RECURSO DE REVISTA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DE COGNIÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
FACTOS INSTRUMENTAIS
FACTOS ESSENCIAIS
PODERES DA RELAÇÃO
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Sumário


I – Nos termos do art. 5º, nº2, alínea a) do CPCivil, aplicável ao acórdão da Relação por via do art. 663º, nº2, deve o tribunal extrair dos factos instrumentais resultantes da instrução da causa as ilações que se impuserem no sentido da comprovação dos factos essenciais;
II – Este poder-dever da Relação é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, por poder estar em causa “a violação ou errada aplicação da lei de processo” (art. 674º, nº1, b));
III - Se o acórdão recorrido desvalorizou factos adquiridos nos autos, com função meramente probatória, por os ter qualificado como essenciais e como tal devendo ter sido alegados em articulado superveniente, impõe-se concluir que a Relação não fez o exame crítico da prova produzida, o que importa a anulação do acórdão recorrido e a baixa do processo para o respectivo suprimento.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA intentou acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum, contra BB, peticionando que:

i) Seja o contrato de Doação, celebrado entre o R. e o A., anulado, por corresponder a um Negócio Usurário e ofensivo dos bons costumes, nos termos do art.282.º, com os efeitos previstos no art. 289.º do Código Civil ;

ou, subsidiariamente,

ii) Seja o contrato de Doação, celebrado entre o R. e o A., anulado, porque viciado por Incapacidade Acidental do A., nos termos do art. 257.º, com os efeitos previstos no art. 289.º, ambos do Código Civil ;

ou ainda, subsidiariamente,

iii) Seja reconhecida a ocorrência de uma deslocação patrimonial injustificada do património do A. para o património do R.

iv) Seja o R., nos termos do art. 473.º n.º 1 e 2 do Código Civil, condenado a restituir ao A. o referido imóvel doado por este àquele, anulando-se a respectiva doação, restituindo-se, consequentemente, a propriedade ao ora A.;

v) Seja, ainda, determinado, em qualquer dos casos, o cancelamento dos registos efectuados a favor do R. junto da Conservatória do registo predial relativamente ao imóvel e, bem assim, seja determinado a alteração do proprietário junto da A.T., relativamente ao imóvel em causa.

Citado, o Réu apresentou contestação pugnando pela improcedência da acção.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgando a acção improcedente e absolveu o Réu dos pedidos.

Inconformado com tal decisão, dela apelou o Autor.

Por acórdão da Relação de Lisboa, com um voto de vencido, foi o recurso julgado improcedente e confirmada a sentença.

Ainda inconformado, o Autor recorre de revista, visando a alteração do acórdão, de modo a que se considerem provados os factos constantes do ponto 2.33, com a consequente revogação do acórdão, julgando-se a acção procedente.

O Recorrente conclui do seguinte modo a sua alegação:

1 - Conforme alegado na Petição Inicial, o recorrente padece de doença do foro psiquiátrico, o que se provou por documentos idóneos e bastantes, isto é, através de relatórios médicos e de uma sentença judicial que se fundamentou em perícias médicas.

2 - A decisão judicial proferida no processo do Maior Acompanhado, é apenas e só a prova de um facto instrumental sobejamente alegado na P.I. da presente acção,

3 - Não existe assim, nenhum facto superveniente que tenha ocorrido após a instauração da presente acção.

4 - Os factos instrumentais referidos no ponto 2.4. e 2.5 do Acórdão recorrido, resultam de perícias e não foram postas em causa nem pelo Juiz, nem pela parte contrária

5 - Foi ainda feita prova testemunhal do mesmo facto, principalmente através, da testemunha CC e do depoimento de parte do A./Recorrente, tendo sido também e principalmente a Testemunha CC que comprova, nos autos, que o R./Recorrido sabia da doença e vulnerabilidade do A./Recorrente, por ter sido ele próprio (que é primo do Réu/Recorrido) a transmitir-lhe isso.

