PETIÇÃO DE HERANÇA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
CONHECIMENTO OFICIOSO
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
USUCAPIÃO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Sumário


I - O princípio do contraditório impõe que, antes de ser proferida a decisão final, seja facultada às partes a discussão dos fundamentos de direito em que ela vá assentar, sendo decorrência do mesmo a proibição da decisão-surpresa, ou seja, a prolação de decisão baseada em fundamento não previamente considerado pelas partes, ou que, embora pudesse ser previsível, não tenha sido configurado pela parte, sem que estas tivessem obrigação de tal prever.
II - A proibição da decisão-surpresa reporta-se, principalmente, às questões suscitadas oficiosamente pelo tribunal, o que quer dizer que o juiz que pretenda basear a sua decisão em questões não suscitadas pelas partes, mas oficiosamente levantadas por si, “ex novo”, seja através de conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve, previamente, convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição.
III - Só estando dispensado de o fazer, conforme dispõe o nº 3 do art. 3º do CPC, em casos de manifesta desnecessidade.
IV - Tendo o autor instaurado acção de petição de herança, pretendendo fazer valer a presunção de propriedade do imóvel decorrente do registo predial do mesmo (art. 7º do CRP), e invocando a Ré excepção de usucapião, entendendo o juiz que, ante os factos apurados, poderá decidir a causa na prespectiva da posse da herança aberta por óbito da mãe da Ré (art. 1268º nº 1 do CC), impõe-se que o juiz ouça previamente as partes em relação a este nova configuração jurídica da defesa, sob pena de, não fazendo, proferir decisão surpresa, o que constitui nulidade, em si susceptível de influir no exame e decisão da causa (art. 195º do CPC).
V - Apesar de a nulidade em causa, de não audição prévia das partes (art. 3º nº 3 do CPC) em relação a tal nova configuração jurídica, não ter sido invocada perante o tribunal que a cometeu (nos termos do art. 199º nº 1 do CPC), não fica precludido o direito de a mesma ser invocada no recurso, por via da nulidade da sentença, por excesso de pronúncia (art. 615º nº 1 al. d) do CPC, por o tribunal ter conhecido de objecto diverso do pedido e não configurado pelas partes.
VI - Repercutindo-se a nulidade sob escrutínio na sentença e nas instâncias recursivas, em termos (também) subjectivos e fundamentalmente substantivos, não é possível afirmar-se, com plena inteireza, que a Relação, no momento em que decretou a nulidade em causa, se encontrava já na plena disponibilidade dos elementos de facto necessários à prolação da decisão, nos termos do art. 665º nº 1 do CPC.

Texto Integral

AA instaurou os presentes autos de acção declarativa sob a forma de processo comum contra BB, pedindo que seja a Ré condenada:

a) a reconhecer no Autor a qualidade de herdeiro de CC; e

b) a restituir ao Autor os bens da herança que vem usando e que correspondem a parte do prédio urbano sito na Estrada da ..., na ..., ..., e a parcela com a área aproximada de 80 m2 do prédio rústico sito na ..., denominado “...”.

Para tanto e em síntese, alegou o Autor que:

- O Autor é herdeiro e cabeça de casal da herança aberta por óbito de sua mãe, CC, falecida em ...-...-1989, herança da qual fazem parte o prédio urbano sito na Estrada da ..., descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º 510 da freguesia da ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 198 da mesma freguesia, e o prédio rústico sito em ..., denominado “...”, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º 501 da freguesia da ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 23, Secção A, da mesma freguesia;

- Está inscrita no registo predial a aquisição do direito de propriedade sobre esses prédios a favor dos herdeiros de CC, os quais, desde 1989, sempre atuaram de forma correspondente ao exercício de propriedade sobre os mesmos, tendo sucedido na posse dos seus antecessores;

- A Ré vive e ocupa ilicitamente uma casa que constitui parte do referido prédio urbano, tendo implantado uma vedação demarcando uma parcela com cerca de 80 m2 do aludido prédio rústico.

Citada, a Ré apresentou Contestação (aperfeiçoada depois conforme requerimento apresentado a 02-12-2022) em que pugnou pela improcedência da ação, defendendo-se por impugnação e por exceção (embora sem especificar separadamente os factos respetivos), contendo, além da impugnação de factos alegados na PI e documentos juntos com a mesmas, as seguintes alegações de facto (e nenhumas alegações de direito):

- O imóvel onde a Ré reside desde que nasceu fica situado no Pátio ..., ..., ..., fazendo parte do núcleo urbano de génese muito antiga, “fora dos limites da propriedade do Autor”, não está implantado no prédio rústico identificado na PI e não faz parte do prédio urbano aí identificado, estando inscrito na matriz sob o artigo 2054 da freguesia da ...;

- Trata-se da casa que foi construída de raiz pela mãe da Ré há mais de 60 anos, tendo a Ré, tal como a sua mãe já antes tinha, a posse do imóvel de forma pública, pacífica e de boa-fé;

- O quintal encontra-se vedado com uma rede com a altura de cerca de 1,20m, há cerca de 25 anos, a qual é visível da rua, existindo antes disso uma vedação em chapa;

- A Ré sempre residiu no imóvel, bem como a sua mãe já residia, à vista de toda a gente e sem qualquer oposição, vindo a fazer, ao longo dos anos, obras estruturais e de conservação, designadamente a barraca que existia - construída com chapas de metal e madeira - foi melhorada pela Ré, que substituiu as chapas exteriores por tijolo e reboco, substituiu o telhado, fez a pintura exterior e nova vedação do quintal, à vista de todos e sem qualquer oposição do Autor ou de que quem quer que seja, sempre com a convicção de o imóvel ser seu;

- A Ré paga IMI do imóvel e tudo o que diz respeito ao mesmo, tratando-o, ao longo dos anos em que aí vive, como se fosse seu;

- Nunca à Ré foi pedida qualquer renda, sabendo o Autor, desde há mais de 60 anos, que a Ré reside no imóvel e que o trata como se fosse seu, nunca se opondo a tanto, nem a tendo interpelado para o que quer que fosse, ao contrário do que sucede nos imóveis que são seus, em que o Autor cobra rendas e faz obras de conservação;

- Uma vez que a Ré tem a posse pública (à vista de toda a gente e sem qualquer oposição), pacífica (não esbulhou ninguém, o imóvel foi construído pela sua mãe e ela tem feito obras ao longo dos anos sem qualquer oposição verbal ou física de quem quer que seja) e de boa-fé (sempre com a convicção que o imóvel é seu e sem estar a lesar o direito de quem quer que seja, por jamais ter havido qualquer oposição) do prédio objeto dos presentes autos e que habita há mais de 60 anos, não “pode ser reconhecida ao A. a propriedade do prédio da R.”.

