EMPREITADA
ACEITAÇÃO DA OBRA
INTERPELAÇÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL
CLÁUSULA PENAL
MORATÓRIA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
MORA
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
MULTA
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
INTEGRAÇÃO DE LACUNAS
REGIME APLICÁVEL
CADUCIDADE
INEXIGIBILIDADE
Sumário


I - A cláusula penal pode ser estabelecida para o incumprimento definitivo do contrato ou para a simples mora, dizendo-se a primeira uma “cláusula penal compensatória” e a segunda uma “cláusula penal moratória”;
II - A distinção entre uma e outra espécie de cláusulas penais depende da intencionalidade das partes, diferentes plasmada no contrato, tratando-se de um problema de interpretação negocial (art. 236.º e ss. do CC).
III - A lei apenas se ocupa da cláusula de fixação antecipada da indemnização, definida no art. 810.º do CC, só nesse caso sendo a pena, objecto da cláusula, uma indemnização predeterminada.
IV - Nos restantes casos, a pena é uma sanção de índole compulsória, podendo acrescer à indemnização ou, ao invés, substituí-la, em conformidade com o escopo visado.
V - Em regra, a cláusula penal compulsória visa forçar o devedor a cumprir o programa contratual delineado pelas partes, não visando reparar o credor pelo dano do incumprimento, traduzindo-se a sua especificidade no facto de ela ser acordada como um plus, um valor que acresce à execução específica da prestação ou à indemnização pelo não cumprimento.
VI - A natureza da relação estabelecida por meio de um contrato de empreitada de obras públicas em nada se assemelha à natureza privatística da relação estabelecida entre particulares, as partes nos autos.
VII - Nas relações jurídico-administrativas, a aplicação de sanções contratuais reveste a natureza de ato administrativo, para cuja formação está previsto um procedimento específico e especialmente garantístico, sendo assim porque a preponderância do ente público face ao ente privado impõe a previsão de normas suscetíveis de proteger o particular, passando tal garantia, necessariamente, pela previsão de um procedimento em que os direitos à defesa e ao contraditório sejam acautelados, situação que não ocorre numa relação privada, em que as partes surgem em condições de paridade.
VIII - No domínio das empreitadas de obras públicas, o ato de aplicação de multa pelo atraso na entrega da obra configura um ato administrativo sujeito a um procedimento autónomo e prévio, acto este que não é possível, pelo que a expressão “ser-lhe-á aplicada multa” inscrita num contrato de direito privado não tem, nem pode ter, o mesmo sentido e alcance que tem quando inscrita num contrato de empreitada de uma obra pública, devendo ser interpretada com as necessárias adaptações em função das circunstâncias do caso concreto, para perceber o que terão as partes pretendido com aquela expressão.
IX - Num contrato de empreitada entre particulares, a expressão “ser-lhe-á aplicada” não pode deixar de ser interpretada no sentido de que será devida uma multa contratual em caso de atraso na entrega da obra, não se podendo exigir a prática de um acto autónomo (como é exigido numa empreitada de obra pública), para que possa surgir na esfera jurídica do contraente lesado o direito de crédito decorrente do atraso na entrega da obra.
X - O momento e o modo da comunicação da multa devida à autora e o modo de cobrança é matéria que se coloca a jusante da sua aplicação (com o sentido supra atribuído), não sendo, em nenhuma medida, realidades coincidentes.
XI - Assim, só será possível comunicar e reclamar o pagamento de uma multa que seja devida nos termos do contrato.
XII - De acordo com o padrão do declaratário médio a expressão “até ao fim dos trabalhos” apenas pode ser interpretada no sentido de que esse momento do fim dos trabalhos é o fixado como temporalmente último para contabilização do montante da multa devida pelo atraso dos trabalhos, o que se compreende quando a sanção contratual prevista tem natureza compulsória, pois que visa precisamente compelir o empreiteiro a terminar a obra na data acordada, sendo de elementar justiça que essa sanção seja contabilizada apenas até esse momento, em que se realiza o interesse do dono da obra, que reside na efectiva finalização dos trabalhos, pois só neste são os mesmos mensuráveis, só nesse momento é possível proceder ao cálculo do quantum devido a título de cláusula penal compulsória.
XIII - Para se poder afirmar que num contrato se verifica uma lacuna não intencional suscetível de integração, torna-se indispensável proceder à interpretação desse negócio jurídico, pois só desta forma aquela lacuna de regulamentação se pode revelar.

Texto Integral

CLASSPINTA - SOCIEDADE CONSTRUTORA, LDA instaurou acção declarativa com processo comum contra AA e BB, peticionando a condenação destes no pagamento da quantia de € 80.000,00, acrescida de juros comerciais vencidos, no valor de € 16.065,49, bem como os posteriormente vincendos até efetivo e integral pagamento, para tanto, em síntese, invocando que:

- No âmbito da sua atividade de construção civil, celebrou com os réus um contrato de empreitada para construção de uma moradia pelo valor global de € 485 859,69, acrescido de IVA, que ii) a obra foi executada na íntegra, não tendo os réus pago a totalidade da quantia em dívida, permanecendo por liquidar a quantia de € 80 000,00, a que acrescem juros de mora comerciais.

Os réus apresentaram contestação e deduziram pedido reconvencional, com fundamento no atraso na entrega da obra, peticionando a condenação da autora no montante de € 262 363,86, acrescido de juros de mora.

A autora replicou.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença, nos termos da qual se decidiu:

“- condenar os réus a pagar à autora a quantia de € 80.000,00, acrescida de juros de mora vencidos contados desde a data de vencimento das facturas identificadas no facto provado n.º 18;

- declarar esse valor parcialmente extinto, por compensação, com o crédito dos réus sobre a autora, a título de penalidade contratual pelo atraso na execução da obra, no valor liquidado na presente sentença de € 72.878,85, a ser imputado na dívida vencida de acordo com as regras suplectivas de imputação previstas no art. 784.º do CC;

- absolver a autora reconvinda do pedido reconvencional deduzido, por referência ao montante excedente à excepção de compensação.”

Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação, para o tribunal da Relação de Lisboa, vindo a ser proferido Acórdão que julgou improcedente o recurso interposto, confirmando a sentença da 1.ª instância, ainda que com um voto de vencido.

Novamente inconformada, veio a Autora interpor recurso de revista, pugnando pela improcedência do pedido reconvencional, formulando, para o efeito, as seguintes conclusões:

A. Vai o presente recurso estruturado como de Revista dita "normal" por se entender que, pese embora o Acórdão Recorrido confirme a Sentença proferida em 1ª Instância, não existe dupla conforme nos termos em que está delimitada pelo n.º 3 do art. 671º do CPC, uma vez que o Acórdão recorrido foi proferido com um Voto de Vencido.

B. Porém, salvaguardando entendimento contrário, deduz igualmente como de Revista excepcional, nos termos do disposto nas alíneas a) e c) do nº l do artigo 672º do CPC, por a matéria de direito constitutiva dos requisitos de procedência do pedido reconvencional ser questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito e, simultaneamente, por o Acórdão recorrido estar em contradição com Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 18/10/2012 no Processo n° 1033/10.4YRLSB.S1-8 (Acórdão-fundamento) no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

C. As questões em causa — interpretação da tempestividade da aplicação das multas contratuais, de acordo com os critérios legais do art. 236º, n.º 1, do CC, nas situações em que os contratos de empreitadas particulares decalquem o disposto no art. 201º, n.º 1, do Decreto-lei 59/99, de 2 de Março e, subsidiariamente, a aplicabilidade ao Contrato de Empreitada, em tudo o que nele seja omisso, do regime legal previsto no Decreto-Lei n.° 59/99, de 2 de Março, nos termos do disposto na cláusula 2ª, n.º 3, do Contrato de Empreitada, e o que se entende por "omissão contratual" — tratam-se de questões (i) com carácter paradigmático, transponíveis para quaisquer contratos de empreitada entre particulares com semelhante clausulado (que são muito comuns), (ii) com relevância jurídica pela divergência nas interpretações que têm vindo a ser feitas pela Jurisprudência em casos análogos e (iii) pelos efeitos que a interpretação defendida no Acórdão recorrido possa vir junto dos empreiteiros, quando confrontados com semelhantes cláusulas nos seus contratos, pois que a aplicação de multas contratuais, sem qualquer limite temporal após a conclusão e entrega da obra, sempre lhes criaria (em particular na Recorrente) a incerteza do sentenciamento da aplicação de uma multa por atraso contratual, em clara violação das regras da certeza jurídica, da confiança e, sobretudo, da extinção da relação contratual.