De ambos os depoimentos deve resultar provado, porque consistentes, que o Recorrido estava ciente da fragilidade e instabilidade emocional do Recorrente, característica esta própria de uma pessoa com o quadro clínico do Recorrente, e que a utilizou para levar o Recorrente a fazer a doação, porque incapaz de resistir à vontade daquele

6 - É também considerada matéria assente, a data em que o Recorrido conheceu o Recorrente, a data em foi viver com ele e a data em que abandona a casa do Recorrente (após a doação), tendo isso ocorrido num mui curto espaço de tempo, sendo isso bem revelador e um forte indicio da intenção do Recorrido relativamente ao Recorrente, isto é, do aproveitamento patrimonial por parte do Recorrido.

7 - Deve o Julgador, – através das regras da experiência e dos poderes de cognição, que lhe são exigidos pelo disposto no artº 607º e 5º e nº 3 do artº 674º do C.P.C., – retirar a conclusão óbvia de que ocorreu um Enriquecimento sem causa, por um lado, por que não existe explicação para essa transferência patrimonial, por ser ela, também, gritantemente desequilibrada e por outro lado, a dita transferência patrimonial assenta num vazio completo de justificação e numa vontade (ou falta dela) toldada pelo estado clinico do doador e que o leva a doar o seu bem mais precioso.

8 Deve, ainda, o Julgador, ao abrigo dos mesmos preceitos legais retirar dos factos instrumentais (indicados nos pontos 2.4 e 2.5 da matéria assente do presenteAcordão de que se recorre) a prova suficientemente indiciária que os mesmos traduzem e consequentemente, considerar provados os factos essenciais.

9 Tudo visto deve o Julgador considerar provados os factos constantes do ponto 2.23 do Acórdão recorrido.

10 – Por fim, concluímos com a ajuda do decidido em Recurso de Revista, de 11-7-2019, no Proc. nº 24369/16.6T8LSB.L1.S1- 2.ª Secção (Cível):

“I. Nos termos dos artigos 5.º, n.º 2, alínea a), e 607.º, n.º 4, este aplicável aos acórdãos da Relação por via do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, deve o tribunal extrair dos factos instrumentais resultantes da instrução da causa as ilações que se impuserem no sentido da comprovação dos factos essenciais.

II. A reapreciação da decisão de facto impugnada, por parte da Relação, não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica a reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de o tribunal de recurso formar a sua própria convicção em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa.

III. O exercício desse poder-dever cognitivo é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça em termos de verificar se foram observados os parâmetros formais ou balizadores da respetiva disciplina processual.

IV- Nesse domínio, compete ao Tribunal de Revista ajuizar se o Tribunal da Relação observou o método de análise crítica da prova prescrito no n.º 4 do indicado artigo 607.º, mas já não imiscuir-se na valoração da prova feita segundo o critério da livre e prudente convicção do julgador, genericamente editado no n.º 5 do artigo 607.ºdo CPC.

V- Em face da impugnação da decisão de facto configurada pelo recorrente, a Relação deve empreender a análise crítica dos concretos meios de prova por ele convocados, não se limitando a uma apreciação global ou sincrónica da factualidade envolvente. (….)”

Contra alegou o Recorrido, no sentido da improcedência da revista, concluindo que:

1. A fixação da matéria de facto pelas instâncias foi julgada corretamente, não padecendo de qualquer vício de direito material ou probatório.

2. Nos termos do n.º 3 do artigo 674.º do Código de Processo Civil o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, estando reservado para o Tribunal de revista o conhecimento de questões de direito.

3. Cabe em todo o caso ao Supremo Tribunal de Justiça qualificar em concreto uma determinada questão como sendo de facto ou de direito.

4. Tem, no entanto, sido entendido por jurisprudência deste Tribunal que realidades de natureza psicológica como estados emocionais e eventos do foro interno, psíquicos são suscetíveis de integrar realidades de facto.

5. A utilização de presunções judiciais e máximas de experiência pelo julgador não resulta em todo o caso de qualquer disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

6. Pelo que deve prevalecer a apreciação e confirmação da matéria de facto efectuada pelo Tribunal da Relação no uso do princípio da livre apreciação da prova, plasmado no n.º 5 do artigo 607.º e artigo 662.º do Código de Processo Civil.