O Autor, notificado para se pronunciar sobre a matéria de exceção (cf. despacho de 18-05-2022), apresentou articulado de Resposta em 02-06-2022, em que pugnou pela improcedência da exceção, alegando designadamente que:

- Tanto a Ré como a sua mãe sempre souberam que o terreno onde fora erguida a casa por elas habitada pertencia a CC, que o herdara dos seus ascendentes, integrando, após o seu falecimento, a respetiva herança;

- Tanto a Ré como todas as demais pessoas que residem e residiam no local sempre tiveram consciência de que todo o terreno circundante das edificações em causa fazia parte da exploração agrícola pertencente à família do Autor;

- A Ré e a sua mãe sempre souberam que o terreno em que a casa estava implantada não lhes pertencia e nunca agiram com a intenção de procederem e serem reconhecidas como donas do terreno ou da casa;

- O facto de a mãe da Ré e, posteriormente, a própria Ré, terem permanecido no local deveu-se exclusivamente à sua qualidade de descendentes de antigos trabalhadores da casa agrícola da família do Autor e à tolerância decorrente dessa qualidade e da cessação da atividade de tal casa, determinada pelas alterações sociais e económicas ocorridas na zona, ou seja, devido a uma permissão benevolente dos donos do terreno;

- Nunca a Ré nem a sua mãe exerceram sobre o imóvel uma posse em nome próprio, nem o fizeram com a intenção de agir como donas do mesmo, visto saberem que o mesmo não lhes pertencia;

- A Ré nunca teve a posse do imóvel e, ainda que a sua detenção fosse configurável como posse, nunca teria sido titulada, nem pública, mas oculta e de má fé, não podendo ter adquirido por usucapião o imóvel dos autos.

Realizou-se audiência prévia, na qual foi proferido despacho convidando a Ré a “Concretizar os atos de posse sobre a casa e parcela de terreno reivindicadas”, bem como proferido despacho de identificação do objeto do litígio (com o seguinte teor: 1 – Se os bens revindicados pertenciam à herança deixada por CC e a Ré os ocupa sem título justificativo; 2 – Se se verifica a aquisição por usucapião daqueles bens pela Ré) e enunciação dos temas da prova (com o seguinte teor: A – Se a edificação e parcela de terreno revindicadas integram os prédios identificados no art.º 3º da PI; B – Se a Ré atua como proprietária fosse, há mais de 60 anos, na casa e parcelas de terreno revindicadas, à vista de todos, sem oposição e na convicção de não estar a lesar o direito de terceiros).

Foi realizada audiência de discussão, vindo a ser proferida sentença, que julgou a acção improcedente, absolvendo a Ré do pedido.

Inconformado, o Autor veio interpor recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões das suas alegações:

1.ª Por força dos depoimentos das testemunhas DD, EE e FF, nas passagens indicadas na Secção II das presentes alegações, deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto, aditando-se um número 33 à relação dos factos provados, com o seguinte conteúdo:

Os factos descritos nos n.ºs 7, 9, 11, 12, 13, 15 e 17 ocorreram sem que a R., a sua Mãe e o seu Avô praticassem tais actos com a intenção de agir como donos do terreno, mas antes aproveitando-se da tolerância dos donos do mesmo terreno.

2.ª A procedência da conclusão anterior determina que a R. e os seus antecessores sejam considerados meros detentores ou possuidores precários da parte dos imóveis que a R. vem usando, nos termos do art. 1253.º a) e b) do Código Civil, pelo que, não tendo sido provados factos que integrem a inversão do título da posse, prevista no art. 1265.º do mesmo Código, deve a douta sentença recorrida ser revogada e proferida decisão que, concedendo provimento à apelação, julgue a acção procedente por provada.

3.ª A douta sentença recorrida conheceu de uma questão não compreendida nem no objecto do litígio nem nos temas da prova, pelo que violou o disposto nos arts. 5.º e 573.º n.º 1 do Código de Processo Civil, o que determina a sua nulidade, nos termos do art. 615.º n.º 1 d) do Código de Processo Civil.

4.ª A procedência da conclusão antecedente e a declaração de nulidade da sentença determinam que o Tribunal de recurso conheça do objecto da apelação, nos termos do art. 665.º n.º 1 do Código de Processo Civil, julgando a acção procedente, por provada.

5.ª Para obstar à procedência da acção não pode ser atendido um direito que não foi exercido no processo pelo respectivo titular, nem em nome deste, acrescendo que a defesa deduzida no processo é incompatível com a existência desse direito, porque consiste em invocar a sua titularidade em pessoa diversa, pelo que, ao fazer prevalecer a posse da herança aberta por óbito de Mãe da R. sobre o direito do A., a douta sentença recorrida violou o disposto no art. 2075.º do Código Civil.

6.ª Não pode ser considerada para efeitos da aplicação do disposto no art. 1268.º do Código Civil, para prevalecer contra registo anterior ao início da posse, aquela que já incorpora o pressuposto do decurso do prazo para a verificação da usucapião, pelo que a douta sentença recorrida, ao julgar a acção improcedente, por prevalência da posse da herança aberta por óbito da Mãe da R. sobre o direito do A., violou o preceito legal acima citado e ainda o disposto nos arts. 1292.º e 303.º do mesmo Código.

7.ª Ainda que não procedam as conclusões anteriores, os factos dados como provados sob os n.ºs 5, 6, 11, 19 e 31, quando correctamente interpretados e conjugados com a respectiva fundamentação, designadamente a relativa ao n.º 31, impõem a conclusão de que o Avô da R. não construiu a casa a que se refere o n.º 7 com a intenção de agir como dono do imóvel, e a Mãe da R., bem como esta última, nunca fizeram uso do mesmo com essa intenção, antes se aproveitaram da tolerância dos donos.

8.ª A procedência da conclusão antecedente determina que a R. e os seus antecessores sejam considerados meros detentores ou possuidores precários da parte dos imóveis que a R. vem usando, nos termos do art. 1253.º a) e b) do Código Civil, pelo que, não tendo sido provados factos que integrem a inversão do título da posse, prevista no art. 1265.º do mesmo Código, não existe posse que possa prevalecer sobre o direito do A., devendo a douta sentença recorrida ser revogada e proferida decisão que, concedendo provimento à apelação, julgue a acção procedente por provada.

9.ª Por conseguinte, a douta sentença recorrida fez errada interpretação e aplicação dos preceitos legais indicados nas conclusões anteriores, pelo que deve ser concedido provimento à apelação, revogando-se a douta sentença recorrida e julgando-se a acção procedente por provada.

Foi apresentada alegação de resposta pela Ré recorrida, pugnando pela improcedência da apelação e manutenção do julgado.

Foi proferido Acórdão que teve o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a sentença recorrida, que ora se substitui, decidindo julgar procedente a ação, condenando a Ré BB a:

a) a reconhecer no Autor AA a qualidade de herdeiro de CC; e

b) a restituir ao Autor os bens da herança que vem usando e que correspondem a parte do prédio urbano sito na Estrada da ..., ..., ..., descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º 510 da freguesia da ..., e a parcela com a área aproximada de 80 m2 do prédio rústico sito na ..., descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º 501 da freguesia da ... e denominado “...”.

…”.

REVISTA

Inconformada com tal decisão, dela veio a Ré interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, oferecendo as suas alegações, que culminam com as seguintes conclusões:

1ª Com o devido respeito pela opinião em contrário, não pode a Recorrente concordar com o douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação. Pois,

2ª A Recorrente alegou e provou a exceção por si alegada da sua aquisição por usucapião. Pois,

3ª Dos factos provados na sentença proferida em 1ª instância destaca-se:

- “Nas traseiras dessa casa, a mãe da R., GG, implantou uma vedação demarcando uma parcela de terreno com a área aproximada de 80 M2, de que fazia uso, no prédio rústico indicado em 4, desde data não concretamente apurada, mas anterior a 1978.”

– “Em data não concretamente apurada, mas há pelo menos 60 anos, a mãe da R., GG, passou a residir em tal casa, o que fez até ao seu falecimento, em 1991.”

– “Tendo realizado obras de melhoramento e ampliação.”

– “Tudo à vista de todos e sem qualquer oposição de terceiros.” – “A R., enquanto criança e adolescente, viveu com a sua mãe e irmãos nessa casa.”

