legalmente prevista, nomeadamente quando contende com a admissão de meios de prova, como uma garantia das partes de observância do princípio da igualdade e contra decisões arbitrárias.
Corolário disso é o facto de o n.º 2 do art. 632.º (Despachos que não admitem recurso) consagrar como exceção à irrecorribilidade das decisões de adequação formal, proferidas nos termos previstos no artigo 547.º, aquelas que contendam “com os princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios probatórios.
A admissibilidade de apresentação de prova documental está prevista e tratada pelo legislador no rito processual existente (o qual, não obstante consagrar o encerramento da discussão da causa como o momento final para a apresentação de documentos em primeira instância, permite excecionalmente subsequente apresentação com as alegações de recurso, nos termos conjugados dos arts. 651.º, n.º 1, e 425.º, ambos do Cód. Proc. Civil). O recurso à adequação formal visa permitir a prática de ato não previsto, mas a sua utilização deve ser feita com ponderação e cautela, perante necessidades e situações que efetivamente justifiquem o recurso a tal alteração à forma e atos processuais legalmente previstos Considerando que a adequação formal consagrada no art. 547.º do Cód. Proc. Civil constitui “uma válvula de escape, e não de um instrumento de utilização corrente, sob pena de subverter os princípios essenciais da certeza e da segurança jurídica”, ver Ac. do TRC de 14-10-2014, proc. n.º 507/10.1T2AVR-C.C1..
A adequação formal só surge quando o juiz atua; a falta de utilização da adequação formal – que é o que os apelantes invocam como fundamento do recurso – não será passível de recurso: quando muito, poderá constitui uma nulidade processual (por omissão de observância do dever de gestão processual mediante a prolação de despacho de adequação formal), nos termos do disposto no art. 195.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil (omissão de ato que a lei prescreva), que apenas poderia ter sido arguida perante o tribunal a quo.

Improcede, deste modo, a pretensão dos apelantes de revogação do despacho proferido pelo tribunal a quo que não admitiu o documento cuja junção foi requerida pelos mesmos com o requerimento de 18-04-2023 (Ref. 35400797).

1.2. Admissão de documento junto pelos apelantes com as alegações de recurso
Dispõe o art. 651.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, que «As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.».
Nos termos do disposto no art. 425.º (Apresentação em momento posterior) do Cód. Proc. Civil, «Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.»
Assim, encerrada a discussão apenas se admite a junção «(…) em sede de recurso de apelação, para além dos documentos que sejam objetiva e subjetivamente supervenientes (tendo em conta o encerramento da discussão na audiência final) (…) [d]aqueles cuja necessidade se revelar em função da sentença proferida, o que pode justificar-se pela imprevisibilidade do resultado (v.g. quando a sentença se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes ou quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam). Não é admissível a junção com a alegação de recurso de um documento que, ab initio, já era potencialmente útil à apreciação da causa. (…)» – assim, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Almedina, 2018, Coimbra, p. 502.
Como é referido no Ac. do STJ de 30-04-2019, proc. n.º 22946/11.0T2SNT-A.L1.S2, «[d]a leitura articulada dos artigos 651.º, n.º 1, 425.º do CPC decorre que as partes apenas podem juntar documentos em sede de recurso de apelação, a título excepcional, numa de duas hipóteses: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância.».
A superveniência de documento é objetiva quando o documento foi produzido posteriormente ao momento do encerramento da discussão, e é subjetiva quando a parte só tiver conhecimento da existência desse documento depois daquele momento – Acórdão do TRC de 08-11-2011, proc. 39/10.8TBMDA.C1.
No caso, como resulta da factualidade elencada, o documento que os apelantes apresentam com o recurso – que é o mesmo documento cuja junção haviam requerido perante o tribunal de primeira instância, após o encerramento da discussão – visa a comprovação de factos instrumentais dos factos essenciais que integram a causa de pedir e constitui um documento emitido em data ulterior ao encerramento da discussão em primeira instância, pelo que, atenta a finalidade da requerida junção e a sua superveniência objetiva, admitimos a requerida junção do documento.

2. Questão de facto

Os apelantes requereram, no recurso interposto, a alteração da decisão de facto da sentença recorrida, por discordarem da decisão de consideração como não provada da matéria de facto das alíneas c), d), e), g), h), i), j), k), e l) dos factos não provados, defendendo que a mesma deveria antes ter sido considerada provada.

2.1. (In)admissibilidade do recurso
Nas contra-alegações, pronunciou-se a apelada pela rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto por falta de cumprimento do ónus previso no art. 640.º do Cód. Proc. Civil, alegando que “os recorrentes não referem quais os meios de prova que, em concreto, deverão levar à alteração da resposta dada a cada um dos quesitos em causa”, e que se limitam “a afirmar que os depoimentos e declarações de parte prestados deverão ser valorados, não especificando em que medida não o foram pelo tribunal recorrido nem em que medida o deverão ser pelo tribunal de recurso.”

Vejamos.
Dispõe o art. 640.º do CPC sobre os Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto nos seguintes termos:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.

Conforme é referido no Ac. do STJ de 12-10-2023, proc. n.º 1/20.2T8AVR.P1.S1 Acessível na íntegra na base de dados de jurisprudência do IGFEJ – http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça “(…) na aferição do cumprimento dos ónus consagrados no art. 640.º do CPC, tem adoptado um critério de proporcionalidade e de razoabilidade, propugnando que aqueles ónus pretendem garantir uma adequada inteligibilidade do fim e do objecto do recurso. (…)», no sentido de que a rejeição do recurso por incumprimento de tais ónus está afastada desde que no recurso sejam (de forma percetível) identificados os concretos pontos da matéria de facto que o recorrente entende que foram incorretamente apreciados, especificados os concretos meios de prova que impunham decisão diversa e indicada(s) a(s) resposta(s) alternativa(s) que deve(m) ser dada(s) a tal matéria de facto – assim, Ac. do STJ de 28-04-2016, proc. n.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1 Acessível na íntegra na base de dados de jurisprudência do IGFEJ – http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.
Neste âmbito, tem sido efetuada pelo Supremo Tribunal de Justiça uma distinção entre o cumprimento dos requisitos previstos nas alíneas do n.º 1 do art. 640.º do CPC – que integram o que Supremo Tribunal de Justiça tem denominado de ónus primário –, e o cumprimento da exigência prevista na al. a) do n.º 2 do referido art. 640.º do CPC, que tem sido considerado que integra um ónus secundário. Assim, «(…) integram um ónus primário, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas als. a), b) e c) do nº1 do citado art. 640º, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto.
Mas, já constituirá um ónus secundário, a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na al. a) do nº 2 do mesmo art. 640º, pois tem, sobretudo, por função facilitar a localização dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contém a gravação da audiência.
E se é certo cominar a lei o incumprimento do ónus primário e do ónus secundário de igual forma, ou seja, com a sanção da rejeição imediata do recurso [cfr. art 640.º, n.º 1, proémio, e n.º 2, alínea a), do mesmo artigo], não sendo consentida a formulação ao recorrente de um convite ao aperfeiçoamento de eventuais deficiências, a verdade é que, tal como se afirma no citado Acórdão do STJ, de 29.10.2015, «não poderá deixar de ser avaliada diferentemente a falha da parte consoante ocorra num ou noutro âmbito».
Dito de outro modo e nas palavras do Acórdão do STJ, de 19.02.2015 (processo nº 299/05.6TBMGD.P2.S1)[7], enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº 1 do referido art. 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, al. a) do mesmo artigo, tal sanção deverá ser aplicada com algum tempero, só se justificando nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame por banda do tribunal de recurso.
Desde que não exista essa dificuldade, apesar da indicação pelo recorrente da localização dos depoimentos não ser totalmente exata e precisa, não se justifica a rejeição do recurso.
É que, como adverte o Acórdão do STJ, de 28.04.2016 (processo nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1), dando voz à jurisprudência cada vez mais consolidada neste Supremo Tribunal[8], «é necessário que a verificação do cumprimento do ónus de alegação regulado no art. 640 do CPC seja compaginado com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, atribuindo maior relevo aos aspectos de ordem material», por forma a não se exponenciarem os efeitos cominatórios previstos no mesmo artigo, havendo, por isso, que extrair do texto legal soluções conformes com estes princípios. (…)» – vd. Ac. do STJ de 03-10-2019, proc. n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2 Acessível na íntegra na base de dados de jurisprudência do IGFEJ – http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.