7. Ambas as instâncias procederam à análise crítica da prova de forma exigível por lei, conforme resulta da leitura das respectivas motivações de facto, que permite perceber e avaliar as razões que contribuíram por duas vezes para a formação da livre e prudente convicção por parte do julgador, com influência decisiva na valoração positiva e negativa dos factos.

8. Deste modo, não procede a pretensão do recorrente em impor ao julgador uma obrigatoriedade de lançar mão de certas e determinadas presunções judiciais à força, para além das que resultaram da sua convicção formada livremente, de forma a dar como provados factos que já foram fixados como não provados.

9. Quer a Sentença quer o Acórdão recorrido julgaram de harmonia com o preceituado na lei e de acordo com a prova produzida nos autos.

10. A prova produzida fora do processo não pode ser invocada nesse processo fora dos casos expressamente previstos no artigo 421.º do Código de Processo Civil, o que não é o caso nos presentes autos, uma vez que entre a acção de acompanhamento de maior e a acção de condenação nos presentes autos não há sequer, nem podia haver, identidade de partes.

11. De igual modo, a motivação de facto constante de uma decisão no âmbito de um processo não faz caso julgado autónomo, independente do conteúdo decisório a que se refere, pelo que os factos dados como provados num processo não podem sem mais ser dados como provados noutro processo, pelo simples facto de se juntar aos autos um documento com uma sentença.

12. Sobre os efeitos substantivos da sentença de acompanhamento de maior, relativamente ao caso dos presentes autos estão previstos no artigo 154.º, n.º 3 do Código Civil, segundo o qual aos actos anteriores ao anúncio do início do processo de acompanhamentode maior,aplica-se o regime da capacidade acidental; sendo que

13. A data a partir da qual as medidas decretadas se tornam convenientes pode funcionar em certos casos, como presunção judicial, mas não de forma vinculada, não tal desonera o A. do ónus da prova, admitindo ainda a produção de prova em contrário e contraprova. (900.º C.P.C.); sendo que

14. O A. não logrou fazer prova dos factos constitutivos do direito por si alegado, desde logo porque não requereu relatório pericial nos autos;

15. Não trouxe ao processo nenhuma testemunha que pudesse produzir prova sobre o seu estado mental no momento da prática do acto que pretende anular, uma vez que todas as testemunhas que foram produzidas pelo A. só tiveram conhecimento da doação em data posterior à celebração do mesmo;

16. Não trouxe ao processo a pessoa que, no uso da competência atribuída por lei, emitiu termo de autenticação segundo o qual, no momento da celebração da doação escreveu que A. e R. “para fins de autenticação me apresentaram o presente contrato de doação, que disseram haver lido e assinado e que o mesmo exprime as suas vontades, confirmando o conteúdo”;

17. Os próprios relatórios médicos apresentados pelo A. não são conclusivos relativamente à sua incapacidade, além de que não se referem a momento relevante para preenchimento dos requisitos da incapacidade acidental;

18. As testemunhas apresentadas por A. e R. representaram duas realidades bem distintas e contraditórias entre si, o que exigiu uma ponderação hábil por parte do julgador, sendo que as testemunhas produzidas pelo A. declararam todas ser notório o seu estado mental frágil e influenciável e as produzidas pelo R. referiram assistir a um comportamento confiante e normal;

19. Sendo que pode inclusivamente ler-se no relatório produzido na acção de acompanhamento de maior que “não se conclui por estado demencial claramente presente” e ainda que “estes factores psicopatológicos e de funcionamento da personalidade não são típicos ou característicos de défice cognitivo ligeiro, nem é lógico que decorra daqueles.”

20. Pelo exposto, o A. não produziu prova credível nos autos que pudesse sustentar o preenchimento dos requisitos da incapacidade acidental, desde logo, não convenceu o julgador, quer em primeira, quer em segunda instância, que no momento da celebração a doação se encontrasse incapaz de entender o sentido e as consequências da sua declaração por si.

21. Pelo que bem decidiram as instâncias acerca da não subsunção dos factos apurados aos requisitos de anulação do negócio por capacidade acidental.