– “Que deixou no período entre 1973 e 1979, data em que voltou a habitá-la.”

– “Após o falecimento da mãe, em1991, a R., continuou a habitar a mesma casa, com os filhos e uma irmã.”

– “Sem pagamento de qualquer contrapartida monetária e à vista de todos.”

– “A R. nunca foi interpelada por ninguém com a alegação de que a sua casa estava implantada em terreno alheio.”

– “O A. nunca interpelou a R. para o pagamento de qualquer renda.”

– “Em data não concretamente apurada, mas posterior a 1991, a R. realizou obras na casa, nomeadamente substituição do telhado, pintura exterior e substituição das chapas exteriores por tijolo e reboco, sem que o A. ou qualquer outra pessoa se opusesse.”

– “Mais procedeu à substituição da vedação do quintal, há cerca de 25 anos, a qual é visível da rua.”

– “Nunca lhe foi dito que não podia vedar o seu quintal, por não ser seu.”

– “Nos outros imóveis implantados no prédio urbano, o A., tal como os demais herdeiros e anteriormente a sua mãe, cobra rendas e faz obras de conservação, mais pagando os impostos incidentes sobre os ditos imóveis.”

– “A R. paga IMI do imóvel indicado.”

4ª Da análise dos factos provados resulta, que a R. adquiriu por usucapião os imóveis onde reside e respetivo quintal. Porquanto,

5ª Tem a posse civil, efetiva, pública, pacífica e de boa fé.

6ª A reunião destas caraterísticas da posse verificam-se pelo menos, para a R. desde 1991, altura em que o seu prazo para a aquisição por usucapião começou a correr. Pois,

7ª A sua mãe faleceu em 1991.

8ª Nunca a R. ou a sua mãe foram interpeladas por quem quer que fosse, alegando que os imóveis não eram delas e como tal tinham que pagar uma renda ou a sair.

9ª A mãe da R. quando faleceu já tinha adquirido por usucapião o imóvel em causa há muitos anos.

10ª A R. após o falecimento da sua mãe, continuou a residir no imóvel e a comportar-se em relação ao mesmo como sua proprietária à vista de todos, de forma pacífica e de boa fé, tendo passado mais de 20 anos sem que fosse interpelada por quem quer que fosse sobre o imóvel em causa.

11ª Resulta do senso comum, que um proprietário de um imóvel não permite que outros residam no mesmo sem uma contrapartida (renda), que se arroguem seus proprietários e façam obras nos mesmos como tal sem o seu consentimento.

12ª Não se pode concluir que a R. reside no seu imóvel por um ato de mera tolerância do A., simplesmente porque a existir tolerância é durante um tempo, não uma vida inteira da mãe da R. e mais de 30 anos de vida da R. após o falecimento da sua mãe, pessoa que o A. diz nem sequer conhecer.

13ª Na verdade a mãe da R. sempre transmitiu a esta e aos netos como aquela sendo “a casa dela”.

14ª–Se assim não fosse, não se compreende como após a morte do Sr. Pessoa, os seus herdeiros não tenham interpelado a R. ou a mãe desta para pôr termo à situação.

15ª Tal nunca aconteceu, o que à luz do homem médio é estranho e desprovido de qualquer razão. Por isso,

16ª Mesmo que a mãe da R. admitisse no início que o terreno onde tinha sido implantada a sua casa não era seu, tal dissipou-se após a morte do Sr. Pessoa, uma vez que nenhum dos seus herdeiros a interpelou para o que quer que fosse relativamente ao mesmo. Pois,

17ª Nenhum ato de tolerância é ad eternum no mundo e a consideração que o Sr. Pessoa pudesse ter pelo avô da R. terminou ali não se transmitindo aos herdeiros.

18ª A R. face ao que a sua mãe sempre lhe disse e ao comportamento que sempre teve perante os imóveis em causa, quando a mesma faleceu tomou-os como sendo sua proprietária, inscrevendo-o na matriz.

19ª Fez obras à vista de todos, ali continuando a residir de forma pacifica e de boa fé, pagando os impostos, requerendo puxada de luz e contador de àgua, fez a ligação do seu esgoto ao coletor publico, requereu telefone, TV Cabo e Internet.

20ª Só o pôde fazer porque era proprietária do imóvel. Assim,

21ª – Face aos factos dados como provados, impõe-se, com o devido respeito pela opinião em contrário, que não podia ser aditado o ponto 31-A. Pois,

22ª Se o Sr. Pessoa dizia que o quintal era do avô da R. e este como agradecimento lhe dava um borrego pelo Natal, tal não quer dizer, como se está a presumir que o avô da R., a mãe desta e esta praticaram atos sobre os imóveis sem a intenção de agirem como donos dos mesmos.

23ª Na verdade todos praticaram atos sobre os imóveis como seus proprietários fossem, uma vez que foi dado ao avô da R. e como era um prédio rústico não era permitido fazer o destaque de qualquer área e como tal não se podia fazer qualquer escritura. Deste modo,

24ª Com o devido respeito, mal andou o Venerando Tribunal da Relação ao aditar o ponto 31 A, pelo que deve o mesmo ser retirado, uma vez que não se fez qualquer prova de tal facto. Por outro lado,

25ª Tendo a posse dos imóveis pela mãe da A. se iniciado há mais de 60 anos e tendo continuado nos seus sucessores, e tendo o registo dos imóveis na Conservatória, a favor dos herdeiros de CC, data muito posterior temos que concluir, por aplicação da regra prevista no art. 1268º nº 1 do CC que a presunção da titularidade do direito de propriedade a favor da mãe da R. e da herança aberta por sua morte, a partir de 1991, se sobrepõe à presunção de titularidade da propriedade a favor do A. e restantes herdeiros de CC.

26ª Como bem fundamenta o Tribunal de 1ª Instância, não foi feita qualquer prova de registo anterior a favor do A. e outros herdeiros, nem trato sucessivo anterior, nem tal foi alegado, pelo que, não foi ilidida a presunção do direito de propriedade a favor da herança da mãe da R.. Deste modo,

27ª Presume a lei que tal direito de propriedade passa para os herdeiros do falecido.

28ª Quanto à invocada nulidade da sentença, a qual entendeu o Venerando Tribunal da Relação julgar verificada a mesma, não se pode concordar com a mesma. No entanto,

29ª A R. alegou a aquisição por usucapião na contestação e invocou que a mesma era de boa fé, pacífica, pública e sem oposição de terceiros há mais de 20 anos.

30ª Que a R., bem como a sua mãe sempre atuaram relativamente aos imóveis em causa como suas proprietárias, alegando matéria de facto que comprovava tal atuação e que pretendia provar em sede de audiência, pelo que, não tinha que fazer alegações de direito.

31ª Com o devido respeito pela opinião em contrário, se se entende que a douta sentença proferida em 1ª instância é nula não podia apreciar-se o mérito da causa. Pois,

32ª Deve ser concedida às partes a possibilidade de produzirem alegações quando o juiz se proponha decidir o mérito da causa num enquadramento jurídico diverso do assumido e discutido pelas partes nos articulados, uma vez que está em causa o respeito pelo princípio do contraditório, garantindo às partes pronúncia sobre as questões que o juiz irá decidir, de modo a evitar decisões-surpresa (art.º 3º, nº 3)”.

33ª Tendo o tribunal recorrido optado por proferir a decisão de mérito em causa nos autos sem essa discussão de facto e de direito e sem ter consultado previamente as partes quanto a essa possibilidade, estamos perante uma nulidade processual.