Aplicando o supra expendido ao caso dos presentes autos, os apelantes cumpriram o ónus primário, ao indicarem as alíneas dos factos não provados que consideram que devem ser considerados provados, tendo identificado como meios de prova que, no seu entender, justificam a requerida alteração da decisão do tribunal a quo, as declarações de parte prestadas pelo recorrente, a 28.02.2023, pelas 14hr14, entre os minutos 13:17 e 15:45 (ponto XII a XIV das alegações) e atacando o juízo do tribunal na avaliação do valor probatório de tais declarações de parte no confronto com a avaliação do valor probatório da testemunha Dr. CC.

Sendo este o objeto – assim fixado pelos apelantes – do recurso no que concerne à impugnação da decisão de facto, temos que concluir pelo cumprimento do ónus que se lhe impunha (quanto ao objeto assim delimitado), sendo de apreciar o recurso quando à decisão de facto nos moldes fixados pelos recorrentes no recurso interposto.

2.2. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
A apreciação do mérito do recurso, desde logo, quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, implica que se tenha em consideração a decisão proferida pelo tribunal a quo sobre a matéria de facto.

2.2.1. É o seguinte o teor da fundamentação de facto da sentença recorrida:
Resultaram provados os seguintes factos fixados por acordo das partes, como se extrai do despacho proferido em 27 de Maio de 2020, a fls. 221 e 221 vº, da análise dos documentos juntos e da prova produzida em julgamento relativamente à matéria controvertida por referência aos temas de prova:
1. Por escritura pública outorgada a 30 de Outubro de 2013, no Cartório da Dr.ª EE, sito na Praça ..., ...- 1º, Póvoa de Varzim, FF declarou vender aos Autores, que declararam aceitar, pelo preço já recebido de € 70.000, o prédio urbano composto de casa de rés-do-chão, com armazém agrícola e logradouro, sito na Rua ..., ..., descrito na Conservatória de Registo Predial de Póvoa de Varzim sob o nº ...-... [alínea A) do despacho em referência].
2. Declararam os Autores que, para aquisição do prédio, haviam solicitado ao Banco 2..., S. A. – Sociedade Aberta um empréstimo no valor de € 68.000, concedido pelo prazo de 420 meses a contar do subsequente dia 20, de que se confessavam solidariamente devedores e que para caução e garantia de todas as responsabilidades assumidas, nomeadamente, juros e despesas judiciais e extrajudiciais que fixavam para efeitos de registo em € 2.720, constituíam hipoteca sobre o dito imóvel, tendo a procuradora GG, em representação do Banco, declarado aceitar a confissão de dívida e a hipoteca [alínea B) do despacho em referência].
3. Por escrito titulado pelas apólices nº ... e ..., os Autores e Banco 2... Vida, a quem a Ré sucedeu, acordaram entre si, mediante o pagamento de contrapartida mensal, a garantia, pela segunda, do pagamento do capital decorrente do empréstimo identificado em 2) em caso de morte dos primeiros e, em complemento, a antecipação total do mesmo capital numa situação de invalidez absoluta e definitiva [alínea C) do despacho em referência].
4. Da cláusula 8.2 e do artigo 2º das cláusulas especiais das apólices identificadas em 3) consta “o segurado/pessoa segura é considerado em estado de invalidez absoluta e definitiva quando, em con-sequência de doença ou acidente, fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer atividade remunerada e simultaneamente, na obrigação de recorrer à assistência permanente de uma terceira pessoa para efetuar cumulativamente os atos elementares da vida corrente e desde que apresente um grau de incapacidade igual ou superior a 85% de acordo com a “Tabela Nacional de Incapacidades por Acidente de Trabalho e Doenças Profissionais” oficialmente em vigor no momento do reconhecimento da invalidez” [alínea D) do despacho em referência].
5. A cláusula e artigo referidos em 4) definem ato elementar da vida corrente:
“- lavar-se: significa efetuar os atos necessários à manutenção de um nível de higiene correto; - alimentar-se: significa tomar as refeições preparadas e servidas à mesa;
- vestir-se: significa vestir-se e despir-se, tomando em consideração o vestuário usado habitualmente;
- deslocar-se no local de residência habitual” [alínea E) do despacho em referência].
6. Por escritura pública celebrada a 8 de Novembro de 2016, no Cartório Notarial da Dr.ª HH, os Autores, GG e II, estas na qualidade de procuradoras de Banco 1..., S.A., declararam que os primeiros solicitaram a migração do crédito à habitação identificado em 2) para o regime de crédito bonificado à habitação para pessoa com deficiência, no montante de € 64.930,49, que passaria a reger-se por esse regime, a amortizar em prestações iguais e sucessivas de capital e juros à TAN de 0,03250%, correspondente a uma TAE de 0,03250%, suportando os juros correspondentes a 65% da taxa de referência, naquela data de 0,05%, variável, a alterar de acordo com as alterações da taxa de referência do Banco Central Europeu, vencendo-se a primeira prestação 30 dias após a data dessa alteração e as restantes em igual dia dos meses seguintes [alínea F) do despacho em referência].
7. A Autora nasceu a 26 de Janeiro de 1976 [resposta ao artigo 9º da petição inicial].
8. Em Maio de 2015 foi diagnosticado à Autora carcinoma invasor NST, de grau III na mama direita, com envolvimento axilar [resposta ao artigo 9º da petição inicial].
9. Entre 11 de Junho e Setembro de 2015 a Autora realizou oito ciclos de tratamentos de quimioterapia com Trastuzumab, tendo também frequentado a fisioterapia devido a radiculalgia do membro superior direito [resposta aos artigos 10º, 12º da petição inicial].
10. Em 1 de Dezembro de 2015 a Autora foi submetida a cirurgia para pesquisa de gânglio sentinela com mastectomia radical modificada tipo Madden à direita e excisão de 3 nódulos benignos da mama esquerda [resposta ao artigo 12º da petição inicial].
11. Após a mastectomia direita, a Autora continuou a ser acompanhada em consultas regulares, sendo submetida a exames complementares de diagnóstico a vários níveis [resposta ao artigo 13º da petição inicial].
12. Por razões profiláticas, a 27 de Dezembro de 2016 a Autora submeteu-se a nova intervenção cirúrgica, para mastectomia esquerda e anexetomia bilateral (remoção dos ovários e trompas de Falópio) [resposta ao artigo 14º da petição inicial].
13. A doença teve como efeito a perda de ambos os seios, a infertilidade, a menopausa precoce, cicatrizes cirúrgicas, bem como perda temporária de cabelo, fadiga e dores, como efeitos secundários dos tratamentos [resposta aos artigos 15º, 16º, 18º da petição inicial].
14. Devido ao impacto do diagnóstico da doença oncológica, a Autora sofreu alterações de humor, grande fragilidade emocional com incidência de sintomas depressivos, tendo tido acompanhamento por psicologia a partir de Setembro de 2015 até data não concretamente apurada [respostas aos artigos 17º, 19º e 20º da petição inicial].
15. A Autora continuou a ser acompanhada em consultas de follow up, apresentando dores osteoarticulares secundárias a hormonoterapia e risco de desenvolver linfedema do braço direito de cerca de 90%, tendo a médica oncologista desaconselhado pegar em pesos superiores a 1 kg e realizar movimentos repetitivos [resposta aos artigos 21º, 22º, 60º da petição inicial].
16. Após a cirurgia referida em 10) a Autora realizou tratamentos:
- de radioterapia adjuvante nas regiões das cicatrizes da mastectomia e axilar, que terminou a 3 de Março de 2016;
- com Trastuzumab que completou em 15 de Setembro de 2016:
- de hormonoterapia oral e castração química, inicialmente Anastrozole + Goserelina, passando a ser Examestano a partir de 4 de Agosto de 2016, com o ciclo de cinco anos a terminar em Agosto de 2021[resposta ao artigo 23º da petição inicial].
17. Presente a junta médica, em 20 de Janeiro de 2016 foi emitido atestado médico de incapacidade multiusos do qual se fez constar que a Autora padecia de deficiência que, naquela data, lhe conferia uma incapacidade permanente global de 94%, suscetível de variação futura e a ser reavaliada em 2020 [resposta ao artigo 24º da petição inicial].
18. A incapacidade referida em 17) reportava-se ao seguinte: a) capítulo XVI, nº IV alínea 3 - 0,60;
b) capítulo X, nº 2 Grau 3 – 0,30; c) capítulo III, nº 7 – 0,20;
d) capítulo III, nº 7 – 0,20;
e) capítulo XVI, nº IV alínea 3 - 0,60;
f) capítulo II, nº 1.4.2 alínea a) - 0,15 [resposta ao artigo 25º da petição inicial].
19. Após a emissão do atestado identificado em 17), os Autores participaram à Ré o estado de saúde da demandante [resposta ao artigo 26º da petição inicial].
20. Por missiva datada de 4 de Março de 2016, dirigida à Autora, a Ré acusou a receção da documentação recebida e referindo que os elementos clínicos em seu poder não eram esclarecedores quanto à incapacidade de que era portadora e o enquadramento na cobertura de invalidez questionava sobre a possibilidade de ser consultada por médico da Companhia [alínea G) do despacho em referência].
21. A Autora acedeu, sendo observada pelo Dr. JJ que lhe atribuiu uma incapacidade de 66% [resposta aos artigos 29º, 31º da petição inicial, 26º, 27º da contestação da Ré].
22. Por missiva datada de 6 de Maio de 2016, dirigida à Autora, a Ré aludiu às cláusulas identificadas em 4) e 5), comunicou que, após análise da documentação clínica enviada e a consulta médica a que fora submetida, concluía que a invalidez de que era portadora não se enquadrava nas condições especiais dos seguros complementares [alínea H) do despacho em referência].
23. Presente a nova junta médica, em 19 de Outubro de 2016 foi emitido atestado médico de incapacidade multiusos com o mesmo teor do identificado em 17) e 18) [resposta ao artigo 33º da petição inicial].
24. Na sequência das intervenções referidas em 10) e 12), a Autora foi encaminhada para consulta de cirurgia de reconstrução, a qual se concretizou através de duas cirurgias, a primeira em 8 de Março e a última em 7 de Junho de 2018 com colocação de implantes mamários [resposta ao artigo 61º da petição inicial].
25. Nos exames de follow-up realizados em 13 de Agosto de 2021 foi detetada a diminuição de massa óssea na região proximal do fémur e na coluna lombar em L3 e L4, associados a osteopenia de 5% e 5,3%, respetivamente [resposta ao artigo 43º da petição inicial].
26. Antes do diagnóstico referido em 8), a demandante dedicava-se à atividade de venda de jornais/revistas e serviço de cafetaria, exercida em estabelecimento comercial que é explorado por ambos os Autores [resposta ao artigo 46º da petição inicial].
27. A Autora esteve de baixa médica desde Junho de 2015, com renovação dos certificados de incapacidade temporária até 17 de Junho de 2021 [resposta ao artigo 47º da petição inicial].
28. O atendimento ao público no estabelecimento referido em 26) é realizado pelo Autor, uma funcionária e o filho do casal [resposta ao artigo 53º da petição inicial].
29. Por referência a 4 de Novembro de 2021, data da consolidação médico-legal da patologia sofrida pela Autora, o capital do financiamento identificado em 2), após a transformação referida em 6), ascendia a € 54.885,73 [resposta ao artigo 111º da petição inicial].
30. Os Autores continuaram a pagar as prestações mensais do financiamento referido em 29), no valor de € 7.421,79 correspondente ao período compreendido entre 20 de Novembro de 2016 e 20 de Maio de 2020, assim como os prémios das apólices referidas em 3), em montante não concretamente apurado [resposta aos artigos 113º, 116º, 117º da petição inicial].
31. Devido à doença e aos tratamentos necessários, a Autora ficou a padecer de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 49 pontos, por referência à Tabela Nacional de Incapacidades para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, com base no seguinte:
a) Cap. II 1.4.2 b) - mastectomia bilateral com reconstrução mamária (coeficiente 0,16-0,40): 0,20;
b) Cap. XVI 2) - doença oncológica crónica - tumor maligno com estabilização clínica (coeficiente 0,10-0,25): 0,25;
c) Cap. X 1 grau II – perturbação funcional moderada (coeficiente 0,06-015): 0,15 [resposta ao artigo 32º da contestação da Ré].
32. A Autora não necessita da ajuda permanente de terceira pessoa para os atos referidos em 5) [resposta ao artigo 32º da contestação da Ré].
33. A Autora sofreu choque quando foi confrontada com a gravidade do diagnóstico, humor depressivo, ansiedade psíquica somatizada com interferência no início e continuidade do sono, reativa ao prognóstico reservado da doença, correspondente a reação depressiva prolongada, atualmente relacionada com o receio de recidiva, traduzida na perturbação funcional moderada referida em 31), com moderada diminuição do nível de eficiência pessoal e profissional [resposta aos artigos 36º, 38º, 39º, 40º da petição inicial].
34. Devido ao referido em 33), às dores sentidas após os tratamentos de quimioterapia, à fadiga associada à hormonoterapia, às limitações da mobilidade do braço direito, a Autora perdeu a motivação e o interesse pelas atividades que desempenhava a nível profissional, doméstico e de cuidado dos filhos menores [resposta aos artigos 37º, 58º, 59º da petição inicial].
***
Não se provou que:
a) antes do diagnóstico a Autora era uma jovem mulher alegre, sociável e entusiasta; b) em consequência da doença oncológica e subjacente tratamento a Autora sofreu:
- perda total do pelo;
- enfraquecimento das unhas e pele; - ganho de peso;
- perda de apetite;
c) a Autora continua a realizar tratamentos de quimioterapia, por via oral, os quais prolongar-se-ão pelo período mínimo de 8 anos após cirurgia, isto é, até 2024;
d) as cirurgias a que foi submetida afetaram absoluta e irremediavelmente a feminilidade da Autora, sentindo-se mutilada e diminuída enquanto mulher, rejeitando o seu corpo e tendo uma representação negativa da sua imagem;
e) a entrada da menopausa com apenas 40 anos teve um impacto negativo na qualidade de vida da Autora, nomeadamente, pela vivência de sintomas como atrofia vaginal, redução da libido, dificuldades em dormir, mudanças de humor, irritabilidade, ansiedade, diminuição da autoestima, diminuição da elasticidade da pele e dores de cabeça;
f) com a menopausa aumentaram os riscos de osteoporose e de doenças cardiovasculares para a Autora;
g) o estado de ansiedade e de fadiga em que a Autora se encontra não lhe permite lidar com os seus clientes e fornecedores de forma adequada;
h) a capacidade de concentração, a memória e a resistência ao stress foram profunda e irremediavelmente afetadas pelos efeitos da doença e dos seus tratamentos, bem como as faculdades físicas como a força, a destreza e a mobilidade;
i) dadas as limitações físicas e emocionais, a Autora não se encontra apta para o exercício da atividade referida em 26) nem de qualquer outra atividade remunerada;
j) à data da propositura da ação o capital em dívida ascendia a € 64.365;
k) à data da propositura da ação os Autores tinham pago € 9.114,27 a título de prestações do crédito bancário, por referência a Junho de 2015;
l) o valor pago dos prémios dos seguros referidos em 6) ascendia a € 874,80 relativamente à apólice ... e € 1.563,30 quanto à apólice ..., desde o diagnóstico até data da propositura da ação.