22. Relativamente à aplicação do regime do instituto do enriquecimento sem causa, entende o recorrido que a sua aplicabilidade ao caso é consumida pela aplicação do regime da anulação dos negócios jurídicos, pelo que o enriquecimento sem causa seria subsidiário e não aplicável ao caso concreto.

23. Isto porque a ideia da proibição do enriquecimento injustificado é um dos princípios constitutivos do nosso Direito Civil, justificando-se com base nele uma série de regimes, como é o caso do regime da invalidade dos negócios jurídicos.

24. Por isso autores como Menezes Leitão entendem expressamente ser de excluir o enriquecimento por prestação em virtude da aplicação do regime de invalidade do negócio jurídico, que configura em si mesmo uma hipótese de restituição de prestação, e nessa medida constitui “outro meio do empobrecido ser restituído” nos termos e para os efeitos do art. 474.º C.C.

25. É porque a aplicação do regime da anulação dos negócios jurídicos já tem ínsita em si uma ideia de enriquecimento injustificado, que a anulação da doação é o remédio adequado para restituir o equilíbrio das prestações.

26. E caso o negócio fosse, de facto anulado, poderia então assemelhar-se a uma efectiva falta de causa (originária) do mesmo.

27. Mas uma vez que o negócio é válido, a causa da deslocação patrimonial é clara: o próprio contrato de doação e o animus donandi do doador.

28. No entanto, são ainda referidos no Acórdão do Tribunal a quo, ora sob recuso, hipóteses eventuais de falta de causa subsequente, que não se reconduziriam à disciplina da invalidade do negócio jurídico.

29. Só que, quer para o caso de falta de causa original quer para o de falta de causa subsequente, não basta a alegação genérica de uma deslocação patrimonial,

30. Sendo antes exigido ao autor o ónus de alegar e provar os elementos constitutivos do enriquecimento sem causa, sendo desde logo necessário alegar a existência de uma causa e da falta dela, não bastando não ficar provada nos autos a existência de uma causa.

31. Sendo que os factos alegados pelo A. e os factos constantes na matéria de facto dada como provada são manifestamente insuficientes para preencher os pressupostos do enriquecimento sem causa, seja em que modalidade for.

32. Pelo que mais uma vez bem andaram as instâncias em absolver o réu da condenação à restituição nos termos do enriquecimento sem causa.


///


O objecto do recurso resume-se em saber se a Relação efectuou exame crítico da prova;

Na afirmativa, se estão preenchidos os requisitos da anulação da doação.


///


Fundamentação.

Vêm provados os seguintes factos:

1.- Com data de 22 de Fevereiro de 2021, A. e R., como primeiro e segundo contraente, respetivamente, subscreveram a denominada “Doação”, junta a fls. 11v e 12 dos autos, pela qual o A. disse que “(…) doa ao segundo contraente, livre de ónus ou encargos, reservando para ele doador o usufruto vitalício, do seguinte imóvel : Fracção autónoma designada pela letra “A”, que corresponde ao rés-do-chão esquerdo, para habitação, com carvoeira no logradouro, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na D. ...A, na freguesia de ..., concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número mil seiscentos e vinte e dois, da freguesia de ..., registada a aquisição a favor do doador pela apresentação um de vinte e oito de Outubro de mil novecentos e noventa e sete, submetido ao regime da propriedade horizontal pela apresentação vinte de vinte de Maio de mil novecentos e noventa e sete e inscrito na matriz predial urbana sob artigo 892, da freguesia de ..., com o valor patrimonial correspondente à fracção de 111 223,70 euros.

Que ele primeiro contraente tem setenta e nove anos de idade, pelo que a esta doação o valor de oitenta e oito mil novecentos e setenta e oito euros e noventa e seis cêntimos, que é o valor da nua propriedade (…).”.

