RESPONSABILIDADE MÉDICA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
ATO MÉDICO
OBRIGAÇÕES DE MEIOS E DE RESULTADO
ÓNUS DA PROVA
DECLARAÇÕES DE PARTE
CONFISSÃO JUDICIAL
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
INCUMPRIMENTO
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
ERRO
ILICITUDE
Sumário


I. A confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.
II. A confissão judicial espontânea pode ser feita nos articulados ou em qualquer outro ato do processo, firmado pela parte pessoalmente ou por procurador especialmente autorizado, sendo que a declaração confessória deve ser inequívoca, salvo se a lei o dispensar, outrossim, a contraparte tem que fazer menção concreta, individualizada, do facto que aceita, não bastando, para esse efeito, aceitação genérica, exigindo-se sempre um mínimo de referência, sem o qual não poderá falar-se em aceitação.
III. Se os efeitos que o facto confessado é idóneo a produzir forem contrários ao interesse de uma pluralidade de sujeitos e subjetivamente incindíveis, a legitimidade para confessar radicará em consequência nessa pluralidade não podendo esses sujeitos isoladamente produzir uma confissão que se traduziria no reconhecimento da realidade de um facto que a todos é desfavorável.
IV. A litigante não pode aproveitar-se de parte das declarações prestadas que eventualmente lhe aproveite, desprezando a narração de outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia dos factos alegadamente confessados ou a modificar ou extinguir os seus direitos, em desconsideração e ofensa à indivisibilidade da confissão.
V. Estando em causa a responsabilização solidária dos demandados, enquanto responsabilidade civil por atos médicos, um enquanto Hospital, e outro enquanto médico da demandante e autor da operação cirúrgica que alegadamente veio a desencadear os danos físico-emocionais, importa ter pressente que estas situações encerram relações jurídicas que envolve o contrato de prestação de serviços médicos privados, tipologia cuja natureza se pode distinguir em um dos seguintes termos:
(i) contrato total, que é “um contrato misto (combinado) que engloba um contrato de prestação de serviços médicos, a que se junta um contrato de internamento (prestação de serviço médico e paramédico), bem como um contrato de locação e eventualmente de compra e venda (fornecimento de medicamentos) e ainda de empreitada (confeção de alimentos)”;
(ii) contrato total com escolha de médico (contrato médico adicional), que corresponde a “um contrato total mas com a especificidade de haver um contrato médico adicional (relativo a determinadas prestações)”;
(iii) contrato dividido, que é aquele em que “a clínica apenas assume as obrigações decorrentes do internamento (hospedagem, cuidados paramédicos, etc.), enquanto o serviço médico é direta e autonomamente celebrado por um médico (atos médicos).”

VI. Saber se houve cumprimento defeituoso dos contratos de prestação de serviços médico-cirúrgicos, responsabilidade civil por atos médicos, importa reconhecermos estar em causa uma situação de concurso de responsabilidade civil contratual e extracontratual, sendo que a orientação consolidada neste Supremo Tribunal de Justiça vai no sentido da opção pelo regime da responsabilidade contratual por ser mais conforme ao princípio geral da autonomia privada e por ser, em regra, mais favorável ao lesado.
VII. Indagar a responsabilidade contratual quanto à execução da obrigação por parte do profissional médico é sindicar a falta de realização integral da prestação devida, ou a sua realização defeituosa, conquanto se tenha generalizado que não seja típico das intervenções médicas com funções de cura ou melhoria do estado de saúde a obrigação de resultado, antes precipitam-se em obrigação ou obrigações de meios para a realização do tratamento ou intervenção adequados.
VIII. Estamos perante um erro médico na consecução dessa obrigação de meios desde que o ato da competência funcional de um profissional de medicina se revele descaracterizado e desadequado aos fins que a ciência e a arte da medicina injungiam para a debelação ou minoração de um padecimento previamente diagnosticado e reconhecido pela cognoscibilidade da ciência médica.
IX. A responsabilidade médica por violação das leges artis tem lugar quando, por indesculpável falta de cuidado, o médico deixe de aplicar os conhecimentos científicos e os procedimentos técnicos que, razoavelmente, face à sua formação e qualificação profissional, lhe eram de exigir, ou seja, a violação do dever de cuidado pelo médico traduz-se precisamente na preterição das leges artis em matéria de execução da sua intervenção
X. Só com a violação do dever de cuidado, avaliado em função de um padrão médio de comportamento, mediatizado pelas legis artis, é que, independentemente das consequências, mais ou menos graves, para o doente, e numa análise neutra a posteriori, teremos um erro juridicamente relevante, base para um ilícito de natureza pessoal e uma responsabilidade subjetiva, enquanto pressuposto primeiro da responsabilidade civil por atos médicos.
XI. Em sede de distribuição do ónus da prova perante obrigações de meios, incumbe ao doente-paciente lesado, na qualidade de credor, provar a falta de cumprimento do referido dever objetivo de cuidado na atuação técnica como fundamento de ilicitude na responsabilidade contratual médica (art.º 342º n.º 1 do Código Civil.), nele incluindo a obrigação omissiva de não afetar a sua integridade física e saúde.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO

I. AA intentou a presente ação declarativa comum contra, Hospital dos Lusíadas S.A e BB, pedindo a condenação solidária dos Réus a pagar-lhe €266.171,33, acrescidos de juros vincendos à taxa legal.

Articulou, com utilidade, que o Réu, BB é médico e exerce funções para o Réu, Hospital Lusíadas, S.A.; que no âmbito de tais funções, o primeiro efetuou uma cirurgia artroplástica no joelho direito da Autora; que um mês após esta cirurgia, foram verificadas complicações em consequência da mesma, levando à amputação da perna direita da Autora, o que lhe provocou danos patrimoniais e não patrimoniais.

2. Contestando, o Réu, Hospital Lusíadas, S.A. deduziu as exceções de ineptidão da petição inicial e de ilegitimidade ativa da Autora relativamente ao pedido de indemnização por danos patrimoniais que envolvem os pagamentos realizados pelos Serviços Sociais da Caixa ... (SSC...) e pelo marido da Autora, tendo ainda impugnado a factualidade alegada na petição inicial. Mais requereu a intervenção principal provocada de Fidelidade-Companhia de Seguros, S.A..

3. Na sua contestação, o Réu, BB. alegou a inexistência de qualquer relação contratual com a Autora, já que os cuidados de saúde que foram prestados por si o foram na qualidade de médico colaborador do Réu, Hospital Lusíadas, S.A., mais tendo impugnado a factualidade alegada na petição inicial. Requereu ainda a intervenção provocada de AXA Portugal, Companhia de Seguros, S.A..

4. Admitidas ambas as intervenções, apresentaram as intervenientes contestação defendendo a improcedência da ação.

5. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador que julgou improcedentes as exceções deduzidas e fixou o objeto do litígio e os temas de prova.

6. Calendarizada e realizada a audiência final, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente.

7. Inconformada, apelou a Autora, AA, tendo o Tribunal a quo conhecido do interposto recurso, proferindo acórdão em cujo dispositivo consignou: “Pelo exposto, acordam as juízas desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.”

8. É contra este acórdão, proferido na Relação de Lisboa, que a Autora, AA se insurge, interpondo recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:

“1. A recorribilidade, por revista, do acórdão recorrido não é vedada por a 1ª e a 2ª instância terem dado decisões idênticas, uma vez que a primeira se fundou nas normas da responsabilidade extraobrigacional e a segunda nas normas da responsabilidade obrigacional, o que consubstancia fundamentos essencialmente diferentes (arts. 629-1 e 671-3 do CPC).