2.2.2. Alteração da decisão de facto, considerando provados os factos não provados elencados nas alíneas c), d), e), g), h), i), j), k), e l).
Sobre a modificabilidade da decisão de facto no âmbito do recurso de apelação, dispõe o n.º 1 do art. 662.º do Cód. Proc. Civil que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
A reforma de 2013 veio consagrar um modelo no qual o tribunal da Relação reaprecia a prova sobre os pontos impugnados com a mesma amplitude da apreciação da prova pela 1.ª instância, em termos de formação, por parte do tribunal de recurso, da sua própria convicção para efeitos de apreciação dos fundamentos do recurso sobre a matéria de facto. Neste sentido vai a jurisprudência consolidada do STJ, conforme resulta, além de outros, dos recentes Acórdãos do STJ de 09-02-2021, proc. n.º 26069/18.3T8PRT.P1.S1; de 08-03-2022, proc. n.º 656/20.8T8PRT.L1.S1 e de 24-10-2023, proc. n.º 4689/20.6T8CBR.C1.S1 Acórdãos citados acessíveis, na íntegra, na base de dados de jurisprudência do IGFEJ, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/. e anteriores decisões do STJ citadas nos arestos referidos.
Não se questionando, após a reforma de 2013, que «(…) a reapreciação não se contenta com a sindicância da convicção formada na primeira instância com o objectivo de apenas debelar erros grosseiros na valoração da prova, assente numa hipervalorização do princípio da livre apreciação (…) e da imediação por parte do juiz a quo, devendo ultrapassar o mero controlo formal da motivação da decisão da 1.ª instância em matéria de facto. [e que] Pelo contrário, o pleno exercício dos poderes de reapreciação da matéria de facto da Relação exige a formação de uma convicção própria, obtida activa e criticamente em face dos elementos probatórios indicados pelas partes ou mesmo adquiridos oficiosamente. (…)» MARIA ADELAIDE DOMINGOS, “Recursos, um olhar convergente sobre aspectos dissonantes: questões práticas”, Caderno II – O Novo Processo Civil, Contributos da doutrina no decurso do processo legislativo, designadamente à luz do anteprojecto e da proposta de lei n.º 113/XII, Coleção de Formação Contínua do Centro de Estudos judiciários, novembro de 2013, disponível em https://www.oa.pt/upl/%7B5a01c252-3701-453a-8426-8116f7d1cff0%7D.pdf. , entendemos que o poder/dever previsto no n.º 1 do art. 662.º do CPC, de “alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa” significa que tal alteração apenas pode e deve ser efetuada quando tal for necessário, ou seja, quando, face aos meios de prova existentes no processo, se constate/conclua pela falta de suporte probatório explicativo e justificativo da descrição factual dos eventos efetuada na sentença recorrida.
Com efeito, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova que vigora e se aplica, designadamente, no âmbito do julgamento em primeira instância, e nos termos do qual “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, excecionando-se deste princípio apenas “os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes” – art. 607.º, n.º 5, do Cód. Proc. Civil.

Defendem os apelantes que a matéria vertida nas alíneas c), d), e), g), h), i), j), k), e l) dos factos não provados devem passar para os factos provados.
Para fundamentar tal posição começam por colocar em causa a motivação da convicção efetuada pelo tribunal recorrido na avaliação do valor probatório das declarações de parte prestadas pelo autor:
– Invocando existir contradição na referência inicial efetuada na sentença de que os depoimentos foram “globalmente, objetivos e coerentes”, e na subsequente valoração efetuada quanto às declarações de parte do autor;
– Considerando errada a referência efetuada pelo tribunal a quo ao caráter subjetivo e tendência dos litigantes a reforçar/empolar a versão apresentada nos articulados, como justificativo da consideração das declarações de parte como um meio probatório meramente complementar;
– Considerando infundamentada a valoração efetuada pelo tribunal a quo quanto à discrepância entre as declarações prestadas pelo recorrente e as informações clínicas, por tais informações clínicas corresponderem a matéria de “índole manifestamente técnico-medicinal, do qual o recorrente não tem qualquer conhecimentos técnicos naquela matéria”;
– Questionando porque razão não se atribuiu a mesma caraterística subjetivista e a tendência de transmitir uma imagem” mais benéfica para a parte que a arrolou, nomeadamente, quanto ao depoimento da testemunha arrolada pela recorrida – Dr. CC – médico avençado da recorrida.

Apreciando.
Importa, em primeiro lugar, ter presente que a impugnação da matéria de facto não se destina a contrapor a convicção da parte e do seu mandatário à convicção formada pelo tribunal, com vista à alteração da decisão. Destina-se, sim, à especificação dos “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” (art. 640.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Civil).
Em segundo lugar, entendemos – conforme é referido no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-04-2022, proc. n.º 9338/21.2T8LSB.L1-2 Acessível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/.– que «(…) Para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre os factos num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão.
O julgamento dos factos, na sua valoração, mormente quando se reporta a meios de prova produzidos oralmente, não se reconduz a uma operação aritmética de número ou de adição de depoimentos, antes tem de atender a uma multiplicidade de factores, não se bastando com a palavra pronunciada, mas nele confluindo aspetos tão variados como, as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (como por exemplo os olhares) e até interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber quem estará a falar com verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida. (…)».
Ora, o tribunal a quo, na motivação da sua convicção, deu conta, de forma lógica e fundamentada, das razões subjacentes à formação da mesma, tendo tido inclusive o cuidado de indicar de forma discriminada os meios de prova que teve em conta relativamente aos concretos factos considerados provados (que os recorrentes não colocam em causa no recurso interposto) e também quanto a concretos factos considerados não provados, emergindo da leitura da motivação da sentença recorrida que, tendo sido feita uma apreciação global conjugada dos diversos meios de prova produzidos – documental, testemunhal, pericial e das declarações de parte –, foi dada prevalência – como expressamente referido na motivação – à prova “documental e pericial, com relevo testemunhal meramente pontual.

Assim, e no que concerne à al. c) dos factos não provados – a Autora continua a realizar tratamentos de quimioterapia, por via oral, os quais prolongar-se-ão pelo período mínimo de 8 anos após cirurgia, isto é, até 2024; – indicou o tribunal recorrido ter considerado as “informações clínicas juntas pelo Hospital ... em 3 de Julho de 2020, 15 de Junho de 2021 e 19 de Julho de 2021”, tendo feito constar, na própria motivação, um apanhado exaustivo do conteúdo dessa informação clínica, indicando, expressamente, no que aqui releva:
“(…) - após mastectomia à direita completou o tratamento com Trastuzumab em 15 de Setembro de 2016, passou a realizar hormonoterapia oral (inicialmente Anastrozole, passando a ser Examestano a partir de 4 de Agosto de 2016), castração química (Anastrozol + Goserelina de 4/4 semanas) a cumprir pelo período de cinco anos, realizou radioterapia adjuvante na região da cicatriz da mastectomia e axilar (estava a realizar em 29 Fevereiro de 2016, mas terminava a 3 de Março seguinte); conduziu à fixação do ponto 16) da fundamentação de facto e à alínea c) dos factos não provados;”.
No que concerne à al. d) dos factos não provados – as cirurgias a que foi submetida afetaram absoluta e irremediavelmente a feminilidade da Autora, sentindo-se mutilada e diminuída enquanto mulher, rejeitando o seu corpo e tendo uma representação negativa da sua imagem –, indicou o tribunal recorrido ter considerado:
“(…) informações clínicas juntas em 15 de Junho de 2020 pelo Centro Hospitalar ... que indica a primeira consulta de cirurgia a 28 de Maio de 2015, alude ao aparecimento de nódulo mamário em 1997, vigiado através de ecografia mamária, ao diagnóstico após biópsia, que levou à realização de 8 ciclos de quimioterapia prévio à cirurgia de 1 de Dezembro de 2015 (pesquisa de gânglio sentinela positiva com mastectomia radical modificada tipo Madden à direita e excisão de 3 nódulos benignos da mama esquerda, seguida de medicação (Trastuzumab, hormono-terapia), radioterapia, consultas e exames de follow-up e cirurgia plástica reconstrutiva no Hospital 1...; mostraram-se relevantes para a fixação dos pontos 8), 9), 10), 11), 15), 16) e 24) da fundamentação de facto e alínea d) dos factos não provados;”.