2.- No dia 22.02.2021, foi celebrado pela advogada DD o “Termo de Autenticação”, junto a fls. 12v e 13, no qual A. e R., como primeiro e segundo outorgantes, respetivamente, declararam: “(…) Que para fins de autenticação me apresentaram o presente contrato de doação, que disseram haver lido e assinado e que o mesmo exprime as suas vontades, confirmando o conteúdo, instrumento esse que tem por objecto o seguinte imóvel: A raiz ou nua propriedade da fracção autónoma designada pela letra “A”, que corresponde ao rés-do-chão esquerdo, para habitação, com carvoeira no logradouro, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na D. …, na freguesia de ..., concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número mil seiscentos e vinte e dois, da freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana sob artigo 892, da freguesia de .... (…).”.

3. - Pela Ap. 2722 de 2021/04/15 a aquisição da fracção id. foi registada a favor do Réu e o usufruto foi registado a favor do A.

4. - Com data de 23.08.2022, foi proferida decisão no processo n.º 14449/21.1..., a correr termos no Juízo Local Cível de …, Juiz 10, que determinou “a aplicação ao beneficiário AA da medida de acompanhamento de representação especial, consignando-se que tal medida se tornou necessária desde 1 de maio de 2014. Em concreto, o maior acompanhado carece de representação para actos de disposição ou oneração do seu património.

Declaro ainda o maior acompanhado impedido de exercer os seguintes direitos pessoais:

a) tem impedimento dirimente absoluto para contrair casamento ( cfr. art.º 1601.º ,al. b) do C.Civil);

b) é incapaz de testar (art. 2189.º al. b) do C.Civil);

d) é - lhe vedado o direito de perfilhar ou adotar (art. 1850.º n.º 1, do C.Civil).”

5.- Da sentença constam os seguintes factos provados:

1º. AA nasceu a ... de ... de 1942 e é divorciado.

2º. O beneficiário apresenta um défice cognitivo global ligeiro, com maior incidência na memória, na fluência verbal e na construção viso espacial, com impacto no funcionamento diário, com diminuição do desempenho em situações sociais mais exigentes, requerendo algum suporte ou supervisão.

3º. Foi seguido em consulta externa de psiquiatria do Hospital Júlio de Matos entre 17/11/1998 e 12/07/1999 por apresentar quadro de distimia.

4º. Nesse seguimento foi-lhe diagnosticada Perturbação Afetiva Bipolar.

5º. Observado em 13/09/2017, foi-lhe detetada a existência de períodos longos de alteração cognitiva-afectiva graves, com expansão delirante do humor e consequentes perturbações no plano comportamental, redutoras da autocrítica e do discernimento global e aumento da permeabilidade à influência de terceiras pessoas.

6º. O beneficiário sofre de uma credibilidade excessiva que o vulnerabiliza perante pessoas mal-intencionadas.

7º. Desde pelo menos maio de 2014, o beneficiário é recorrente em comportamentos de prodigalidade e gestão do património.

8º. Entre 2014 e 2021 o beneficiário transmitiu a propriedade de vários imóveis a favor de EE, incluindo a sua casa de habitação, e emprestou-lhe €60.000,00, sem qualquer contrapartida.

9º. Atualmente o beneficiário está orientado no espaço e no tempo, auto e alo psiquicamente.

10º. Apresenta alterações da função executiva/visuo espacial ( prova do relógio : incapaz de desenhar números e ponteiros, incapaz de copiar cubo, incapaz de realizar sequência de números e letras).

11º. Sabe dizer quanto ganha de pensão.

12º. Consegue reconhecer o valor facial e patrimonial do dinheiro.

13º. É capaz de realizar trocos simples e complexos.

14º. É capaz de efetuar subtrações.

15º. É capaz de interpretar provérbios.

16º. Consegue relatar factos correntes do dia-a-dia.

17º. Apresenta noção da posse e das necessidades pessoais, bem como do património.

18º. O beneficiário é licenciado em Direito e foi advogado, encontrando-se reformado.

19º. Não tem filhos.

20º. Tem um irmão falecido.

21º. Conta com o apoio das primas.

22º. Reside sozinho e tem uma empregada para limpeza da casa.

23º. Desloca-se sozinho.

24º. Aufere uma reforma e rendas de imóveis que arrenda.”.

