OBJETO DO CONTRATO DE SEGURO
EMBARCAÇÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
CONCEITO INDETERMINADO
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
AMBIGUIDADE
PRINCIPIO DO TRATAMENTO MAIS FAVORÁVEL
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
DIRETIVA COMUNITÁRIA
BOA FÉ
MATÉRIA DE DIREITO
MATÉRIA DE FACTO
Sumário


I - As cláusulas contratuais gerais devem ser redigidas de forma clara e compreensível.
II - Não preenche estas exigências a cláusula contratual que exclui do objecto do seguro os acidentes com embarcações em zonas não vigiadas, quando: 1) este conceito (zona não vigiada) não é definido, precisado ou esclarecido na cláusula relativa às definições nem em qualquer outra cláusula do contrato de seguro; 2) não é definido pela lei ou por quaisquer outras regulamentações técnicas; 3) não é esclarecido ou precisado mediante a conjugação da cláusula onde está previsto com outras cláusulas do contrato de seguro.
III – O juízo a fazer sobre a desconformidade de uma cláusula contratual geral com a boa fé, ao abrigo dos artigos 15.º e 16.º do Decreto-lei n.º 446/85, é casuístico, assentando nos factos julgados provados.

Texto Integral


Acordam na 2.ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça

Flutuação – Atividades Turísticas, Lda, com sede na ..., propôs acção declarativa com processo comum contra Victoria Seguros, SA, com sede na Avenida da ..., pedindo:

a. A condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 207 413,00, acrescida do valor dos juros contados desde a citação, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento;

b. A condenação da ré a indemnizá-la na quantia que esta viesse a suportar a título de parqueamento da embarcação até à sua reparação total, bem como o custo que viesse a despender com o serviço relativo à sua descida para a água, importâncias a apurar em sede de liquidação de sentença;

c. A condenação da ré a pagar-lhe indemnização correspondente a € 5 000,00 por cada mês que ficasse privada de utilizar a sua embarcação desde o momento da apresentação da acção em juízo.

Para o efeito alegou em síntese:

• Que é dona de uma embarcação de recreio, denominada o... .... ..;

• Que celebrou com a ré um contrato de seguro, denominado “Victoria Protecção Náutica”, que garantia, além do mais, os danos na embarcação atrás referida, bem como a prestação de assistência à embarcação e seus ocupantes, incluindo o transporte daquele, até ao limite do capital de seguro de € 250 000,00;

• Que, no dia 27 de Maio de 2021, a embarcação encalhou e sofreu danos graves ao nível do casco e em peças e componentes integrantes da sua estrutura e parte mecânica;

• Que a ré não assume a responsabilidade pelo sinistro.

A ré contestou, pedindo se julgasse improcedente a acção. Na sua defesa alegou, em síntese, que o sinistro não estava coberto pelo seguro. Subsidiariamente, impugnou os danos invocados.

O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência foi proferida sentença que julgou improcedente a acção. O tribunal entendeu que, nos termos da cláusula 34.ª das condições gerais da apólice, estavam excluídos da cobertura do seguro os danos respeitantes ou consequência do depósito ou amarração do barco em locais sem vigilância ou assistência e que o evento deu-se em local sem vigilância.

Apelação

A autora não se conformou com a sentença e interpôs recurso de apelação, pedindo se revogasse a sentença recorrida e se substituísse a mesma por decisão que condenasse a ré a indemnizá-la no custo provável da reparação da embarcação, acrescido de juros, contados desde a citação até ao efectivo pagamento.

O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão proferido em 6-07-2023, confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a sentença proferida na 1.ª instância.

A autora interpôs recurso de revista excepcional ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, pedindo se revogasse a decisão recorrida e se substituísse a mesma por outra que julgasse parcialmente procedente a acção, condenando-se a ré a indemnizá-la no custo provado da reparação da embarcação, acrescido de juros, contados desde a citação até efectivo pagamento.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:

1. A relevância da questão dos autos é setorial, interessa a todos os praticantes de atividades náuticas, designadamente aos proprietários de embarcações em Portugal e, muito especialmente, aos da Região Autónoma da Madeira que, frequentemente contratam seguros onde, por adesão, lhe são impostas clausulas gerais que, quando descemos à realidade prática da nossa costa portuguesa, manifestam-se totalmente desproporcionadas e esvaziam o próprio contrato de seguro, devendo ser consideradas nulas, conforme resulta das conclusões infra deduzidas.

2. Considerando a frequência com que a clausula 34.ª das condições gerais do contrato de seguro é utilizada pelas seguradoras, considerando, ainda, a intensa atividade náutica na Madeira, considerando a pluralidade de destinatários desta cláusula inserida habitualmente em contratos de adesão e considerando, finalmente, o valor elevado dos danos normalmente resultantes de sinistros com embarcações, verifica-se que estamos perante uma matéria singular, que aproveita a um conjunto alargado de pessoas que, por estarem de boa-fé, podem estar convencidas de que estão protegidas pelo seu contrato de seguro quando, na verdade, estão a assumir riscos que não queriam assumir.

3. O presente caso apresenta uma relevância paradigmática (ainda que com cariz inovador), pois poder-se-á repetir vezes sem conta, pelo que deve ser dirimido no Supremo Tribunal de Justiça já que está justificada a aplicação do disposto no artigo 672.º, n.º 1, al. a) do CPC, cabendo revista excecional do douto acórdão do Tribunal da Relação, pois foi precisamente para situações destas que a norma adjetiva foi pensada.

4. A natureza das atividades exercidas com uma embarcação de recreio passa necessariamente pela sua utilização junto à costa, incluindo com a sua amarração junto a cais para deslocação temporária a terra, pelo que subtrair esta ação do perímetro do contrato de seguro é esvaziá-lo em grande medida, em face do que a interpretação da norma constante da clausula 34.ª das condições gerais do contrato de seguro ofende o sentimento de todos aqueles que conhecem e praticam atividades de recreio em embarcações, pois colide diretamente com a essência da própria atividade de recreio, que supostamente a Seguradora aceitou proteger.

5. Uma seguradora que pretende operar comercialmente na náutica de recreio tem a obrigação de proteger os tomadores de seguro quando amarram as suas embarcações junto a cais existentes ao longo da costa, pelo que a norma ínsita na clausula 34.ª das condições gerais, interpretada no sentido em que, independentemente das circunstâncias concretas do sinistro, a amarração de uma embarcação junto à costa, em zona que não seja um porto ou uma marina, está imediatamente excluída do âmbito do seguro, é uma norma totalmente abusiva, desproporcionada e, por conseguinte, nula.

6. Tal cláusula introduz um significativo desequilíbrio contratual entre as partes (na prática esvazia largamente a utilidade do seguro), na medida em que o fim precípuo do dito seguro é obrigar o segurador a pagar os danos decorrentes dum sinistro numa embarcação de recreio, sendo que uma das utilizações mais frequentes destas são precisamente a amarração junto à costa, por norma onde – como no caso dos autos – há estruturas de apoio à atracagem e amarração, com cais, poitas, restaurantes ou bares de praia, etc.

7. Da conclusão anterior resulta que, considerando que aferir se o cais da Fajã ... é “uma zona não vigiada” corresponde, ao cabo e ao resto, à própria interpretação e aplicação da cláusula 34.ª das condições gerais do contrato de seguro, não restarão dúvidas que estamos perante matéria de direito, matéria essa que é a grande questão jurídica a decidir (thema decidendum), pelo que, também por esta razão, o facto provado descrito sob a alínea TT) deve ser eliminado e, assim sendo, inexiste qualquer elemento de facto, que nem sequer foi alegado, para julgar afastada a responsabilidade da seguradora.

8. A interpretação do sentido dessa clausula pelo Tribunal recorrido é errada também porque interpreta o conceito de “zona não vigiada” fazendo, ao cabo e ao resto, uma analogia com os serviços próprios de uma marina ou um porto, mas a verdade é que se fosse esse o sentido da clausula esta tê-lo-ia dito expressamente no seu texto (elemento literal), definindo que “zonas vigiadas” seriam as reconhecidas pelas entidades administrativas como portos ou marinas, o que não acontece

9. Um segurado que paga um seguro conta, razoavelmente, que quando amarra o seu barco junto a um cais com as características (provadas) da Fajã .... (com estrutura de betão no mar, boias, poitas, restaurante na costa muito visitado, apenas com acesso de elevador ou de barco por mar), não está a incorrer numa má prática por estar numa zona em que a Seguradora se vai esconder, fugindo da sua responsabilidade, pelo que, se houvesse dúvidas na interpretação da clausula, importaria fazer a interpretação no sentido de repor o equilíbrio das prestações, no sentido mais favorável ao segurado, como dimana do disposto no artigo 237.º do Código Civil, o que a primeira e a segunda instância não fizeram.

10. Analisada a fundamentação da sentença da primeira instância e o acórdão do Tribunal da Relação, verifica-se que só estaríamos perante uma zona vigiada, se o local tivesse as comodidades “dum porto” ou de “uma marina “ou se o Cais da Fajã .... fizesse parte da lista da Direção Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos (entidade expressamente citada pela sentença do Primeiro Grau), o que configura uma interpretação errónea da cláusula 34.ª das condições gerais pois, se formos procurar a lista dos portos e das marinas existentes na ilha da Madeira, publicada pela Direção Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos (repete-se, entidade citada pelo Tribunal a quo - https://www.dgrm.mm.gov.pt/marinas-e-portos-de-recreio) só encontramos dois: a marina do Funchal e a marina da Quinta ..., não sendo aceitável que a embarcação da autora, utilizada na ilha da Madeira, no meio do Atlântico Norte, tem um seguro contratado na Seguradora-Ré, mas só tem riscos transferidos para a Ré nas amarrações realizadas naquelas duas marinas, a do Funchal e a da Quinta ....