2. Se assim não fosse, o recurso seria admissível como revista excecional, por oposição com o acórdão do STJ do proc. 136/12 (quanto à questão da necessidade de prova da causa efetiva do dano e à questão do grau de exigência na prova do próprio facto ilícito, em caso de lesão surgida depois de uma intervenção cirúrgica), assim como por estarem em causa interesses de particular relevância social (fundamentos e limites da responsabilidade médica) e, bem assim, questões cuja apreciação é, pela sua relevância jurídica, claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, nomeadamente requisitos e efeitos da confissão feita em articulado por um litisconsorte voluntário e articulação entre causalidade adequada e causalidade efetiva (art. 672-1 CPC, alíneas a), b) e c)).

3. Os arts. 54. 55, 59, 61, 75, 76, 94, 96, 97, 101 a 106, 108, 109 e 118 da contestação da ré hospital constituem confissão: através dela, a contestante alega a ocorrência de factos que lhe são desfavoráveis, por serem relevantes (ainda que não por si eficazes) no âmbito duma relação jurídica de responsabilidade que assente no pressuposto da imputabilidade à instituição hospitalar em que presta serviço o médico que praticou os atos lesivos, ou a equipa de prestação de cuidados clínicos em que ele se integra.

4. É indiferente que o reconhecimento desses factos haja sido feito pela instituição hospitalar no pressuposto de que a alegação não fizesse prova como confissão, ou no de que eles não lhe seriam desfavoráveis por ela não responder pelos atos médicos assim praticados, porquanto a confissão se basta com a consciência de que o facto que dela é objeto se verificou na realidade, independentemente da consciência das suas consequências jurídicas (art. 352 CC).

5. Tendo a Relação entendido – corretamente – que a instituição hospitalar é responsável pelos atos médicos praticados, nas suas instalações, pelos médicos que nela prestam serviço, cabia-lhe ter por confessados os factos referidos, com o efeito de prova plena do art.358-1 CC, ainda que só em face de quem os confessa e sem efeito perante o médico, com ela demandado como responsável solidário e, portanto, na qualidade de litisconsorte voluntário (art. 353-2 CC).

6. Esta prova em face de uma parte de factos que não estão provados perante a comparte processual, em caso de litisconsórcio voluntário, não é estranha ao processo civil português, como decorre, nomeadamente, do art. 574-2 CPC.

7. Diferentemente acontece no litisconsórcio necessário (parte final do art. 353-2 CC), como julgou o acórdão proferido pelo TRP no processo 2210/19, que o acórdão recorrido cita, sem ter em conta esta distinção de regimes.

8. Diferentemente pode ser também quanto à confissão em depoimento de parte, nomeadamente por via da restrição do art. 454-1 CPC (que o acórdão recorrido não teve em conta ao citar o acórdão proferido pelo TRL no proc. 2987/11, embora este lhe faça expressa referência).

9. Dos factos alegados pela ré hospital nos artigos da sua contestação atrás citados resulta que o 2º réu violou a lex artis que lhe impunha a requisição de exames de pesquisa de possíveis lesões neurovasculares logo quando da 1ªconsultada autora ou quando, 7 dias depois, lhe propôs a cirurgia de colocação da prótese, dada a associação que eventualmente poderia existir com a doença reumatológica da autora.

10. Mais prementemente, esses exames não deviam deixar de se realizar quando, no imediato pós-operatório, a autora se queixou da falta de sensibilidade da perna operada e foi verificada pelo 2º réu a existência de flictema e úlcera do calcâneo, com dificuldade de extensão do pé, quando era provável que tal fosse determinado por lesão arterial ocorrida na intervenção cirúrgica.

11. A existência destas leges artis e a ligação científica entre a sua violação e a situação que originou a amputação da perna constituíam matéria de facto (como tal objeto da confissão em articulado pela ré hospital), base de sustentação dos juízos jurídicos sobre o incumprimento da obrigação e da adequação da causa ao dano.

12. A violação das leges artis é suficiente para se ter por incumprida a obrigação de meios, cabendo seguidamente ao lesante, nos termos gerais da responsabilidade obrigacional, a prova da sua falta de culpa.

13. A esta prova do contrário (art. 347 CC) não é equiparável a falta de prova de factos, a qual permanece neutra para a decisão de direito (art. 607-4 CPC).

14. O nexo de causalidade adequada contenta-se com a probabilidade, ou séria probabilidade, de a ocorrência do dano se dever ao facto ilícito (art. 563 CC), o que pressupõe que este constitua condição dessa ocorrência, estando errada a exigência de que, além da adequação, seja provada, com um juízo de certeza, a causa efetiva do dano, nesse sentido tendo decidido o STJ no acórdão-fundamento.

15. A doutrina do acórdão-fundamento é também invocável quanto à responsabilização da instituição hospitalar pela razão verificada na fase imediatamente subsequente à cirurgia, não obstante não se haja provado como – e por atuação de quem, da equipa que interveio na cirurgia – ela foi causada.

16. O acórdão recorrido violou, pois, os arts. 347, 352, 353-2, 358-1 e 563 do CC, bem como os arts. 574-2 e 607-4 do CPC, devendo ser revogado e substituído por outro que julgue a ré hospital responsável pelos danos sofridos pela autora.

17. Se, porém, estivesse certa a ideia – errada – de que, em consequência do litisconsórcio voluntário passivo, a confissão só surtiria o efeito de prova sujeita à livre apreciação do julgador, a Relação, não tendo feito essa apreciação, teria violado o disposto (relativamente ao iter probatório) nos arts. 607, nºs 4 e 5, e 662-2-c do CPC e o processo teria de voltar à Relação para que esta, ampliando a matéria de facto, procedesse a essa apreciação.

Deve, pois, o STJ revogar o acórdão recorrido e, em sua substituição, com fundamento no valor de prova plena da confissão por ela feita, condenar a ré hospital na reparação dos danos sofridos pela autora, ou, subsidiariamente, se se entender que ela tem o valor de prova livre, ordenar a descida do processo para, mediante ampliação da matéria de facto, a Relação proceder à apreciação do valor da confissão.”

9. O Réu, Hospital dos Lusíadas S.A. apresentou contra-alegações, aduzindo as seguintes conclusões:

I. A Recorrente antes de mais invoca que a fundamentação do acórdão recorrido diverge da fundamentação constante da sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, na medida em que no primeiro caso atendeu-se à responsabilidade obrigacional e no segundo caso à responsabilidade extracontratual. Isto para poder justificar o recurso de revista.

II. Salvo o devido respeito, estamos perante uma falsa questão, na medida em que tanto o Tribunal de 1.ª Instância, como o Tribunal da Relação coincidem na mesma fundamentação, ou seja, que não está demonstrada qualquer desconformidade entre os atos praticados pelos Réus e as legis artis bem como o nexo de causalidade entre esses atos e os danos.

III. Assim, independentemente de se aplicar qualquer um dos regimes de responsabilidade civil, o certo é que o cerne da fundamentação em ambos os casos é o mesmo, ou seja, não existe qualquer violação da legis artis. Para o caso é irrelevante se a responsabilidade gerada seria obrigacional ou se estava em causa um ato / omissão ilícito, o que importa é apreciação de ambos os Tribunais ser igual, como é o caso. Deste modo, não existindo voto de vencido e sendo a fundamentação a mesma, não é admissível o recurso de revista, nos termos do artigo 671.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.