No que concerne às als. g) – o estado de ansiedade e de fadiga em que a Autora se encontra não lhe permite lidar com os seus clientes e fornecedores de forma adequada – e h) dos factos não provados – a capacidade de concentração, a memória e a resistência ao stress foram profunda e irremediavelmente afetadas pelos efeitos da doença e dos seus tratamentos, bem como as faculdades físicas como a força, a destreza e a mobilidade –, indicou o tribunal ter formado a sua convicção com base relatório pericial de psiquiatria forense, no relatório pericial (final) junto em 10 de Novembro de 2021 e no depoimento da testemunha KK, e, quanto à al. i) dos factos não provados – dadas as limitações físicas e emocionais, a Autora não se encontra apta para o exercício da atividade referida em 26) nem de qualquer outra atividade remunerada –, além de tais meios de prova, ainda no depoimento prestado pela testemunha Dr. CC.
Fundamentou o tribunal a quo a sua convicção quanto à consideração como não provada da matéria vertida nas referidas als. g), h) e i) na seguinte análise e apreciação crítica de tais meios de prova:
“(…) «» no relatório pericial de psiquiatria forense:
»» junto em 20 de Janeiro de 2021 do qual consta “apresenta humor depressivo, ansiedade psíquica somatizada com interferência no início e continuidade do sono reativa a doença oncológica de prognóstico reservado”, admitiu o nexo de causalidade entre sintomatologia ansiosa e depressiva e a doença oncológica (reação depressiva prolongada em tratamento e com expressão sintomatológica) e a necessidade de acompanhamento e tratamento em consulta de psiquiatria com periodicidade trimestral enquanto se mantivesse em vigilância oncológica; valorada como “perturbação funcional importante com manifesta diminuição do nível de eficiência pessoal e profissional” em 24% - Capítulo X, 1- Grau III (0,16-0,30);
»» junto em 4 de Novembro de 2021 do qual consta “a examinanda refere sintomatologia ansiosa, sono irregular e humor subdepressivo reactivo a preocupação decorrente do risco de recidiva da doença neoplásica” e por referência à prescrição de Fluoxetina 20 mg na consulta de oncologia de 19 de Dezembro de 2019, bem como na informação da consulta de psiquiatria, admitiu o nexo de causalidade entre a sintomatologia ansiosa e depressiva ao risco de recidiva, concluindo por reação depressiva prolongada, com estabilização em Dezembro de 2020, segundo a informação clínica, valorando os danos permanentes como perturbação funcional moderada, com moderada diminuição do nível de eficiência pessoal e profissional” em 15% - Capítulo X, 1- Grau II (0,06-0,15); nos esclarecimentos prestados em 20 de Junho de 2022 confirma a perturbação funcional moderada;
»» estes dois relatórios permitem ter a perceção da evolução positiva a nível psíquico à medida em que o lapso temporal subsequente às intervenções cirúrgicas se foi dilatando, com resultados negativos para patologia neoplásica dos exames de follow-up; fundaram a fixação dos pontos 33), 34) da fundamentação de facto e das alíneas g) e h) dos factos não provados;
«» no relatório pericial (final) junto em 10 de Novembro de 2021 (com esclarecimentos em 23 de Março de 2022), fixou a consolidação médico-legal em 4 de Novembro de 2021, por referência ao tipo de lesões e tratamentos e os registos clínicos, concluindo por défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 49 pontos (por referência à Tabela Nacional de Incapacidades para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais), com resposta negativa à questão da dependência de terceira pessoa para se lavar, alimentar, vestir-se e deslocar-se na residência, como ficou a constar dos pontos 29), 31) e 32) da fundamentação de facto e alíneas g), h), i) dos factos não provados;”
(…)
Dr. CC, médico avençado da Ré, especialista em medicina do trabalho, fez a análise do sinistro, tendo consultado os relatórios médicos enviados, assim como o relatório pericial de Novembro de 2021; referiu que a Autora não está dependente de terceira pessoa nem definitivamente inválida, pois está apta para o exercício de funções laborais que não impliquem grandes cargas; concretizou que, enquanto proprietária de um estabelecimento comercial, pode desempenhar funções de atendimento ao público, desde que não faça cargas exageradas, dando como exemplo, servir cafés, natas, vender jornais “desde que não carregue uma resma de 10 kg”; precisou que há numerosas pessoas com patologia oncológica que desempenham funções laborais; no que diz respeito ao atestado multiusos salientou, que serve para efeitos fiscais e que contém erro, pois alude duas vezes ao Capítulo XVI, que diz respeito às doenças oncológicas, comprovadamente existente quanto à mama direita (mastectomia radical com esvaziamento axilar), mas não quanto à mama esquerda, pois os nódulos eram benignos, referindo que não teve acesso a relatórios de suporte de mastectomia à esquerda (só excisão de nódulos benignos); explicou que, do ponto de vista radiológico, não há certeza se os nódulos são benignos, só surgindo o resultado após análise de anatomia patológica; explicou, também, que ao fim de cinco anos sem recidiva a expetativa de reincidência é menor.
Este depoimento está em consonância com as perícias realizadas mostrando-se relevante para alicerçar o ponto 32) da fundamentação de facto e alínea i) dos factos não provados.
KK, gestora de uma loja de decoração situada na praceta onde os Autores têm o estabelecimento, frequenta-o diariamente e conhece a Autora há 19 anos (então estava grávida do primeiro filho); referiu que a Autora teve cancro no útero [na verdade, apenas foi realizada biópsia para pesquisa de células malignas] e depois na mama, situando-o no tempo por referência à idade atual da filha LL, com 14 anos, à data com 6 anos; explicou que a demandante trabalhou até ao último dia das gravidezes, era super-ativa [com os problemas de saúde que se vinham manifestando, desde 2011, concretamente as cefaleias, a asma, as dores na coluna, as perturbações de equilíbrio após traumatismo do ouvido, duvidamos que, após aquela data, a demandante tivesse o nível de energia compatível com a expressão], muito independente e depois da doença não trabalha (quando se veem conversam), deixou de conduzir (a testemunha chegou a prestar auxílio para ir buscar os filhos ou o almoço para a funcionária), tem 1/3 da energia que tinha, estando sempre cansada, dependente do marido e vive aterrorizada com receio das recidivas, estando muito centrada na doença.
Este depoimento, à semelhança do da primeira testemunha clarificam que a demandante está presente no estabelecimento comercial e que interage com os clientes; por outro lado, referindo a testemunha que a mesma tem 1/3 da energia que antes lhe permitiu classifica-la como “super-ativa” e conjugando com a atividade desenvolvida no estabelecimento – venda de jornais, revistas, bebidas, gelados, bolos para acompanhar as bebidas – que não exige esforço de maior (salvo o uso da máquina de café se empregar o braço direito, o transporte de sacos ou volumes) permitiu reforçar a convicção que levou às alíneas g), h) e i) dos factos não provados.

Relativamente à al. j) – à data da propositura da ação o capital em dívida ascendia a € 64.365,00 – indicou o tribunal ter formado a sua convicção nos seguintes termos:
» nos documentos juntos em 8 de Setembro de 2022 pelo Interveniente Principal do qual re-sulta que, à data da consolidação médico-legal das lesões, 4 de Novembro de 2021, o valor em dívida do empréstimo identificado no ponto 2) da fundamentação de facto (nº ...) era de € 54.885,73; os restantes empréstimos referidos nas declarações nada têm a ver com os contratos de seguro em análise nos autos (a primeira declaração reporta-se a financiamento para obras contratado em 21 de Julho de 2017 e o segundo relativo a habitação secundária, fração “M” do prédio descrito na Conservatória de Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o nº ...-..., escriturado em 20 de Novembro de 2001; conduziu à fixação do ponto 29) da fundamentação de facto e à alínea j) dos factos não provados;

Relativamente à al. k) – à data da propositura da ação os Autores tinham pago € 9.114,27 a título de prestações do crédito bancário, por referência a Junho de 2015 – indicou o tribunal ter formado a sua convicção nos seguintes termos:
» na informação prestada pelo Interveniente Principal em 16 de Junho de 2020, referente ao empréstimo nº ... (no confronto com as declarações juntas em 8 de Setembro de 2022, podemos constatar que o empréstimo nº ... diz respeito à fração “M” do prédio descrito sob o nº ......-...) que alicerçou a fixação do ponto 30) da fundamentação de facto e à alínea k) dos factos não provados;

E, por fim, indicou o tribunal recorrido, no que concerne à al. e) dos factos não provados – a entrada da menopausa com apenas 40 anos teve um impacto negativo na qualidade de vida da Autora, nomeadamente, pela vivência de sintomas como atrofia vaginal, redução da libido, dificuldades em dormir, mudanças de humor, irritabilidade, ansiedade, diminuição da autoestima, diminuição da elasticidade da pele e dores de cabeça – e à al. l) dos factos não provados – o valor pago dos prémios dos seguros referidos em 6) ascendia a € 874,80 relativamente à apólice ... e € 1.563,30 quanto à apólice ..., desde o diagnóstico até data da propositura da ação –, não ter sido produzida qualquer prova.