11. Sendo a Madeira uma ilha com dez concelhos - ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ... - todos eles dotados de equipamentos marítimos, por serem de matriz portuária e traço pescador, com portos de pesca, portos de recreio e diversos cais (como o da Fajã ...), verificamos que, a fazer fé no entendimento do tribunal de 1.ª instância, no que tange a amarração, a autora só estaria segura na marina do Funchal e na Quinta ..., o que, como resulta das regras da experiência e do senso comum, nos reconduz a uma situação absolutamente bizarra, pois do lado Norte da ilha da Madeira não há sequer um único local onde uma embarcação de recreio possa amarrar, o que esvazia completamente o contrato de seguro.

12. O acervo de factos provados (L, J, M, N, Q e S) permite concluir que o cais da “Fajã ...” não é um local ermo da costa, um local escondido, remoto, sem frequência de pessoas, pois, pelo contrário, é um local preparado para receber embarcações de recreio e tanto assim é que dispõe de um cais de estrutura fixa em betão, onde barcos podem atracar e aportar, carregar e descarregar mercadorias e passageiros sendo destituído de qualquer sentido invocar que aquele cais não consta de uma lista pública, pois é consabido que ninguém pode fazer obras no mar sem licença, pois o domínio público marítimo a isso obriga, daí que o tribunal recorrido não valorou adequadamente as características (provadas) do local, quando se constata que as poitas identificadas no local (com mais de 3.000 kg em betão no fundo do mar, como refere o relatório da policia marítima) eram de grande dimensão e peso suficiente para a tonelagem da embarcação “O... .... .., tal como relatado pela Policia Marítima (relatório junto à P.I.), sendo que é incumbência legal da Capitania do Porto do Funchal inspecionar os cais ao longo da costa - artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 265/72, de 31 de julho.

13. Qualquer pessoa indeterminada que se dirija a uma seguradora para subscrever um seguro de embarcação de recreio quer garantir uma situação de risco no uso da respetiva embarcação e essa pessoa pretende que o contrato viabilize o ressarcimento dos prejuízos que eventualmente venha a sofrer durante uma deslocação ou manobra, sejam danos mais ou menos simples, seja a sua perda total ou parcial, pelo que jamais tomador de um contrato de adesão, leigo em matéria de seguros, prevê que a seguradora apenas vai assumir o risco decorrente de sinistro consequente duma amarração da embarcação se tal acontecer numa marina ou num porto, por estar excluída a sua responsabilidade se tal acontecer em qualquer outro local, ainda que seja, como no caso dos autos, num conhecido cais, com estrutura de betão para descarga de mercadorias e saída de pessoas, com boias, poitas e um restaurante na imediação.

14. A cláusula 34.ª das condições gerais do contrato de seguro, interpretada no sentido que lhe foi dado pelo tribunal recorrido é desproporcionada a favor da seguradora, por esvaziar o contrato e, por outro o lado, verifica-se que o próprio contrato deveria clarificar o conceito de “zona não vigiada”, especificando o risco coberto pelo seguro em conformidade com a finalidade do contrato em termos com os quais o aderente poderia razoavelmente contar, mas não o fez e, ao não faze-lo, foi a Seguradora que se colocou na posição de não se poder fazer valer da ambiguidade do clausulado.

15. Tal cláusula é duplamente nula, (i) quer porque utiliza o conceito vago e indeterminado de “zona não vigiada”, conceito este não densificado na minuta contratual de adesão, pelo que inexistem elementos que permitam determinar aquele conceito na atividade náutica, a atividade objeto do contrato de seguro, quer porque (ii) dá lugar a uma redução, desproporcionada ou drástica, do risco coberto pelo seguro que favorece injustificadamente a seguradora em detrimento da Autora aderente, sendo a estipulação material em causa abusiva.

16. Num primeiro plano, o tribunal deve julgar nula tal cláusula por ter um objeto indeterminado e indeterminável, não apresenta uma clareza total, possibilitando interpretações diversas, o que lhe confere uma grande ambiguidade e, num segundo plano, a materialidade da clausula encerra uma redução radical, por excessiva e injusta, do risco coberto pelo seguro, já que na atividade de náutica de recreio, a amarração de uma embarcação junto à costa em local não interdito consubstancia uma prática corrente, própria do fim a que se destina a embarcação.

A ré respondeu, pedindo se rejeitasse a revista excepcional ou, caso assim se não entendesse, se negasse provimento ao recurso e, consequentemente, se confirmasse o acórdão recorrido.

Os fundamentos da resposta expostos nas conclusões foram os seguintes:

1. A autora interpôs a revista excepcional ao abrigo da al. a) do n.º 1 do art.º 672º do CPC.

2. As questões que integram o objecto da revista – interpretação do 5.º ponto da cl. 34.ª das CGA e subsunção do evento descrito na decisão de facto na exclusão aí prevista, e, subsidiariamente, nulidade dessa exclusão – estão longe de reunir as características exigidas pela norma processual indicada na conclusão anterior (ou seja, não encerram a relevância jurídica necessária para se concluir pela clara necessidade da sua apreciação para uma melhor aplicação do direito).

3. A hipotética decisão daquelas questões não extravasaria a relação contratual de seguro estabelecida entre as partes ou, dizendo de outro modo, não revestiria utilidade fora do caso concreto.

4. Essa decisão seria sempre determinada por uma decisão de facto concreta (a dos autos) e pelas condições de uma apólice concreta (a que titula a relação de seguro entre as partes).

5. O 5.º ponto da cl. 34.ª das CGA não poderá deixar de ser interpretado sistematicamente, em articulação com o âmbito da garantia oferecida por aquela apólice concreta, delimitado na cl. 16.ª das CGA e, em particular, no 2.º ponto do seu n.º 2, havendo que aplicar, seguidamente, essas cláusulas ao caso sub judice, aferindo se o evento descrito naquela decisão de facto se enquadra no âmbito da cobertura ou está dela excluído.

6. A outra questão (subsidiária), que se prende com a nulidade daquele ponto da cl. 34.ª das CGA, apenas poderá ser apreciada à luz dos elementos eventualmente fornecidos pela decisão de facto proferida nestes autos sobre os factores elencados nas als. a) e b) do art.º 16.º do RJCCG, que devem ser ponderados na aplicação do art.º 15.º do mesmo regime jurídico (sendo que, no caso sub judice, a decisão de facto omite esses elementos).

7. Por outro lado, a interpretação sistemática do 5.º ponto da cl. 34ª das CGA, em articulação com o âmbito da garantia delimitado no nº 2 da cl. 16ª das CGA, bem como a aplicação dessas cláusulas aos factos provados não encerram especial complexidade, nem maior relevância jurídica do que tantas outras questões submetidas à apreciação judicial.

8. É que uma simples análise dos factos provados e leitura daquelas disposições contratuais (2.º ponto do n.º 2 da cl. 16ª e 5º ponto da cl. 34ª das CGA) resulta na imediata conclusão que uma situação como a dos autos, em que a embarcação segura, aquando do seu desprendimento e deriva, se encontra ao largo, desprovida de tripulação, sem o “ferro” lançado, amarrada à alça de um garrafão ligado a uma poita por cabo e fora de qualquer estrutura marítima destinada ao seu estacionamento e abrigo e dotada de vigilância ou instalações de apoio (ou seja, marinas, docas de recreio, portos ou lugares de refúgio) está, manifestamente, excluída da cobertura do seguro, nos termos das referidas cláusulas.

9. Acresce que a autora não deu cumprimento (ou deu cumprimento deficiente) ao ónus previsto na al. a) do n.º 2 do art.º 672.º do CPC, já que, por um lado, fica a ideia de que a autora confundiu a relevância jurídica da apreciação das questões com a relevância social dos interesses em causa, que apenas importa para efeitos do pressuposto da al. b) do n.º 1 do mesmo artigo, não invocado pela autora, sendo que, ainda assim, sempre se dirá que o interesse social a que a autora alude é o dos proprietários de embarcações de recreio (na Madeira), que é um grupo pouco representativo da comunidade portuguesa, e cujo interesse não encerra “particular relevância social”, e, por outro, mais do que indicar as razões pelas quais a apreciação das questões é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, a autora alegou, essencialmente, sobre o mérito dessas questões.

10. Assim, encontram-se, manifestamente, por preencher os pressupostos da revista excepcional, quer o da al. a) do nº 1 do art.º 672.º do CPC, ao abrigo do qual a autora interpôs o recurso, quer o da al. b) do mesmo número, que a autora não convoca, ainda que as razões por si invocadas pareçam ter mais em vista esta alínea do que aquela

Ampliação do âmbito da revista (a título subsidiário)

Fundamentos jurídicos em que a ré decaiu (falta de prova do sinistro, tal como definido contratualmente)

11. Nos termos do art.º 342.º/1 do CC, e à luz da definição contratual de “sinistro” e, por remissão desta, da de “acidente”, ambas contidas na cl. 1.ª das CGA, a autora tinha o ónus de provar que os danos à embarcação haviam sido causados por um evento acidental, entendido como “fortuito, súbito e anormal, devido a causa exterior e alheia” à sua vontade.