IV. Quanto à alegada relevância social da questão da responsabilidade civil médica, nada é adiantado a este propósito. Sendo certo que se todos os casos onde estivesse em apreciação a responsabilidade civil médica fossem considerados como tendo relevância social, então, existiria sempre a possibilidade da revista excecional neste tipo de litígios, o que não deixaria de ser absurdo.

V. Quanto à alegada relevância jurídica, a Recorrente parte de dois pressupostos errados: A de que existiu uma confissão por parte da ora Recorrida e dos termos em que foi apreciada a eventual causalidade, como abaixo veremos. Sem conceder, não se compreende, nem a Recorrente o esclarece, onde pode estar em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito. Na verdade, o recurso da Recorrente assenta apenas e só no saber, no caso concreto, se a Recorrida Hospital confessou um conjunto de factos e, se sim, está verificado um nexo de causalidade entre a alegada ilicitude e os alegados danos.

VI. Não só a Recorrente não concretiza a relevância jurídica e onde estão em causa os interesses sociais de particular importância, como, de todo o modo, seguindo os critérios definidos por Acórdão, facilmente se verifica que tais critérios / pressupostos não estão verificados.

VII. Por fim, quanto à alegada oposição de acórdãos, não é demais sublinhar que no acórdão recorrido não está demonstrada qualquer causalidade entre os atos praticados pelos Réus e a amputação, nem a ilicitude por partes daqueles. Existe assim uma diferença essencial que consiste no facto de no acórdão fundamento ter ficado demonstrado que na execução da cirurgia contratada ter sido causada uma lesão na medula. Neste caso, o afastamento da responsabilidade dos ali Réus só poderia ser feita ao nível do pressuposto da culpa, como bem se diz no ponto 11 do acórdão fundamento, na medida em que ficou provada a ilicitude pelo desrespeito do dever de proteção da integridade física da ali Autora, na execução do contrato (vide ponto 12 do acórdão).

VIII. Já no caso destes autos, a ilicitude não ficou sequer demonstrada (conforme a passagem acima transcrita), logo, o tema do nexo de causalidade ficou em si mesmo prejudicado.

IX. Em suma, não estão preenchidos os pressupostos da revista excecional previstos no artigo 672.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. Por tudo o que se disse acima, não deve ser admitido o recurso, como revista ou como revista excecional.

X. A Recorrente, na senda daquilo que já referiu inúmeras vezes no processo, continua a insistir numa alegada confissão de factos por parte da ora Recorrida. Analisados os artigos da Contestação da Recorrida, descritos pela Recorrente entre as páginas 5 e 8 das suas alegações, não existe qualquer “reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária” (vide artigo 352.º do Código Civil).

XI. Aquilo que a Recorrente parecer querer fazer crer nas suas alegações de recurso é que a Contestação passa por um atribuir de responsabilidades e de culpa ao Co-Réu médico, o que não é manifestamente verdade mas, ainda que assim fosse (o que não se concede), nunca estaríamos perante a confissão de factos desfavoráveis à Recorrente mas o ter como verdadeiros factos imputados pela Recorrente / Autora ao Co-Réu, o que nunca teria os efeitos de confissão (desde logo, porque este não deixou de os impugnar na sua Contestação, facto que a Recorrente não questiona).

XII. É certo que nas suas Conclusões, a Recorrente parece explicitar um pouco melhor a sua pretensão, quando na Conclusão 16, refere que (afinal de contas) aquilo que pretende é apenas e só a responsabilização da Ré Hospital.

XIII. No entanto, e se assim for, ainda mais incompreensível se torna o raciocínio seguido, na medida em que a Recorrente pretende dar como confessados factos alegados pela ora Recorrida onde supostamente é atribuída responsabilidade exclusiva ao Réu médico para depois concluir que tal confissão necessariamente determina a exclusiva condenação da Ré Hospital.

XIV. De todo o modo, toda a tese apresentada pela Recorrente e os factos que a sustentam não foram dados como provados (vejam-se factos não provados f. a g.), assim, nunca seria possível uma condenação dos Réus face aos factos não provados, decisão esta que, como sabemos, não é passível de alteração em sede de recurso de revista. Ou seja ainda que vingasse, por absurdo, a tese da Recorrente de que existia uma alegada e parcial confissão dos factos, face à matéria de facto provada e não provada, não existe fundamento para uma revogação do acórdão recorrido.

XV. Adiante-se que a Recorrente faz uma seleção habilidosa dos artigos que constam da Contestação, descontextualizando os mesmos e negligenciando tudo o demais que ali é referido. Atente-se por exemplo aos artigos 119.º a 121.º. São claros exemplos de que não existiu qualquer confissão ou admissão de responsabilidade quanto a uma eventual violação das legis artis.

XVI. Da mesma forma, a Recorrida impugnou claramente os artigos constantes da Petição Inicial, dos quais resulta a alegação da responsabilidade e culpa dos Réus, senão leiam-se os artigos 23.º e 24.º.

XVII. Aquilo que a Recorrente pretende é uma revisão do julgamento da matéria de facto, através de uma pretensa confissão que não existiu e abstraindo-se de toda a prova produzida a qual conduziu a um julgamento da matéria de facto manifestamente contrário à sua pretensão.

XVIII. No que respeita às considerações a propósito do nexo de causalidade, as mesmas estão prejudicadas a partir do momento em que não está provada qualquer ilicitude.

XIX. Também são desajustadas a analogia com oacórdão fundamento, na medida em que neste está demonstrado não só o nexo causal entre a cirurgia e a lesão como também o desrespeito dos deveres de cuidado na fase pré-operatória e na fase pós-operatória. Já nestes autos, não está demonstrada a ilicitude ou qualquer violação das legis artis. Precisamente por ter consciência deste facto é que a Recorrente recorre a uma alegada confissão (que, como vimos, nunca teve lugar), na falta de melhor argumentação.

XX. Assim, improcede o recurso apresentado, devendo manter-se o douto acórdão recorrido e fazendo-se JUSTIÇA!

10. O Réu, BB apresentou contra-alegações, aduzindo as seguintes conclusões:

“1. O presente recurso não é admissível, porquanto ao contrário do que a recorrente pretende, verifica-se uma situação de dupla conforme, já que a fundamentação utilizada nas instâncias não é essencialmente diferente;

2. O Recurso de Revista Excecional não deve ser admitido, porquanto não estão reunidos os requisitos de que depende;

3. A mera afirmação proclamatória de que a relevância social da responsabilidade civil médica decorre da existência de acórdãos sobre o tema, não é fundamento suficiente para sustentar a admissibilidade do Recurso de Revista Excecional;

4. Isto é particularmente claro quando a matéria em causa é apresentada na sua formulação mais genérica, como é o caso;

5. Também a mera afirmação de que a qualificação jurídica da confissão de uma comparte é matéria de relevância jurídica também carece de demonstração;

6. Não há oposição de Acórdãos como a Recorrente pretende porque a matéria de facto em que os mesmos assentam é substancialmente diferente;

7. No Acórdão fundamento foi feita prova do ato ilícito, enquanto que no Acórdão recorrido tal não sucedeu;

8. Os factos da contestação do Réu Hospital que a Recorrente qualifica como confessórios não o são, porque em nenhum momento aquelas declarações, podem ser tomadas enquanto desfavoráveis ao Hospital;

9. Acresce que não se trata de factos que possam ser qualificados como pessoais;

10. De notar que, ainda que assim não se entendesse, o Réu Hospital não refere ter sido cometido qualquer ato ilícito;

11. Para mais a suposta confissão não seria oponível às partes que negaram esses mesmos factos, sendo que não se pode dar como provado um facto relativamente a uma parte e o seu oposto quanto à outra;

12. Não estamos, portanto, qualquer confissão que constitua prova plena que o Tribunal da Relação tivesse de ponderar.

Nestes ternos e nos melhores de direito deve o recurso ser liminarmente rejeitado por não ser admissível; não obstante, caso assim não se entenda, deve ser julgado improcedente, por contrário ao Direito aplicável, mantendo-se a decisão recorrida. Assim decidindo farão V. Exas a costumada Justiça!