D. A par disso, o Acórdão recorrido encontra-se em oposição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Outubro de 2012 proferido no Processo n° 1033/10.4YRLSB.S1 - 2a Secção, sendo que ambos os Acórdãos incidem sobre a mesma questão fundamental de Direito - interpretação da tempestividade da aplicação das multas contratuais, de acordo com os critérios legais do art. 236º, n.º 1, do CC -, com identidade do respectivo núcleo factual (existência de um contrato de empreitada com cláusulas de semelhante teor, onde se estabelece a aplicação de multas contratuais pelo atraso na conclusão dos trabalhos, e aplicação das multas após a recepção provisória da obra e após a liquidação da empreitada) e com contradição expressa entre a resposta dada pelo Tribunal Recorrido — concluindo que não precludiu o direito dos Recorridos de obter o pagamento das referidas multas contratuais — e o Acórdão-fundamento — que concluiu pela preclusão desse direito, se exercido após o fim dos trabalhos de empreitada.

Dito isto, admitido que seja o Recurso,

E. Errou o Tribunal recorrido ao decidir que não existe no Contrato de Empreitada (mormente na respectiva cláusula 19ª, n.º 4) nenhum prazo para os Donos de Obra reclamarem as multas contratuais pelo atraso na conclusão da obra.

F. Do texto no n.º 4 da cláusula 19ª do Contrato de Empreitada resulta que as multas contratuais por atraso na execução da obra devem ser aplicadas "até ao fim dos trabalhos ou à resolução do contrato".

G. O que se retira do citado clausulado, por correcta leitura e interpretação e em consonância com o decido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Outubro de 2012 proferido no Processo n° 1033/10.4YRLSB.S1 – 2ª Secção e no Acórdão do TRL proferido em 7.04.2011 no mesmo processo, é que a aplicação das multas contratuais por cada dia de atraso na execução da empreitada está sujeita a um termo final alternativo: o fim dos trabalhos ou a resolução do contrato.

H. Interpretar o contrato de empreitada de forma a dele não se retirar qualquer prazo para aplicação de tais multas ou pretender interpretar a suprarreferida cláusula como respeitante ao período relevante em que foi praticado o atraso não faz qualquer sentido. Com certeza que as Partes não pretenderiam que pudesse haver atraso depois de terminados os trabalhos ou de resolvido o contrato.

I. Quer no caso de rescisão do contrato, quer no caso de fim dos trabalhos, a obrigação do empreiteiro extinguiu-se/findou-se, não podendo logicamente permanecer a mora findo que seja o contrato.

J. Para além do texto do referido clausulado, tal interpretação também é imposta pelos fins e pela natureza jurídica da multa contratual por atraso na execução da obra.

K. Esta multa, como bem o decidiu o Tribunal recorrido (e o de 1.ª Instância), qualifica-se como uma Cláusula Penal Compulsória, pois que, através dela, se procura compelir o empreiteiro a concluir as obras em atraso. Isso explica que ela se traduza numa "multa contratual diária" aplicada "até ao fim dos trabalhos ou à resolução contratual".

L. Provado que ficou que os Recorridos, até ao fim dos trabalhos, não reclamaram ou aplicaram à Recorrente quaisquer multas (rectius: cláusula penal compulsória) contratualmente estabelecidas, torna-se evidente que não lhes assiste, vários anos depois, o direito de obter a condenação no respectivo pagamento por via da presente acção.

M. Decisão contraria sempre criaria no empreiteiro (Recorrente) a incerteza do sentenciamento da aplicação de uma multa por atraso contratual e violaria as regras da certeza jurídica, da confiança e, sobretudo, da extinção da relação contratual.

N. Para além disso, o disposto no n.º 4 da referida cláusula 19ª do Contrato de Empreitada é, em grande medida, um decalque da previsão contida no artigo 201º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março (enquanto regime legal que disciplina o Contrato de Empreitada em questão nos autos, em tudo o que nele seja omisso) e também a letra da lei e a Jurisprudência fixada nos Tribunais Administrativos, aponta no sentido que a multa deve ser aplicada na pendência do contrato e até ao fim dos trabalhos.

O. Pelo que errou o Acórdão Recorrido ao decidir em sentido contrário, em manifesta violação do disposto na cláusula 19ª, n.º 4, do Contrato de Empreitada e, bem assim do artigo 9º, n.º 3, 405º e 406º do CC e artigo 201º, n.º 1, do DL n.º 59/99, de 2 de Março.

P. Sem prescindir, também o entendimento vertido no Acórdão recorrido quanto à aplicação subsidiária do regime do DL n.º 59/99, de 2 de Março ao contrato dos autos, é errado e viola o disposto no n.º 3 da Cláusula 2ª do Contrato de empreitada, o disposto nos artigos 201º, n.º 5 e 233º, n.ºs 3 e 4, e 221º, al. a), todos do DL n.º 59/99, de 2 de Março e o disposto nos artigos 9º, n.º 3, 405º e 406º do CC.

Q. Independentemente se se tratar de um contrato celebrado entre privados, a verdade é que, ao abrigo da liberdade contratual, as Partes quiseram e estabeleceram a aplicação do regime previsto no DL n.º 59/99, de 2 de Março, a tudo o que no contrato e seus anexos fosse omisso.

R. No Contrato de Empreitada não foram estabelecidas cláusulas relativas ao procedimento da liquidação das multas, ao respectivo pagamento e à liquidação da conta/empreitada, pelo que se entende — contrariamente ao decidido — que tal consubstancia uma omissão contratual - conforme, aliás, foi decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10.04.2018 e no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08.05.2012 em casos análogos.

S. As Partes não têm que prever e regular exaustivamente todos os aspectos da sua relação contratual. E não quer com isso dizer que, por isso, afastem a aplicação de certas normas jurídicas.

T. Neste caso, as Partes não precisavam prever no contrato a forma de liquidação das multas ou quaisquer aspectos referentes à conta final da empreitada, na medida em que esses termos se encontravam previstos no diploma legal que as partes quiseram que regulasse o contrato, em tudo o que nele fosse omisso.

U. Entende-se, por tudo isso, ser de aplicar aos autos o disposto nos artigos 201º, n.º 5, 233º, n.ºs 3 e 4 e 221º, al. a), todos do DL n.º 59/99, de 2 de Março, enquanto diploma a que as Partes quiseram subordinar o Contrato de Empreitada em tudo o que nele esteja omisso.

V. Aplicando o referido normativo, verifica-se que (i) não existiu qualquer auto prévio de aplicação de multas (e devia, por aplicação subsidiária do disposto no 201º, n.º 5, DL n.º 59/99, de 2 de Março) ou sequer tais multas vão mencionadas nas várias actas das obras juntas aos autos ou no auto de recepção provisória; (ii) tais multas não constam da conta final da empreitada (e deviam, por aplicação subsidiária do disposto no art. 221º, al. a) do referido diploma) e (iii) a entender-se que da cláusula 19ª do Contrato de empreitada não resulta qualquer limite temporal para aplicação de tais multas — como o Tribunal Recorrido o entendeu — então será de aplicar aos autos o limite temporal estabelecido no n.º 4 do art. 233º do referido regime legal (até à recepção provisória).

W. Errou o Tribunal Recorrido ao decidir não aplicar tais normas legais ao caso em apreço, em violação das mesmas, do disposto na cláusula 2.ª n.º3 do Contrato de Empreitada e do disposto no artigo 9.º, n.º 3, 405.º e 406.º do CC, que inequivocamente determinariam a total improcedência do pedido reconvencional efectuado pelos Recorridos.

Os réus contra-alegaram, pugnando pela improcedência da revista, concluindo nos termos seguintes:

1ª. O facto de os RR. ora recorridos se terem conformado com a douta sentença da primeira instância e de dela não terem interposto recurso não significa necessariamente que concordem com ela em absoluto, nem que estejam integralmente de acordo com a sua fundamentação.

2ª. Com efeito, para quem habita a casa há mais de seis anos e convive diariamente com as infiltrações que nela persistem, que a A. ora recorrente, apesar das suas promessas, continua a não corrigir, as anomalias que subsistem têm um custo permanente de vivência muito superior ao do valor monetário em que poderá importar a sua reparação, uma vez que se ignora quanto a mesma custará se for integral e adequadamente executada por um terceiro que não a A. ora recorrente.