12. Apesar desse ónus, a autora omitiu na p.i. a alegação da causa (acidental) do desprendimento e da deriva da embarcação, e muito menos a provou, como deixa perceber a decisão de facto, que não permite atribuir aquele evento a causa acidental (“acontecimento fortuito, súbito e anormal, devido a causa exterior e alheia à vontade do Segurado”), sendo que está provado que as condições de tempo e de mar (“fortuna de mar”) nenhuma influência tiveram no evento.

13. Não tendo a autora provado qualquer causa acidental, nem, consequentemente, o sinistro, tal como entendido contratualmente, falta um pressuposto essencial do seu alegado direito de indemnização.

Do recurso da autora da reclamada eliminação da al. TT) dos FP

14. A decisão vertida na al. TT) dos FP justifica-se e é de aceitar, pelas seguintes razões: a) Contempla um facto negativo, susceptível de ser percepcionado pelos sentidos e comprovado; b) A expressão “não vigiada” tem um significado fáctico comum e unívoco, que resulta imediata e directamente do seu elemento literal, e que é o da ausência de qualquer tipo de guarda ou vigilância, por meios humanos ou tecnológicos; c) O termo “não vigiada” não é um conceito jurídico e não passa a sê-lo apenas por o 5.º ponto da cl 34.ª das CGA usar a expressão “sem vigilância ou assistência”; d) Pela natureza da questão de facto julgada na al TT) dos FP, não seria fácil à 1ª instância conferir-lhe uma redacção muito diferente da adoptada, sendo que essa alínea impugnada sempre teria de encerrar uma negação.

15. Por mero dever de cautela e de patrocínio, na sua resposta à apelação, a ré preveniu a possibilidade de a Relação julgar procedente a impugnação da al. TT) dos factos provados, tendo alegado que, nesse caso: i. a solução nunca poderia passar pela eliminação da al. TT) dos FP, na medida em que a factualidade envolvida ou implícita na expressão “não vigiada” tinha inteiro suporte no testemunho de AA, inexistindo quaisquer dúvidas sobre a sua veracidade, que não era questionada pela A.; ii. sempre a Relação poderia alterar a redacção da al. TT) dos FP, decidindo levar à matéria provada os factos instrumentais ou probatórios especificados pela 1ª instância na motivação da decisão ali vertida: a) “Na Fajã ... inexiste qualquer concessão”; b) “Na Fajã ... inexiste qualquer vigilância ou apoio às embarcações que fiquem ao largo.”; c) “Na Fajã ... existe (na época alta) uma pessoa que dá apoio ao solário, podendo, eventualmente, em certas ocasiões, prestar algum apoio às pessoas que ali se deslocam, não sendo essa, contudo, a sua função.”.

16. Em virtude de a impugnação da autora, incidente sobre a al. TT) dos FP, ter sido julgada improcedente pelo tribunal a quo, ficou prejudicado o conhecimento da questão indicada na conclusão anterior, suscitada pela ré, a título subsidiário, na sua resposta à apelação.

17. Salvo melhor opinião, no caso de o tribunal ad quem perspectivar a possibilidade de procedência da reclamada eliminação da al. TT) dos FP, hipótese que apenas se admite por mero dever de cautela e de patrocínio, o processo não poderá deixar de voltar à Relação, por aplicação analógica do art.º 682º/3 do CPC, para permitir ao tribunal a quo conhecer da referida questão, ou seja, da requerida inclusão nos factos provados da factualidade instrumental ou probatória que motivou a decisão vertida naquele alínea, e que ficou reflectida, apenas, nessa motivação.

Da interpretação da cl. 34ª das CGA

18. O 5.º ponto da cl. 34.ª das CGA deve ser interpretado sistematicamente, o que implica a sua articulação com o âmbito da cobertura de danos próprios, delimitado no 2.º ponto do n.º 2 da cl. 16ª das CGA, do qual resulta que a garantia “funciona” quando a embarcação está depositada em “recintos fechados e vigiados” ou amarrada em “marinas”, “docas de recreio”, “portos” ou “lugares de refúgio”.

19. Em coerência com esse âmbito de cobertura, o 5.º ponto da cl. 34ª das CGA exclui a responsabilidade da ré por perdas e danos “respeitantes a ou consequentes de ”depósito em locais sem vigilância ou assistência ou em sítios descobertos ou de amarração em locais sem vigilância ou assistência (isto é, fora de marinas, docas de recreio, portos ou lugares de refúgio).

20. Uma situação como a dos autos, em que a embarcação segura, aquando do seu desprendimento e deriva, se encontra desprovida de tripulação e fora de qualquer estrutura marítima destinada ao seu estacionamento e abrigo e dotada de vigilância ou instalações de apoio, está, manifestamente, excluída do âmbito de cobertura do seguro, nos termos do 5.º ponto da cl. 34ª, em articulação com o 1.º ponto do n.º 2 da cl. 16ª das CGA.

21. O 5.º ponto da cl. 34ª das CGA não padece de ambiguidade alguma, pois a expressão “amarração do barco em locais sem vigilância ou assistência” é suficientemente clara e inteiramente concordante com a formulação usada no 2.º ponto do n.º 2 da cl. 16.ª das CGA, que delimita o âmbito da garantia de danos próprios, pelo que não há que aplicar o n.º 2 do art.º 11º do DL nº 446/85, de 25.10, ou o art.º 237º do CC.

Do alegado esvaziamento do contrato de seguro

22. Abrangendo a cobertura de danos próprios à embarcação 17 riscos, em 4 situações, nomeadamente quando navega (1ª), quando está recolhida em recintos fechados e vigiados ou amarrada em marinas, docas de recreio, portos ou lugares de refúgio (2ª), durante a imobilização em seco e os actos de lançamento ou retirada da água (3ª) e durante o transporte terrestre (4ª), num raio de navegação que vai das costas de Portugal Continental e Sul de Espanha à região autónoma da Madeira, será forçoso concluir que a alegação da ré de que o contrato de seguro está esvaziado de conteúdo (por restringir a garantia facultativa em situação de amarração às marinas, docas de recreio, portos ou lugares de refúgio) não tem cabimento.

Da alegada nulidade da exclusão prevista no 5.º ponto da cl. 34.ª das CGA

23. A decisão de facto não habilita o tribunal ad quem com a matéria necessária ao conhecimento da questão da nulidade da exclusão prevista no 5.º ponto da cl. 34.ª das CGA, à luz dos arts. 15º e 16º do RJCCG.

24. Dado que não suscitou na p.i. a referida questão, a autora não alegou, nem provou, quaisquer factos reveladores: a) da confiança ou convicção gerada no seu espírito sobre o âmbito da cobertura de danos próprios; b) da fonte dessa confiança ou convicção (isto é, se foi o sentido global das CGA, o processo de formação do contrato celebrado, o seu teor ou qualquer outro elemento atendível); c) do objectivo que pretendia alcançar com a contratação do seguro (não se sabendo, por isso, quais os riscos cuja garantia assumia preponderância para si, nem qual a sua expectativa relativamente ao âmbito das garantias contratadas).

25. A absoluta ausência de alegação e prova de factualidade reveladora dos factores a ponderar nos termos do art.º 16.º do RJCCG está espelhada na decisão de facto, que é totalmente omissa quanto às questões da confiança suscitada na A. e do objectivo que esta pretendia atingir com a contratação.

26. Importa não perder de vista que, pela apólice identificada na al. D) dos FP, foram contratadas 3 coberturas (uma obrigatória e duas facultativas), sendo que pela cobertura facultativa de danos próprios foram garantidos 17 riscos, em 4 situações, uma das quais quando a embarcação se “encontre imobilizada por amarras, em marinas, docas de recreio, ou portos ou lugares de refúgio”, sendo que cada uma dessas garantias depende do preenchimento dos respectivos pressupostos de facto, que poderão ser (nuns casos) mais ou (noutros) menos exigentes ou restritivos (do risco seguro).

27. Fruto da falta de alegação da autora, a decisão de facto não deixa perceber: a) quais dessas garantias assumiram maior peso na sua decisão de contratação do seguro; b) o peso da cobertura de danos próprios (na situação de amarração) nessa decisão; c) o objectivo que a autora pretendia alcançar com cada uma das coberturas contratadas, incluindo aquela; d) a convicção que formou sobre o âmbito de cada uma delas e daquela em particular; e) a correlação existente entre o prémio acordado entre as partes e as coberturas contratadas, incluindo o âmbito destas.

28. Sem o esclarecimento dessas questões de facto, é impossível ao tribunal ad quem concluir, com a segurança e o rigor que lhe são exigíveis, pela alegada existência de um desequilíbrio contratual desproporcionado, em detrimento da autora.

29. Com efeito, a aferição do equilíbrio entre a protecção contratual conferida aos interesses de uma e outra parte não dispensa uma análise do esquema de coberturas no seu todo, sem a qual não é perceptível a cobertura global da apólice, nem é possível ponderar a relação entre essa cobertura oferecida pela ré e o prémio de seguro (contrapartida pecuniária da autora, ou seja, entre os direitos e obrigações resultantes do contrato para ambas as partes.

30. De qualquer modo, a exclusão prevista no 5.º ponto da cl. 34ª das CGA não é desconforme com a boa-fé, sendo compreensível que, num seguro facultativo de danos próprios, e quando a embarcação se encontre amarrada, se exclua a cobertura no caso de essa amarração ocorrer em locais sem vigilância ou assistência, o que é coerente e uma decorrência natural do âmbito dessa garantia, delimitado no 2.º ponto do nº 2 da cl. 16.ª das CGA.