11. A Interveniente, Fidelidade-Companhia de Seguros, S.A. apresentou contra-alegações, aduzindo as seguintes conclusões:

“a) O presente recurso de revista não é legalmente admitido e deve ser rejeitado liminarmente;

b) Em todo o caso, o recurso deve ser julgado improcedente, por contrário ao Direito aplicável.”

12. A Interveniente, AGEAS PORTUGAL - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. apresentou contra-alegações, aduzindo as seguintes conclusões:

“I. O presente recurso não é admissível “nos termos gerais dos arts. 629-1 e 671-1 do CPC, não afetados pelo art. 671-3, dado terem sido essencialmente diferentes as fundamentações da decisão da 1ª instância e da 2ª instância, a primeira baseada no regime da responsabilidade extraobrigacional e a segunda no da responsabilidade obrigacional”, pelas razões que procurará demonstrar de seguida;

II. Flui dos autos, de forma indesmentível, que a primeira instância apreciou os factos à luz das regras da responsabilidade civil extra obrigacional, ao passo que no Acórdão Recorrido essa apreciação é feita à luz das regras da responsabilidade civil contratual;

III. Isso sucedeu, todavia, porque a Recorrente peticionou a condenação dos RR ao abrigo das normas aplicáveis à responsabilidade civil extracontratual para depois, em alegações, vir invocar a responsabilidade contratual dos RR e agora, em nova sede recursória, vir sustentar a diversidade de fundamentação que ela própria desencadeou como fundamento do seu recurso;

IV. A relevância da “fundamentação essencialmente diferente” para efeitos de admissibilidade do recurso decorre do facto de o legislador ter instituído o regime da proibição do recurso em casos de dupla conforme; e é, portanto, uma norma de cariz excecional em relação à regra, geral, de proibição dos recursos nos casos de dupla conforme;

V. Por ser assim, a aplicação dessa norma tem de ser feita com particular cautela, de forma a fazer-se jus à intenção do legislador – Código Civil, artigo 9/1 – de restringir os recursos para o STJ nos casos em que as instâncias já haviam decidido no mesmo sentido;

VI. No caso dos autos, foi a Recorrente que deu azo à diferença de fundamentação entre a Sentença e o Acórdão.

VII. Assim, bastaria reconfigurar o enquadramento jurídico da lide para se lograr, sempre, a segunda instância recursiva;

VIII. Essa interpretação do sistema viola o disposto no artigo 9º do Código Civil e no nº 3 do artigo 671º do Código de Processo Civil;

IX. Essa intenção legislativa restritiva, que é clara, está sublinhada pelo uso do advérbio de modo “essencialmente”, vincando que nem todas as diferenças de fundamentação - mas apenas as centrais e estruturantes - são relevantes para apreciação da admissibilidade do recurso;

X. No caso concreto, a essencialidade da diferença na fundamentação não reside diferença na qualificação da responsabilidade, nomeadamente porque o regime aplicado em sede de recurso é mais exigente, sob o ponto de vista do ónus probatório, para os RR;

XI. O essencial da matéria em apreço é, no entanto, que a Autora não logrou provar a prática de qualquer ato ilícito, por ação ou omissão, dos RR;

XII. O essencial da fundamentação das sentenças é o segmento relativo ao (in) cumprimento do ónus da prova quanto à ilicitude, enquanto requisito da responsabilidade civil - parte que é estrutural e essencialmente comum a ambas as decisões;

XIII. O Recurso de Revista Excecional não deve ser admitido, porquanto não estão reunidos os requisitos de que depende;

XIV. A mera afirmação proclamatória de que a relevância social da responsabilidade civil médica decorre da existência de acórdãos sobre o tema, não é fundamento suficiente para sustentar a admissibilidade do Recurso de Revista Excecional;

XV. Isso é particularmente claro quando a matéria em causa é apresentada na sua formulação mais genérica, como é o caso. É que, salvo melhor opinião, o interesse de particular relevância social a ponderar não coincide com a problemática “da responsabilidade civil médica”; e a mera afirmação de que a qualificação jurídica da confissão de uma comparte é matéria de relevância jurídica também carece de demonstração;

XVI. Inexiste a oposição de Acórdãos a que alude a Recorrente porquanto no acórdão fundamento foi feita prova do ato ilícito;

XVII. Os factos da contestação do Réu Hospital que aquela qualifica de confessórios não o são, porque em nenhum momento aquelas declarações, podem ser tomadas enquanto desfavoráveis ao Hospital;

XVIII. Em nenhum dos passos citados, o Réu Hospital refere ter sido cometido qualquer ato ilícito pelo Réu médico;

XIX. Naturalmente que a admissão de possibilidades, como as que aventa o Hospital designadamente no artigo 71º da Contestação, é, em si mesma, contrária à ideia de confissão.

XX. Por outro lado, tendo em conta a forma como se posicionou perante a lide e os factos, a verdade é que aqueles factos em concreto não são de natureza pessoal o que, por si só, determina que sejam insuscetíveis de confissão;

XXI. Sendo completamente contraditório com a defesa entendida no seu conjunto pretender retirar consequências confessórias daqueles factos;

XXII. Essa confissão não seria oponível às partes que negaram esses mesmos factos, seja por mero desconhecimento (como a Recorrida) seja por impugnação especificada (como o réu médico)

XXIII. Não há, por isso, qualquer confissão relevante que o Tribunal da Relação tivesse de ponderar;

XXIV. Mas mesmo que houvesse, crê a Recorrente que a mesma não constituiria prova plena, pela necessidade de atender à posição que as demais partes – especialmente o Réu Médico -assumiu sobre os mesmos factos;

XXV. Essa conclusão, tendo em conta que a Autora não impugnou a matéria de facto no recurso que interpôs da Sentença, determina que a matéria factual se deva ter por estabilizada e que, por ser assim, permaneça incumprido o ónus da prova sobre a ilicitude da atuação médica, que inequivocamente impendia sobre a Autora.

Nestes termos, deverá ser rejeitado o Recurso ou, caso assim não se entenda, deverá ser mantido o Acórdão em crise, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!”

13. O Senhor Juiz Conselheiro a quem o recurso foi distribuído, exarou despacho a remeter os autos à Formação (item 7. do Provimento 23/2019).

14. Foi proferido acórdão pela Formação, em cujo dispositivo se consignou: “Pelo exposto, decide-se na Formação do Supremo Tribunal de Justiça admitir o recurso de revista excecional.”