34ª Nos termos do art.º 195º, nº 1 do CPC, “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”, sendo que o conhecimento do mérito da causa sem que seja efectuada a discussão oral do mesmo se pode enquadrar na situação prevista na parte final deste preceito. Assim,

35ª E a existir, o que só por mera hipótese se admite, assume-se como uma nulidade da própria sentença proferida e, como tal, enquadrável no art.º 615º do CPC.

36ª Neste sentido o Ac. STJ de 23-06-2016, proc. 1937/15.8T8BCL.S.1, relator Abrantes Geraldes, no qual se pode ler: “(…) Em tais circunstâncias, depara-se-nos uma nulidade processual traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve, mas que se comunica ao despacho saneador, de modo que a reacção da parte vencida passa pela interposição de recurso da decisão proferida em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art.º 615º, nº 1, al. d), in fine, do CPC”.

37ª “O facto de o despacho recorrido ter sido proferido sem a consulta das partes e sem a discussão oral dos factos e direito aplicáveis aos autos, leva a que a sentença constante de tal despacho peque por excesso de pronúncia, nos termos do art.º 615º, nº 1, al. d) do CPC e, seja, por conseguinte, nula, não sendo possível a sua sanação.” Deste modo,

38ª E a entender-se que a sentença é nula por excesso de pronúncia deve determinar-se a remessa do processo ao tribunal a quo, para que aí seja facultada às partes a discussão de facto e de direito do mérito da causa, nos termos e para os efeitos do art.º 591º, nº 1, al. b) do CPC e sejam, subsequentemente, seguidos os trâmites processuais decorrentes. Assim,

39ª – Face à invocada nulidade, a verificar-se, o que só por mera hipótese se admite, devem julgar-se prejudicadas as demais questões suscitadas em sede de alegações de recurso da A. para o Venerando Tribunal da Relação, devendo os autos baixar à 1ª instância para aí prosseguirem seus termos.”

O Autor recorrido veio responder concluindo que “O recurso, com o objecto circunscrito ao conteúdo das conclusões 25.ª a 39.ª das alegações da Recorrente, por ser inadmissível quanto às restantes, deve ser julgado improcedente, negando-se a revista e mantendo-se o douto acórdão recorrido.”

Corridos os vistos, cumpre decidir, tendo presente que são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o objeto do recurso, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, com excepção daquelas que são de conhecimento oficioso (cfr. art. 635º nº 4, 639º nº 1, 608º nº 2, ex vi art. 679º, todos do CPC).

OBJECTO DO RECURSO:

Em face das conclusões das alegações da Recorrente, haverá que apreciar as seguintes questões:

I – Da nulidade por excesso de pronúncia invocada, nos termos do art.º 615º, nº 1, al. d) do CPC;

II – Do mau uso pela Relação dos poderes de reapreciação dos meios de prova e do julgamento efectuado em relação ao ponto 31-A aditado à matéria de facto provada;

III – Da aquisição pela recorrente por usucapião.

I – Da nulidade por excesso de pronúncia invocada, nos termos do art.º 615º, nº 1, al. d) do CPC.

Invoca a recorrente Ré, no tocante à nulidade da sentença, que o Acórdão recorrido considerou verificada (mas julgando do mérito, nos termos do art. 665º nº 1 do CPC), que a mesma não se verificou, e que, a entender-se verificada, não deveria a Reação ter conhecido do mérito da causa, mas sim ordenado a baixa dos autos à 1ª instância, para aí ser cumprido o contraditório, conferindo às partes a possibilidade de produzirem alegações de facto e de direito sobre o mérito da causa, nos termos e para os efeitos do art.º 591º, nº 1, al. b) do CPC e sejam, subsequentemente, seguidos os trâmites processuais decorrentes, ou seja facultar às partes a sua posição em reação ao novo enquadramento jurídico elaborado para a causa pelo juiz, “diverso do assumido e discutido pelas partes nos articulados”.

Vejamos, sucintamente o que se passou no processo, em termos meramente sumários:

O Autor AA, na qualidade de herdeiro de CC instaurou a presente acção de petição de herança contra a Ré BB, invocando que a parcela de terreno que esta ocupa e onde tem implantada uma pequena habitação que outrora fora um barracão agrícola, pertence à herança que o mesmo representa, para tanto invocando o registo de propriedade e a presunção de propriedade do mesmo resultante.

Pede que seja reconhecida a sua qualidade de herdeiro e que a Ré seja condenada a restituir-lhe os bens da herança que vem usando e que correspondem a parte do prédio urbano sito na Estrada da ..., na ..., ..., e a parcela com a área aproximada de 80 m2 do prédio rústico sito na ..., denominado “...”.

A Ré contesta, dizendo que está na posse do dito terreno e dita casa de habitação desde há mais de 60 anos, porquanto, tal como ela, já o avô e a mãe lidaram e usufruíram de tal propriedade como coisa a si pertencente, tendo acedido na posse dos seus ascendentes e assim adquirido a propriedade por usucapião.

Usucapião que invoca, mas não deduzindo qualquer pedido reconvencional, em sentido contrário do formulado pelo autor.

A acção seguiu seus termos, com a fixação do seu objecto do litígio e dos temas de prova, realizou-se a audiência de julgamento e surgiu a sentença.

Nela, o Senhor Juiz, depois de fixar os factos provados, concluiu:

- Por um lado que, em face dos factos apurados, a propriedade dos prédios em questão, “à luz do disposto no art.º 7.º do Código do Registo Predial, se presume da herança aberta por morte de CC, uma vez que os titulares aí inscritos são os seus herdeiros, em comum e sem determinação de parte”.

- Por outro lado que, “desde 1991 até à atualidade, a R. não exerceu uma posse em nome próprio, antes em nome da herança aberta por óbito de sua mãe e, portanto, em conjunto com a dos demais sucessores”, de onde “decorre, necessariamente, que tal posse não lhe permite a aquisição por usucapião em nome próprio, nem tão pouco a presunção do direito emergente do art.º 1268.º do CC”, sendo que “não sendo a usucapião de conhecimento oficioso (art.º 303.º ex vi art.º 1292.º, ambos do CC), e não tendo sido esta invocada em relação à herança aberta por morte da mãe da R., improcede, forçosamente, tal exceção”.

Assim, aqui chegados, temos como certo que a acção, neste mesmo passo, assim nos parece, deveria ter sido julgada procedente, por demonstração de propriedade presumida dos imóveis em causa a favor da herança representada pelo Autor, por força do registo a seu favor, nos termos do art. 7º do CRP.

Sucedeu, porém, que, não obstante a Ré tenha contestado a acção apenas em nome próprio, excepcionando a usucapião a seu favor, no que decaiu, entendeu o Senhor Juiz que sempre haveria que “analisar se existe confronto das presunções que decorrem, a favor dos herdeiros de CC, por força do art.º 7.º do Código do Registo Predial, e a favor da herança aberta por morte da mãe da R., GG, por força do disposto no art.º 1268.º do CC.

Quando certo se evidencia que a Ré nunca falou na herança aberta por morte de sua mãe, jamais interpretando a sua posição na lide como representante desta herança, como herdeira de sua mãe, mas apenas como tendo acedido na sua posse, o que não se demonstrou.

