HABEAS CORPUS
PRISÃO PREVENTIVA
DETENÇÃO FORA DE FLAGRANTE DELITO
BUSCA DOMICILIÁRIA
DETENÇÃO ILEGAL
PRINCÍPIO DA ATUALIDADE
HOMICÍDIO QUALIFICADO
TENTATIVA
INDEFERIMENTO
Sumário


I. O requerimento de habeas corpus é analisado de forma atualista, ou seja, tendo em atenção a situação atual no momento em que é apreciado. Além disso, quando se aprecia a providência de habeas corpus por prisão ilegal não se vai analisar o mérito de eventual decisão impugnada ou erros procedimentais (cometidos pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais) já que esses devem ser apreciados em sede de recurso, mas tão só incumbe decidir se ocorrem quaisquer dos fundamentos indicados no art. 222.º, n.º 2, do CPP.
II. Neste caso nem sequer se coloca a questão do arguido ter sido detido e não ter sido ouvido no prazo de 48 horas e, por esse motivo, dever ser libertado de imediato. Com efeito, como se verifica dos autos o arguido foi detido em 10.04.2024 e foi sujeito a primeiro interrogatório judicial no dia seguinte (11.04.2024), altura em que foi validada a detenção, por ser legal. E, desde 11.04.2024, encontra-se em prisão preventiva, por estar fortemente indiciado pela prática, em coautoria e em concurso efetivo, de 1 (um) crime de homicídio qualificado tentado, p. e p. nos arts. 132.°, n.° 1 e n.° 2, al. h), 131.°, 22.° e 23.°, todos do Cód. Penal e de 1 (um) crime de detenção de arma proibida consumado, p. e p. no artigo 86.°, n.° 1, al. c) ex vi do art. 3.°, n.° 3, al. a), ambos da Lei 5/2006 de 23.02.
III. Perante tal imputação, tendo em atenção o disposto no art. 215.º, n.º 1, a) e n.º 2, do CPP, o prazo máximo da prisão preventiva sem que tenha sido deduzida acusação é de 6 meses, portanto, apenas se extingue em 11.10.2024. Assim, tendo igualmente em atenção o referido princípio da atualidade, neste momento processual (fase de inquérito, ainda sem acusação) é manifesto, por um lado que se mostram cumpridos todos os prazos legais e, por outro lado, não se mostra excedido o prazo de duração máxima da prisão preventiva a que se encontra sujeito, pelo que não se verifica qualquer fundamento para o deferimento do presente pedido de habeas corpus (uma vez que não ocorre qualquer dos pressupostos previstos no art. 222.º, n.º 2, do CPP).
IV. Se o peticionante pretende impugnar a decisão da JI ou arguir eventuais irregularidades que entende terem sido ali cometidas teria de, atempadamente, nomeadamente através do seu Advogado, usar dos mecanismos próprios, junto do tribunal competente, o que não se confunde com a utilização da providencia de habeas corpus, cuja natureza excecional (distinta do recurso) se destina a assegurar o direito à liberdade, neste caso considerando os fundamentos aludidos no art. 222.º, n.º 2, do CPP, que aqui não se verificam.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório

1.O arguido AA, através do seu Mandatário, veio requerer providência de habeas corpus ao Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ainda que invocasse violação do disposto no art. 220.º, n.º 1, al. a), do CPP, no âmbito do inquérito n.º 1024/23.5PFLRS, que corre termos no DIAP de ..., 1ª secção, comarca de Lisboa Norte, nos seguintes termos:

1.º Por despacho proferido nos autos supra, constante de fls..., foi o Arguido sujeito a uma busca domiciliária na residência sita Rua ..., ..., no âmbito do processo n.º 1204/23.5... que corre termos no DIAP de ..., 1.ª Secção.

2.º A referida busca teve busca domiciliária teve início às 07H20 do dia 10 de abril de 2024.

3.º Após o términus o cidadão supra foi conduzido para as instalações da Polícia Judiciária, sitas na ...