15. Foram cumpridos os vistos.

16. Cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. As questões a resolver, recortadas das alegações da Autora/AA, consistem em saber se:

I. O Tribunal a quo cometeu nulidade processual, violando o disposto no art.º 413º do Código de Processo Civil, ao desconsiderar os requisitos e efeitos da confissão, feita em articulado, por um litisconsorte voluntário, no caso o 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A., nos artºs. 54º, 55º, 59º, 61º, 75º, 76º, 94º, 96º, 97º, 101º a 106º, 108º, 109º e 118º da contestação?

II. O Tribunal recorrido fez errada subsunção jurídica importando revogar o acórdão recorrido, e, em sua substituição, com fundamento no valor de prova plena da confissão, condenar o 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A. na reparação dos danos sofridos pela demandante, ou, subsidiariamente, se se entender que a confissão tem o valor de prova livre, ordenar a remessa dos autos à Relação para, mediante ampliação da matéria de facto, o Tribunal recorrido proceder à apreciação do valor da confissão?

II. 2. Da Matéria de Facto

Factos Provados:

“1- A autora nasceu em ... .12.1943, é casada com CC desde ... .08.1973 e reside com ele desde essa data em economia comum.

2- Tem uma filha nascida em ........75, casada desde ........2005, e dois netos, um nascido em ........2006, e outro nascido em ........2010.

3- A A. exerceu a profissão de empregada de escritório e atualmente está reformada a receber uma reforma de 5 995,78 euros anuais.

4- O marido da A. foi empregado no Banco ... e Caixa ..., auferindo da Caixa Geral de Aposentações a pensão mensal de 2.266,30 euros, tendo-lhe sido pago em 2012 o total anual de 29.020,20 euros.

5- Autora e marido são proprietários de uma casa tipologia T3 com garagem para 3 carros, e a A. é dona, desde 20..., de um veículo automóvel de marca Peugeot, tendo uma situação económica confortável.

6- A única filha da autora está empregada na Caixa ..., é casada, estando igualmente o seu marido empregado, e tem uma situação económica confortável, sem necessitar de apoio dos pais.

7- A autora sofre desde há cerca de 20 anos de artrite reumatoide, doença que causa inflamações nas articulações, entre outras alterações.

8- Devido a esta doença, a autora tinha problemas sobretudo nos joelhos e, por essa razão, em 2005 foi operada ao joelho esquerdo, tendo sido feita artroplastia total do joelho, ou seja, substituição da articulação do joelho da perna esquerda por prótese.

9- Em resultado desta operação, a autora, relativamente ao joelho esquerdo, ficou sem inflamações, inchaços ou dores.

10- Em princípios de 2012, na sequência de consultas de ortopedia no Hospital dos Lusíadas, aqui 1º R., a autora passou a ser seguida pelo Dr. BB, 2º Réu, médico especialista em ortopedia, a prestar serviços no 1º R., atuando com total autonomia técnica e científica relativamente a este último.

11- Na sequência, a autora passou a ser acompanhada pelo Dr. BB, e todas as consultas e tratamentos que a autora teve no âmbito desta doença, a partir de então, foi sempre por marcação e acompanhamento de pessoal do Hospital, 1º réu, nas instalações deste.

12- Após várias consultas com o Dr. BB, e realizados todos os exames prescritos por este, feitos nas instalações e com técnicos do 1º réu, o Dr. BB propôs-se fazer, no joelho direito da autora, operação idêntica à do joelho esquerdo, assegurando a probabilidade de obtenção dos mesmos resultados do joelho esquerdo.

13- Depois da operação ao joelho esquerdo, em 2005, a A., apesar de sofrer de artrite reumatoide, fazia a sua vida normal deslocando-se de forma independente e sem ajuda de terceiros, assegurava a lide da casa e apoiava a filha na educação dos netos, cuidando deles.

14- A operação cirúrgica proposta pelo 2º R. destinava-se a afastar as dores do joelho direito, e melhorar a sua locomoção, como já tinha acontecido com a intervenção cirúrgica ao joelho esquerdo.

15- Em 29.06.2012 o Dr. BB marcou a cirurgia, a qual foi realizada em 11.07.2012, no Hospital 1º réu, dirigida pelo Dr. BB, 2º R., e com apoio de pessoal e equipamento do Hospital réu.

16- Logo após a operação verificou a autora e fez notar ao pessoal do Hospital, 1º R., e ao 2º R., que não tinha sensibilidade na perna operada.

17- Nos dias seguintes à operação, a autora foi todos os dias acompanhada por pessoal do Hospital e pelo Dr. BB, e sempre a autora se queixou de que não sentia a perna do joelho para baixo.

18- Passados cerca de 4/5 dias da operação, o dedo grande do pé direito da A., e o calcanhar começaram a apresentar uma coloração escura.

19- Tais sinais foram referenciados no processo clínico da A. como “Zona de pressão do calcanhar/ sofrimento cutâneo por pressão”, foi retirada a compressão da zona, aplicada “placa Vahreesive”, e a autora teve alta dada pelo dr. BB, no dia 20 de julho de 2012.

20- No subsequente dia 27 de julho de 2012, a autora voltou à consulta no Hospital réu e foi novamente atendida pelo Dr. BB, o qual após a examinar fez o seguinte diagnóstico e registo clínico:

“Úlcera de pressão no calcanhar dtº assim como lesões (flictenas na face anterior do 1/3 médio da face anterior da perna dtª) cutâneas e sinal evidente de sofrimento vascular em declive com recuperação e retornos capilares, mas sinais evidentes de lesão arterial. Estas lesões instalaram-se no decorrer desta semana, apesar da medicação profilática e do uso de contenção elástica.

Pede-se observação por cirurgia vascular”.

21- Em 12 de Agosto de 2012 foi feita à autora no Hospital dos Lusíadas uma aortografia que revelou “lesão na art. popliteia dta”.

22- Tal exame foi efetuado por se ter revelado “quadro isquémico distal na perna/pé dto (necrose 1º dedo, calcâneo e loca tibial anterior)”.

23- Na sequência, a autora foi “submetida a um bypass popliteu/tronco tibioperoneal com veia safena contralateral em posição invertida” e foi feita “limpeza das zonas necrosadas da perna”.

24- Apesar desta cirurgia de revascularição, a evolução clínica da A. foi desfavorável e houve infeção de tecidos necrosados na perna e calcâneo.

25- Nessa sequência, foi feita nova intervenção cirúrgica para desbridamento, constatando-se coleção purulenta pré-tibial.

26- Nesta última intervenção, a autora foi avaliada no bloco operatório, sob anestesia, pela equipa de Cirurgia Vascular, Plástica e Ortopedia, tendo sido feita exploração do compartimento posterior da perna e a loca tibial anterior, tendo-se constatado a existência de infeção marcada, pelo que se decidiu propor a amputação pelo 1/3 inferior da coxa, sob pena de risco de vida da autora.

27- Dia 21.09. 2012, após consentimento, foi feita a amputação da perna direita da A. pelo 1/3 da coxa, ou seja, acima do joelho.

28- O Hospital dos Lusíadas é um hospital novo, construído e Instalado pela C.... ..... .. ........., com prestígio de um dos melhores hospitais privados do País.

29- Por seu lado, o Dr. BB é um conceituado e experimentado cirurgião na especialidade de ortopedia e traumatologia.

30- A autora, após a amputação da perna, passou a depender de terceiros para se locomover e deixou de poder assegurar, como fazia antes, o serviço doméstico em sua casa e de poder ajudar a filha na educação dos netos.