E então o tribunal entendeu também que, em face da factualidade apurada, “a posse iniciada pela mãe da R., que continuou nos seus sucessores após o seu falecimento, nomeadamente na R., teve início em data não concretamente apurada, mas há pelo menos 60 anos (facto provado 12.) … “ sendo “forçoso concluir, por aplicação da regra prevista no art.º 1268.º, n.º 1 do CC, que a presunção da titularidade do direito de propriedade a favor da mãe da R., e da herança aberta por sua morte, a partir de 1991, se sobrepõe à presunção de titularidade da propriedade a favor do A. e restantes herdeiros de CC, porque registada em data posterior ao início da posse daquela” e que “não existindo qualquer registo anterior a favor do A. e restantes herdeiros, nem tendo este alegado, nem demonstrado, a cadeia de transmissões anteriores ao mesmo – porque se está perante uma aquisição derivada, a título de sucessão por morte –, não se mostra ilidida a presunção de titularidade do direito de propriedade que emerge do n.º 1 do art.º 1268.º do CC a favor da herança aberta por óbito de GG, mãe da R.” de onde “ decorre que, prevalecendo tal presunção, se impõe a conclusão de que as parcelas dos prédios onde se encontram implantadas a casa e logradouro/quintal onde reside a R. não são propriedade dos herdeiros de CC”.

Asseverando ainda na sentença que “por outro lado, pese embora o A. tenha alegado que tinha a posse de tais prédios, tal como já a tinham os seus antecessores, a verdade é que não resultou provado que, sobre as concretas parcelas ocupadas pela mãe da R. e, desde 1991, pela R., estes realizassem qualquer ato material suscetível de ser qualificado como corpus da posse, nos termos que supra se explicitou.

Pelo contrário, resultou provado que a R. nunca foi interpelada para qualquer pagamento de rendas e que foi esta e a sua mãe que realizaram obras em tal casa, bem como a vedação e sua posterior substituição, ao contrário do que sucedia nas demais edificações do prédio urbano indicado em 3. dos factos provados.

Face ao que supra se expôs, concluindo-se que os bens aqui peticionados não são propriedade da herança aberta por óbito de CC, improcede a pretensão do A..”

Concluiu-se, assim, na sentença que, no confronto da presunção de propriedade do registo a favor da herança representada pelo Autor (ao abrigo do art. 7º do CRP) com a presunção da titularidade do direito de propriedade a favor da mãe da R., e da herança aberta por sua morte, a partir de 1991 (art. 1268º nº 1 do CC), esta se sobrepõe àquela, porque aquele registo ocorreu em data posterior ao início da posse da mãe da R., e da herança aberta por sua morte, a partir de 1991.

E que, “não existindo qualquer registo anterior a favor do A. e restantes herdeiros, nem tendo este alegado, nem demonstrado, a cadeia de transmissões anteriores ao mesmo – porque se está perante uma aquisição derivada, a título de sucessão por morte –, não se mostra ilidida a presunção de titularidade do direito de propriedade que emerge do n.º 1 do art.º 1268.º do CC a favor da herança aberta por óbito de GG, mãe da R.” de onde “ decorre que, prevalecendo tal presunção, se impõe a conclusão de que as parcelas dos prédios onde se encontram implantadas a casa e logradouro/quintal onde reside a R. não são propriedade dos herdeiros de CC”.

E a acção, ante tal leitura fáctico-jurídica, foi julgada improcedente.

Em face de tal decisão de improcedência, o Autor veio apelar, entre o mais arguindo a nulidade da sentença, por entender que, tendo a Ré invocado a aquisição da propriedade por usucapião (de boa fé, pacífica, pública e sem oposição de terceiros há mais de 20 anos), o tribunal procedeu a diferente configuração jurídica da acção, sopesando a pretensão do Autor, não em face da Ré contestante, mas sim em face da herança aberta por óbito da mãe da Ré, quando a acção não fora configurada, pelo lado da contestação, neste sentido.

Entendeu a Relação, no Acórdão em revista, depois de alguns considerandos doutrinários e jurisprudenciais sobre a nulidade invocada, que, sendo certo que a 1ª instância considerou que não podia prevalecer a presunção legal fundada no registo predial invocada pelo Autor, não veio a assentar esse entendimento no reconhecimento da Ré como sendo possuidora e, assim, a titular do direito de propriedade sobre a parte do prédio em causa nos autos, rejeitando que tivesse sido adquirido por usucapião, mas antes na consideração de que se verificava a presunção da titularidade do direito de propriedade a favor da mãe da Ré e da herança aberta por sua morte, a partir de 1991 .

Considerando o Acórdão recorrido que, com tal procedimento, o Tribunal não conheceu de questão de que não pudesse conhecer, o que ocorreu foi que “mais do que o conhecimento de uma nova questão à luz do disposto no art. 608.º, n.º 2, do CPC (um novo pedido ou uma nova exceção) é uma diferente qualificação jurídica dos factos em termos que não poderiam ter sido perspetivados pelas partes, suscitando uma nova questão jurídica de que não podia o Tribunal a quo ter conhecido sem que tivesse sido precedida da prévia audição das partes.”

Isto porquanto os factos alegados como manifestação da posse invocada, por ela própria Ré, não podiam ser considerados como uma manifestação da posse exercida pela herança aberta por morte de sua mãe, configurando com isso, uma outra excepção peremptória, distinta da usucapião invocada, mas também de afastamento da presunção decorrente do registo predial, excepção esta em relação à qual as partes não se pronunciaram, constituindo a decisão proferida para as mesmas uma verdadeira decisão surpresa.

Estando vedado ao tribunal, avançar para a decisão, sem antes dar cumprimento ao contraditório, ouvindo as partes, auscultando estas em relação a tal nova qualificação jurídica dos factos.

Assim entendendo, o certo é que o tribunal prosseguiu com a prolação de sentença, sem ouvir as mesmas nos termos sobreditos.

Entendeu a Relação, na avaliação da nulidade invocada que “No atual estado do processo, as partes já tiveram, nas suas alegações recursórias, a oportunidade de se pronunciarem, pelo que, não obstante se reconheça a nulidade da sentença, importa conhecer do restante mérito do recurso, averiguando se, como defende o Apelante, esse enquadramento jurídico padece de erro de julgamento, mormente no que concerne à aplicação do disposto no art. 1268.º do CC, por o Tribunal a quo ter julgado verificada, com base em factos que se reportavam aos pressupostos da usucapião invocada pela Ré, a presunção da titularidade do direito de propriedade a favor da mãe da Ré e da herança aberta por sua morte, a partir de 1991, em detrimento da presunção legal invocada pelo Autor. “

E, embora julgando verificada a invocada nulidade da sentença, conheceu do restante objeto da apelação, nos termos do art. 665º nº 1 do CPC.

Aqui chegados, cumpre-nos desde já afirmar a nossa inteira concordância com o entendimento sufragado no Acórdão recorrido, mas apenas no tocante à verificação da nulidade invocada.

De facto, não está em verdadeiramente em causa a diferente configuração jurídica dos factos, âmbito em que existe total liberdade por parte do juiz, mas sim a prolação de uma decisão que veio a surpreender as partes, uma vez que no todo evolutivo da sua litigância nunca foi configurada a intervenção da herança aberta por morte da mãe da Ré, na vertente passiva da acção, mas sim e unicamente a Ré, em nome próprio.

Ora, para além que questões de legitimidade passiva, que aqui não se colocam porque não foi deduzido pedido reconvencional, o certo é que aquela herança nunca foi trazida à colação processual até ao momento em que o próprio juiz o fez, com isso alterando o curso decisório, pois se até aí a acção deveria proceder, desde então ficou traçado o seu decaimento.