4.º Foi levado numa viatura policial acompanhado de três inspectores da Polícia Judiciária

5.º Sem ter sido detido e/ou ser notificado de qualquer despacho de detenção.

6.º O arguido entrou nas instalações da Polícia Judiciária pela garagem do edifício

7.º Não tendo sido identificado na portaria como teria que suceder caso, por mera eventualidade, tivesse comparecido por livre vontade nas instalações da Polícia Judiciária.

8.º No referido edifício existe sistema de vídeo vigilância sendo, portanto, possível, em termos probatórios constatar que o arguido não entrou pela porta de acesso ao público nas instalações da Polícia Judiciária.

9.º Verdade é, porém, que no decurso da tarde do dia 10 de abril de 2024 o cidadão supra foi constituído arguido pela alegada prática de crimes contra a integridade física por factos alegadamente ocorridos em 18 de agosto de 2023.

10.º Tendo optado por não prestar declarações quanto aos factos imputados

11.º Tendo sido lavrado auto de constituição de arguido, cf. documento n.º 1 que ora se junta

12.º Após a prestação de interrogatório o cidadão supra identificado foi informado, pela sra. Inspectora BB, inspetora da Polícia Judiciária, que existiam outras diligências probatórias,

13.º Nomeadamente a diligência de reconhecimento pessoal.

14.º O arguido recusou integrar qualquer linha de reconhecimento para efeitos de reconhecimento pessoal tendo, contudo, manifestado que só o faria após despacho judicial que ordenasse nesse sentido.

15.º Dessa recusa foi lavrado auto tendo, contudo, o mandatário do arguido, manifestado que até às 17H15 do dia 10 de abril de 2024 o então arguido não tinha sido notificado de qualquer despacho de detenção

16.º Tendo o mesmo manifestado à Sra Inspectora BB e na presença do outro arguido, AA, que uma vez que não se encontrava detido pretendia ir para a sua habitação

17.º O que foi impedido pela sra Inspectora BB

18.º Até à presente data o cidadão supra encontra-se privado da liberdade de locomoção, não podendo sair das instalações da Polícia Judiciária

19.º Não existindo qualquer despacho de detenção

20.º Encontrando-se o mesmo, salvo melhor opinião, em detenção ilegal.

21.º Dispõe o artigo 220° do CPP, o seguinte:

"1. Os detidos à ordem de qualquer autoridade podem requerer ao juiz de instrução da área onde se encontrem que ordene a sua imediata apresentação judicial, com algum dos seguintes fundamentos:

a) Estar excedido o prazo para entrega ao poder judicial

b) Manter-se a detenção fora dos locais legalmente permitidos

c) Ter sido a detenção efectuada ou ordenada por entidade incompetente

d) Ser a detenção motivada por facto pelo qual a lei a não permite.

22.º Dispõe o artigo 257.º do C.P.P: Detenção fora de flagrante delito

1. Fora de flagrante delito, a detenção só pode ser efectuada por mandado do juiz ou, nos casos em que for admissível prisão preventiva, do Ministério Público:

a) Quando houver fundadas razões para considerar que o visado se não apresentaria voluntariamente perante autoridade judiciária ou no prazo que lhe fosse fixado

b) Quando se verifique, em concreto, alguma das situações previstas no artigo 204.º, que apenas a detenção permita acautelar, ou

c) Se tal se mostrar imprescindível para a protecção da vítima.

2. As autoridades de polícia criminal podem também ordenar a detenção fora de flagrante delito, por iniciativa própria, quando:

a) Se tratar de caso em que é admissível a prisão preventiva

b) Existirem elementos que tornem fundados o receio de fuga ou de continuação da actividade criminosa

c) Não for possível, dada a situação de urgência e de perigo na demora, esperar pela intervenção da autoridade judiciária.

23.º Dispõe o artigo 258.º do CP.P. Mandados de detenção

1. Os mandados de detenção são passados em triplicado e contêm, sob pena de nulidade:

a) A data de emissão e a assinatura da autoridade judiciária ou de polícia criminal competentes;

b) A identificação da pessoa a deter;

c) A indicação do facto que motivou a detenção e das circunstâncias que legalmente a fundamenta.