31- A autora teve alta da operação de amputação da perna em 8.10.2012.

32- Por esta cirurgia de amputação o Hospital réu cobrou 5.251.70 euros.

33- A partir da alta a autora iniciou tratamentos de medicina física e de reabilitação.

34- Em 1.10.2013, após várias sessões no Centro de Medicina de Reabilitação de ..., foi-lhe aplicada uma prótese em substituição da perna amputada.

35- Por força da doença de artrite reumatoide da autora, que lhe retira força e mobilidade dos braços e mãos, a prótese não conferiu à A. capacidade de verticalização, tendo esta ficado confinada ao uso de cadeira de rodas.

36- Devido à fraqueza muscular que a artrite reumatoide lhe provoca, a autora não tem forças para sozinha fazer mover a cadeira de rodas, assim como não tem forças para se locomover com ajuda de canadianas ou muletas apoiadas nas axilas dos braços, necessitando de terceira pessoa quer para locomover a cadeira, quer para locomover a A. por qualquer outro meio.

37- A autora, por força da doença de artrite reumatoide e da amputação da perna direita, dependerá sempre de terceiros para as suas atividades funcionais, incluindo entrar e sair da cadeira de rodas e fazer o mínimo movimento de locomoção.

38- É o marido da autora que tem prestado a esta todos os cuidados de saúde, de higiene, e alimentação que a esposa carece, assim como é ele que transporta a A. em cadeira de rodas.

39- A autora, na sequência dos factos referidos, está num estado de tristeza quase contínuo, por ter passado a obrigar o marido ou alguém que o substitua a estar junto de si para qualquer movimento que tenha de efetuar.

40- A autora deixou de poder fazer qualquer trabalho em casa, sendo obrigada a contratar uma empregada de limpezas, com o que despende uma média de 300,00 euros mensais.

41- A autora, pelos problemas provocados pela operação citada, e pela artrite reumatoide, tem de gastar em assistência médica, medicamentosa, fisioterapia, uma média de 150 euros mensais, tendo em conta que é beneficiária dos serviços sociais da Caixa ....

42- A autora pagou 2509,92 euros pela prótese.

43- A autora necessita de uma cadeira elétrica para se locomover sem ajuda de terceiros, embora continue a não conseguir entrar e sair da cadeira sozinha, a qual tem um custo de cerca de 6.525,90 euros.

44- A autora pagou pela referida operação ao joelho a quantia de 1.703,74 euros, como comparticipação aos serviços sociais da Caixa ..., e pela cirurgia de amputação 9.228,59 euros.

45- A A. deixou de poder cuidar dos seus netos, e já não pode ficar sozinha com eles, coisa que antes da referida operação fazia, o que era uma fonte de alegria diária para si.

46- E a filha não voltou, após a operação cirúrgica citada, a entregar os filhos ao cuidado da Autora e marido, dadas as limitações que ambos passaram a ter, pelas incapacidades da autora e pela contínua dedicação do marido aos cuidados da A.

47- Pelo facto de ter passado a estar sempre sentada, a autora tem escaras e outros inconvenientes físicos, que lhe causam dor.

48- O 1.º Réu celebrou com a Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A., um contrato designado por “contrato de seguro de responsabilidade civil geral e profissional”, com a apólice n.º 72/8250702, por efeito do qual se previu que a segunda será responsável, até aos limites do capital seguro, pela indemnização dos danos que vierem a ser exigidas à primeira, e que resultem, nomeadamente, de atos de negligência médica praticados no exercício da sua atividade profissional.

49- O evento referente à amputação da perna da A. não foi participado pelo 1º R. à Interveniente sua seguradora “Fidelidade”.

50- A Autora, à data da primeira consulta com o 2.º Réu -22-06-2012-, e antes da cirurgia de 11.07.2012, locomovia-se em cadeira de rodas porque tinha dificuldade em caminhar, muito embora referindo-se, no registo do 2.º Réu, na consulta daquele dia, que “em casa consegue andar agarrada”.

51- Dos diários de enfermagem, consta que a Autora, aos 13.07.2012, se queixava de “ausência de sensibilidade e mobilidade do pé (membro operado)” e que se verificou uma flictena no calcâneo (em linguagem não científica uma “bolha” no osso que forma o calcanhar) no caso com conteúdo hemático.

52- Na véspera da alta, no dia 17.07.2012, o 2.º Réu, depois de observar a Autora, refere, conforme registou no processo clínico, que “a sensibilidade táctil já existe a nível do 1/3 médio do pé direito, mas mantém défice de extensão ativo” (referindo-se à movimentação anatómica do pé), fazendo um diagnóstico favorável à alta médica.

53- Depois da alta, o 2.º Réu agendou nova consulta com a Autora para o dia 27.07.2012, tendo-se esta deslocado às instalações do 1.º Réu no referido dia para ser observada pelo 2.º Réu, que constatou novamente que a Autora não esboçava extensão ativa do pé, e apresentava, segundo o diagnóstico registado no processo clínico pelo 2.º Réu, uma úlcera de pressão no calcâneo direito e lesões/flictenas na face anterior do 1/3 médio da face anterior da perna direita (aquilo a que é chamado popularmente de "canela"), Lesões cutâneas essas com “sinal evidente de sofrimento vascular em declive com recuperação e retornos capilares, mas com “sinais evidentes de lesão arterial”, as quais segundo o 2.º Réu, se instalaram no decurso da semana em que esteve em casa, “apesar da medicação profilática e do uso de contenção elástica”, mais requerendo o 2º R. ao 1º R. a intervenção da equipa de cirurgia vascular.

54- Intervenção que foi de imediato instituída pela referida Área de especialidade vascular, que além de pedir a realização de exames, observou “importante edema da perna e pé e com grande flictena do calcanhar direito”, tendo sido drenado e aplicado penso de proteção, administrando-se a terapêutica médica no sentido de anti coagulação, tentando com isso uma melhoria do estado clínico da A.

55- O padrão arteriográfico demonstrado pelos exames realizados à Autora no dia 02.08.2012, pela Cirurgia Vascular (Ecodoppler e Angiotac), revelou a existência de uma lesão segmentar da artéria poplítea.

56- Na primeira consulta da A. com o 2º R a 22-6-2012, este apurou que:

-A A. tinha sido sujeita a uma artroplastia total do joelho esquerdo há 7 anos;

-Há cerca de dois anos havia sofrido uma fractura do fémur direito, razão pela qual foi operada no Hospital ..., tendo um encavilhamento aparafusado do fémur direito (vide processo clínico).

-A A. frequentava, à data, a consulta de Ortopedia do Hospital ..., estando em lista de espera para a colocação de uma prótese no joelho direito, que apresentava valgo exagerado e instabilidade do ligamento lateral interno (LLI), com dor.

- A. apresentava um deficit de mobilidade no joelho direito, com uma flexão de 80 e uma extensão de -20 graus e andava em cadeira de rodas por ter dificuldade em caminhar, sendo que em casa conseguia andar agarrada.

-A A. tinha 68 anos de idade, 73Kg de peso, 165 cm de altura, calçava o 38, estava reformada tendo sido empregada de escritório;

- Tinha, como antecedentes pessoais relevantes, artrite reumatoide desde há mais de 20 anos, hipertensão arterial, litíase renal, histerectomia total transfundida, miastenia gravis, patologia do foro oftalmológico com duas intervenções cirúrgicas para catarata, episódio de isquémia cerebral transitória e era alérgica à penicilamina;

- Estava multimedicada com Solexa (AINE), Fosamax, Voltaren (AINE), Meticorten (5mg/dia), Doxion, Tenormint mite, Zocor, Metrotexate (5mg/semana) e Folicil.