Para fundamentarem a alteração da decisão quanto a estes factos considerados não provados para factos provados, os apelantes indicam especificadamente um único meio de prova: as declarações do autor, transcritas no ponto XII do corpo das alegações.
Ora, a parte transcrita das declarações do autor é claramente insuficiente para afastar o raciocínio motivado e fundamentado pelo tribunal a quo com base na prova pericial realizada na fase de instrução do processo, a qual foi, juntamente com a documentação clínica analisada pelo tribunal a quo, a prova preponderante para a decisão tomada, nomeadamente, quanto aos factos não provados, como expressamente foi referido na motivação da convicção.
O exame pericial à autora iniciou-se em 21-10-2020 (data em que a autora foi examinada pela primeira vez), e terminou com a prolação do relatório final, elaborado em 08-11-2021, tendo a autora sido examinada presencialmente diversas vezes e solicitada e obtida diversa documentação no decurso da realização do exame, como demonstra a consulta dos 4 Relatórios (um preliminar, dois intermédios e um final) juntos para a avaliação do dano.
A autora foi ainda examinada, por duas vezes, por médico da especialidade de psiquiatria – dando origem a dois relatórios da especialidade de psiquiatria, um primeiro datado de 16 de janeiro de 2021, referente a exame/entrevista clínica da autora ocorrida em 25-11-2020, e um segundo datado de 1 de novembro de 2021, referente a exame/entrevista clínica da autora ocorrida em 08-09-2021 –, sendo a avaliação saquelar ao nível psiquiátrico distinta em cada um desses relatórios, denotando uma melhoria do estado depressivo da autora, com a consequente alteração da valoração dos danos sofridos de “perturbação funcional importante, com manifesta diminuição do nível de eficiência pessoal e profissional, o qual tendo em conta a experiência médico-legal de casos semelhantes e a consulta da Tabela Nacional de Incapacidades, Cap. X, 1- Grau III (0,16-0,30) se desvaloriza em 24%” para “perturbação funcional moderada, com moderada diminuição do nível de eficiência pessoal e profissional, o qual tendo em conta a experiência médico-legal de casos semelhantes e a consulta da Tabela Nacional de Incapacidades, Cap. X, 1- Grau II (0,06-0,15) se desvaloriza em 15%”.
Estando em causa, como está, matéria eminentemente técnica, bem se compreende e corrobora a relevância atribuída pelo tribunal a quo a tal meio de prova pericial, nomeadamente, no que concerne à avaliação e determinação das sequelas sofridas pela autora em consequência do diagnóstico e tratamento da doença – carcinoma – em que os autores fundamentam o acionamento do contrato de seguro que deu origem à presente ação.
Acrescentar-se-á ainda que das declarações do autor transcritas nada resulta passível de constituir prova da matéria de facto considerada não provada, nomeadamente, quanto aos factos incluídos nas als. c), d), e), j), k) e l).

Concluímos, assim, pela manifesta improcedência da pretendida alteração da matéria de facto, no que concerne à consideração como provada da matéria de facto elencada nas als. c), d), e), g), h), i), j), k), e l) dos factos não provados.

2.3. Relevância do documento junto com as alegações de recurso
Invocam ainda os apelantes – embora o não façam na parte do corpo das alegações que identificam como respeitando à impugnação da decisão de facto, mas antes na parte que identificam como sendo ‘DO DIREITO’ – que o tribunal a quo ‘não promoveu qualquer diligência no sentido de apurar a verdade e justa composição do litígio, conforme lhe impunha o artigo 411.º e 604.º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, nomeadamente através de uma perícia médica a designar pelo tribunal a quo que iria permitir todas as questões que o tribunal revelou ter na redação da sentença recorrida’ e que ‘“se o tribunal a quo tivesse procedido a essa prova pericial, seria indiscutível para o tribunal a incapacidade absoluta e definitiva da Recorrente’, invocando ainda que ‘o atestado multiusos definitivo, datado de 28 de março de 2023 mas com reporte a 2020’ que juntou com as alegações de recurso prova a incapacidade absoluta e definitiva da recorrente.

Existirá, certamente, um qualquer equívoco na alegação da falta de realização de prova pericial: como resulta da leitura da sentença, tal prova pericial não só foi realizada como foi a mesma considerada essencial pelo tribunal a quo, nomeadamente, no que concerne à decisão de facto proferida.

Quanto ao atestado multiusos definitivo, datado de 28 de março de 2023 mas com reporte a 2020, que os apelantes juntaram com as alegações de recurso, haverá – dado que a requerida junção foi admitida e nos termos e ao abrigo do disposto nos arts. 651.º, n.º 1, e 662.º, n.º 1, ambos do Cód. Proc. Civil – que aditar à matéria de facto provada a emissão e teor de tal documento, tal como foram considerados na decisão de facto os anteriores atestados multiusos emitidos – ver n.os 17. e 23. dos factos provados.
Em conformidade, determina-se o aditamento aos factos provados do n.º 35., com o seguinte teor:
35. Presente a junta médica, em 28 de março de 2023 foi emitido atestado médico de incapacidade multiusos do qual se fez constar que a Autora padecia de deficiência que, naquela data – reportando-se a incapacidade a 2020 – , lhe conferia uma incapacidade permanente global de 87%, sendo tal atestado definitivo, e reportando-se a aludida incapacidade ao seguinte:


3. Análise dos factos e aplicação da lei

A decisão recorrida, analisando o contrato de seguro celebrado com a ré, pelo qual, mediante o pagamento de contrapartida mensal pelos autores, a seguradora garantiu, em caso de morte dos primeiros, o pagamento do capital decorrente do contrato de empréstimo no montante de € 68.000,00, pelo prazo de 420 meses, celebrado em 30 de outubro de 2013 com o Banco 2..., S. A., para aquisição de um imóvel, e, em complemento, a antecipação total do mesmo capital numa situação de invalidez absoluta e definitiva e, nomeadamente, as cláusulas 8.2 e artigo 2º das cláusulas especiais das apólices tituladoras do contrato, concluiu quanto à cláusula 8.2 Cláusula essa com o seguinte teor:
8.2. Definição de Invalidez Absoluta e Definitiva (IAD)
O Segurado/Pessoa Segura é considerado em estado de Invalidez Absoluta e Definitiva quando, em consequência de doença ou acidente, fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer actividade remunerada e, simultaneamente, na obrigação de recorrer à assistência permanente de uma terceira pessoa para efectuar cumulativamente os actos elementares da vida corrente e/ou apresentar um grau de incapacidade igual ou superior a 85% de acordo com a “Tabela Nacional de Incapacidade Por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais” oficialmente em vigor no momento do reconhecimento da invalidez.
Entende-se por acto elementar da vida corrente:
- Lavar-se: significa efectuar os actos necessários à manutenção de um nível de higiene correcto;
- Alimentar-se: significa vestir-se e despir-se, tomando em consideração o vestuário usado habitualmente;
- Deslocar-se no local de residência habitual.
e o artigo 2º ARTIGO 2.º DEFINIÇÃO DE INVALIDEZ ABSOLUTA E DEFINITIVA (IAD), com a mesma redação da cláusula 8.2. transcrita na nota antecedente.
das cláusulas especiais das referidas apólices (ver n.os 4 e 5 dos factos provados) pela invalidez – nulidade – da exigência cumulativa de uma incapacidade mínima de 85% à luz do Anexo I do Decreto-Lei n.º 352/2007 de 23 de Outubro e da dependência de terceira pessoa para efetuar os atos necessários à manutenção de um nível de higiene correto, vestir-se e despir-se tomando em consideração o vestuário usado habitualmente, deslocar-se no local de residência habitual e para tomar as refeições preparadas e servidas à mesa, por ser claramente abusiva e violadora do princípio da boa fé, dado o desequilíbrio das prestações.
Procedendo, em seguida, à definição do conceito de invalidez com vista a apurar se a doença sofrida pela autora e as respetivas sequelas se subsumem em tal conceito, concluiu negativamente, discordando os apelantes deste ponto.
Defendem os apelantes ter errado o tribunal a quo ao considerar que da factualidade apurada não resulta demonstrada a situação de invalidez absoluta e definitiva, ao não ter considerado a incapacidade fixada nos atestados multiusos juntos aos autos e, nomeadamente, atendendo ao atestado multiusos definitivo, datado de 28 de março de 2023 mas com reporte a 2020, que atesta que a recorrente tem uma incapacidade permanente global de 87,15% (oitenta e sete vírgula quinze por cento).
E invocam que, face a tais atestados e à ausência de prova pericial, não pode o tribunal a quo substituir-se ao juízo pericial que deveria ter suscitado, desvalorizando os atestados médicos multiusos com base na finalidade dos mesmos.