2. Em caso de urgência e de perigo na demora é admissível a requisição da detenção por qualquer meio de telecomunicação, seguindo-se-lhe imediatamente confirmação por mandado, nos termos do número anterior.

3. Ao detido é exibido o mandado de detenção e entregue uma das cópias. No caso do número anterior, é-lhe exibida ordem de detenção donde conste a requisição, a indicação da autoridade judiciária ou de polícia criminal que a fez e os demais requisitos no n.º 1 e entregue a respectiva cópia.

24.º Estipula o artigo 259.º do C.P.P. Dever de comunicação

Sempre que qualquer entidade policial proceder a uma detenção, comunica-o de imediato;

a)Ao juiz do qual dimanar o mandado de detenção, se esta tiver a finalidade referida na alínea b) do artigo 254.º

b)Ao Ministério Público, nos casos restantes.

25° No caso em apreço não existe qualquer motivo e/ou fundamento legal que possibilite o órgão de polícia criminal de reter ou impedir a liberdade de locomoção do cidadão AA

26.º Tanto mais que os alegados factos imputados ao arguido ocorreram em 18 de agosto de 2023, há mais de 8 meses

27.º Inexistindo qualquer informação, sequer, de qualquer contacto, desde 18 de agosto de 2023 até à presente data, entre o cidadão AA e o ofendido

28.º O arguido não mudou de residência, está integrado social, familiar e profissionalmente.

29.º Encontrando-se o arguido privado da liberdade de locomoção, não tendo sido, sequer, notificado de qualquer despacho de detenção, mostra-se um atentado ilegítimo à sua liberdade individual, e é ilegal nos termos do Artigo 220.º, n.º 1 alínea a) do Código de processo Penal.

30.º Termos em que se requer o deferimento da providência de Habeas corpus.

Termina concluindo que “em face do que ficou exposto resulta, claramente, que a detenção do Arguido é manifestamente ilegal, pelo que se requer a V. Exa o deferimento do presente pedido de Habeas Corpus, e em consequência que seja ordenada a imediata libertação do Arguido AA.”

2. A Srª. Juiz de Instrução competente prestou a seguinte informação:

Atento o adiantado da hora e não existindo qualquer funcionário na Secção de Processos, procede-se à elaboração do presente despacho em documento word.

O arguido AA, suscitou a fls. 245v e ss., a providência de habeas corpus com base no art. 220.° do C.P.P. (sic).

Em síntese, alegou que em 10 de Abril de 2024, foi efectuada busca domiciliária à sua residência e que após o términus da mesma, foi conduzido às instalações da Policia Judiciária, em Lisboa, numa viatura policial, acompanhado por três inspectores da PJ, sem ter sido detido e/ou notificado de qualquer despacho de detenção, entrando naquelas instalações através da respectiva garagem e não pela portaria.

Mais alegou que no decurso dessa tarde foi constituído arguido pela prática de factos alegadamente ocorridos em 18-8-2023, e que integram a prática de crimes contra a integridade física, tendo optado por não prestar declarações, recusou, a conselho do seu mandatário, sujeitar-se a diligência de reconhecimento pessoal e manifestou vontade de abandonar as instalações policiais, tendo sido impedido de o fazer sem que existisse qualquer despacho de detenção, encontrando-se por isso, em situação de detenção ilegal.

Conclui pugnando pela sua libertação imediata.


*


Cumpre antes de mais esclarecer, que o arguido foi conduzido às instalações da PJ após a realização de busca domiciliária na sua residência, para a sua constituição como arguido, prestação de TIR e realização de diligências de prova (como o reconhecimento presencial, cuja realização o Mandatário do arguido, ilegitimamente inviabilizou), e que durante o referido lapso de tempo não ocorreu nenhuma ilegalidade, muito menos detenção ilegal uma vez que o arguido ainda não tinha sido detido, sendo certo que tal condução às instalações da PJ para constituição de arguido, prestação de TIR e sujeição a diligências probatórias.