31. O acórdão recorrido não viola quaisquer disposições legais.


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Admissão da revista excepcional

A formação prevista no n.º 3 do artigo 672.º do CPC admitiu o recurso de revista excepcional.

O recurso suscita, no essencial, as seguintes questões:

• Saber se a decisão de julgar provado, sob a alínea TT), que “a zona referida em N) e em P) a R) era não vigiada” deve ser eliminada dos factos provados por configurar matéria de direito;

• Saber se a cláusula 34.ª é nula por utilizar um conceito vago e indeterminado de “zona não vigiada”;

• Saber se a cláusula 34.ª, interpretada no sentido que lhe foi dado pelo tribunal recorrido, dá lugar a uma redução desproporcionada ou drástica do risco coberto pelo seguro que favorece injustificadamente a seguradora em detrimento da autora, sendo a estipulação material em causa abusiva.


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O acórdão recorrido considerou provados e não provados os seguintes factos:

Provados:

1. (A) A autora é uma pessoa colectiva, organizada sob a forma de uma sociedade por quotas, que se dedica de forma habitual ao exercício da actividade comercial de exploração de empreendimentos para alojamento turístico, bem como animação turística, exploração de actividades marítimo turísticas, nomeadamente passeios turísticos, pesca desportiva, mergulho e tem como sócio-gerente BB;

2. (B) A embarcação de recreio denominada “O... .... ..”, marca Princess, modelo 460, de casco plástico reforçado com fibra de vidro PRFV, com 14,16metros de comprimento, com o número de registo ...46FN4 e cuja construção data do ano de 1997, mostra-se registada em nome da Autora;

3. (C) BB detém a carta de navegador de recreio de categoria “Patrão de Alto Mar” número PT2021OCNR.......01;

4. (D) Autora e Ré celebraram um contrato de seguro, na modalidade “Victória Protecção Náutica”, titulado pela apólice número ......59, relativo à embarcação “O... .... ..”, pelo valor global de € 250.000,00, para cobertura de responsabilidade civil obrigatória, perdas e danos na embarcação, prestação de assistência à embarcação e seus ocupantes;

5. (E) No dia 27 de Maio de 2021, pelas 13h00m, a embarcação “O... .... ..”, da Autora, partiu da marina do Funchal, manobrada por BB;

6. (F) BB tem experiência de navegação com a embarcação referida em B);

7. (G) BB navegou ao comando, por diversas vezes, à volta da Madeira, viajando, também, até Porto Santo, ilhas Desertas e Canárias;

8. (H) BB tem perícia na navegação, atracagem, manutenção e tarefas conexas com a utilização de uma embarcação de recreio;

9. (I) No dia referido em E), o tempo apresentava-se bom, o céu estava limpo e com muito sol, o vento e o mar estavam calmos, com ondulação e correntes fracas, sendo que a direcção do vento e a ondulação eram provenientes do quadrante Norte e a sua influência na costa Sul da Madeira era praticamente nula;

10. (J) BB e a sua família decidiram aproveitar as condições referidas em I) para se deslocarem do Funchal até à Fajã ... e almoçar no restaurante que nesta zona se encontra;

11. (K) Não foi a primeira vez que BB e família fizeram o referido em J);

12. (L) A Fajã ..., situada no concelho da ..., é dos locais mais conhecidos e comummente frequentados na ilha da Madeira e o acesso apenas é possível por barco ou pelo elevador panorâmico da Quinta ...;

13. (M) Na Fajã ... existe uma praia com um estabelecimento de restauração, bem como algumas unidades de alojamento local;

14. (N) Para quem vem de barco, a Fajã ... dispõe de uma estrutura fixa em betão, onde barcos podem atracar e aportar para carregar e descarregar carga e passageiros;

15. (O) A viagem de BB e família desde o Funchal até à Fajã ... correu com normalidade, sem registo de qualquer incidente;

16. (P) BB e família chegaram à Fajã ... e, já nas imediações do cais, aquele decidiu abrandar e parar a circulação da embarcação;

17. (Q) Após, verificou a existência de um cabo para amarração ligado a uma poita, dado que a “Fajã ...” disponibiliza algumas poitas para os seus clientes apoitarem as embarcações enquanto vão a terra;

18. (R) De forma a fundear o “O... .... ..”, utilizou um cabo de bordo para efectuar a amarração da embarcação ao cabo da poita para amarração;

19. (S) As poitas identificadas no local eram de grande dimensão e peso suficiente para a tonelagem da embarcação “O... .... ..”;

20. (T) A embarcação “O... .... ..” já tinha sido amarrada da forma referida em R) naquele mesmo local nos últimos anos;

21. (U) Verificando que a amarração estava em condições, com a embarcação e as máquinas paradas, BB decidiu deslocar-se para terra, fazendo o transbordo de tripulantes;

22. (V) Para o fazer, os tripulantes utilizaram uma embarcação de apoio a remos, tendo sido efectuadas duas viagens, entre a embarcação e o cais;

23. (W) Durante a segunda viagem da embarcação de apoio para o cais, com dois tripulantes a bordo, BB verificou que o “O... .... ..” se encontrava a ir à garra, já sem tripulação a bordo;

24. (X) De forma a ser o mais rápido possível, e porque o bote estava pesado, foi a nado até à embarcação, a qual havia derivado;

25. (Y) BB conseguiu alcançar a embarcação quando esta se encontrava na iminência de encalhar, colocando os motores a funcionar;

26. (Z) Quando BB deu ré, a popa afundou, batendo numa baixa, ficando, temporariamente, sem propulsão, o que originou o encalhe entre algumas pedras de grande porte;

27. (AA) A embarcação ficou encalhada entre formações rochosas existentes no local, a cerca de 167 metros do local onde se encontrava inicialmente atracada, já junto da costa;

28. (BB) Passado algum tempo, e como a embarcação estava apoiada em algumas rochas, sugiram vários rombos no casco, verificando-se que estava a entrar água na embarcação e que as bombas de esgoto estavam a funcionar;

29. (CC) Uma embarcação que passou pela zona rebocou a embarcação segurada para fora da zona das rochas;

30. (DD) Chegaram ao local os meios da Capitania do Porto de Funchal e da Polícia Marítima, que procederam ao reboque da embarcação encalhada, "O... .... ..", para o Estaleiro Naval dos ..., situado no concelho de ..., local onde a embarcação foi colocada a seco a fim de ser sujeita a vistoria e subsequente reparação de danos;

31. (EE) A Autora informou a Capitania do Porto de Funchal do sucedido, tendo solicitado vistoria à embarcação;

32. (FF) A Polícia Marítima, sob o Processo número 070.40.07- 013/21 averiguou o ocorrido e concluiu não ter ficado provada a existência de um rebentamento, quer do cabo de fundo, que liga a poita à superfície, quer do cabo de bordo, ou se houve uma amarração deficitária e que as poitas identificadas no local eram de “grande dimensão e peso suficiente para a tonelagem da embarcação “O... .... ..”, bem como que as condições meteorológicas não permitem existir uma “correlação directa entre o estado do tempo e o encalhe da embarcação” ;

33. (GG) A 10 de Novembro de 2021, foi efectuado um mergulho pelo Grupo de Mergulho Forense da Polícia Marítima, GMF-OPS, destacamento da Madeira, entre o cais da Fajã ... e cerca de 150 metros para nascente, até cerca de 40 metros da linha de costa, exactamente o local onde o “O... .... ..” fundeou, no sentido de se apurar qual a poita que havia sido utilizada pela embarcação no dia do encalhe, tendo sido identificadas 5 poitas, de grande dimensão, com um peso superior a 3 toneladas e não havia vestígios de cabos “rompidos” em nenhuma das poitas;

34. (HH) Na sequência do referido em Z), AA) e BB), a embarcação sofreu estragos a nível do casco, tendo a estrutura interna ficado afectada, o que põe em causa a sua integridade estrutural e impede o seu funcionamento e utilização;

35. (II) Na sequência do referido em Z), AA) e BB), a embarcação sofreu estragos nas hélices, “alheta”, hidráulicos, aranhas do veio, eixo e porta do leme, pintura, entre outros componentes, apresentando rombos graves, alguns de grande dimensão, no casco;

36. (JJ) Na sequência do referido em Z), AA) e BB), uma vez que estiveram submersos, todos os motores e caixas, bem como a instalação eléctrica, gerador, motores hidráulicos dos flaps e lemes, caixas de engrenagens dos motores de propulsão, alternadores, motores de arranque, têm de ser desmontados, limpos e eventualmente substituídos, pois estiveram em contacto com água salgada;

37. (KK) A reparação do mencionado em HH), II) e JJ) foi orçada em € 172.113,29;

38. (LL) Atenta a impossibilidade de se deslocar a embarcação para outro local uma vez que do estaleiro apenas se pode sair por mar, a “O... .... ..” permaneceu no “Estaleiro Naval dos ...” tendo a Autora suportado aquantia de € 3.950,36 a título de estacionamento entre 27 de Maio de 2021 e 31 de Janeiro de 2022;

39. (MM) Por cada dia que a embarcação continuar parqueada no referido estaleiro, a Autora pagará a importância de € 12,00, acrescida de IVA;