57- Na sequência da análise dos exames pedidos pelo 2º R. e das observações feitas em consulta, este diagnosticou à A. uma osteoartrose grau IV, joelho valgo grave em artrite reumatoide, pelo que foi proposta à doente cirurgia artroplástica do joelho direito e eventual remoção de material de osteossíntese do fémur direito – cavilha, caso intra operatoriamente se entendesse necessário, o que veio a ser realizado a 11-07-2012.

58- A equipa cirúrgica foi constituída pelo 2º R., pelo Dr. DD, como primeiro ajudante e pelo Dr. EE como segundo ajudante.

59- Quando foi dada alta à A. em 20-7-2012, esta foi encaminhada para o ambulatório da consulta de ortopedia com marcação para o Dr. BB para o dia 27 de julho de 2012, sendo medicada quer para as dores, quer para a prevenção do risco trombo-embólico e mantendo apoio de fisioterapia no domicílio, bem como instruída sobre os procedimentos vários a seguir, como sejam a contenção elástica dos membros inferiores e a aplicação de gelo no joelho direito.

60- Durante o período que decorreu desde a alta até à consulta de dia 27 de Julho de 2012 o 1º R. manteve contacto telefónico com o marido da A. de modo a ser informado quanto à evolução da situação clínica desta, tendo a A. e marido o contato telefónico do 1º R.

61- Aquando do descrito em 20, o 2º R. foi falar pessoalmente com a colega Drª FF, médica da cirurgia vascular, manifestando-lhe estar preocupado com a perna da autora, pelo que esta observou a A. nesse mesmo dia 27-7-2012.

62- Nessa observação a Dr.ª FF detetou edema acentuado da perna direita da A., com flictenas (bolhas de liquido), e diagnosticou trombose venosa profunda, a confirmar por exames que prescreveu, medicando de imediato a A. para esse quadro, o qual se confirmou após os exames.

63- Nessa observação a Dr.ª FF fez constar do processo clínico:

“Flictena do calcanhar dtº (drenou-se e penso de proteção); Lesão com pequena flictena da face anterior da perna, sem alteração da temperatura do membro.

Fez-se Doppler arterial – Fluxos bi/trifásicos popliteia e mono/bi na tibial posterior Boa reperfusão capilar.

Pede-se eco Doppler venoso e medica-se com lovenox 80, augmentin duo e nimed. Elevação do membro Reavaliar após 1 semana.”

64- No dia 3 de Agosto de 2012 os especialistas de cirurgia vascular concluíram, após a realização do eco-doppler arterial, pela existência de oclusão popliteia com reabitação monofásica distalmente, tendo também sido identificada TVP popliteio femoral.

65- O 2º R. pediu também a colaboração do Dr. GG, especialista de cirurgia plástica, para o tratamento das úlceras, tendo este médico observado a A. no dia 8 de Agosto, prescrevendo então a realização de penso com placa de hidrocoloide e hidrogel 3 vezes por semana, fazendo desbridamento com lâmina do tecido necrosado durante os pensos.

66- No dia 10 de agosto a A. voltou à consulta do 2º R., que manteve a indicação de ser observada e seguida pela cirurgia vascular, bem como a realização de pensos.

67- Por contrato de seguro titulado pela apólice nº .... .... ..02, celebrado com a AXA Portugal, Companhia de Seguros, S.A., com sede na Rua ..., ... ..., o segundo réu transferiu para esta a responsabilidade civil em que possa incorrer em consequência de atos, omissões e erros profissionais cometidos em diagnósticos, prescrições ou aplicações terapêuticas e no decurso de tratamentos ou intervenções cirúrgicas.”

Factos Não Provados

“a- Que o imóvel de que a A. e marido são proprietários foi comprado e pago pelo casal, pelo preço de 250.000,00 euros, em 2009, sem recurso a qualquer crédito; e que o veículo automóvel da A. tenha sido comprado por 20.000,00 euros, sem recurso a crédito.

b- Que o 2º R. disse à autora que iria conseguir o resultado de melhoria de vida que já havia proporcionado a operação anterior ao joelho esquerdo.

c- Que o descrito em 18 tenha ocorrido no dia seguinte à operação, 11 de Julho, e que tal sintoma decorria da deficiente irrigação sanguínea da perna operada.

d- Que na consulta de 27-7-2012 o 2º R., após ter verificado que havia uma ferida na parte inferior da perna operada e acentuando-se os sinais de pé escuro, continuando a autora a referir que não tinha sensibilidade na perna, mandou-a para casa, tendo-lhe sido feito apenas um penso.

e- Que na cirurgia de 21-09-2012 onde foi amputada a perna à A., tenha sido constatado que, na sequência da operação feita pelo Dr. BB em 11 de Julho de 2012, tenha ficado lesada a artéria poplítea direita, ficando a perna sem ser irrigada pelo fluxo sanguíneo.

f- Que o pessoal do 1º R. que acompanhou a autora em todo o processo e o Dr. BB, como responsável principal da operação, não prestaram a devida atenção aos sinais que a autora lhe ia referindo sobre a sua falta de sensibilidade na perna e deixaram arrastar a situação durante um mês e, unicamente por esta razão, a autora teve a sua perna amputada;

g- Que logo após os primeiros sintomas referidos pela A., se o 2º Réu tivesse mandado realizar exames às artérias, teria sido evitada a amputação da perna;

h- Que nos últimos meses antes da A. ser operada ao joelho a 11-7-2012, fazia todos os trabalhos de casa, desde cozinha a limpezas;

i- Que a A. necessite de pelo menos mais 4 próteses no espaço de 13 anos;

j- Que a A. gaste 15.000,00 euros no espaço de 13 anos, com nova cadeira elétrica e ou com a manutenção da mesma;

l- Que quando a A. sai à rua provoca em terceiros um sentimento de comiseração social;

m- Que à data dos fatos em causa nos autos, existia um acordo entre a 1.ª Ré e o 2.º Réu, mediante o qual este podia exercer a sua atividade profissional nas instalações daquela, com a liberdade e autonomia inerentes à sua profissão, e que a faturação podia ser feita na totalidade pela 1.ª Ré ou pelo 2.º Réu mediante apresentação de honorários.

n- Que na primeira modalidade (facturação total pela 1.ª Ré), o 2.º Réu recebia uma percentagem do valor cobrado, numa repartição de honorários, cabendo à 1.ª Ré uma quota minoritária, sendo quase toda a sua totalidade a favor do médico.”

II. 3. Do Direito

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da Recorrente/Autora/AA, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido no direito adjetivo civil - artºs. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

II. 3.1. O Tribunal a quo cometeu nulidade processual, violando o disposto no art.º 413º do Código de Processo Civil, ao desconsiderar os requisitos e efeitos da confissão feita em articulado, por um litisconsorte voluntário, no caso o 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A., nos artºs. 54º 55º, 59º, 61º, 75º, 76º, 94º, 96º, 97º, 101º a 106º, 108º, 109º e 118º da contestação? (1)

O Supremo Tribunal de Justiça, no que respeita às decisões sobre a matéria de facto, não pode alterar tais decisões, sendo estas decisões de facto, em regra, irrecorríveis.