Ora, será que sem a “garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade”, em ordem a poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão” (Lebre de Freitas - Inconstitucionalidades do Código de Processo Civil, em Revista da Ordem dos Advogados, 1992, I, pp. 35 a 38), poderia ser a sentença proferida?

Com efeito, como ensina aquele Professor (in Introdução ao Processo Civil. Conceitos e princípios gerais, 2ª ed., Coimbra Editora) o princípio do contraditório materializa-se em todas as fases do processo - quer ao nível dos factos, quer ao da prova, quer ao do direito propriamente dito - tendo as partes, em todos estes níveis, direito a, de modo participante e ativo, influenciar a decisão, tentando convencer, em cada momento e ao longo de todo o processo, o julgador do acerto da sua posição.

Ao nível do direito, o princípio do contraditório impõe que, antes de ser proferida a decisão final, seja facultada às partes a discussão dos fundamentos de direito em que ela vá assentar, sendo o mesmo o instrumento destinado a evitar as decisões surpresa (Ibidem, págs. 111 a 115).

É, ainda, uma decorrência do princípio do contraditório a proibição da decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento não previamente considerado pelas partes, como dispõe o nº 3 do referido artigo 3º do CPC.

Decisão-surpresa é a solução dada a uma questão que, embora pudesse ser previsível, não tenha sido configurada pela parte, sem que esta tivesse obrigação de prever fosse proferida.

A proibição da decisão-surpresa reporta-se, principalmente, às questões suscitadas oficiosamente pelo tribunal.

O juiz que pretenda basear a sua decisão em questões não suscitadas pelas partes, mas oficiosamente levantadas por si, “ex novo”, seja através de conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve, previamente, convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer, conforme dispõe o nº 3 do art. 3º do CPC, em casos de manifesta desnecessidade.

Com este princípio quis-se impedir que as partes pudessem ser surpreendidas, no despacho saneador ou na decisão final, com soluções de direito inesperadas, por não discutidas no processo, as quais, no regime anterior, eram permitidas.

Pretendeu-se, pois, proibir as decisões-surpresa embora tal não retire a liberdade e independência que o juiz tem, em termos absolutos, de subsumir, selecionar, qualificar, interpretar e aplicar a norma jurídica que bem entender, aplicando o direito aos factos de modo totalmente autónomo. Impõe, sim, ao julgador que, para além de dar a possibilidade às partes de alegarem de direito, sempre que surge uma questão de direito ainda não discutida ao longo do processo tem de, antes de decidir, facultar às partes a sua discussão.

Ensina também Lopes do Rego (in Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed., vol. I. Coimbra, 2004, Almedina, pág 32), que “A regra do contraditório passou, assim, a abarcar a própria decisão de uma questão de direito, decisiva para a sorte do pleito, inovatória, inesperada e não perspetivada pelas partes, tendo de ser dada a estas a possibilidade de, previamente, a discutirem sendo que tal “entendimento amplo da regra do contraditório, afirmado pelo nº 3, do art. 3º, não limita obviamente a liberdade subsuntiva ou de qualificação jurídica dos factos pelo juiz – tarefa em que continua a não estar sujeito às alegações das partes relativas à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664º); trata-se apenas e tão somente, de, previamente ao exercício de tal “liberdade subsuntiva” do julgador, dever este facultar às partes a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de exceções dilatórias, com que elas não tinham razoavelmente podido contar”.

Não quis, pois, a lei excluir da decisão as subsunções que juridicamente são possíveis embora não tenham sido pedidas, antes estabeleceu que a concreta decisão a tomar tem de, previamente, ser prevista pelas partes, tendo, por isso, de lhes ser dada “a priori” possibilidade de se pronunciarem sobre o novo e possível enquadramento jurídico.

Assim, o princípio processual segundo o qual “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação e aplicação do direito” tem, presentemente, de ser compatibilizado com a proibição das decisões surpresa tendo, desse modo, antes da prolação da decisão, de ser facultado às partes o exercício do contraditório sempre que a qualificação jurídica a dar não corresponda ao previsto pelas partes e plasmado no processo.

Com o aditamento do nº 3, do art. 3º, pretendeu-se reforçar e aproveitar a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios.

Nenhuma decisão deve, pois, ser tomada sem que previamente tenha sido dada efetiva possibilidade ao sujeito processual contra quem é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar, possibilitando-se-lhe, assim, influir ativamente na decisão (Ac. do STJ de 04/05/99, proc. nº 99057)

A imposição de audição das partes em momento anterior à decisão é determinada por um objetivo concreto – o de permitir às partes intervirem ativamente na construção da decisão, chamando-as a trazerem aos autos a solução para que apontam.

Assim, como afirma o Acórdão do STJ de 15/10/2002 (proc. nº 02A2478), “uma determinada questão, seja relativa ao mérito da causa seja meramente adjetiva, não pode ser decidida, quer em primeira instância, quer em via de recurso, com um fundamento jurídico diverso, até então omitido nos autos e não ponderado pelas partes sem que, antes, as mesmas sejam convidadas a sobre ela se pronunciarem”.

Há decisão surpresa se o juiz, inesperadamente e afastando-se do enquadramento factual e jurídico, envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução mais correta decisão do litígio. Não tendo as partes configurado a questão nos termos entendidos pelo juiz, cabe-lhe dar a conhecer a solução jurídica que pretende vir a assumir para que as partes possam contrapor os seus argumentos (Ac. do STJ de 27/9/2011, proc. nº 2005/03.0TVLSB.L1.S1), só estando dispensado de o fazer em caso de manifesta desnecessidade.

A violação do princípio do contraditório, mediante a prolação de uma decisão-surpresa, constitui nulidade processual, prevista no nº 1, do art. 195º, onde se consagra que “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve, produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.

Dada a relevância, exposta, do contraditório, é indiscutível que a inobservância desse princípio, com prolação de decisão-surpresa, é suscetível de influir no exame ou decisão da causa, pelo que a sua inobservância constitui uma omissão grave e representa uma nulidade processual.

E, carecendo a nulidade de ser invocada pelo interessado na omissão da formalidade ou na repetição desta ou na sua eliminação (art. 197º nº 1), no prazo de dez dias, após a respetiva intervenção em algum ato praticado no processo (art. 199º nº 1), sob pena de ficar sanada, estando a decisão-surpresa coberta por decisão judicial, nada obstará, assim nos parece, que a mesma seja invocada, mesmo quando não invocada naquele prazo perante a 1ª instância, possa ser arguida conhecida em sede de recurso, sob a veste do art. 615º do CPC, no caso por excesso de pronúncia (al. d).

Como refere Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, p. 26) “sempre que o juiz, ao proferir a decisão, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei, o meio de reação da parte vencida passa pela interposição de recurso fundado na nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, nos termos do artº 615 nº1 d). Afinal, nesses casos, designadamente quando o juiz aprecie uma determinada questão que traduza uma decisão surpresa, sem respeito pelo princípio do contraditório previsto no art. 3º, nº 3, a parte prejudicada nem sequer dispôs da possibilidade de arguir a nulidade processual emergente da omissão do acto, não podendo deixar de integrar essa impugnação, de forma imediata no recurso que seja interposto de tal decisão.”