40. (NN) A varagem da embarcação, a 27 de Maio de 2021, custou € 250,00, acrescido de IVA;

41. (OO) A descida da embarcação para a colocar na água está orçamentada em € 250,00;

42. (PP) A Autora mandou proceder à reparação da embarcação, tendo obtido um orçamento por parte da sociedade “T..., S.A.”, na importância de € 147.280,84;

43. (QQ) A Autora continua a pagar a mensalidade do lugar na Marina do Funchal na importância de € 2.502,88 por ano;

44. (RR) Nas condições Gerais do contrato referido em D), as partes acordaram como cobertura facultativa as perdas e danos na embarcação;

45. (SS) Sob a Cláusula 34.ª, das Condições Gerais do contrato referido em D), as partes acordaram que a Victoria não assumiria, no âmbito das coberturas facultativas, quaisquer perdas, danos, despesas, reclamações ou desembolsos respeitantes a ou consequentes de (..) dolo e negligência, ou imprudência temerária do segurado, proprietário, patrão, governantes ou responsáveis da embarcação segura; (…) depósito ou amarração do barco em locais sem vigilância ou assistência, na praia ou em sítio descoberto;

46. (TT) A zona referida em N) e em P) a R) era não vigiada;

47. (UU) Por comunicação datada de 29 de Setembro de 2021, a ré deu a conhecer à autora o seu entendimento de que o incidente não seria passível de indemnização, face à cláusula 34ª das Condições Gerais do contrato, tendo o barco sido alvo de amarração em local sem vigilância ou assistência e por o comportamento do Segurado ter sido imprudente.

Não se provou:

a. Que BB tem 20 anos de experiência, milhares de horas ao comando de embarcações e é pessoa reconhecidamente habilidosa;

b. Que BB também já comandou embarcações em muitos outros locais do mundo, designadamente quando está de férias, o que fez em algumas ilhas das Caraíbas, Brasil e Ibiza;

c. Que O referido em J) configura um plano relativamente comum na vida social desta família (mais de dez vezes ao ano), aliás, bem como de muitos madeirenses e turistas;

d. Que o referido em L) faz com que a zona seja muito frequentada, quer por turistas, quer por madeirenses, que aproveitam o local para momentos de lazer, beneficiando da excelente exposição solar e da temperatura amena das águas do mar durante todo o ano;

e. Que o referido em P) ocorreu pelas 13h30m;

f. Que o referido em R) configura uma prática comum para não sujar o barco e mais eficiente quando se larga o cabo;

g. Que o referido em T) já havia ocorrido em condições meteorológicas menos favoráveis;

h. Que o referido em W) ocorreu pelas 14h15m;

i. Que o BB pediu socorro via telemóvel, uma vez que se encontrava numa zona sombra de VHF;

j. Que BB tentou desencalhar a embarcação, mas não obteve sucesso visto as hélices já se encontrarem danificadas e apoiadas no fundo sobre pedras;

k. Que o referido em CC) ocorreu passada cerca de uma hora;

l. Que o referido em DD) ocorreu meia hora mais tarde do referido em CC);

m. Que os meios referidos em DD) cederam mais uma bomba de esgoto uma vez que as três bombas de bordo não estavam a dar vencimento à inundação provocada pelos diversos rombos existentes no casco;

n. Que a Autora tinha o propósito de proceder à utilização da “O... .... ..”, quer para passeios, quer para a prática de pesca lúdica;

o. Que essa utilização ocorre durante todo o ano, pois na Madeira as condições meteorológicas assim o permitem;

p. Que a embarcação “O... .... ..” era usada semanalmente;

q. Que caso tivesse de alugar uma embarcação como a “O... .... ..”, a Autora pagaria € 10.000,00 por mês;

r. Que não foi efectuada amarração da embarcação ao cabo da poita;

s. Que a embarcação “O... .... ..” foi fundeada sem que o skipper tenha garantido uma correcta e eficaz amarração;

t. Que o ponto por onde terá passado o cabo da amarração terá sofrido desgastes por fricção levando à ruptura do mesmo, tendo-se o cabo separado da bóia e afundado;

u. Que o desconhecimento da capacidade de resistência e do estado de conservação das poitas de amarração, aliado à dimensão e peso da embarcação deveria ter levado o skipper a optar pela utilização do sistema/método próprio de fundear que a embarcação possui.


*

Descritos os factos passemos à resolução da questão.

A recorrente pediu a revogação do acórdão recorrido e a substituição dele por decisão que, julgando parcialmente procedente a acção, condenasse a ré a indemnizá-la no custo provado da reparação da embarcação, acrescido de juros, contados desde a citação até ao efectivo pagamento.

A pretensão da recorrente assentou, em síntese, na seguinte linha argumentativa:

Em primeiro lugar, na alegação de que não estava demonstrado que o acidente com a embarcação de recreio ocorreu em zona não vigiada. Para o efeito, laborou no pressuposto de que a decisão de julgar provado, sob a alínea TT), que o acidente com a embarcação ocorreu em zona não vigiada compreendia uma afirmação de direito e que, por tal razão, devia ser eliminada dos factos julgados provados;

Em segundo lugar, na alegação de que o acórdão sob recurso incorreu em erro na interpretação da cláusula 34.ª, na parte em que ela se refere a zona não vigiada, e que tal cláusula era nula porque o conceito de zona não vigiada nela utilizado era vago e indeterminado e não estava densificado na minuta contratual de adesão, pelo que não existiam elementos que permitissem determinar aquele conceito na actividade náutica, actividade que constitui objecto do contrato de seguro;

Em terceiro lugar, na alegação de que a cláusula em questão, interpretada no sentido que lhe foi dada pelo acórdão recorrido, dava lugar a uma redução desproporcionada ou drástica do risco coberto pelo seguro, dando origem a um favorecimento injustificado da seguradora em detrimento da autora aderente, sendo estipulação material em causa abusiva.

Comecemos pela questão de saber se a decisão de julgar provada sob a alínea TT, que o acidente com a embarcação ocorreu em zona não vigiada compreende uma afirmação de direito, que deve ser eliminada dos factos julgados provados.

A resposta é negativa.

A questão ora em apreciação foi suscitada pela ora recorrente no recurso de apelação. O acórdão recorrido, depois de traçar a distinção entre questões de facto e de direito, concluiu que a decisão em causa limitava-se a integrar mera conclusão relativa/alusiva a factos da vida real, sendo que o respectivo conhecimento/apreensão podia perfeitamente ser alcançado sem necessidade de se lançar mão de um qualquer critério de valoração jurídico-normativa. No entender do acórdão, “a alusão de que uma determinada zona consubstancia uma zona não vigiada não integra qualquer juízo de valor cuja apreensão e percepção apenas esteja ao alcance da sensibilidade ou intuição de um qualquer jurista, antes qualquer homem comum dispõe à partida da capacidade para, sem dificuldades, logo discorrer qual o alcance de uma tal afirmação”.

O acórdão sob recurso não merece qualquer censura. Na verdade, uma afirmação é de considerar como de direito quando exprime a interpretação de normas jurídicas ou quando traduz a subsunção de factos a normas jurídicas ao passo que, como se escreveu no acórdão sob recurso, embora traduza um juízo conclusivo sobre a zona onde se deu o acidente, sob o ponto de vista da questão de saber se era ou não vigiada, o juízo da decisão ora em apreciação versou sobre factos da via real sem mediação de normas jurídicas.

O que se acaba de afirmar é atestado pela seguinte fundamentação da decisão de julgar provada a matéria em questão: “No que respeita ao mencionado em TT. atentou o Tribunal no teor do depoimento de AA. Relatou esta testemunha o seu comprometimento com a Fajã .... e seu desenvolvimento turístico. Do relato desta testemunha resultou que, a título meramente privado – e, em algum momento, usando da carolice de alguns pescadores e amigos que fazem pesca submarina e também pelo mergulho de uma pessoa contratada uma vez por ano - faz a verificação das poitas mencionadas em Q) (usadas por quem decide ir à praia da Fajã .... ou ao restaurante ali existente). Do depoimento desta testemunha resultou, igualmente, a inexistência de qualquer concessão e, bem assim, de qualquer vigilância ou apoio às embarcações que ali decidam ficar ao largo. A testemunha, ademais, foi clara em referir que a pessoa que se encontra no local está ali para dar apoio ao solário, podendo, eventualmente e em certas ocasiões, oferecer os seus préstimos às pessoas que ali se deslocam, mas que não é essa a sua função. Concluiu, assim, o Tribunal pela existência de prova clara e sustentada do referido em TT”.

Pelo exposto, improcede a pretensão da recorrente no sentido de ser suprimida, dos fundamentos de facto da decisão, a afirmação de que a zona referida em N) e em P) a R) era não vigiada.

Passemos, agora, à questão da interpretação da cláusula 34.ª do contrato de seguro.

Está em causa a interpretação do seguinte segmento de tal cláusula: Sem prejuízo das exclusões específicas estabelecidas em cada garantia, a Victoria não assumirá, no âmbito das coberturas facultativas, quaisquer perdas, danos, despesas, reclamações ou desembolsos respeitantes a ou consequentes de amarração do barco em locais sem vigilância ou assistência.

Foi a aplicação deste segmento que ditou a improcedência da acção e é ele que a recorrente reputa de ilegal e abusivo.

Segundo a recorrente, esta cláusula é nula porque o conceito de zona não vigiada, por ela utilizado, é vago e indeterminado e não está densificado na minuta do contrato de adesão, pelo que não existem elementos que permitam determinar tal conceito na actividade náutica, a actividade que é objecto do contrato de seguro.