3ª. Os RR. ora recorridos discordam que os atraso na conclusão e entrega da obra tenha sido imputado, sensivelmente em igual medida, à A. ora recorrente e aos RR. ora recorridos tanto mais que, face aos 366 dias que a obra devia ter demorado, a A. ora recorrente a atrasou 136 diasmais de 36% - ao passo que, face ao valor da empreitada, os RR. ora recorridos apenas retiveram 13,76% do seu pagamento.

4ª. Face à amplitude da empreitada, todos os trabalhos a mais que foram solicitados pelos RR. ora recorridos foram de “menor envergadura” e não podiam ter uma implicação de 136 dias no atraso de conclusão da empreitada, pois foram intervenções pouco significativas e que eram facilmente compatibilizáveis com o normal desenvolvimento da obra, tanto mais que esses trabalhos a mais foram tão irrelevantes face aos trabalhos a menos que a A. ora recorrente também deixou de executar, que os seus pequenos custos adicionais nem sequer foram suficientes para “impedir” que o valor final da obra ficasse 2,886% abaixo do montante inicialmente orçamentado pela A. ora recorrente.

5ª. Apesar de não concordarem em absoluto com a sentença da primeira instância e de muito menos estarem de acordo com toda a sua fundamentação, os RR. ora recorridos conformaram-se com as suas consequências práticas e dela não interpuseram recurso, apenas porque reconheceram que, apesar de tudo, a mesma atingiu o seu propósito e constitui efetivamente uma “solução equilibrada em face dos interesses conflituantes das partes”.

6ª. Sendo esse também o entendimento da decisão singular de 2023.01.23 e do acórdão agora recorrido de 2023.04.27, os RR. ora recorridos procederam já ao pagamento de mais quatro faturas da A. ora recorrente, no valor total de 13.066,96€, reduzindo-se assim a sua dívida a ser compensada pela penalidade contratual pelo atraso na execução da obra para 66.933,04€.

7ª. Salvo o devido respeito, entendem os RR. ora recorridos que não existe qualquer similitude fáctica entre o acórdão fundamento indicado pela A. ora recorrente e o acórdão recorrido, uma vez que os factos que têm que estar presentes no presente recurso são os que ficaram provados sob os números 27., 28., 29., 30. e 31. na sentença de primeira instância, dado que não houve qualquer alteração dos mesmos em segunda instância.

8ª. Na verdade, ao contrário do que se passou na situação do acórdão fundamento indicado pela A. ora recorrente, no caso do presente processo não se passaram vários anos até ao cálculo e à reclamação das penalidades pelo atraso na conclusão da obra da obra dos autos, pois neste caso, sobre o qual se decidiu no acórdão sub judice, o calculo e reclamação das penalidades pelo atraso na conclusão da obra foi efetuado logo em outubro de 2016, logo quando se estavam a realizar os cálculos para o fecho financeiro da empreitada.

9ª. Não sendo os mesmos os factos, não podem ser as mesmas as conclusões jurídicas, o que, por si só inviabiliza o provimento do recurso apresentado pela A. ora recorrente com fundamento na existência de um acórdão que alegadamente decidira em sentido contrário, com base nos mesmos factos.

10ª. Sem prejuízo da adesão à fundamentação jurídica da sentença de 2022.08.29, bem como da douta decisão singular de 2023.01.23 e do douto acórdão recorrido de 2023.04.27, os RR. ora recorridos entendem que a A. ora recorrente não tem qualquer razão nas suas alegações.

11ª. Para além de não ser verdade que a A. ora recorrente não tenha tido qualquer responsabilidade no atraso da conclusão e entrega da obra, no contrato e na lei não existia nenhum prazo temporal imperativo para a aplicação e reclamação do pagamento da multa contratualmente prevista por essa causa, porque nesta empreitada não havia multas parcelares, não havia multas que tivessem que ser aplicadas no decurso da mesma.

12ª. No caso dos autos, o disposto no número 4 da cláusula Décima Nona do contrato de empreitada, destinava-se apenas a deixar bem claro que não havia multas parcelares e que a única multa pelo atraso nela prevista, a sanção pelo incumprimento da A. ora recorrente, só podia ser aplicável por referência a um dos dois termos certos finais distintos nela indicados.

13ª. Antes de a obra estar concluída e entregue ou antes de o contrato ser resolvido com fundamento no seu incumprimento, não havendo multas parcelares para aplicar, não havia termo certo final, não havia motivo para os RR. ora recorridos aplicarem multas, nem para as comunicarem à A. ora recorrente.

14ª. Só na data de conclusão e entrega efetiva da obra, podia ficar fixado o valor devido pela A. ora recorrente aos RR. ora recorridos, pelo que, só a partir dessa data, e em qualquer altura, os RR. ora recorridos podiam passar a poder exigir à A. ora recorrente o seu pagamento, como efetivamente veio a acontecer com a dedução do pedido reconvencional no presente processo.

15ª. Em 26 de outubro de 2016, a A. ora recorrente foi informada pela Fiscalização da Obra de qual o valor da multa relativa ao seu atraso na sua conclusão e entrega; essa liquidação tornou-se definitiva e nunca foi alterada, sendo exatamente esse o valor reclamado e pedido pelos RR. ora recorridos na reconvenção deste processo.

16ª. Como não havia multas parcelares, mas apenas uma multa final, com cálculos objetivos, já comunicada à A. ora recorrente pela Fiscalização da obra, não havia necessidade nenhuma de se fazer qualquer auto final quanto à liquidação da mesma, que era objetiva, tanto mais que não havia nenhuma contestação da A. ora recorrente, nem quanto à data em que devia ter terminado a obra (07-07-2016), nem quanto à data em que efetivamente a concluiu e entregou (16-11-2016).

17ª. Ou seja, para além da aplicação do número 4 da cláusula Décima Nona do contrato de empreitada, nem as partes, nem o Tribunal a quo necessitavam de se socorrer de qualquer norma do Decreto-Lei nº. 59/99 de 2 de março.

18ª. Na verdade, tendo nascido na esfera jurídica dos RR. ora recorridos o direito a reclamarem da A. ora recorrente o pagamento da penalidade pelo atraso na execução da obra, este direito não podia ficar prejudicado pela circunstância de não ter sido reclamado antes da conclusão e entrega da obra, ou seja, antes de o mesmo se ter definitivamente constituído.

19ª. A efetiva conclusão e entrega da obra não podia ter o efeito de fazer extinguir o direito de reclamar o pagamento de uma penalidade que só nessa data se podia ter liquidado e tornado definitiva, pois só então se verificaram os seus pressupostos.

20ª. Com efeito, não existe nenhuma previsão legal – e seria injusto que a mesma existisse – que impusesse aos RR. ora recorridos qualquer obrigação de reclamar da A. ora recorrente o pagamento de uma penalidade, antes da verificação objetiva da circunstância que determinaria, nos termos contratualmente previstos, a aplicação da mesma.

21ª. No caso dos autos, a disciplina legal do contrato de empreitada de natureza exclusivamente privada deve atender às normas que as partes entenderam consensualmente convencionar, nos termos do artigo 406º. do Código Civil, sendo inequívoco que, ao redigirem a cláusula Décima Nona do contrato de empreitada, A. ora recorrente e RR. ora recorridos não fizeram depender a aplicação de penalização pelo atraso na conclusão e entrega da obra de um procedimento formal de elaboração de um qualquer auto prévio e muito menos decorre daquela cláusula que os RR. ora recorridos tenham renunciado à exigibilidade de pagamento da penalização, caso não interpelassem a A. ora recorrente antes da receção provisória da obra.

22ª. Ou seja, não há qualquer lacuna na cláusula Décima Nona deste contrato de empreitada privado suscetível de ter de ser integrada por qualquer norma aplicável à contratação publica, nomeadamente as normas mais formais e complexas do Decreto-Lei nº. 59/99 de 2 de março, dando-se aqui por integralmente reproduzida toda a fundamentação a este respeito explanada na douta sentença recorrida e a jurisprudência pela mesma citada.

QUESTÃO PRÉVIA (sobre a admissibilidade do recurso).

Nas conclusões A e B das suas alegações de recurso, a recorrente Autora enquadra a revista como "normal", por “entender que, pese embora o Acórdão Recorrido confirme a Sentença proferida em 1ª Instância, não existe dupla conforme nos termos em que está delimitada pelo n.º 3 do art. 671º do CPC, uma vez que o Acórdão recorrido foi proferido com um Voto de Vencido.”