6.- O A. foi seguido nas consultas externas do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa – Polo Júlio de Matos entre 17.11.1998 e 12.07.1999, por apresentar um quadro de distimia.

7.- O A. sofre de perturbação afectiva bipolar.

8.- Segundo a declaração médico-psiquiátrica junta a fls. 18: “ No curso evolutivo da doença do A. foi patente a existência de períodos longos de alteração cognitiva- afectiva graves, com expansão delirante do humor e consequente perturbação no plano comportamental, redutores da autocritica e do discernimento global e aumento da permeabilidade à influência de terceiras pessoas.”.

9.- A 8 de Janeiro de 2021 o R. começou a viver na casa do A., sita na Rua D. ...., em ....

10. - O Réu permaneceu na casa do A. até 8 de Junho de 2021.

11- A fracção sita na Rua D. .... ...,..., foi a casa de habitação permanente do Autor desde 1988.

12. - O A. aufere uma reforma e recebe rendas de imóveis que arrenda, em valores não apurados.

Foi julgado não provado:

2.13. (i) Que o R. parecia querer cuidar do A., zelar pelas coisas e pela sua casa, mas afinal quem assegurava a limpeza e manutenção da casa, no dia a dia, era alguém contratado pelo A., só para o efeito, em alguns dias da semana.

2.14. (ii) Que desde o início que o R. sempre quis que o A. lhe entregasse uma chave da casa, que lhe permitisse ter liberdade de sair e entrar, quando quisesse, tentando desde sempre, convencer o A. que ele queria viver com o ele para o resto da vida e que adorava aquela casa.

2.15. (iii) Que o R. sempre demonstrou uma grande vontade e desejo de que a casa ficasse para ele, não por morte do A., através de um testamento a seu favor, mas em vida do mesmo.

16. (iv) Que para isso o R. preparou e tratou de todos os procedimentos, com a ajuda de uma advogada brasileira, sua conhecida, que, por sua vez o encaminhou para o escritório onde foi celebrada a escritura de Doação.

2.17. (v) Que no período em que ocorreram estes factos, o A. estava a passar por uma fase pontualmente mais difícil quer do ponto de vista físico, quer psicológico, sendo isso do conhecimento do R.

2.18. (vi) Que do ponto de vista psicológico o A. deixasse várias vezes enfraquecer quer devido a problemas do foro psiquiátrico de que padece há já muitos anos, quer por desgostos ou traições e vigarices de que é alvo e tem sido alvo ao longo dos anos, nomeadamente e mais recentemente, desde 2018.

2.19. (vii) Que a bipolaridade do A. acentuou-se a partir de 2003.

2.20. Que como consequência do quadro clínico, o A. apresenta e revela várias fraquezas, nomeadamente, ao nível afectivo, demonstrando medo de ficar só, e a necessidade de alguém que cuide dele, levando-o ao ponto de quase querer “comprar” a sua companhia, mas de uma forma desequilibrada, injustificada, e altamente lesiva para o mesmo.

2.21. Que o A. vive o seu dia a dia, afastado dos seu familiares mais directos, como sejam, irmão, sobrinhos e primas, não sendo, por isso, possível contar como acompanhamento de familiares, contava unicamente, com a ajuda de uma empregada doméstica que, entretanto, saiu.

2.22. Que o A. aufere uma pensão de cerca de €1500, possui conta bancária junto do banco CTT e no Novo Banco, e aufere, ainda, dos rendimentos provenientes do arrendamento de dois imóveis que possui no ... em Lisboa, no total de cerca de €1500.

2.23. Que quando subscreveu o original do documento cuja cópia se encontra de fls. 11-verso a 13-verso, o A. estava incapaz de entender o sentido e consequências da sua declaração, o que o R., não podia deixar de saber.

O direito.

O Recorrente começa por insurgir contra o julgamento da matéria de facto feito na Relação, acusando o acórdão recorrido de não ter extraído dos factos instrumentais enunciados nos números 4 a 5, conjugados com o depoimento da testemunha CC e do depoimento de parte do Autor, as consequências probatórias que se impunham de forma a julgar provado o facto enunciado no ponto 2.3.