A recorrida contrapõe que o segmento da cláusula acima referido deve ser interpretado sistematicamente e que a expressão “amarração do barco em locais sem vigilância ou assistência” é suficientemente clara e inteiramente concordante com a formulação usada no 2.º ponto do n.º 2 da cláusula 16.ª das CGA das condições gerais da apólice que delimita o âmbito da garantia de danos próprios e do qual resulta que a garantia funciona quando a embarcação está amarrada em “marinas”, “docas de recreio”, “portos” ou “lugares de refúgio”.

Isto é, segundo a recorrida, ao referir-se à amarração do barco em zona não vigiada, a cláusula em questão está a referir-se a zona que não corresponda a marinas, docas de recreio, portos ou lugares de refúgio.

O fundamento do recurso ora em apreciação é de julgar procedente.

Antes de mais cumpre dizer que não há qualquer controvérsia entre as partes quanto ao entendimento de que a cláusula em questão é de qualificar como cláusula contratual geral, sujeita ao regime do Decreto-lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, diploma que institui o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais.

Deste regime relevam para questão ora em apreciação os artigos 10.º e 11.º.

O primeiro estabelece o seguinte princípio geral em matéria de interpretação: “As cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam”.

O segundo, sob a epígrafe, cláusulas ambíguas, estabelece com relevância para o caso:

1. As cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real.

2. Na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente.

Em segundo lugar, importa dizer que, apesar de o Decreto-Lei n.º 446/85 não comportar uma norma como a do artigo 5.º da Directiva n.º 93/13/CEE do Conselho de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, segundo a qual as cláusulas deverão ser sempre redigidas de forma clara e compreensível, esta norma extrai-se do artigo 11.º. Com efeito, a solução nele prevista só é compreensível à luz do mencionado dever. Assim, é de afirmar que impendia sobre a ora recorrida o dever de redigir de forma clara e compreensível a cláusula respeitante à exclusão dos riscos cobertos pelo seguro.

No que diz respeito ao cumprimento deste dever, seguimos aqui o que o Tribunal de Justiça da União Europeia tem decidido a propósito da interpretação do artigo 5.º da Directiva, na parte relativa ao dever de redigir as cláusulas propostas de forma clara e compreensível. Segundo o entendimento do Tribunal, expresso na decisão proferida em 23-04-2015, no processo n.º C-96/14 e na proferida em 20-09-2017, no processo n.º C-186/16, o dever de redigir as cláusulas de forma clara e compreensível “não pode ficar reduzido ao carácter compreensível das mesmas nos planos formal e gramatical. A exigência segundo a qual uma cláusula contratual deve ser redigida de maneira clara e compreensível deve ser entendida como impondo também que o contrato exponha com transparência o funcionamento concreto do mecanismo a que a cláusula em questão se reporta e, sendo caso disso, a relação entre este mecanismo e o estabelecido noutras cláusulas, de modo a que esse consumidor médio, ou seja, um consumidor normalmente informado e razoavelmente atento e avisado possa avaliar, com fundamento em critérios precisos e inteligíveis, as consequências económicas que daí decorrem para ele”.

Interpretando o dever de redigir as cláusulas contratuais gerais de forma clara e compreensível com o sentido e o alcance expostos é de afirmar, em relação à redacção da cláusula 34.ª, que a seguradora estava obrigada não só a redigi-la de forma clara compreensível, no plano formal e gramatical, mas também a precisar e a esclarecer o conteúdo do conceito de zona não vigiada. Se no plano formal e gramatical a seguradora cumpriu o seu dever, já não se pode dizer o mesmo no que diz respeito ao dever de precisar e esclarecer o conceito de zona não vigiada.

Na verdade, como assinala a recorrente, este conceito não é definido, precisado ou esclarecido na cláusula relativa às definições (cláusula 1.ª), nem em qualquer outra cláusula do contrato de seguro. Este esclarecimento impunha-se. Em primeiro lugar, porque era através dele que se delimitava uma parte do objecto do contrato, excluindo dele a cobertura de uma importante categoria de riscos. Em segundo lugar, tal conceito não era definido pela lei ou por quaisquer outras regulamentações técnicas. Em terceiro lugar, o esclarecimento ou precisão de tal conceito não resultava da conjugação da cláusula 34.ª, ponto n.º 5, com o n.º 2 do ponto n.º 2 da cláusula 16.ª das condições gerais da apólice. Só se poderia concluir neste sentido se a cláusula n.º 34 remetesse inequivocamente para o n.º 2 do ponto n.º 2 da cláusula 16.ª das condições gerais da apólice, o que não sucede. A cláusula 16.ª do contrato prevê a cobertura facultativa de perdas e danos na embarcação. O n.º 1 enuncia os riscos de danos que estão cobertos. O n.º 2 enuncia as condições em que esses riscos estão cobertos, ou seja, as condições da garantia prestada pela seguradora. Segundo este número, a embarcação está coberta nas condições seguintes, sujeitas ao que é adequado em função do tipo de embarcação:

• Quando navegue no mar, rio, lago ou outras águas navegáveis, no âmbito do raio de navegação descrito nas condições particulares da Apólice;

• Quando está recolhida em garagens, armazéns ou outros recintos fechados e vigiados, ou quando se encontre, imobilizada por amarras, em marinas, docas de recreio, ou portos ou lugares de refúgio habituais ou não, quer se encontre a flutuar, sobre berço e/ou em varadouros;

• Durante a imobilização em seco e nos atos de lançamento ou retirada de água;

• Durante o transporte por via terreste.

Nem o n.º 1 nem o n.º 2 utilizam o conceito de zonas vigiadas por contraposição a zonas não vigiadas no âmbito da exclusão da cobertura dos riscos de danos aquando da amarração do barco.

Não era, assim, claro, inequívoco, para um contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrever a cláusula 34.ª que as zonas não vigiadas tidas em vista por tal cláusula eram determinadas, por exclusão de partes, por referência ao n.º 2 do ponto n.º 2 da cláusula 16.ª, como não era claro inequívoco para tal contratante indeterminado normal que a zona em questão nos autos fosse de considerar zona não vigiada para efeitos da mencionada cláusula. Com efeito, em primeiro lugar, a zona em questão dispõe de uma estrutura fixa de betão, onde barcos podem atracar e aportar para carregar e descarregar carga e passageiros e de poitas para amarração dos barcos, as quais são de grande dimensão e peso suficiente para a tonelagem da embarcação segura. Em segundo lugar, não se pode dizer que tal zona estivesse subtraída a toda e qualquer vigilância, visto que, segundo o artigo 10.º, n.º 1, alínea t), do Decreto-lei n.º 265/72, de 31-07-1972, que aprovou o Regulamento Geral das capitanias, aos capitães de portos compete inspeccionar, e mandar inspeccionar frequentemente, na parte que à capitania competir, os ancoradouros, cais, praias e margens da área de jurisdição da capitania, regulando a maneira de amarrar, fundear e atracar as diversas embarcações e a sua arrumação.

Deste modo, na ausência de uma definição precisa e inteligível sobre o que se deve entender por zonas não vigiadas para efeitos da cláusula 34.ª, é de fazer prevalecer, por aplicação do n.º 2 do artigo 11.º do Decreto-lei n.º 446/85, o sentido mais favorável ao aderente. E o sentido mais favorável ao aderente é o de considerar que uma zona como aquela onde a embarcação foi amarrada não está compreendida no âmbito de exclusão da cláusula 34.ª.

Pelo exposto, a seguradora, ora recorrida, não estava em condições de invocar tal cláusula para recusar a cobertura dos danos sofridos pela embarcação.

Apreciemos, por último, a questão de saber se a cláusula que temos vindo a apreciar, interpretada no sentido que lhe foi dado pelo acórdão recorrido, dava lugar a uma redução desproporcionada ou drástica do risco coberto pelo seguro, favorecendo injustificadamente a seguradora em detrimento da autora aderente.

Esta posição da recorrente assenta na seguinte alegação:

• A natureza das atividades exercidas com uma embarcação de recreio passa necessariamente pela sua utilização junto à costa, incluindo com a sua amarração junto a cais para deslocação temporária a terra, pelo que subtrair esta ação do perímetro do contrato de seguro é esvaziá-lo em grande medida;

• Uma seguradora que pretende operar comercialmente na náutica de recreio tem a obrigação de proteger os tomadores de seguro quando amarram as suas embarcações junto a cais existentes ao longo da costa;

• Tal cláusula introduz um significativo desequilíbrio contratual entre as partes (na prática esvazia largamente a utilidade do seguro), na medida em que o fim precípuo do dito seguro é obrigar o segurador a pagar os danos decorrentes dum sinistro numa embarcação de recreio, sendo que uma das utilizações mais frequentes destas são precisamente a amarração junto à costa, por norma onde – como no caso dos autos – há estruturas de apoio à atracagem e amarração, com cais, poitas, restaurantes ou bares de praia, etc;

• Sendo a Madeira uma ilha com dez concelhos - ... e ... - todos eles dotados de equipamentos marítimos, por serem de matriz portuária e traço pescador, com portos de pesca, portos de recreio e diversos cais (como o da Fajã ....), verificamos que, a fazer fé no entendimento do Tribunal de 1.ª instância, no que tange a amarração, a Autora só estaria segura na marina do Funchal e na Quinta ..., o que, como resulta das regras da experiência e do senso comum, nos reconduz a uma situação absolutamente bizarra, pois do lado Norte da ilha da Madeira não há sequer um único local onde uma embarcação de recreio possa amarrar, o que esvazia completamente o contrato de seguro.