Concordamos inteiramente com a asserção feita, pelo que se admite a revista nos termos gerais (art. 671º nº 1 do CPC), uma vez verificados os requisitos gerais de admissibilidade, mormente o valor da causa (€ 96 065,49), da sucumbência (superior a € 15.000,00), a legitimidade da recorrente, o teor do acórdão recorrido e a sua recorribilidade, considerando que, pese embora a confirmação integral da sentença proferida na 1ª instância expressa no Acórdão recorrido, não se verifica a dupla conforme (art. 671º nº 3 do CPC), face à existência de voto de vencido, não se colocando, assim, quaisquer obstáculos gerais à admissibilidade do recurso interposto nos termos gerais.

Assim, não sendo admissível a interposição de recurso por via excepcional que a recorrente deduz, (“salvaguardando entendimento contrário”, “nos termos do disposto nas alíneas a) e c) do nº l do artigo 672º do CPC, por a matéria de direito constitutiva dos requisitos de procedência do pedido reconvencional ser questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito e, simultaneamente, por o Acórdão recorrido estar em contradição com Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 18/10/2012 no Processo n° 1033/10.4YRLSB.S1-8 (Acórdão-fundamento) no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito”), não há que remeter os autos à Formação, nos termos e para os efeitos do art. 672º nº 3 do CPC, ficando prejudicada a apreciação dos fundamentos invocados naquela revista excepcional.

Corridos os vistos, cumpre decidir, tendo presente que são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o objeto do recurso, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, com excepção daquelas que são de conhecimento oficioso (cfr. art. 635º nº 4, 639º nº 1, 608º nº 2, ex vi art. 679º, todos do CPC).

O OBJECTO DO RECURSO

Considerando as conclusões do recurso de revista, a questão que cumpre apreciar e decidir é saber se, atento o quadro contratual em vigor entre as partes, os Réus podem reclamar o pagamento das multas contratuais pelo atraso na conclusão da obra após a sua entrega e, na afirmativa, se se mostram cumpridas as formalidades previstas pelas partes para o efeito.

Reunamos aqui novamente os factos julgados provados pelas instâncias:

l. A autora Classpinta-Sociedade Construtora, Lda. é uma sociedade comercial por quotas cujo objecto social consiste na "construção, reparação e acabamentos de edifícios e outras construções. Serviços de pintura. Construção e reparação de estradas, redes de transporte de águas, de esgotos, de distribuição de energia, de telecomunicações e de outras redes. Actividades de arquitectura, de engenharia e técnicas afins. Promoção, compra e venda de imóveis".

2. Por contrato de empreitada celebrado em 30-06-2015, os réus AA e BB adjudicaram à autora a realização de empreitada de construção civil de uma moradia sita na Rua ..., em ..., 11, ..., nos termos do contrato junto como doc. n.º 2 com a p.i., complementado pela pág. 18 do contrato junta como doc. n.º 1 com a contestação, tendo como, parte dos anexos, o Programa de Trabalhos junto como doc n.º 2 com a contestação e o Caderno de Encargos junto com a réplica.

3. A referida empreitada teve por objecto “. . .a execução de todos os trabalhos, fornecimentos e serviços necessários à construção de uma moradia na Rua ..., ..., ..., ... (. . .) conforme disposto na Cláusula Primeira do referido Contrato.

4. Ficou ainda expressamente estipulado no ponto 2 da Cláusula Primeira que: “Fazem igualmente parte da Empreitada e nos termos deste contrato e seus anexos, para além dos trabalhos descritos no ponto anterior, todos aqueles que sendo ou não da mesma espécie, venham a ser solicitados pelo Dono de Obra ao Empreiteiro ou se mostrem completamente necessários à execução dos que constituem o objecto da Empreitada.”.

5. O preço global acordado entre as partes pela execução da referida empreitada, nos termos do n.º 1 da Cláusula Décima Segunda do Contrato, foi de € 485.859,69, acrescido de IVA à taxa legal em vigor, num total de € 597.607,42.

6. O prazo para execução da empreitada foi fixado pelas partes em 366 dias, prorrogável nos termos do disposto no n.º 4 da Cláusula Décima Sexta do Contrato.

7. A referida empreitada teve início em 06-07-2015, tendo como prazo final o dia 07-07-2016.

8. A obra foi concluída pela autora e entregue aos réus em 16-11-2016, conforme auto de recepção provisória da obra, pelo qual os réus declaram que: “(. . .) procederam à vistoria dos trabalhos realizados, verificando que os trabalhos estão aceites com excepções que se encontram com defeitos ou em falta”, nos termos e com a listagem de defeitos e trabalhos a mais, constante do doc. n.0 3 junto com a p.i.

9. Os trabalhos descritos no auto de recepção provisória da obra foram sendo corrigidos pela autora, a maior parte no prazo aí fixado de 30 dias, e os restantes nos meses seguintes.

10. Tendo a autora concluído os trabalhos e corrigido a maior parte dos defeitos, os réus entraram na casa e passaram a aí viver a partir de 18-12-2016.

11. Entre Julho de 2015 e Setembro de 2016, a autora elaborou e remeteu aos réus, mensalmente, diversos Autos de Medição dos trabalhos que foram sendo prestados, nos termos que constam dos docs 4 a 23 juntos com a p.i.

12. Todos os referidos Autos foram recebidos e aprovados pelos réus.

13. A faturação dos trabalhos prestados pela autora aos réus foi sendo feita por esta após a aprovação de cada um dos referidos Autos de Medição e com base neles.

14. Por força dos trabalhos, fornecimentos e serviços efectivamente prestados, a autora emitiu e remeteu aos réus as seguintes facturas e nota de crédito:

i) Factura n.º 209, no valor de € 4.935,28, datada e com vencimento em 30-07-2015;

ii) Factura n.º 223, no valor de € 7.272,66, datada e com vencimento em 25-08-2015;

iii) Factura n.º 263, no valor de € 37.284,23, datada e com vencimento em 30-09-2015;

iv) Factura n.º 283, no valor de € 11.276,64, datada e com vencimento em 30-10-2015;

v) Factura n.º 324, no valor de € 7.284,06, datada e com vencimento em 30-11-2015;

vi) Factura n.º 340, no valor de € 15.073,06, datada e com vencimento em 28-12-2015;

vii) Factura n.º 25, no valor de € 39.208,71, datada e com vencimento em 25-02-2016;

viii) Factura n.º 53, no valor de € 15.099,17, datada e com vencimento em 29-02-2016;

ix) Factura n.º 100, no valor de € 49.016,63, datada e com vencimento em 30-03-2016;

x) Factura n.º 121, no valor de € 47.566,12, datada e com vencimento em 28-04-2016;

xi) Factura n.º 160, no valor de € 54.166,14, datada de 31-05-2016 e com vencimento em 30-06-2016;

xii) Factura n.º 193, no valor de € 36.466,76, datada e com vencimento em 30-06-2016;

xiii) Factura n.º 234, no valor de € 59.561,62, datada e com vencimento em 29-07-2016;

xiv) Factura n.º 271, no valor de € 67.565,36, datada e com vencimento em 30-08-2016;

xv) Factura n.º 296, no valor de € 33.929,92, datada e com vencimento em 30-09-2016;

xvi) Factura n.º 338, no valor de € 61.387,53, datada e com vencimento em 28-10-2016;

xvii) Factura n.º 414, no valor de € 22.960,31, datada e com vencimento em 30-122016;

xviii) Factura n.º 415, no valor de € 6.568,20, datada e com vencimento em 30-12-2016;

xix) Factura n.º 416, no valor de € 1.199,25, datada e com vencimento em 30-12-2016;

xx) Factura n.º 417, no valor de € 4.613,29, datada e com vencimento em 30-12-2016;

xxi) Nota de crédito n.º 50, no valor de € 2.069,14, datada de 29-08-2016, num total de € 471.833,87, acrescido de IVA, ou seja, € 580.355,80.

15. A autora ainda emitiu e remeteu aos réus a Factura n.º 354, no valor de € 685,92, datada e com vencimento em 02-11-2016, referente a uma despesa com a ocupação de via pública e apoio policial suportada pela autora e da responsabilidade dos réus.

16. Todas as sobreditas facturas foram remetidas pela autora aos réus para pagamento e não devolvidas ou reclamadas.

17. Os réus efectuaram o pagamento das facturas identificadas em i) a xv) supra, e parte (€ 17.414,50) da factura identificada em xvi) supra, num total de € 500.355,80 (valor já com IVA incluído).

18. Contudo, os réus não efectuaram, até à presente data, o pagamento das seguintes facturas:

a) remanescente da factura identificada em xvi) supra, no montante de € 43.973,03;

b) a totalidade das facturas identificada em xvii) a xx) supra e,

c) a totalidade da factura n.º 354 referida em 15., num total de € 80.000,00.