Acresce que o OPC em causa não iniciou tais diligências imediatamente após ter conduzido o arguido às suas instalações porque o Mandatário do arguido contactou a PJ e solicitou que as diligências a realizar tivessem início pelas 14 horas, por não ter disponibilidade de aí comparecer antes (cfr. fls. 207), o que lhe foi concedido.

Esclarecido o referido, entendo que nos seus fundamentos de petição da providência extraordinária de habeas corpus que, na verdade e salvo melhor opinião, o arguido alegou que durante o tempo que permaneceu nas instalações da PJ (tempo esse que se prolongou a pedido do seu mandatário), esteve ilegalmente preso porque inexistia qualquer despacho de detenção. Contrariamente ao invocado, o mandado de detenção foi devidamente emanado pelo OPC, certificando-se que a detenção do arguido ocorreu pelas 19:40 horas (cfr. fls. 243v), pelo que não se verificou qualquer situação de prisão ilegal, tendo o arguido sido hoje, dia 11 de Abril de 2024, sujeito a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, e validada a sua detenção.

A nosso ver, em bom rigor, nenhum dos argumentos/fundamentos invocados pelo arguido se aproximou, sequer timidamente, da norma legal por si enunciada como fundamento de prisão ilegal.

Entendemos, portanto, que o arguido não esteve ilegalmente preso, carecendo de fundamento o requerimento de habeas corpus para o Colendo Supremo Tribunal de Justiça, não estando, de todo em todo, preenchido o requisito previsto no art. 220.° do Código de Processo Penal.

No entanto, Vossas Excelências, Colendos Senhores Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, melhor decidirão.

Cumpra o disposto no art. 223°, n° l do Código de Processo Penal, com o envio imediato da petição de Habeas Corpus e do presente despacho, pelo meio mais célere, com a informação que os autos se encontram sujeitos a segredo de justiça e, oportunamente, com a maior brevidade possível, com certidão de fls. 199 a 259v, do despacho antecedente, bem como do presente despacho.


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3. Tendo entrado a petição neste Supremo Tribunal, após distribuição, teve lugar a audiência aludida no art. 223.º, n.º 3, do CPP, pelo que cumpre conhecer e decidir.

II – Fundamentação

4. Factos

Extrai-se dos elementos constantes da petição, da informação prestada pela Srª. Juiz de Instrução, bem como da certidão junta aos autos e da consulta do Citius, o seguinte com interesse para a presente decisão:

- O arguido AA foi conduzido às instalações da PJ após a realização de busca domiciliária na sua residência em 10.04.2024, para a sua constituição como arguido, prestação de TIR, interrogatório e realização de diligências de prova (como o reconhecimento presencial, o qual não se chegou a realizar por o arguido se ter recusado a integrar a linha de reconhecimento, o que terminou pelas 17h18, após o que foi ouvido o ofendido entre as 18h00 e as 18h40);

- tais diligências não se iniciaram imediatamente após o arguido ser conduzido às instalações da PJ para a sua realização porque o Mandatário do arguido contactou a PJ, conforme consta da cota de fls. 207, pelas 12h13m, solicitando que as diligências que ali viessem a ser realizadas tivessem início pelas 14 horas, por não ter disponibilidade de aí comparecer antes, o que lhe foi concedido;

- realizadas as diligências necessárias supra referidas, após receber a respetiva informação, a autoridade de polícia criminal competente ordenou a passagem dos competentes mandados de detenção do arguido, os quais foram emitidos pelas 19h00, ao abrigo do disposto no art. 27.°, n.° 3, alínea b), da CRP, art. 257.°, n.° 2, alíneas a), b) e c), com referência aos arts. 193.°, 202.°, n.° 1, al. a), 204,°, art. 1.° al. d) do CPP, e art. 8.° n.° 1, al. h), do DL 137/2019 de 13 de setembro (LOPJ), certificando-se a detenção do mesmo pelas 19h40 (conforme fls. 243v);