No referido ponto a sentença julgou não provado que:

“Quando subscreveu o original do documento cuja cópia se encontra de fls. 11-verso a 13-verso, o A. estava incapaz de entender o sentido e consequências da sua declaração, o que o R., não podia deixar de saber.”

No recurso de apelação, o Autor impugnou esta decisão para que aquele facto fosse julgado provado, posição que fundamentou na prova testemunhal, no depoimento de parte do Autor e do que em seu entender resulta da sentença proferida no P. nº14449/21.1..., que aplicou ao Autor a “medida de acompanhamento de representação especial”.

A Relação, com um voto de vencido, manteve a decisão da 1ª instância tendo considerado que a prova testemunhal produzida nos autos e o depoimento do Autor, não é suficiente para infirmar a decisão da 1ª instância. E no que tange ao que consta dos pontos 4 e 5 - sentença proferida no P. nº14449/21.1...) – considerou irrelevante a factualidade que dali resulta uma vez que: i) como factos essenciais teriam de ser alegados pelo Autor mediante articulado superveniente e não pela simples junção de certidão da sentença; ii) a data da declaração do início não constitui mais que uma presunção simples, que carece de ser completada por outra prova; iii) a matéria de facto provada na acção de maior acompanhado não tem força probatória ora daquela acção.

Diferentemente, considerou-se no voto vencido que deveriam considerar-se “os factos constantes dos pontos 2.4. e 2.5. a tal não obstando a ausência de alegação face à sua natureza de factos instrumentais probatórios; (ii) considerando-os, a ponderação de todos os elementos indicados à sua luz leva-me a concluir pela prova dos factos constantes do ponto 2.23. Destes factos resultaria integrar-se a situação dos autos na previsão do artigo 257.º do Código Civil com a consequente procedência do pedido de anulação da doação”.

Que dizer?

É sabido que o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, não julga a matéria de facto, estando-lhe vedado tomar posição sobre pretensos erros cometidos na apreciação da matéria de facto, salvo nas situações excepcionais previstas no nº 3 do art. 674º do CPC, a saber, havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

Como assim, está fora dos poderes do STJ apreciar a forma como o tribunal recorrido analisou/valorou o depoimento de parte do Autor, que não consistiu no reconhecimento de factos desfavoráveis, e os depoimentos das testemunhas por em ambos os casos estarmos perante meios de prova sujeitos à livre apreciação do tribunal (arts. 361º e 396º do CCivil) – cfr. por todos o acórdão do STJ de 26.01.2017, P. 417/14, dgsi.net.

Já o mesmo não se passa com a apreciação que o acórdão recorrido fez sobre a factualidade que resulta dos pontos 4 e 5 da matéria de facto, por poder estar em causa a violação ou errada aplicação da lei de processo, o que constitui fundamento da revista (art. 674º, nº1, alínea b) do CPC).

Importa assim saber se o que consta dos pontos 4 e 5 da matéria de facto - sentença proferida no processo n.º 14449/21.1..., que determinou “a aplicação ao beneficiário AA da medida de acompanhamento de representação especial – se traduz em factos essenciais ou instrumentais.

A distinção entre uns e outros resulta do art. 5º do CPC que estatui o seguinte:

1. Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.

2. Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:

a) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;

b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade se pronunciar;

c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.

3. O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação do direito.

Da consagração deste princípio, tem-se entendido pacificamente que as partes estão oneradas com a alegação dos factos essenciais, que constituem a causa de pedir e daqueles em que se baseiam as excepções, apenas podendo ser considerados os factos instrumentais, com função meramente probatória, que resultem da instrução da causa. (cfr, por todos, os acórdãos do STJ de 07.05.2015, P. 4572/09, de 13.07.2017, P. 442/15 e de 08.02.2018, P. 633/15).