19. Não obstante as diversas interpelações, verbais e escritas, efectuada pela autora aos réus para o efeito.

20. Consta da Cláusula Décima Nona, sob a epígrafe “Atrasos na Execução da Empreitada”, terem as partes acordado no seguinte:

“1. Salvo determinação em contrário, o EMPREITEIRO iniciará os trabalhos no praxo máximo de 8 (oito) dias corridos após a data de assinatura do Auto de Consignação, sob pena de lhe ser aplicada, por semana de atraso, multa de 5% (cinco por cento) do valor do Contrato e eventualmente rescisão do presente contrato.

3. Sempre que se verifiquem atrasos na execução dos trabalhos, e independentemente de o EMPREITEIRO poder recuperar tais atrasos, poderá o DONO DE OBRA resolver o contrato se os atrasos, em qualquer um dos trabalhos, excederem os 20% (vinte por cento) do respetivo período Global.

4. Sem prejuízo das demais sanções previstas na Cláusula Décima Oitava do presente Contrato, ser-lhe-á aplicada, até ao final dos trabalhos ou à resolução do presente contrato, a seguinte multa diária:

a) (um por mil) do valor do Contrato, num primeiro período correspondente a 15 (quinze dias);

b) Em cada período subsequente de igual duração, a multa sofrerá um acréscimo de 1%º (um por mil)”.

21. Desde o seu início, a obra começou a sofrer atrasos que, não obstante as muitas promessas da autora de recuperação, se foram agravando, só tendo os réus sido convocados para a assinatura do auto de recepção provisória mais de 4 meses depois do fim previsto para a sua conclusão.

22. Os sucessivos atrasos da obra ocorreram por factos imputáveis, sensivelmente, em igual medida, à autora que se atrasou na execução da empreitada, em particular na fase inicial de estruturas e no planeamento e gestão da obra, e aos réus que foram solicitando alterações ao projecto na fase de acabamentos que causaram entropias no ritmo dos trabalhos.

23. As alterações solicitadas pelos réus, ocorreram no decurso da obra já depois de se verificarem atrasos no planeamento da fase inicial das obras, e consistiram, designadamente, no aumento dos quartos (acrescento de 1,85 m2 e de 1,15 m2, da área de cada um dos quartos do piso l), no aumento da cozinha (acrescento de 2,20 m2 de área), modificação das escadas e intervenção num muro de betão, tendo parte dessas modificações implicado a apresentação de um projecto de Alterações.

24. Para além disso, foram pedidas pelos réus à autora modificações de menor envergadura, que também contribuíram para atrasar a realização da obra.

25. A autora sempre acedeu e executou essas alterações a pedido dos réus, sem pedir a prorrogação do prazo da obra.

26. Inicialmente, os réus procederam aos pagamentos à autora, de acordo com o que se encontra previsto no contrato, isto é, 30 dias após a receção das faturas que iam sendo elaboradas de acordo com os autos de medição mensalmente aprovados.

27. Em outubro de 2016, os réus falaram com a fiscalização das obras a respeito das contas da empreitada e quanto ao valor acumulado das multas pelo atraso na sua execução.

28. Por email datado de 26-10-2016, a autora solicitou à fiscalização da obra, a cargo da arquitecta CC, o envio de um mapa financeiro referente à obra como combinado no dia anterior.

29. No seguimento desse email, no mesmo dia 26-10-2016, a arquitecta responsável pela fiscalização da obra, enviou à autora um email, com conhecimento para os réus, com o seguinte teor: "Olá em anexo o mapa de faturação da obra e o mapa de cálculo de multas conforme contrato de adjudicação. Ficou de nos enviar a data de conclusão de obra, estamos a aguardar. Obrigada", o qual anexou o mapa de facturação e um cálculo das multas por atraso na execução da obra, nos termos dos doc. n.º 71 junto com a contestação.

30. Os referidos anexos, para além do apuramento do valor facturado e por facturar, contém uma relação dos trabalhos a mais e a menos e das alterações da empreitada, bem como um cálculo das penalidades, referentes a 8 períodos quinzenais, calculados entre 15-07-2016 e 03-11-2019, no valor acumulado de € 262.363,86.

32. Os réus atrasaram os pagamentos das últimas facturas, e apenas realizaram em 21-11-2016, o pagamento da quantia de € 30.000,00, em 16-02-2017 o pagamento da quantia de € 68.909,78, e em 09-07-2017 da quantia de € 20.000,00, como forma de pressão para que os trabalhos em falta fossem concluídos e os defeitos corrigidos.

33. Os réus não pretenderam entrar em conflito ou em ruptura com a autora e ter de contratar um novo empreiteiro que procedesse à reparação dos defeitos e realizasse os trabalhos em falta.

34. Embora não com a celeridade desejada pelos réus, a autora foi resolvendo algumas situações pendentes em obra, enquanto insistia pelos pagamentos em falta.

35. A obra, com referência a Março de 2021, apresentava alguns defeitos ainda não corrigidos pela autora, nomeadamente, os identificados no relatório da perícia junta aos autos e que se referem, essencialmente, a anomalias relativas a: i) infiltração num ponto de iluminação na pala da fachada principal; ii) infiltrações na I.S. da suite; iii) infiltrações no quarto de vestir (closet); iv) infiltrações na zona da casa das máquinas; v) infiltrações no corredor - troço anexo à I.S. comum; vi) anomalia em tecto falso da I.S. comum, nos termos do relatório pericial e esclarecimentos juntos aos autos.

36. Nos termos da perícia realizada, e sem prejuízo da proposta de rectificação da anomalia referida em i), corresponder a uma solução de recurso que não resolve definitivamente o problema, o custo de reparação destas anomalias, sem ter em consideração a margem de lucro e despesas administrativas, foi calculado em € 3.000,00, acrescido de IVA à taxa legal.

37. Consta da Cláusula Segunda, sob a epígrafe "Regime de Empreitada", o seguinte:

“1. A Empreitada rege-se pelo disposto no presente Contrato e os documentos Anexos que dele fazem parte integrante. (…)

3. Em tudo quanto o presente Contrato e documentos Anexos sejam omissos, aplicar-se-á o disposto no então Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março”.

Apreciando:

Considerando o objecto do recurso, importará ponderar se, em face da cláusula 19.ª do contrato de empreitada celebrado entre as partes, assiste aos réus o direito de reclamar o pagamento da multa devida pelo atraso na entrega da obra após a referida entrega ou se tal direito deve, neste caso, considerar-se precludido.

Por outro lado, de ao caso dos autos deve considerar-se aplicável o regime legal previsto no DL 59/99, de 02-03, no que respeita às formalidades a observar para o pagamento das penalidades contratualmente previstas.

Vejamos:

Sustenta a Autora recorrente que os réus estavam impedidos de reclamar o pagamento da referida multa após a entrega da obra e que “quer no caso de rescisão do contrato, quer no caso de fim dos trabalhos, a obrigação do empreiteiro extinguiu-se/findou-se, não podendo logicamente permanecer a mora findo que seja o contrato”, e que, ainda que assim não se entenda, as partes acordaram na aplicação do regime previsto no DL n.º 59/99, de 02-03, a tudo o que no contrato fosse omisso e que por força da aplicação do disposto nos arts. 201.º, n.º 5, 221.º e 233.º, n.º 4, daquele diploma legal resulta que estavam os réus obrigados a dar cumprimento às formalidades prescritas nos mencionados preceitos legais, pelo que, não o tendo feito, devem ver precludido o direito de reclamação da multa cujo pagamento é reclamado nos autos.

A Relação, secundando a posição assumida na sentença, considerou a tal respeito que “a entrega da obra liberta o empreiteiro da obrigação principal de executar a obra, mas continua obrigado a satisfazer as multas vincendas decorrentes da cláusula penal inserida no contrato. Até porque, estando em causa uma verdadeira cláusula penal moratória, a sua função não se esgota na compulsão, antes acresce à indemnização pelo atraso. (…) Flui do exposto que não precludiu o direito dos recorridos de obter o pagamento da cláusula penal moratória do contrato, não sendo pelas razões avançadas aplicáveis ao caso sujeito o regime dos 201°, n.° 5, 233°, n.°s 3 e 4 e 221°, al. a), todos do DL n.° 59/99, de 2 de Março, diploma que não quadra à relação privatística e paritária existente entre as partes. Não se pode dizer que a aplicação da cláusula penal se devia subordinar ao formalismo previsto para o efeito no art. 201°, n.° 5, e art. 233°, n.° 3 do DL n.° 59/99 nem que uma vez feita a receção provisória, não poderia haver lugar à aplicação de multas contratuais correspondentes a factos ou situações anteriores. O citado artigo 233.°, 4, com o reforço do argumento retirado da al. a) do art. 221°, não foi violada, porquanto factispecie inaplicável ao caso.”.