- a referida detenção fora de flagrante delito foi comunicada pelo OPC ao Ministério Público no mesmo dia 10.04.2024 pelas 19H58, com a indicação de que o detido seria presente no dia seguinte pelas 10h junto do vosso tribunal;

- em 11.04.2024 o arguido foi sujeito a primeiro interrogatório judicial, no Juízo de Instrução Criminal de ..., Juiz 2, comarca de Lisboa Norte (iniciando-se a diligência pelas 16h50 e terminando pelas 17h58), tendo sido proferido o despacho judicial que dele consta, no qual, além do mais, foi validada a detenção (porque efetuada ao abrigo do disposto nos arts. 254.°, n.° 1, alínea a), 257.°, n. 2°, als. a), b) e c) todos do Código de Processo Penal) e foi determinada a sua prisão preventiva (de harmonia com as disposições conjugadas dos artigos 191.°, 193.°, 196.°, 202.°, n.° 1, alíneas a) e b) e 204.°, alíneas b) e c) todos do Cód. Proc. Penal) por estar fortemente indiciado pela prática, em coautoria e em concurso efetivo, de 1 (um) crime de homicídio qualificado tentado, p. e p. nos arts. 132.°, n.° 1 e n.° 2, al. h), 131.°, 22.° e 23.°, todos do Cód. Penal e de 1 (um) crime de detenção de arma proibida consumado, p. e p. no artigo 86.°, n.° 1, al. c) ex vi do art. 3.°, n.° 3, al. a), ambos da Lei 5/2006 de 23.02;

- o arguido encontra-se atualmente em situação de prisão preventiva.

5.Direito

Invoca o peticionante/arguido, em resumo, que esteve detido ilegalmente e privado da sua liberdade de locomoção, não tendo sido notificado de qualquer despacho de detenção desde que foi levado para as instalações da PJ e não o deixaram de lá sair, o que tudo constituiu um atentado ilegítimo à sua liberdade individual, sendo ilegal a atuação do OPC, estando excedido o prazo de entrega ao poder judicial, pugnando pela sua imediata libertação, entendendo a Srª. Juiz de Instrução que o mesmo invocava estar ilegalmente preso e, por isso, apresentou o pedido de habeas corpus ao Supremo Tribunal de Justiça, ainda que alegasse violação do disposto no art. 220.º, n.º 1, al. a), do CPP.

Pois bem.

Resulta da alínea a) do n.º 1 do art. 220.º (habeas corpus em virtude de detenção ilegal), do CPP, que “Os detidos à ordem de qualquer autoridade podem requerer ao juiz de instrução da área onde se encontrarem que ordene a sua imediata apresentação judicial”, quando estiver “excedido o prazo para entrega ao poder judicial”.

Este fundamento visa precisamente assegurar o atempado controlo judicial da detenção, para evitar a privação ilegal da liberdade de qualquer pessoa.

O requerimento de habeas corpus é, em qualquer caso, analisado de forma atualista, ou seja, tendo em atenção a situação atual no momento em que é apreciado.

Daí que se compreenda que, no momento em que a Senhora Juiz de Instrução analisou o requerimento de habeas corpus apresentado pelo arguido dirigido ao STJ (o que sucedeu quando já tinha procedido ao 1.º interrogatório judicial de arguido detido e já lhe havia aplicado a medida de coação de prisão preventiva), o tivesse interpretado tendo em atenção a situação no momento em que o estava a apreciar e, por isso, tivesse referido, além do mais que resultava dos autos, designadamente, que o arguido havia sido detido em execução do mandado de detenção devidamente emanado pelo OPC (conforme certificado em 10.04.2024, pelas 19h40), tendo sido hoje 11.04.2024 sujeito a primeiro interrogatório judicial como arguido detido e validada a sua detenção.

E, por isso, perante tal decisão, apenas podia deduzir que o arguido pretendia com tal habeas corpus invocar também a sua prisão ilegal, ainda que carecesse de fundamento o seu requerimento.