A recorrida contrapôs em síntese:

• Abrangendo a cobertura de danos próprios à embarcação 17 riscos, em 4 situações, nomeadamente quando navega (1ª), quando está recolhida em recintos fechados e vigiados ou amarrada em marinas, docas de recreio, portos ou lugares de refúgio (2ª), durante a imobilização em seco e os actos de lançamento ou retirada da água (3ª) e durante o transporte terrestre (4ª), num raio de navegação que vai das costas de Portugal Continental e Sul de Espanha à região autónoma da Madeira, será forçoso concluir que a alegação da ré de que o contrato de seguro está esvaziado de conteúdo (por restringir a garantia facultativa em situação de amarração às marinas, docas de recreio, portos ou lugares de refúgio) não tem cabimento;

• A decisão de facto não habilita o tribunal ad quem com a matéria necessária ao conhecimento da questão da nulidade da exclusão prevista no 5º ponto da cl. 34ª das CGA, à luz dos arts. 15º e 16º do RJCCG.

Este fundamento do recurso é de julgar improcedente.

A autora, ora recorrente, e a ré, ora recorrida, celebraram entre si um contrato de seguro, na modalidade “Victória Protecção Náutica”, titulado pela apólice número ......59, relativo à embarcação “O... .... ..”, para cobertura de responsabilidade civil obrigatória, perdas e danos na embarcação, prestação de assistência à embarcação e seus ocupantes.

Para o caso interessa-nos a cobertura do risco de perdas e danos na embarcação.

Trata-se de uma cobertura facultativa, prevista na cláusula 16.ª do contrato. Como já se referiu acima, o n.º 1 enuncia os riscos de danos que estão cobertos; o n.º 2 enuncia as condições em que esses riscos estão cobertos, ou seja, as condições da garantia prestada pela seguradora.

Sob a epígrafe “exclusões gerais”, a cláusula 34.ª estabelece, com relevância para o caso, o seguinte: Sem prejuízo das exclusões específicas estabelecidas em cada garantia, a Victoria não assumirá, no âmbito das coberturas facultativas, quaisquer perdas, danos, despesas, reclamações ou desembolsos respeitantes a ou consequentes de amarração do barco em locais sem vigilância ou assistência.

Apesar de figurar na parte da apólice relativa às exclusões das garantias, a cláusula em questão não é de exclusão da responsabilidade da seguradora. Ela visa delimitar o objecto do contrato. Trata-se, pois, de uma cláusula limitativa do objecto do contrato de seguro.

A distinção entre cláusulas de exclusão de responsabilidade e cláusulas delimitativas do objecto do contrato é feita por autores como António Pinto Monteiro, nos seguintes termos: “as primeiras constituem, …, um meio de o devedor se prevenir das consequências desfavoráveis que a situação de não cumprimento («lato sensu») lhe acarretará. Mais precisamente, o devedor pretende furtar-se antecipadamente à responsabilidade que sobre si poderá recair ou, pelo menos, restringir essa eventual responsabilidade, seja no seu montante, seja nos seus pressupostos. Mas para que o devedor se exonere, graças à cláusula de irresponsabilidade, é necessário que, sem ela, tivesse de indemnizar o credor. Ora o que pode acontecer, é as partes, ao contratar, afastarem obrigações que, sem tal acordo, fariam parte do objecto do contrato, nos termos referidos. Trata-se, neste caso, de cláusulas destinadas a definir o objecto do contrato, precisando o seu conteúdo e extensão…” [[Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, Almedina, 2003, página 116 e 117].

As cláusulas do contrato de seguro em que a seguradora exclui a assunção de certos riscos ajustam-se precisamente às cláusulas delimitadores do objecto do seguro. Na verdade, uma vez que, por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato (artigo 1.º da LCS), sempre que a seguradora indica riscos que não serão cobertos pelo seguro está a delimitar o objecto do contrato. Deste modo, ao excluir quaisquer perdas, danos, despesas, reclamações ou desembolsos respeitantes a ou consequentes de amarração do barco em locais sem vigilância ou assistência, a cláusula 34.ª do contrato de seguro em questão nos autos delimitou o objecto do contrato.

A distinção entre cláusulas de exclusão da responsabilidade e cláusulas limitativas do objecto do contrato não é irrelevante. A Directiva 93/13/CEE do Conselho de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, estabelece no n.º 2 do artigo 4.º que a avaliação do carácter abusivo das cláusulas não incide sobre a definição do objecto principal do contrato. Esta norma está em conformidade com o considerando da Directiva onde se afirma que “… no caso de contratos de seguros, as cláusulas que definem ou delimitam claramente o risco segurado e o compromisso do segurador não são objecto de apreciação sobre o seu carácter abusivo desde que essas limitações sejam tidas em conta no cálculo do prémio a pagar pelo consumidor”.

Esta distinção já não releva, no entanto, para efeitos do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, que estabelece o regime das cláusulas contratuais gerais. À luz deste regime, a cláusula que exclui determinados riscos da cobertura do seguro, delimitando o respectivo objecto, pode ser declarada nula na hipótese de se ajustar a algumas das cláusulas proibidas nele previstas ou, não se ajustando a nenhuma delas, na hipótese de ser contrária à boa fé.

A recorrente não subsume a cláusula em questão a nenhuma das que os artigos 18.º, 19.º, 21.º e 22.º proíbem (proibição absoluta nuns casos e relativa noutros). E na realidade ela não cabe em nenhuma das hipóteses previstas em tais preceitos. E, como sustenta a recorrida, também não há base factual suficiente para a considerar contrária à boa fé (artigo 15.º). Vejamos.

Segundo o artigo 15.º são proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa fé.

O artigo 16.º do mesmo diploma, concretizando o princípio geral enunciado no artigo anterior, estabelece:

Na aplicação da norma anterior devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face da situação considerada, e, especialmente:

a. A confiança suscitada, nas partes, pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis;

b. O objectivo que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efectivação à luz do tipo de contrato utilizado.

A alínea a), ao estabelecer, como parâmetro de avaliação da contrariedade da cláusula à boa fé, a confiança suscitada nas partes, pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis, traduz-se, como escreve Joaquim Sousa Ribeiro, “na violação de expectativas geradas pelo processo de relacionamento e pelos efeitos práticos normais do tipo contratual escolhido. A nulidade das cláusulas não se prende com o seu conteúdo, em si mesmo, mas com a divergência entre ele e o horizonte de representações e expectativas do aderente quanto às consequências vinculativas do contrato. No que se refere, sobretudo, aos encargos e utilidades a esperar das prestações principais, é à luz do tipo de contrato celebrado e dos seus efeitos essenciais, bem como das circunstâncias que antecederam e rodearam a sua conclusão, que o aderente forma o seu juízo. … No fundo a ineficácia das cláusulas significa, nesta vertente, que elas cedem em face de outros elementos negociais ou circum-negociais mais atendíveis e fidedignos enquanto expressão do querer negocial ou enquanto factores de confiança [A Boa Fé como Norma de validade, Direito dos Contratos, Estudos, páginas 273 e 274, Coimbra Editora].

Por sua vez, alínea b), ao remeter para o fim visado pelas partes com o contrato, impõe ao utilizador das cláusulas, socorrendo-nos mais uma vez da lição do autor acima citado, “o dever de não lesar desmesuradamente os interesses da contraparte através da inclusão de cláusulas de conteúdo significativamente desequilibrado” [obra supracitada página 275].

É com base neste parâmetro de avaliação que são de considerar proibidas as cláusulas que façam perder a utilidade do contrato para o aderente ou que estejam na origem de um desequilíbrio grave entre a prestação da seguradora e a do segurado.

Como escreve Ana Serra Calmeiro, a propósito da utilidade do contrato de seguro: “O contrato de seguro tem de ser útil. Através dele pretende-se que seja assumida pela seguradora um risco que se refira a um evento de possível verificação; as cláusulas de delimitação e de exclusão não poderão dificultar de tal forma a assunção desse risco pela seguradora ao ponto de o mitigar, descaracterizando o contrato e desvirtuando-o do seu elemento essencial, de forma inesperada para o segurado. Estas considerações são reforçadas pela lei, quando se refere à proibição de cláusulas que possam frustrar o fim negocial visado pelas partes (artigo 16.º, al. B) da LCCG) – Das Cláusulas Abusivas no Contrato de Seguro, 2014, Almedina, página 49.

O equilíbrio contratual como parâmetro para avaliar a conformidade da cláusula com a boa fé tem apoio nos artigos 9.º, n.º 2, e 14.º do Decreto-lei n.º 446/85, de 25 de Outubro.

O primeiro dos artigos citados dispõe sobre os efeitos, nos contratos singulares, da exclusão de cláusulas não comunicadas ou comunicadas com a violação do dever de informação. Num primeiro momento (n.º 1) afirma que os contratos singulares mantêm-se sem as cláusulas excluídas, vigorando na parte afectada as normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras de integração dos negócios jurídicos. Num segundo momento (n.º 2), afirma que os referidos contratos serão nulos quando, não obstante as normas supletivas aplicáveis e o recurso às regras de integração dos negócios jurídicos, ocorra um desequilíbrio nas prestações gravemente atentatório da boa fé.