Enquadradas as decisões das instâncias, cumprirá assinalar que inexiste controvérsia quanto à qualificação jurídica do contrato celebrado entre as partes, pois não se põe em causa tratar-se de um contrato de empreitada, por meio do qual a autora se obrigou perante os réus a construir uma moradia (cfr. art. 1225.º do CC).

A recorrente também não questiona a qualificação jurídica dada pelas instâncias à cláusula 19.ª do contrato de empreitada dos autos como cláusula penal compulsória (cfr. conclusão K).

Dispõe a referida cláusula que “1. Salvo determinação em contrário, o EMPREITEIRO iniciará os trabalhos no praxo máximo de 8 (oito) dias corridos após a data de assinatura do Auto de Consignação, sob pena de lhe ser aplicada, por semana de atraso, multa de 5% (cinco por cento) do valor do Contrato e eventualmente rescisão do presente contrato. 3. Sempre que se verifiquem atrasos na execução dos trabalhos, e independentemente de o EMPREITEIRO poder recuperar tais atrasos, poderá o DONO DE OBRA resolver o contrato se os atrasos, em qualquer um dos trabalhos, excederem os 20% (vinte por cento) do respetivo período Global. 4. Sem prejuízo das demais sanções previstas na Cláusula Décima Oitava do presente Contrato, ser-lhe-á aplicada, até ao final dos trabalhos ou à resolução do presente contrato, a seguinte multa diária:

a) (um por mil) do valor do Contrato, num primeiro período correspondente a 15 (quinze dias);

b) Em cada período subsequente de igual duração, a multa sofrerá um acréscimo de 1%º (um por mil)”.

Ensina Galvão Telles (in “Direito das Obrigações” – 6ª edição, pág.448) que “A cláusula penal, que fixa a indemnização, a forfait, pode ser compensatória ou moratória”.

A cláusula penal pode ser estabelecida para o incumprimento (definitivo) do contrato ou para a simples mora. A primeira diz-se cláusula penal compensatória; a segunda cláusula penal moratória.

A cláusula penal compensatória não pode obviamente cumular-se com a realização específica da obrigação principal. A cláusula penal moratória pode cumular-se, visto se destinar apenas a ressarcir os danos decorrentes do atraso no cumprimento”. (no mesmo sentido Calvão Silva, in “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, edição de 1987 /247).

O Professor Antunes Varela (in “Das Obrigações em Geral”, 5ª edição, vol. II, pág.137), considerou que “A cláusula penal é a estipulação pela qual as partes fixam o objecto da indemnização exigível do devedor que não cumpre, como sanção contra a falta de cumprimento”, esclarecendo que “A cláusula penal é normalmente chamada a exercer uma dupla função, no sistema da relação obrigacional. Por um lado, a cláusula penal visa constituir em regra um reforço (agravamento) da indemnização devida pelo obrigado faltoso, uma sanção calculadamente superior à que resultaria da lei, para estimular de modo especial o devedor ao cumprimento. Por isso mesmo se lhe chama penal – cláusula penal – ou pena convencional... A cláusula penal extravasa, quando assim seja, do prosaico pensamento da reparação ou retribuição que anima o instituto da responsabilidade civil, para se aproximar da zona cominatória, repressiva ou punitiva, onde pontifica o direito criminal”.

Segundo NUNO PINTO DE OLIVEIRA (in Cláusulas acessórias ao contrato: Cláusulas de exclusão e de limitação do dever de indemnizar e cláusulas penais, Centro de Estudos Judiciários, Almedina, 3ª ed. Página 923), nas cláusulas penais compulsórias (ou compulsivo-sancionatórias) “o acordo das partes tem por finalidade compelir o devedor ao cumprimento e/ou sancionar o devedor pelo não cumprimento”, sendo que a “função compulsivo-sancionatória da cláusula pena poderá actuar-se através da fixação de uma pena que acresce ao cumprimento (ou à indemnização dos danos causados pelo não cumprimento) ou através da fixação de uma pena que substitui o cumprimento (ou a indemnização dos danos causados pelo não cumprimento): quando o credor e o devedor acordam em fixar uma pena que acresce ao cumprimento, ou à indemnização dos danos causados pelo não cumprimento, diz-se que convencionam uma cláusula penal exclusivamente compulsória ou compulsivo-sancionatória; quanto o credor e o devedor acordam em fixar uma pena que substitui o cumprimento, ou a indemnização dos danos causados pelo não cumprimento, diz-se que convencionam uma cláusula penal em sentido estrito”.

Nas palavras do acórdão do STJ, de 27-09-2011 (proc. n.º 81/1998.C1.S1), a “cláusula penal pode revestir-se de três modalidades: a) cláusula com função moratória ou compensatória, dirigida à reparação de danos mediante a fixação antecipada da indemnização em caso de não cumprimento definitivo ou de simples mora do devedor; b) a cláusula penal em sentido estrito ou propriamente dita, em que a sua estipulação substitui o cumprimento ou a indemnização, não acrescendo a nenhum deles, c) e cláusula penal de natureza compulsória, em que há uma pena que acresce ao cumprimento ou que acresce à indemnização pelo incumprimento, sendo a finalidade das partes, nesta última hipótese, a de pressionar o devedor a cumprir, e já não a de substituir a indemnização.”

E sobre as funções atribuídas pelas partes à sanção penal compulsória pronunciou-se PINTO MONTEIRO (in Sobre a cláusula penal, Scientia Ivridica, Tomo XLII, Julho/dezembro, 1993, Universidade do Minho, p. 263), deixando escrito a este propósito que “haverá, pois, que distinguir, consoante a intencionalidade das partes, diferentes espécies de cláusulas penais. Trata-se, fundamentalmente, de um problema de interpretação negocial (art. 236.º). A cada figura ou espécie de cláusula penal corresponde um regime jurídico próprio. As soluções consagradas no art. 811.º pressupõem, tão-só, uma dessas espécies, mais exatamente, a cláusula de fixação antecipada da indemnização, que o art. 810.º define. Só dessa se ocupa, (directamente, pelo menos) a lei. E só nesse caso é que a pena, objecto da cláusula, será uma indemnização predeterminada. Nos restantes casos, a pena é uma sanção de índole compulsória, podendo acrescer à indemnização ou, ao invés, substituí-la, em conformidade com o escopo visado” (realce nosso).

Ora, em regra, a cláusula penal compulsória visa forçar o devedor a cumprir o programa contratual delineado pelas partes, não visando reparar o credor pelo dano do incumprimento.

De facto, segundo o Acórdão do STJ de 19-06-2018 (2042/13.7TVLSB.L1.S2), “a especificidade desta cláusula traduz-se no facto de ela ser acordada como um plus, como algo que acresce à execução específica da prestação ou à indemnização pelo não cumprimento.”

E nas palavras do acórdão do STJ de 29-04-1998 (Revista n.º 817/98 (97B817), “A cláusula de um contrato em que as partes fixaram uma multa a pagar pelo empreiteiro por cada dia de atraso na conclusão da obra, corresponde a uma permilagem do valor desta, é uma cláusula penal com mera função compulsória.”

Como explica Pinto Monteiro (in Cláusula Penal e Indemnização, Almedina, 1990, pp. 605 e ss., págs. 604 e 605), “não cabendo esta figura, manifestamente, na hipótese do art. 810.º, n.º 1, a sua legitimidade decorre do princípio da liberdade contratual, funda-se no acordo das partes e destina-se a tutelar a própria confiança de que cada contraente honrará os seus compromissos. (…) esta pena não é convencionada como reparação pelo dano do incumprimento, ela é estritamente compulsória exactamente porque não se destina a substituir o cumprimento da prestação ou a indemnização pelo não cumprimento (…) assim , não cumprido o devedor sponte sua, o facto de a pena acrescer à execução especifica ou à indemnização pelo inadimplemento não conduz a uma situação de cúmulo, pois o interesse que o credor satisfaz, por qualquer destas vias, não coincide nem absorve o que o levara a estipular a pena” (sublinhado nosso).