Ora, como sabido, dispõe o artigo 222.º (habeas corpus em virtude de prisão ilegal) do CPP:

1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

São taxativos os pressupostos do habeas corpus (que também tem assento no art. 31.º da CRP), o qual não se confunde com o recurso, nem com os fundamentos deste.

Aliás, como diz Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, Lisboa: Editorial Verbo, 1993, p. 260, o habeas corpus “não é um recurso, é uma providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade”.

Ou seja, esta providência, que inclusivamente pode ser interposta por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos (art. 31.º, n.º 2, da CRP), tem apenas por finalidade libertar quem está preso ou detido ilegalmente e, por isso, é uma medida excecional e muito célere.

De resto, quando se aprecia a providência de habeas corpus por prisão ilegal não se vai analisar o mérito de eventual decisão impugnada ou erros procedimentais (cometidos pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais) já que esses devem ser apreciados em sede de recurso, mas tão só incumbe decidir se ocorrem quaisquer dos fundamentos indicados no art. 222.º, n.º 2, do CPP.

Neste caso nem sequer se coloca a questão do arguido ter sido detido e não ter sido ouvido no prazo de 48 horas e, por esse motivo, dever ser libertado de imediato.

Como se verifica dos autos o arguido foi detido em 10.04.2024 e foi sujeito a primeiro interrogatório judicial no dia seguinte (11.04.2024), altura em que, como acima se referiu, foi validada a detenção, por ser legal.

Para além disso, desde 11.04.2024, encontra-se em prisão preventiva, por estar fortemente indiciado pela prática, em coautoria e em concurso efetivo, de 1 (um) crime de homicídio qualificado tentado, p. e p. nos arts. 132.°, n.° 1 e n.° 2, al. h), 131.°, 22.° e 23.°, todos do Cód. Penal e de 1 (um) crime de detenção de arma proibida consumado, p. e p. no artigo 86.°, n.° 1, al. c) ex vi do art. 3.°, n.° 3, al. a), ambos da Lei 5/2006 de 23.02.

Perante tal imputação, tendo em atenção o disposto no art. 215.º, n.º 1, a) e n.º 2, do CPP, o prazo máximo da prisão preventiva sem que tenha sido deduzida acusação é de 6 meses, portanto, apenas se extingue em 11.10.2024.

Assim, tendo igualmente em atenção o referido princípio da atualidade, neste momento processual (fase de inquérito, ainda sem acusação) é manifesto, por um lado que se mostram cumpridos todos os prazos legais e, por outro lado, não se mostra excedido o prazo de duração máxima da prisão preventiva a que se encontra sujeito, pelo que não se verifica qualquer fundamento para o deferimento do presente pedido de habeas corpus (não ocorrendo qualquer dos pressupostos previstos no art. 222.º, n.º 2, do CPP).

Se o peticionante pretende impugnar a decisão da JI ou arguir eventuais irregularidades que entende terem sido ali cometidas terá de, atempadamente, nomeadamente através do seu Advogado, usar dos mecanismos próprios, junto do tribunal competente, o que não se confunde com a utilização da providencia de habeas corpus, cuja natureza excecional (distinta do recurso) se destina a assegurar o direito à liberdade, considerando aqui os fundamentos aludidos no art. 222.º, n.º 2, do CPP.

Por isso, o requerente/arguido não pode utilizar indevidamente esta providência de habeas corpus (que não é um recurso), nem pretender que através dele o STJ se pronuncie sobre matérias que extravasa os seus fundamentos, que são taxativos.

Conclui-se, pois, pelo indeferimento do presente pedido de habeas corpus, o qual é manifestamente infundado, pelos motivos supra expostos.

III – Decisão

Pelo exposto, acorda-se em indeferir a providência de habeas corpus formulada pelo requerente AA.

Custas pelo peticionante/requerente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC´s, a que acresce a condenação no pagamento da soma de 6 UC´s, nos termos do art. 223.º, n.º 6, do CPP.


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Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo depois assinado.

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Supremo Tribunal de Justiça, 24.04.2024

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)

Pedro Manuel Branquinho Dias (Juiz Conselheiro Adjunto)

Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro Presidente da 3ª Secção)