Ou seja, por outras palavras, apesar de a nulidade em causa, de não audição prévia das partes (art. 3º nº 3 do CPC) em relação à nova configuração jurídica sob a qual entende o Juiz decidir a causa, não ter sido invocada perante o tribunal que a cometeu, nos termos do art. 199º nº 1 do CPC, não fica precludido o direito de a mesma ser invocada no recurso, por via da nulidade da sentença, por excesso de pronúncia (art. 615º nº 1 al. d) do CPC, por o tribunal ter conhecido de objecto diverso do pedido e não configurado pelas partes.

Dispõe o art. 615º nº 1, al. d) do CPC, aplicável ex vi art. 666.º, n.º 1, do CPC, que “é nula a sentença quando: (…) d) o juiz (…) conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Tal nulidade da sentença prende-se, essencialmente, com os comandos normativos extraídos dos arts. 608.º, n.º 2, e art. 609.º, n.º 1, ambos do CPC, dos quais decorre que “o juiz (…) não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras” e que “a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir”.

Este Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender, entre outros no Acórdão de 04-06-2021 (processo 3300/15.1T8ENT-A.E1.S2), que “a nulidade por excesso de pronúncia radica no conhecimento de questões que não podiam ser julgadas por não terem sido suscitadas pelas partes, nem serem de conhecimento oficioso”.

No sentido de que não se verifica nulidade do acórdão por excesso de pronúncia relativamente a questões de conhecimento oficioso, pronunciaram-se, entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 26-04-2023 (proc. n.º 8417/18.8T8SNT.L1.S1, de 15-03-2023 (proc. n.º 1608/20.3T8ALM.L1.S1) e de 08-06-2021 (proc. n.º 215/16.0T8VPA.G2.S1.

Como é evidente, o conhecimento oficioso de questões não suscitadas pelas partes deve garantir, a todo o passo, o cumprimento do princípio do contraditório, evitando a prolação de decisões surpresa.

Neste sentido, pronunciou-se, de forma particularmente cristalina, o acórdão do STJ de22-02-2017– proc. n.º 1512/07.0TBCSC.L1.S1, ao deixar escrito que “caso a interpretação e aplicação das regras de direito a considerar, sempre com respeito pelo quadro factual que desenha o litígio, não coincida com a solução jurídica que as partes perspectivaram como caminho para alcançar as suas pretensões, o tribunal garanta previamente a estas a possibilidade de se pronunciarem, assegurando, desta forma, o contraditório e evitando indesejáveis decisões-surpresa (art. 5.º, n.º 3, do CPC)”.

Considera Amâncio Ferreira (in Manual dos Recursos em Processo Civil, 8º edição, pag. 52), que “a nulidade da sentença exige que a violação da lei processual por parte do juiz, ao proferir alguma decisão, preencha um dos casos agora contemplados no nº 1 do artº 615º, nomeadamente por “excesso de pronúncia, dado que sem cumprir essa formalidade, o tribunal não podia conhecer desta questão” (Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil).

Também Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, p. 26) entende que “sempre que o juiz, ao proferir a decisão, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei, o meio de reação da parte vencida passa pela interposição de recurso fundado na nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, nos termos do artº 615 nº1 d). Afinal, nesses casos, designadamente quando o juiz aprecie uma determinada questão que traduza uma decisão surpresa, sem respeito pelo princípio do contraditório previsto no art. 3º, nº 3, a parte prejudicada nem sequer dispôs da possibilidade de arguir a nulidade processual emergente da omissão do acto, não podendo deixar de integrar essa impugnação, de forma imediata no recurso que seja interposto de tal decisão.”

Quer isto dizer que a nulidade em causa nos presentes autos, proferida que foi a decisão surpresa, apenas podia ser invocada no recurso interposto da sentença, como foi.

Outro entendimento, defensor de tal via de recurso, seria, em nosso entender, violador dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, pelo que, também à luz do art. 630º nº 2 do CPC, será a nulidade em causa arguível por via recursiva, nos termos em que foi.

De facto, afigura-se-nos que exigir que a invocação da nulidade em causa pudesse ser invocada apenas nos termos do art. 199º nº 1 do CPC, perante o tribunal que a cometeu e proferiu sentença, seria desproporcionado e desigual para as partes, pois colocaria a parte vencida em clara desvantagem, obrigada a deduzir uma reclamação, em prazo mais curto que o de recurso, quando legitimamente não aguardava aquele desfecho decisório, que fora causado pela nulidade cometida.

Sendo compreensível, ante tal surpresa, que pudesse beneficiar do prazo para tal dedução, porque confiadamente atenta ao prazo de recurso.

Assim, o que vem de ser dito, feito o foco do recurso na nulidade da sentença naqueles termos, não contraria o entendimento vertido no recente Acórdão do STJ de 29/02/2024 (processo 19406/19.5T8LSB.L1.S1), que entendeu que “o n.º 2 do artigo 630.º do CPC, na parte em que dispõe que não é admissível recurso das decisões proferidas sobre as nulidades previstas no n.º 1 do artigo 195.º, salvo se contenderem com os princípios da igualdade ou do contraditório, aponta no sentido de que o legislador configura a omissão de formalidades que contendam com o princípio do contraditório como nulidade prevista no n.º 1 do artigo 195.º do CPC.”

No caso que nos ocupa, configura-se como manifesta a necessidade de auscultação das partes, porquanto, face à excepção de usucapião invocada pela Ré, e ante os factos apurados, a sentença tenderia a ser de procedência da acção, volvendo a prolação de improcedência, sem que o Autor nessa perspectiva tivesse sido ouvido.

Somos, pois, de entender que o Tribunal não agiu correctamente, pois deveria ter auscultado as partes antes da prolação da sentença, com isso obviando à decisão surpresa que proferiu.

Não assegurando o contraditório em tais circunstâncias, como é referido no Acórdão do STJ de 23/06/2016 (processo 1937/15.8T8BCL.S1), “depara-se-nos uma nulidade processual traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve, mas que se comunica ao despacho saneador, de modo que a reacção da parte vencida passa pela interposição de recurso da decisão proferida em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d), in fine, do CPC.

É esta a posição assumida por Teixeira de Sousa quando, no comentário ao Ac. da Rel. de Évora, de 10-4-14 (www.dgsi.pt), observou que ainda que a falta de audição prévia constitua uma nulidade processual, por violação do princípio do contraditório, essa “nulidade processual é consumida por uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1, al. d), do NCPC), dado que sem a prévia audição das partes o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão” (em blogippc.blogspot.pt, escrito datado de 10-5-14).

Tal solução foi reforçada pelo mesmo processualista em comentário ao Ac. da Rel. do Porto, de 2-3-15 (www.dgsi.pt), concluindo que “o proferimento de uma decisão-surpresa é um vício que afecta esta decisão (e não um vício de procedimento e, portanto, no sentido mais comum da expressão, uma nulidade processual)”. Com efeito, como aí se refere, até esse momento, “não há nenhum vício processual contra o qual a parte possa reagir”, e que “o vício que afecta uma decisão-surpresa é um vício que respeita ao conteúdo da decisão proferida; a decisão só é surpreendente porque se pronuncia sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes sobre a matéria” (em blogippc.blogspot.pt, em escrito datado de 23-3-15).

Na verdade, em tais circunstâncias a parte é confrontada com uma decisão, sem que lhe tenha sido proporcionada a oportunidade de exercer o contraditório e sem que tenha disposto da possibilidade de arguir qualquer nulidade processual por omissão de um acto legalmente devido, sendo a interposição de recurso o mecanismo apropriado para a sua impugnação (no mesmo sentido Abrantes Geraldes, Recursos no NCPC, 3ª ed., pág. 25, e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., pág. 52).