Em anotação ao art. 403.º do CCP (correspondente, em parte, ao art. 201.º do DL 59/99, de 02-03), JORGE ANDRADE SILVA explica (in Código dos Contratos Públicos – Anotado e Comentado, Almedina, 2022, 10.ª edição Revista e Atualizada, p. 1095) que “as sanções contratuais que este preceito estabelece são sanções pecuniárias compulsórias que, como tal, visam determinar o empreiteiro ao cumprimento dos prazos contratuais e a sua aplicação não tem a virtualidade de fazer desaparecer ou sequer diminuir qualquer responsabilidade do empreiteiro decorrente do incumprimento.”

Transpondo os expostos ensinamentos para o caso que ora se versa, haverá que ter como assente, como aliás a própria recorrente reconhece, que não há dúvidas de que a cláusula penal foi fixada pelas partes com o claro intuito de pressionar a autora a entregar a obra no momento acordado.

Ora, a primeira questão que se coloca é, então, a de saber se, não tendo os réus reclamado o pagamento das multas contratuais até ao momento da conclusão dos trabalhos e/ou até ao momento da receção provisória da obra, o direito ao pagamento de tais multas deve, nos termos do contrato, considerar-se precludido.

Afigura-se-nos que assim não acontece.

Vejamos:

Desde logo, importa fazer a precisão terminológica de que a expressão “aplicação de multa” não quer significar o mesmo que reclamação ou interpelação para o pagamento de multa, sendo evidente que nada no contrato ou nas normas legais potencialmente aplicadas permite tal conclusão. Se assim é, importa perceber, num primeiro momento, que significado tem a expressão “ser-lhe-á aplicada uma multa” no contexto do contrato dos autos.

Como resulta à saciedade, tal segmento terminológico foi sacado ou foi inspirado no já mencionado DL n.º 59/99, de 02-031, importando esclarecer que, como refere JORGE ANDRADE SILVA (in Código dos Contratos Públicos – Anotado e Comentado, Almedina, pp. 1094 e ss) no domínio das empreitadas de obras públicas, o ato de aplicação de multa pelo atraso na entrega da obra configura um ato administrativo sujeito a um procedimento autónomo e prévio.

Ora, como é evidente, no domínio de um contrato de direito privado a expressão “ser-lhe-á aplicada” não tem, nem pode ter, o mesmo sentido e alcance, devendo ser interpretada com as necessárias adaptações em função das circunstâncias do caso concreto. É que, como é evidente e cristalino, não é possível exigir a um particular a prática de um ato administrativo, que seja precedido de um procedimento prévio, havendo que interpretar o negócio de acordo com as suas especificas características, para perceber o que terão as partes pretendido com tal expressão.

Olhando o nosso caso, há que afirmar que, de acordo com o padrão de um declaratário normal, a expressão “ser-lhe-á aplicada” não pode deixar de ser interpretada no sentido de que será devida uma multa contratual em caso de atraso na entrega da obra. Não se exige, como é evidente, um acto autónomo para fazer emergir na esfera jurídica do contraente lesado o direito de crédito decorrente do atraso na entrega da obra.

É, assim, manifesto que onde se lê “ser-lhe-á aplicável uma multa deve ler-se “será devida uma multa”, uma vez preenchidos os pressupostos previstos no contrato. O momento e o modo da comunicação da multa devida à autora e o modo de cobrança é matéria que se coloca a jusante da sua aplicação (com o sentido supra atribuído), não sendo, em nenhuma medida, realidades coincidentes. Assim, só será possível comunicar e reclamar o pagamento de uma multa que seja devida nos termos do contrato.

Questão diversa e que também se coloca nos autos é a de saber quando e como deve ocorrer a comunicação desta penalidade à empreiteira, o que nos aproxima da discussão da segunda questão colocada no âmbito do presente recurso em revista. Está, agora sim, em causa discutir se existem formalidades, de tempo e de modo, a observar na comunicação da multa, sob pena de preclusão de um direito de crédito emergente do contrato de empreitada.

Importa, pois, afirmar, tal como o fez o tribunal da Relação, que a expressão “até ao fim dos trabalhos” apenas pode ser interpretado, de acordo com o padrão do declaratário médio, no sentido de que tal momento (o fim dos trabalhos) fixa o momento último para contabilização do montante da multa devida, o que se compreende. Na verdade, se a sanção contratual prevista visa, precisamente, compelir o empreiteiro a terminar a obra na data acordada, é de elementar justiça que essa sanção seja contabilizada apenas até ao momento em que se alcance o interesse do dono da obra e isso sucede, sem margem para dúvidas, no momento da conclusão dos trabalhos.

Apenas neste momento da conclusão dos trabalhos, pois só neste os mesmos se terminam e são mensuráveis, é possível fixar, com a certeza que se exige, o quantum devido a título de cláusula penal compulsória, pelo que não se vê como poderia a autora pretender que os réus comunicassem a penalidade contratualmente prevista sem saberem o montante concreto devido nos termos do contrato.

Resulta, assim, que, segundo o padrão de um declaratário medianamente diligente, a expressão em análise apenas quer significar que a multa contratual deve ser contabilizada até ao termo dos trabalhos, independentemente de o momento da receção provisória da obra que pode ou não coincidir com o momento da conclusão dos trabalhos.

É, assim, manifesto que a cláusula em análise apenas responde, diretamente, à questão de saber como se calcula a multa contratual e até que momento é possível contabilizar a multa contratual fixada na mesma cláusula, nada dispondo quanto ao modo e tempo da sua comunicação à autora e posterior reclamação de pagamento.

Aqui chegados, cumpre averiguar se ante o quadro negocial estabelecido entre as partes, quiseram estas prever o tempo e o modo de tal comunicação.

Neste sentido, coloca-se, agora sim, a questão de saber qual o tempo e modo de comunicação da multa devida nos termos do contrato à autora, ganhando aqui acuidade a discussão em torno da aplicação subsidiária do DL 59/99, de 02-03 ou da auto-suficiência do contrato de empreitada em discussão nos autos.

Isto porque, como vimos, do contrato de empreitada em análise não resulta qualquer estipulação quanto ao modo e momento da comunicação da multa. Ciente disto mesmo, invoca a recorrente que, por força do disposto no DL 59/99, de 02-03, tal comunicação deveria ter ocorrido em momento anterior à recepção provisória, através de auto de fiscalização.

Neste âmbito, vemos perfilados dois possíveis entendimentos, o primeiro no sentido de que que inexiste lacuna contratual suscetível de integração, podendo tal aplicação, por vontade expressa das partes, ocorrer de qualquer modo e a qualquer momento, o segundo no sentido de que deve entender-se que, por força do diploma a que se fez referência, tal comunicação apenas poderia ocorrer mediante a elaboração de auto de fiscalização e, em qualquer caso, até ao momento da receção provisória da obra.

Na senda da resposta a esta questão, recuperemos a factualidade provada pertinente

a. o prazo final para a execução da empreitada correspondia ao dia 07-07-2016;

b. em outubro de 2016 os réus falaram com a fiscalização das obras a respeito das contas da empreitada e quanto ao valor acumulado das multas pelo atraso na sua execução;

c. em 26-10-2016 foi enviada à autora, pela arquiteta responsável pela fiscalização da obra, um mapa financeiro referente à obra do qual constava, entre outros elementos, o cálculo das multas por atraso na execução da obra;

d. a obra apenas foi concluída e entregue em 16-11-2016, data em que foi assinado o auto de receção provisória.

É nosso entendimento que, seja qual for o caminho adoptado, a pretensão da recorrente não poderá deixar de improceder.

Vejamos em detalhe:

Neste particular, invoca a recorrente que o direito invocado pelos réus deve considerar-se precludido, na medida em aqueles incumpriram o disposto nos arts. 201.º, n.º 52, 221.º3 e 233.º, n.º 44, do DL 59/99, de 02-03.

Para tanto, sustenta que, sendo o contrato celebrado entre as partes omisso quanto às formalidades prescritas para a aplicação da multa contratual prevista para o atraso na entrega da obra, devem aquelas disposições legais ser aplicadas, devendo concluir-se pela preclusão do direito dos réus por incumprimento dessas mesmas formalidades legais.

Ora, como é sabido, a integração da declaração negocial é sempre precedida de uma operação de interpretação do negócio jurídico, na medida em que as lacunas de regulamentação se revelam por via da interpretação das declarações negociais. Há, pois, que determinar o sentido do negócio e a vontade das partes para poder afirmar, com a certeza que se exige, que se verifica uma lacuna não intencional suscetível de integração.