O artigo 14.º refere-se também ao grave desequilíbrio de prestações no seguinte contexto. Quando uma cláusula contratual geral inserida em contrato individualizada for nula, o aderente pode optar pela manutenção do contrato, vigorando, na parte afectada, as normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras de integração dos negócios jurídicos (artigo 13.º, n.ºs 1 e 2). O artigo 14.º estabelece, no entanto, que no caso de as regras supletivas e o recurso às regras de integração dos negócios jurídicos implicarem um desequilíbrio nas prestações gravemente atentatório da boa fé, vigorará o regime da redução dos negócios jurídicos.

Socorrendo-nos das palavras de Almeno de Sá, “… se tivermos presente o escopo que se intenta alcançar com a institucionalização de um mecanismo de sindicância do conteúdo de condições negociais gerais, haverá de desempenhar aqui um papel fundamental a ideia de um adequado equilíbrio contratual de interesses, equilíbrio que é posto em causa se o utilizador procura realizar a todo o custo, na conformação do contrato, os seus próprios objectivos, sem atender, de forma minimamente razoável, aos legítimos interesses do aderente. A significar que está aqui em causa uma básica ponderação de interesses [Cláusulas Contratuais Gerais e Directiva Sobre Cláusulas Abusivas, 2.ª Edição Revista e Aumentada, Almedina, página 72].

A aferição da natureza abusiva de uma cláusula contratual geral em função das legítimas expectativas do aderente e da finalidade do contrato foi afirmada no acórdão do STJ proferido em 10-12-2019, no processo n.º 634/13.3TVPRT.P1.S1, publicado em www.dgsi.pt. nos seguintes termos: “Para aferir da natureza abusiva de uma cláusula no domínio do contrato de seguro, deve ponderar-se a finalidade do contrato e quando, em resultado de cláusulas de exclusão ou limitativas, a cobertura fique aquém daquela que o tomador podia de boa fé contar, tendo em consideração o objecto e a finalidade do contrato, devem tais cláusulas ser consideradas nulas”.

Por sua vez, a aferição da natureza abusiva de uma cláusula contratual geral em função do desequilíbrio das prestações que dela pode resultar foi afirmada no acórdão do STJ proferido em 27-05-2021, no processo n.º 935/18.4T8CBR.S1, publicado em www.dgsi.pt, nos seguintes termos:” Interpretando o regime português das cláusulas contratuais gerais à luz da Directiva 1993/13/CEE, de 05-04-1993, sobretudo depois do acórdão do TJUE de 14-03-2013, proferido no processo C-415/11 (Aziz), é possível dizer que as cláusulas contratuais não negociadas são abusivas quando contrariem a boa fé, originando um desequilíbrio significativo entre os direitos e as obrigações das partes”.

Na interpretação dos artigos 15.º e 16.º do Decreto-lei n.º 446/85, importa reter que o juízo a fazer sobre a desconformidade de uma cláusula com a boa fé é casuístico, assentando necessariamente nos factos julgados provados.

Assim, por aplicação da alínea a) do artigo 16.º, é de considerar que a cláusula é contrária à boa fé quando, atendendo ao sentido global das cláusulas contratuais em causa, ao concreto processo de formação do contrato individual e a outras circunstâncias, for de concluir que a cláusula contratual em questão defrauda legítimas expectativas do aderente.

Por sua vez, por aplicação da alínea b) do mesmo preceito, é de considerar que a cláusula é contrária à boa fé quando, tendo em conta o concreto objectivo que as partes visaram com o negócio e todas as demais circunstâncias do caso, for de concluir que a cláusula em questão frustra o fim visado pelo aderente ou cria em seu prejuízo um grave desequilíbrio nas prestações.

Assim interpretados, os artigos 15.º e 16.º do Decreto-lei n.º 446/85 não dão guarida à pretensão da recorrente. Vejamos.

Em primeiro lugar, das circunstâncias que a alínea a) manda atender na avaliação da contrariedade das cláusulas à boa fé, ignoramos o processo negocial entre a autora e a ré que culminou com a celebração do contrato de seguro. Conhecemos apenas as condições particulares da apólice, na parte em que prevêem a cobertura de perdas e danos na embarcação. Estas nada nos dizem, no entanto, sobre a convicção que a autora criou sobre os riscos de danos que seriam cobertos pelo seguro.

Em segundo lugar, das circunstâncias que a alínea b) do artigo 16.º manda atender na avaliação da contrariedade das cláusulas à boa fé, sabe-se que a autora tinha por fim garantir a cobertura de perdas e danos na embarcação, aquando da utilização dela com a finalidade de recreio privado nas águas costeiras de Portugal Continental e da região autónoma da Madeira e Costa Sul de Espanha.

A matéria de facto apurada não permite, no entanto, afirmar que a realização deste fim é esvaziada com a exclusão da cobertura das perdas e danos respeitantes a ou consequentes de amarração da embarcação em locais como o dos autos. Na verdade, como alega a recorrida, o seguro cobre 17 situações de risco de danos (cláusula 16.ª do contrato de seguro), pelo que, mesmo sem a cobertura do risco de danos na embarcação aquando da amarração em locais como o dos presentes autos, subsistiria a cobertura de um amplo leque de riscos de danos. Mais: no que diz respeito a perdas e danos respeitantes a ou consequentes de amarração do barco, o seguro, na interpretação que lhe foi dada pelo acórdão recorrido, continuaria a cobrir os danos verificados em portos, marinas, ou lugares de refúgio habituais.

Em quarto lugar, a matéria de facto também não permite afirmar que a aplicação da cláusula em questão dê origem a um grave desequilíbrio entre a prestação da seguradora, ora recorrida, e a prestação da autora, recorrente.

Pelo exposto é de concluir que a matéria de facto apurada não permite formar um juízo seguro sobre se a cláusula 34.ª é contrária à boa fé.

Diga-se que esta insuficiência factual não se ficou a dever a qualquer insucesso probatório da autora. Ela explica-se pela circunstância de a ora recorrente só ter invocado o carácter abusivo da cláusula em questão em sede de recurso de apelação, ou seja, num momento processual em que lhe estava vedado alegar factos que sustentassem tal alegação. Conforme escreveu a recorrida, na resposta ao recurso, a autora não alegou na petição quais as garantias que assumiram maior relevância na decisão de contratar; qual o peso da cobertura dos danos próprios, na situação de amarração do barco, nessa decisão; qual a convicção que formou sobre o âmbito das garantias e em particular da cobertura de danos no barco em situação de amarração.

Em síntese:

Não há base factual suficiente para afirmar que a cláusula 34.ª interpretada no sentido que lhe foi dado pelo acórdão recorrida é contrária à boa fé;

Na ausência de uma definição precisa e inteligível sobre o que se deve entender por zonas não vigiadas para efeitos da cláusula 34.ª, é de fazer prevalecer, por aplicação do n.º 2 do artigo 11.º do Decreto-lei n.º 446/85, o sentido mais favorável à aderente, ora recorrente. E o sentido mais favorável à aderente é o de considerar que uma zona como aquela onde a embarcação foi amarrada não está compreendida no âmbito de exclusão da cláusula 34.ª.

Em consequência, a ré, ora recorrida, não está em condições de invocar tal cláusula para excluir, da cobertura do seguro, os danos na embarcação. Está, pois, obrigada a indemnizá-los.

Contra esta conclusão não vale a alegação da recorrida de que a autora não provou que os danos tiveram causa acidental, tal como entendido no contrato de seguro. Vejamos.

O contrato de seguro define acidente como o acontecimento fortuito, súbito e anormal, devido a causa exterior e alheia à vontade do segurado, que provoque danos materiais ou lesões corporais.

Ora, a descrição dos factos causadores dos danos ajusta-se a esta noção. Com efeito, decorre da matéria apurada que os danos na embarcação foram causados directamente pelo encalhe dela entre pedras de grande porte e que o encalhe se ficou a dever à circunstância súbita e anormal de a embarcação, depois de ter sido amarrada em condições ao cabo da poita para amarração e num momento em que se encontrava sem tripulação a bordo, ter-se desamarrado e ficado à deriva.

A circunstância de não se ter provado a razão pela qual a embarcação se soltou das amarras não faz com que a deriva do barco seguida do encalhe entre pedras de grande porte perca a natureza de acidente para efeitos de contrato de seguro.

Assente que a ré, ora recorrida, está obrigada, por efeito do contrato de seguro, a indemnizar os danos causados na embarcação, resta fixar o montante de tal indemnização. Este é de 145 808,04 euros, acrescido de juros de mora desde a citação até efectivo pagamento, considerando:

• Que o montante do capital seguro era de 250 000 euros, com uma franquia de 1%, no mínimo de 250 euros;

• Que a autora, ora recorrente, mandou proceder à reparação da embarcação, tendo obtido um orçamento por parte da sociedade “T..., S.A.”, na importância de € 147.280,84.


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Decisão:

Concede-se a revista e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido e substitui-se o mesmo por decisão a condenar a ré a pagar à autora o montante de cento e quarenta e cinco mil oitocentos e oito euros e quatro cêntimos (€ 145 808,04), acrescido de juros de mora desde a citação até efectivo pagamento.

Responsabilidade quanto a custas

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de a recorrida ter ficado vencida, condena-se a mesma nas custas do recurso.

Lisboa, 4-04-2024

Relator: Emídio Santos

1.º Adjunto: Ana Paula Lobo

2.º Adjunto: Isabel Salgado