Repete-se, existe aqui algum equívoco dos apelantes quanto à não realização da – efetivamente necessária e pertinente – prova pericial, a qual foi realizada, tendo por objeto, precisamente, averiguar do grau de incapacidade de que a autora padece em consequência da doença que lhe foi diagnosticada maio de 2015 e subsequentes tratamentos e sequelas e se, em consequência de tal grau de incapacidade, a mesma se encontra total e definitivamente incapaz de exercer qualquer atividade remunerada: veja-se o requerimento de prova pericial efetuado pela ré na contestação apresentada em 10-07-2019 (Ref. 23067547); o despacho que deferiu a realização da perícia, proferido em 27-05-2020 (Ref. 414548786) e a prova pericial realizada, com base na qual se considerou provado – como consta do n.º 31. dos factos provados – que a autora, em consequência da referida doença diagnosticada em maio de 2015 e dos tratamentos necessários, ficou a padecer de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 49 pontos, por referência à Tabela Nacional de Incapacidades para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, com base na seguinte valoração efetuada no Relatório de Avaliação de dano apresentado:
a) Cap. II 1.4.2 b) - mastectomia bilateral com reconstrução mamária (coeficiente 0,16-0,40): 0,20;
b) Cap. XVI 2) - doença oncológica crónica - tumor maligno com estabilização clínica (coefi-ciente 0,10-0,25): 0,25;
c) Cap. X 1 grau II – perturbação funcional moderada (coeficiente 0,06-015): 0,15.

Na caracterização do conceito de invalidez necessário à afirmação do preenchimento da condição de que depende a prestação da seguradora, referiu o tribunal a quo, partindo da definição de invalidez como “o estado de quem, por incapacidade física ou mental permanente, não pode exercer a sua atividade profissional comum”, constante do Dicionário da Porto Editora, que «(…) [d]ecorre (…) da jurisprudência que, sendo a finalidade do contrato de seguro orientado para o pagamento da dívida hipotecária em caso de morte ou invalidez permanente do segurado, acautelar, na situação de eventual incapacidade, geradora da impossibilidade de exercer qualquer atividade remunerada, assegurar a sua obrigação perante o Banco por não poder obter rendimentos, o risco ocorre se a pessoa segura não pode exercer profissão ou atividade lucrativa em consequência da doença (…)».
Considerando, tal como o tribunal recorrido, que a invalidez absoluta e definitiva se preenche quando, em virtude do sinistro – no caso, consistente na doença diagnosticada em maio de 2015 e sequelas dela resultantes – a pessoa segura fica com uma “incapacidade significativa e geradora da impossibilidade do segurado fazer a sua vida normal e de exercer a sua atividade profissional remunerada” – Ac. do TRL de 24-10-2019, proc. 1499/18.4T8LSB.L1-2 –, o que cumpre apreciar é se a factualidade provada permite afirmar que a autora se encontra incapaz de exercer a sua atividade profissional.
Conforme é referido no Ac. do STJ de 27-02-2020, proc. 125/13.2TVPRT.P1.S2, na «(…) determinação do conceito de invalidez permanente (“invalidez absoluta e definitiva” nos termos clausulados como “cobertura complementar” enquanto integrante de cláusula de contrato de seguro do ramo Vida, associado a contratos de mútuo bancário em que o segurado é mutuário (…) o percurso definidor desse conceito de invalidade permanente tem que considerar as condicionantes aludidas, assumindo natural destaque o interesse (e finalidade racional) do contrato de seguro e o contexto de coligação imposta com os contratos de financiamento (…). Logo, a nosso ver, não pode deixar de assentar, na sua base, numa deficiência física e/ou intelectual que, não obstante os cuidados, os tratamentos e os acompanhamentos, clínicos e reabilitadores, realizados depois do sinistro, subsiste a título definitivo em sede anatómica-funcional e/ou psicossensorial (…). Depois, implica esse trilho precisar que esse estado deficitário, independentemente do seu nível ou grau ou percentagem de incapacidade (desde que não seja residual ou insignificante), teve consequência (enquanto impacto decisivo) na alteração ou modificação do estado de vida, pessoal e profissional, anterior ao sinistro. Para esse juízo sobre o reflexo do sinistro, há que ter em conta, numa ponderação múltipla e não individualmente exclusiva, nomeadamente, a actividade anteriormente desenvolvida como fonte de rendimentos, a idade e o tempo restante de vida activa profissional, a perda de independência psico-motora, o tipo de doença ou restrição de saúde, as habilitações e capacidades literárias e profissionais da pessoa segura e a possibilidade de reconversão para actividade compatível com essas habilitações e capacidades com igual ou aproximada medida de rendimentos, sempre com enquadramento na situação remuneratória concreta (e projecção na “capacidade de ganho” (…)) do segurado após a estabilização das sequelas do sinistro (…). É relevante a invalidez, por isso, que, em concreto, se traduz em restrições que, atendendo aos esforços, capacidades e qualificações específicas da profissão exercida, inviabilizam sem mais a manutenção da profissão ou outra com rendimentos equiparáveis, mesmo que sem necessária articulação com os constrangimentos que frustrem a conservação das tarefas da vida diária com a autonomia apresentadas no momento pré-sinistro. De facto, nela se encontram os requisitos da permanência ou definitividade na afectação da capacidade de ganho que cumprem o interesse do contrato de seguro. (…)».
Resulta do n.º 31. factos provados que, em consequência da doença diagnosticada em maio de 2015 e dos tratamentos a que foi submetida, a autora apresenta um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 49 pontos, por referência à Tabela Nacional de Incapacidades para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, tendo sido valoradas, na prova pericial realizada pelo INML, as seguintes sequelas, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades (TNI):
Mastectomia bilateral com reconstrução mamária (Cap. II 1.4.2 b) da TNI): 0,20
Doença oncológica crónica (tumor maligno com estabilização clínica) (Cap. XVI 2) da TNI): 0, 25
Perturbação funcional moderada (Cap. X, 1 – Grau II da TNI): 0,15
E resulta do n.º 35. dos factos provados que em 28 de março de 2023 – reportando-se a incapacidade a 2020 – foi emitido atestado médico de incapacidade multiusos atribuindo à autora uma incapacidade permanente global de 87%, sendo tal atestado definitivo.
Esta diferença justifica-se, por um lado, pelo diferente enquadramento e diferente desvalorização arbitrada para as mesmas sequelas que foram consideradas no n.º 31. (só relativamente à Doença oncológica crónica (tumor maligno com estabilização clínica) foi feito o mesmo enquadramento na TNI – Cap. XVI 2 – e atribuída o mesmo coeficiente de incapacidade – 0, 25).
Assim, no que concerne à mastectomia, no atestado multiusos considerou-se Ablação da glândula mamária na mulher unilateral (Cap. II, 1.4.2 a) da TNI) e atribuiu-se um coeficiente de desvalorização de 0,20; já no que concerne às sequelas de psiquiatria, no atestado multiusos efetuou-se o enquadramento no Grau III — Perturbações funcionais importantes, com manifesta diminuição do nível de eficiência pessoal ou profissional (0,16 a 0,30) enquanto o INML enquadrou no Grau II — Perturbações funcionais moderadas, com ligeira a moderada diminuição do nível de eficiência pessoal ou profissional (0,06 a 0,15), tendo sido atribuído um coeficiente de desvalorização de 0,30.
Por outro lado, no atestado multiusos foram consideradas e valoradas patologias/doenças da autora que nada têm que ver com a doença diagnosticada em 2015, sendo que foi com base na doença diagnosticada em 2015 que foi acionado seguro em discussão no processo. São exemplos disso:
a) a atribuição de um coeficiente de desvalorização de 0,20 por Nevralgias e radiculalgias Persistentes e segundo a localização e a impotência funcional (Cap. III, 7, da TNI);
b) a atribuição de um coeficiente de desvalorização de 0,40 por Diabetes regularmente equilibrada com o emprego da insulina (Cap. XIV , 5.1., da TNI) – Endocrinologia;
c) a atribuição de um coeficiente de desvalorização de 0,20 por Lesões vasculares - Lesões venosas e linfáticas de Grau Médio — com sensação de peso e dor, com edema (Cap. VI, 2.2. b) da TNI).