Foi esta também a solução que recentemente foi adoptada no Ac. do STJ, de 17-3-16 (Rel. Fonseca Ramos), no proc. 1129/09.5TBVRL-H.G1.S1, onde se refere que “a decisão-surpresa alegada e verificada quanto ao acórdão da Relação constitui um vício intrínseco da decisão e não do iter procedimental, acarretando a nulidade do acórdão que assentou a sua decisão em dois fundamentos que não foram previamente considerados pela recorrente, que foram decisivos para a decisão e sobre os quais, antes, deveriam ter sido ouvidos recorrente e recorridos”.

Regressando ao nosso caso, deveria o Senhor Juiz ter observado o princípio do contraditório, na sua vertente de proibição de decisões surpresa, ouvindo as partes em relação à diferente configuração jurídica que vislumbrou mais acertada para a decisão.

E tanto assim é que essa omissão procedimental cometida pode ter sido causal de decisão contrária àquela que se anunciava ante a factualidade apurada até esse momento, e em face da excepção de usucapião deduzida pela Ré em nome próprio, ou seja alterou a decisão de procedência da acção para a sua total improcedência.

Tenha-se presente, com a necessária e devida objectividade, que não nos é possível prognosticar que, a ter sido cumprida a audição das partes em tal contexto, a dinâmica processual viesse a ser a mesma, desde logo porque ignoramos, por princípio, e sob pena de, afinal e contra tudo o que defendemos, considerarmos inútil e inócuo o contributo das partes, pecado que não podemos cometer, qual viria a ser a decisão proferida, de facto e de direito, após aquela auscultação prévia. A entendermos de outro modo, qual o sentido e utilidade dessa prévia auscultação?

E, nessa medida, também não podemos afirmar que as subsequentes instâncias recursivas (a apelação e a presente revista) viriam a ser idênticas, quer em termos subjectivos, quer sob o ponto de vista substantivo, face ao objecto dos recursos, balizados e delimitados que são pelas conclusões das alegações (cor. art. 635º nº 4, 639º nº 1, 608º nº 2, ex vi art. 679º, todos do CPC), que sempre seriam diferentes.

Sendo certo que, tendo a nulidade em causa sido cometida no momento da prolação da sentença, deveria aquela auscultação ter ocorrido em momento prévio, pelo que, mesmo sob o ponto de vista da decisão da matéria de facto, não pode excluir-se que a mesma pudesse vir a ter outros contornos, necessariamente com a fundamentação adequada, bastando que dessa auscultação adviesse, por melhor esclarecimento resultante do debate, convencimento do juiz noutro sentido.

Ora, assim sendo, e repercutindo-se a nulidade sob escrutínio na sentença e nas instâncias recursivas, em termos (também) subjectivos e fundamentalmente substantivos, não é possível afirmar-se, com plena inteireza, que a Relação, no momento em que decretou a nulidade em causa, se encontrava já na plena disponibilidade dos elementos de facto necessários à prolação da decisão, nos termos do art. 665º nº 1 do CPC.

De facto, como afirma Abrantes Geraldes (in Recursos em Processo Civil, Almedina, em anotação ao art. 665º do CPC), nos termos deste dispositivo, “ainda que a Relação confirme a arguição de algumas das nulidades da sentença, não se limita a reenviar o processo para o tribunal a quo. Ao invés, deve prosseguir com a apreciação das demais questões que tenham sido suscitadas, conhecendo do mérito da apelação, nos termos do art. 665º nº 2.”

E continua, “deste modo, a anulação da decisão (v. g. por contradição de fundamentos ou por omissão de pronúncia) não tem como efeito invariável a remessa imediata do processo para o tribunal a quo, devendo a Relação proceder à apreciação do objecto do recurso, salvo se não dispuser dos elementos necessários. Só nesta eventualidade se justifica a devolução do processo para o tribunal a quo.”

Ora, como é evidente, a prolação da decisão de mérito pela Relação em tais circunstâncias, depois de declarar a nulidade cometida na 1ª instância, não é nem podia ser imperativa, dependendo sempre da certeza de que aquela nulidade não foi viciosa a jusante, a ponto de se poder afirmar que a Relação, quando declarou verificada a nulidade, tinha à sua mercê todos os elementos resultantes do apuramento subsequente ao confronto estabelecido entre as partes devidamente auscultadas nos termos supra referidos.

Ora, parece-nos ser essa a situação ocorrida nos presentes autos.

Com todo o respeito, não concordamos com o Tribunal recorrido, na procura da sanação da nulidade cometida, quando diz que “as partes já tiveram, nas suas alegações recursórias, a oportunidade de se pronunciarem, pelo que, não obstante se reconheça a nulidade da sentença, importa conhecer do restante mérito do recurso”.

Desde logo, porque, como já referimos, seria possível, não tendo o tribunal da 1ª instância enveredado pelo conhecimento da causa na perspetiva da herança aberta por óbito da mãe da Ré (objecto do litígio que, na vertente da contestação, nem foi devidamente identificado no momento da audiência prévia - fls. 56 e 57 dos autos, mas apenas a “usucapião daqueles bens pela Ré”), seria possível e normal que outro fosse o resultado da decisão, assim como também que o fosse no caso de o juiz não ter cometido a nulidade e, outrossim, tivesse auscultado as partes ante aquela nova leitura jurídica do pleito, e assim tivesse evitado a decisão surpresa que cometeu.

E, assim sendo, não são bastantes, nem processualmente adequados, os considerandos das partes nas alegações da apelação, no sentido de ver-se como sanada a nulidade cometida.

Importa, pois, declarar verificada a nulidade invocada pela recorrente, e, no reconhecimento de que a Reação não dispunha dos elementos necessários ao conhecimento do mérito da causa, determinar a baixa dos autos à 1ª instância, para aí, em momento prévio à prolação da sentença, nas suas vertentes de facto e de direito, serem ouvidas as partes em relação ao novo enquadramento jurídico feito pelo tribunal, nos termos expostos, sem prejuízo de, para além disso, o Tribunal, no pleno exercício dos seus poderes de gestão processual (art. 7º do CPC), poder intervir como bem entender, em ordem à boa decisão da causa.

Termos em que procede a revista no tocante à primeira questão dela objecto (nulidade por excesso de pronúncia invocada, nos termos do art. 615º nº 1 al. d) do CPC), ficando prejudicado o conhecimento das demais questões.

DECISÃO

Por todo o exposto, Acordam os Juízes que integram a 7ª Secção Cível deste Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente a revista, julgando verificada a nulidade invocada pela recorrente e determinar a baixa dos autos à 1ª instância, para aí, em momento prévio à prolação da sentença, nas suas vertentes de facto e de direito, serem ouvidas as partes em relação ao novo enquadramento jurídico feito pelo tribunal, nos termos expostos, sem prejuízo de, para além disso, o Tribunal, no pleno exercício dos seus poderes de gestão processual (art. 7º do CPC), poder intervir como bem entender, em ordem à boa decisão da causa.

Ficando prejudicado o conhecimento das demais questões supra identificadas como objecto da revista.

Custas pelo recorrido.


Relator: Nuno Ataíde das Neves

1ª Adjunta - Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

2º Adjunto - Juiz Conselheiro Sousa Lameira


*


Declaração de voto da Senhora Juíza, 1ª Adjunta, Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza:

“Votei a decisão, por aceitar que não se deva considerar sanado o incumprimento do contraditório, tendo em conta as consequências que pode ter provocado, descritas no acórdão. Não creio, todavia, que tenha causado nulidade por excesso de pronúncia”.