Como explica FERREIRA DE ALMEIDA (in Contratos IV, Almedina, 2014, pp. 324 e ss), “lacuna é a omissão ou a insuficiência de um elemento da composição de um contrato que uma situação prática revela a necessidade de preencher. (…) a meu ver, a integração do contrato verifica-se sempre que, e só se, for necessário para a plena realização das funções (económico-social e eficiente) tal como se concretizam num dado contrato. (…) a integração apenas soluciona o problema de saber como se resolve uma questão, desde que, por antecedente interpretação, se tenha concluído sobre aquilo que há para resolver.”

Como é evidente, nem todas as lacunas são supríveis, podendo o vazio contratual corresponder ao verdadeiro desígnio das partes. Como ali explica o referido autor, “a lacuna é geralmente imprevista. A característica de incompletude não planeada é mesmo, para a doutrina alemã, uma componente do conceito de lacuna contratual”.

E assim é porque, em regra, o regime aplicável a qualquer contrato é constituído, primacialmente, pelas normas previstas pelas partes no contrato, sendo que a aplicação supletiva de quaisquer outros regimes depende da existência de uma lacuna não intencional. O mesmo é dizer: se a lacuna for intencional há que seguir o programa contratual delineado, nos seus precisos termos, desde que a situação em causa não careça, necessariamente, de regulamentação jurídica.

Isto dito, como realça o tribunal da Relação, as partes optaram por, no clausulado do contrato, transcrever o disposto no art. 201.º, n.º 1, do DL n.º 59/99, de 02-03, tendo também optado por não transcrever quaisquer outras normas atinentes à comunicação, reclamação, cálculo e liquidação de penalidades contratuais.

Veja-se que, de forma elucidativa, que as partes optaram por não transcrever o disposto no n.º 4 do art. 201.º mencionado5, quando seria mais previsível a transcrição integral do disposto no art. 201.º. Se não o fizeram, parece-nos evidente que, segundo o padrão de um declaratário normal e diligente, foi porque não quiseram.

Resulta, assim, que as partes, ao abrigo da autonomia privada, não fizeram depender a comunicação das penalidades contratuais da elaboração de um auto de fiscalização, nem clausularam em parte alguma que a penalidade deixaria de ser devida após o momento da receção provisória.

A cláusula 19.ª do contrato (que relembramos6) assume, assim, em nossa perspetiva, uma completude, incompatível com a ideia de lacuna, sendo que qualquer declaratário medianamente diligente concluiria no sentido de que as partes não quiseram estabelecer qualquer procedimento formal para a comunicação da multa ou qualquer prazo de caducidade que impusesse a conclusão de que o direito dos réus se deveria considerar precludido em determinadas circunstâncias.

Como é evidente, a natureza distinta das situações visadas pelo DL 59/99 e a visada pelo contrato em análise desempenha um papel determinante na conclusão a que se chegou. De facto, a natureza da relação estabelecida por meio de um contrato de empreitada de obras públicas em nada se assemelha com a natureza privatística da relação estabelecida entre as partes nos autos.

Nas relações jurídico-administrativas, a aplicação de sanções contratuais reveste a natureza de ato administrativo, para cuja formação está previsto um procedimento específico e especialmente garantístico. Assim é porque a preponderância do ente público face ao ente privado impõe a previsão de normas suscetíveis de proteger o particular; tal garantia passa, necessariamente, pela previsão de um procedimento em que os direitos à defesa e ao contraditório sejam acautelados.

Estas cambiantes não ocorrem numa relação privada, como a dos autos, em que as partes surgem em condições de paridade.

Esta diferente natureza dos contratos em confronto reforça a conclusão a que se chegou no sentido de que inexiste qualquer lacuna, tendo as partes decidido, em consciência, esgotar a regulamentação atinente às penalidades contratuais com recurso à cláusula 19.ª.

De onde resulta serem inaplicáveis ao caso as normas supra mencionadas, inexistindo qualquer tempo ou modo especifico para a comunicação da multa contratual devida nos termos do contrato.

Ainda assim, diga-se à guisa de obter dictum, importará afirmar que, mesmo que se concluísse no sentido pretendido pela autora, sempre seria de concluir pela improcedência da sua pretensão recursória.

De facto, como se consignou supra, a autora em 26-10-2016 recebeu por parte da arquiteta responsável pela fiscalização da obra um mapa financeiro do qual constava o montante devido a título de multas contratuais (factos provados n.º 28, 29 e 30), sendo evidente que a receção de tais elementos ocorreu em momento anterior à receção provisória da obra.

Do exposto resulta, com clareza, que ainda que fosse de considerar aplicável o DL 59/99, de 02-03, nos termos pretendidos pela recorrente, sempre seria de concluir que a comunicação da multa contratual devida nos termos do contrato ocorreu após elaboração de mapa financeiro pela pessoa responsável pela fiscalização da obra e que tal ocorreu antes da receção provisória da obra, em conformidade com o disposto nos arts. 201.º, n.º 4, e 233.º, n.º 4, daquele diploma legal.

A circunstância de tal mapa não surgir denominado de “auto de fiscalização” não impede a conclusão a que se chegou, na medida em que, por via do referido mapa financeiro, a autora tomou pleno conhecimento dos valores devidos nos termos do contrato, não podendo invocar desconhecimento acerca dos montantes devidos.

Assim, existindo comunicação dos valores devidos em momento anterior à receção provisória da obra, por intermédio da pessoa responsável pela fiscalização da obra, não há como não concluir pela improcedência da pretensão da recorrente.

Pelos motivos expostos, entendemos que a interpretação propugnada pelas instâncias é a que se afigura mais equilibrada e conforme com a vontade das partes, plasmada no âmbito do contrato dos autos, inexistindo, assim, quaisquer elementos que justifiquem a pretendida preclusão do direito invocada pela autora.

Por fim, será importante consignar que não se verifica, in casu, a invocada insegurança e incerteza “do sentenciamento da aplicação de uma multa por atraso contratual” e isto porque a autora, que outorgou aquele contrato, tinha, ou pelo menos devia ter, consciência das consequências contratuais decorrentes do atraso na conclusão da obra contratada e também de que tais montantes podiam ser-lhe aplicados e exigidos pelos réus nos termos em que o foram.

Termos em que a revista deverá improceder, confirmando-se o Acórdão recorrido.

DECISÃO

Por todo o exposto, Acordam os Juízes que integram a 7ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista e confirmar o Acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


Relator: Ataíde das Neves

1ª Juiz Adjunto: Conselheiro José Lameira

2º Juiz Adjunto: Conselheiro Manuel Capelo

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1. Artigo 201.º (Multa por violação dos prazos contratuais)

  1 - Se o empreiteiro não concluir a obra no prazo contratualmente estabelecido, acrescido de prorrogações graciosas ou legais, ser-lhe-á aplicada, até ao fim dos trabalhos ou à rescisão do contrato, a seguinte multa contratual diária, se outra não for fixada no caderno de encargos.

2. 5 - A aplicação de multas contratuais nos termos dos números anteriores será precedida de auto lavrado pela fiscalização, do qual o dono da obra enviará uma cópia ao empreiteiro, notificando-o para, no prazo de oito dias, deduzir a sua defesa ou impugnação.

3. Elementos da conta

A conta da empreitada constará dos seguintes elementos:

  a) Uma conta corrente à qual serão levados, por verbas globais, os valores de todas as medições e revisões ou eventuais acertos das reclamações já decididas e dos prémios vencidos e das multas contratuais aplicadas;

  b) Um mapa de todos os trabalhos executados a mais ou a menos do que os previstos no contrato, com a indicação dos preços unitários pelos quais se procedeu à sua liquidação;

  c) Um mapa de todos os trabalhos e valores sobre os quais haja reclamações, ainda não decididas, do empreiteiro, com expressa referência ao mapa do número anterior, sempre que daquele também constem.

4. 4 - Feita a recepção provisória, não poderá haver lugar à aplicação de multas contratuais correspondentes a factos ou situações anteriores.

5. “4 - Nos casos de recepção provisória de parte da empreitada, as multas contratuais a que se refere o n.º 1 serão aplicadas na base do valor dos trabalhos ainda não recebidos”.

6. 4. Sem prejuízo das demais sanções previstas na Cláusula Décima Oitava do presente Contrato, ser-lhe-á aplicada, até ao final dos trabalhos ou à resolução do presente contrato, a seguinte multa diária:

  a) (um por mil) do valor do Contrato, num primeiro período correspondente a 15 (quinze dias);

  b) Em cada período subsequente de igual duração, a multa sofrerá um acréscimo de 1%º (um por mil)”.