O atestado multiusos de 28 de março de 2023, referido no n.º 35. dos factos provados (conforme aditamento determinado neste acórdão), é emitido para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na Lei n.º 38/2004, de 18 de Agosto (Define as bases gerais do regime jurídico da prevenção, habilitação, reabilitação e participação da pessoa com deficiência), para facilitar a plena participação das pessoas com deficiência na comunidade – art. 1.º do DL n.º 202/96, de 23 de outubro, com as alterações introduzidas pelo DL n.º 291/2009, de 12 de outubro.
Por outro lado, embora a avaliação da incapacidade seja calculada de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, na avaliação da incapacidade das pessoas com deficiência, de acordo com o definido no artigo 2.º da Lei n.º 38/2004, de 18 de Agosto, nos termos do disposto no art. 4.º, n.º 1, do referido DL n.º 202/96, de 23 de outubro com as alterações introduzidas pelos DL n.º 174/97, de 19 de julho e do DL n.º 291/2009, de 12 de outubro (mantida na alteração efetuada pelo DL n.º 1/2022, de 3 de janeiro, devem ser observadas as instruções gerais constantes do anexo i do referido decreto-lei, do qual faz parte integrante, bem como em tudo o que não as contrarie, as instruções específicas constantes de cada capítulo ou número daquela Tabela (al. a) do referido n.º 1 do art. 4.º do DL n.º 202/96, de 23 de outubro); não se aplicando, no âmbito desta avaliação de incapacidade, as instruções gerais constantes daquela Tabela (al. b) do n.º 1 do art. 4.º do DL n.º 202/96.
Assim, não se colocando em causa que, apesar do seu regime e finalidades específicos, tal Atestado Médico Multiusos possa servir como um meio de prova indireta da incapacidade absoluta e definitiva alegada pela autora como causa de pedir – neste sentido, vd. Ac. do TRG de 05-12-2019, proc. 2158/17.0T8VRL.G1 –, consideramos que, no caso, pelos motivos acima referidos, nomeadamente, atenta a consideração que é efetuada nesse atestado multiusos de desvalorizações emergentes de doenças distintas daquela a que se reporta o acionamento do contrato de seguro em discussão no presente processo, a autora, em consequência do carcinoma referido no n.º 8. dos factos provados e dos tratamentos a que foi sujeita, ficou afetada com uma incapacidade funcional permanente da integridade físico-psíquica de 49 pontos, nos termos considerados no n.º 31. dos factos provados.

Na decisão recorrida foi considerado que «(…) para estarmos perante uma situação de invalidez necessitamos que a incapacidade se repercuta, com carácter permanente na impossibilidade de exercer uma atividade profissional geradora de rendimentos.
No caso, a Autora não logrou demonstrar, como alegava, que não se encontra apta para o exercício da atividade de venda de jornais e revistas e serviço de cafetaria, nem de qualquer outra atividade remunerada, o estado de ansiedade e de fadiga não lhe permite lidar com os seus clientes e fornecedores de forma adequada, ficou com a capacidade de concentração, a memória e a resistência ao stress, a força, a destreza e a mobilidade afetadas.
Se é certo que permaneceu de baixa médica entre Junho de 2015 e Julho de 2021, a verdade é que, sendo o estabelecimento explorado juntamente com o marido, os rendimentos da atividade também lhe pertencem; por outro lado, com exceção das limitações que decorrem do conselho médico não pegar em pesos superiores a 1 kg, nem realizar movimentos repetitivos devido a risco de desenvolver linfedema do braço direito, que podem limitar o uso desse membro, afigura-se que poderá dividir as tarefas com o Autor por forma a excluir aquelas que impliquem maiores esforços físicos, executando o atendimento ao público no quiosque e a nível dos pedidos dos produtos de cafetaria.
Precisamos de ter presente que as dores sentidas após os tratamentos de quimioterapia, a fadiga associada à hormonoterapia e as limitações da mobilidade do braço direito, tiveram como impacto a perda de motivação e interesse da Autora pelas atividades que desempenhava a nível profissional, doméstico e de cuidado dos filhos menores, porém, atualmente, ultrapassado o período de cinco anos em que ficou sujeita a terapia hormonal, os efeitos secundários da mesma terão cessado, permanecendo um síndrome depressivo com moderada diminuição do nível de eficiência pessoal e profissional. (…)».
Atendendo à atividade que a autora desenvolvia antes da doença – atividade de venda de jornais/revistas e serviço de cafetaria, exercida em estabelecimento comercial que é explorado por ambos os autores (n.º 26. dos factos provados) –, afigura-se-nos que as limitações e alterações de vida com que a autora se viu confrontada – n.os 15., 31. e 33. –, não sendo despiciendas, são ainda compatíveis com a manutenção, ainda que com limitações, dessa mesma atividade, sendo que a afetação psicológica e falta de motivação da autora para a generalidade das atividades, descritas nos n.os 33. e 34. dos factos provados, não surgem como situações imutáveis e estabilizadas, antes sendo passíveis de alterações.
Concluímos, nestes termos, pela improcedência do recurso.

4. Responsabilidade pelas custas

A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art. 25.º do Reg. Custas Proc.).
A responsabilidade pelas custas da apelação cabe aos apelantes, por terem ficado vencidos (art. 527.º do Cód. Proc. Civil), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.

IV. Dispositivo

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença apelada.
Custas a cargo dos apelantes, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
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Notifique.
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Porto, 21 de março de 2024
Ana Luísa Loureiro
Ernesto Nascimento
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Considerando que a adequação formal consagrada no art. 547.º do Cód. Proc. Civil constitui “uma válvula de escape, e não de um instrumento de utilização corrente, sob pena de subverter os princípios essenciais da certeza e da segurança jurídica”, ver Ac. do TRC de 14-10-2014, proc. n.º 507/10.1T2AVR-C.C1.
[2] Acessível na íntegra na base de dados de jurisprudência do IGFEJ – http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/
[3] Acessível na íntegra na base de dados de jurisprudência do IGFEJ – http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/
[4] Acessível na íntegra na base de dados de jurisprudência do IGFEJ – http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/
[5] Acórdãos citados acessíveis, na íntegra, na base de dados de jurisprudência do IGFEJ, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.
[6] MARIA ADELAIDE DOMINGOS, “Recursos, um olhar convergente sobre aspectos dissonantes: questões práticas”, Caderno II – O Novo Processo Civil, Contributos da doutrina no decurso do processo legislativo, designadamente à luz do anteprojecto e da proposta de lei n.º 113/XII, Coleção de Formação Contínua do Centro de Estudos judiciários, novembro de 2013, disponível em https://www.oa.pt/upl/%7B5a01c252-3701-453a-8426-8116f7d1cff0%7D.pdf.
[7] Acessível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/.
[8] Cláusula essa com o seguinte teor:
8.2. Definição de Invalidez Absoluta e Definitiva (IAD)
O Segurado/Pessoa Segura é considerado em estado de Invalidez Absoluta e Definitiva quando, em consequência de doença ou acidente, fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer actividade remunerada e, simultaneamente, na obrigação de recorrer à assistência permanente de uma terceira pessoa para efectuar cumulativamente os actos elementares da vida corrente e/ou apresentar um grau de incapacidade igual ou superior a 85% de acordo com a “Tabela Nacional de Incapacidade Por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais” oficialmente em vigor no momento do reconhecimento da invalidez.
Entende-se por acto elementar da vida corrente:
- Lavar-se: significa efectuar os actos necessários à manutenção de um nível de higiene correcto;
- Alimentar-se: significa vestir-se e despir-se, tomando em consideração o vestuário usado habitualmente;
- Deslocar-se no local de residência habitual.
[9] ARTIGO 2.º DEFINIÇÃO DE INVALIDEZ ABSOLUTA E DEFINITIVA (IAD), com a mesma redação da cláusula 8.2. transcrita na nota antecedente.