Num esforço de distinção Castro Mendes, Direito Processual Civil, II, pag. 208, entende que factos instrumentais são os que interessam indirectamente à solução do pleito por servirem para demonstrar a veracidade ou falsidade dos factos pertinentes e para Miguel Teixeira de Sousa – Introdução ao Processo Civil, pag. 52 – tais factos são aqueles que indiciam os factos essenciais. Por outras palavras, são factos secundários, não essenciais, mas que permitem aferir a ocorrência e a consistência dos factos principais.

No mesmo sentido, escreveu Lopes do Rego, Comentários ao CPC, pag. 200, 1999:

Os factos instrumentais destinam-se a realizar a prova indiciária dos factos essenciais, já que através deles se poderá chegar, mediante presunção judicial, à demonstração dos factos essenciais correspondentes – assumindo, pois, em exclusivo uma função probatória e não uma função de preenchimento e substanciação jurídico-material das pretensões e da defesa.”

Á luz destes princípios, e sem quebra do respeito devido pela opinião que fez vencimento na Relação, os factos em causa têm natureza instrumental e não essencial, como bem notou a Ex.ª Senhora Desembargadora que votou vencida. Com efeito, eles não integram a causa de pedir na acção – a alegada incapacidade do Autor entender o sentido da declaração negocial – podendo ter uma função meramente probatória daquele estado.

Ora, como observou o acórdão deste STJ de 11.07.2019, P. 24369/16 (Tomé Gomes), invocada pelo Recorrente, “nos termos dos artigos 5º, nº2, alínea a), e 607º, nº4, este aplicável aos acórdãos da Relação por via do artigo 663º, nº2, todos do CPC, deve o tribunal extrair dos factos instrumentais resultantes da instrução da causa as ilações que se impuserem no sentido da comprovação dos factos essenciais. Neste domínio, cabe ao Tribunal da Relação, ao abrigo do art. 662º, nº1 do mesmo Código, fazê-lo no âmbito da reapreciação da decisão de facto impugnada.

Todavia, o exercício desse poder-dever cognitivo é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça em termos de verificar se foram observados os parâmetros formais ou balizadores da respectiva disciplina processual.

Assim, no que respeita à reapreciação da decisão de facto, compete ao tribunal de revista ajuizar se o Tribunal da Relação observou o método de análise crítica da prova prescrito no nº4 do indicado art. 607º, mas já não imiscuir-se na valoração da prova feita, segundo o critério da livre e prudente convicção do julgador, genericamente editado no nº5 do art. 607º do CPC.

Ora é hoje jurisprudência seguida por este Supremo que a reapreciação da decisão de facto impugnada, por parte do tribunal de 2ª instância, não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa.”

Dito isto, em que plenamente nos revemos,

O acórdão recorrido considerou e bem que os factos dados como provados na acção nº14449/21.1...) não têm força de caso julgado extra processualmente. Constitui na verdade entendimento pacífico que os efeitos do caso julgado reportam-se à própria decisão, não aos respectivos fundamentos. (cfr. acórdãos do STJ de 03.03.2021, P. 11661/18, de 11.10.2018, P. 826/14 e 02.03.2010, P 690/09).

No entanto, tal não os torna irrelevantes. São factos instrumentais, probatórios, de indiscutível importância para a prova dos factos essenciais, que deviam ter sido avaliados e conjugados com todo o material probatório carreado para os autos, criticamente, nos termos previstos no nº4 do art. 607º do CPC, de forma a que fique claramente definido se a situação se integra ou não na previsão do art. 257º do Cód. Civil, e não no instituto do enriquecimento sem causa que patentemente não se verifica, pela razão simples de o enriquecimento do Réu ter uma causa, o contrato de doação.

Nestas circunstâncias, impõe-se concluir que a Relação, ao apreciar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto deduzida pelo Autor, não fez a apreciação crítica de todos os elementos probatórios carreados para os autos, o que importa a anulação do acórdão recorrido, e a baixa do processo para o respectivo suprimento.

Decisão.

Pelo exposto, anula-se o acórdão recorrido respeitante à reapreciação da impugnação da decisão de facto dada como não provada na sentença.

Custas pelo vencido a final.

Lisboa, 02.05.2024

Ferreira Lopes (relator)

Nuno Ataíde das Neves

Sousa Lameira