A este propósito, estatui o art.º 662º n.º 4 do Código de Processo Civil que “das decisões da Relação previstas nos n.ºs 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça” estabelecendo, por seu turno, o art.º 674º n.º 3 do Código Processo Civil “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”, outrossim, prescreve o art.º 682º n.º 2 do Código Processo Civil que a “decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no n.º 3 do artigo 674º”, donde se colhe, com clareza, que o Supremo Tribunal de Justiça não pode sindicar o modo como a Relação decide sobre a impugnação da decisão de facto, quando ancorada em meios de prova, sujeitos à livre apreciação, acentuando-se que o Supremo Tribunal de Justiça apenas pode intervir nos casos em que seja invocado, e reconhecido, erro de direito, por violação de lei adjetiva civil ou a ofensa a disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova, ou que fixe a força de determinado meio de prova, com força probatória plena.

A decisão de facto é, pois, da competência das Instâncias, conquanto não seja uma regra absoluta (tenha-se em atenção a previsão do art.º 674º n.º 3 do Código de Processo Civil), pelo que, o Supremo Tribunal de Justiça não pode, nem deve, interferir na decisão de facto, somente importando a respetiva intervenção, quando haja erro de direito.

A Recorrente/Autora/AA insurge-se contra o aresto recorrido, sustentando que a decisão de facto desconsiderou os requisitos e efeitos da confissão feita em articulado, por um litisconsorte voluntário, no caso o 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A., nos artºs. 54º, 55º, 59º, 61º, 75º, 76º, 94º, 96º, 97º, 101º a 106º, 108º, 109º e 118º da contestação, devendo, por isso, ser alterada a decisão recorrida.

A reclamada impugnação da decisão contende com a alegada violação de lei adjetiva e substantiva civil, designadamente, a violação das regras de direito probatório material, donde, não está arredada a reponderação da decisão de facto, por parte deste Tribunal ad quem, com vista a reconhecer, ou não, o invocado erro de direito.

A enunciada pretensa declaração confessória, respeita aos seguintes artºs. da contestação Do 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A.

“A estas morbilidades do foro ortopédico encontram-se associadas muitas vezes outras diversas lesões, designadamente vasculares, muito embora, saliente-se, o 2.º Réu não tenha, nesta fase, pedido qualquer tipo de opinião aos especialistas de Cirurgia Vascular da 1.ª Ré” (art. 54)

“Em termos médicos, a avaliação inicial do doente deve começar, em termos protocolares, neste tipo de casos, com uma breve história (…) e [tem] uma segunda parte, que inclui exame físico geral, ortopédico e de pesquisa de lesões neurovasculares (refira-se que estas não parecem tertido lugar, pelo menos nunca foi consultada a especialidade da Cirurgia Vascular da 1.ª Ré neste momento)” (art. 55).

“Passados sete dias desta primeira consulta, a Autora foi a outra consulta com o 2.º Réu, mais concretamente no dia 29.06.2012, onde lhe foi apresentada por este uma proposta cirúrgica de remoção do material de osteossíntese do fémur direito, e também uma artroplastia total do joelho direito” (art. 59).

“Autora e 2.º Réu acordaram na referida intervenção cirúrgica, não tendo existido, por parte do médico, qualquer pedido de opinião ou parecer médico prévio à área de especialidade de Cirurgia Vascular da 1.ª Ré” (art. 61).

“O 2º Réu constatou, mesmo antes do dia da alta médica, este “défice de extensão ativo” do pé, e ainda uma “zona de pressão do calcâneo”, o que confirmou igualmente no próprio dia da alta, constando esta factualidade do respetivo Relatório de Alta Médica” (art. 75).

“Por absoluta decisão exclusiva do 2.º Réu, a doente foi enviada para casa, apesar de revelar uma diminuição da sensibilidade da perna, uma flictenae úlcerado calcâneo com dificuldade de extensão no pé, sem que o médico tivesse atribuído a estas evidências qualquer anomalia vascular arterial, mas também - reforce-se uma vez mais - sem que tivesse sido pedida a comparência para avaliação clínica de qualquer membro da especialidade de Cirurgia Vascular, ou outra, nesse momento” (art. 76).

“Só no dia 27.07.2012, quando a Autora regressa de casa depois da alta médica, é pedida, pelo 2.º Réu, após a observação da sua doente, pela primeira vez em todo este processo, a intervenção da Área de Cirurgia Vascular” (art. 94).

“O tempo que mediou entre a lesão arterial e a chamada para intervenção da Cirurgia Vascular teria já um prognóstico muito reservado” (art. 96).

“Nesse momento, existia já um compromisso vascular no membro operado, apresentando a Autora uma úlcera na loca tibial anterior, ou seja, no músculo da perna localizado na tíbia (mais conhecida como o osso da canela, na anatomia humana, localizado entre o pé e o joelho) e um agravamento da lesão no calcâneo, também com úlcera” (art. 97).

“O padrão arteriográfico demonstrado pelos exames realizados à Autora, no dia 02.08.2012, pela Cirurgia Vascular (Ecodoppler e Angiotac), revelou a existência de uma lesão segmentar da artéria poplítea” (art. 101).

“Que, por ser segmentar, determinou que os sinais de isquemia se tivessem revelado paulatinamente, e não numa circunstância típica de isquemia aguda (que teria determinado um rápido arrefecimento, palidez, impotência funcional), dado que existia ainda circulação sanguínea colateral” (art. 102).

“Acresce ainda que se verificou uma trombose venosa profunda concomitante, o que só reforça a ideia de que alguma intercorrência ou lesão iatrogénica terá ocorrido durante a cirurgia, a qual não foi registada” (art. 103).

“Com efeito, é mesmo incomum a concomitância destas duas lesões (lesão arterial com isquemia e, também, uma trombose venosa),ainda que em casos de doentes como a Autora, com várias comorbilidades” (art. 104).

“Com efeito, importa esclarecer que uma lesão arterial deste tipo ou é diagnosticada nas primeiras horas do pós-operatório, ou o prognóstico em relação ao membro é muito reservado” (art. 105).

“Tanto assim é que este tipo de casos culmina muito frequentemente com amputações dos membros afetados, estando diversos casos assim relatados na literatura médica” (art. 106).

“É estudado e constatado em diversos relatos de casos clínicos que a demora no diagnóstico e no tratamento, superior a 6 horas após a instalação da lesão sub judice, pode gerar um quadro irreversível de isquemia grave que termina em amputação dos membros afetados, com a falência de todas as alternativas medidas cirúrgicas ou terapêuticas” (art. 108).

“No momento em que a área de especialidade de Cirurgia Vascular da 1.ª Ré é chamada a intervir, a pedido do 2.º Réu, no dia 27.07.2012, não foi possível travar o processo de isquemia grave, já com áreas necrosadas do membro inferior direito da Autora” (art. 109).

“Com efeito, o dano sofrido deu-se exclusivamente por complicações decorrentes da lesão da artéria poplítea, a qual tinha alta probabilidade de acometer a Autora na sequência da cirurgia que lhe foi realizada no dia 11.07.2012, factualidade aliada aos inúmeros fatores de risco inerentes à sua saúde” (art. 118).

De harmonia com o disposto no art.º 352º do Código Civil, a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.

Textua, por sua vez, com interesse para a economia dos autos, o art.º 353º do mesmo diploma legal: “1. A confissão só é eficaz quando feita por pessoa com capacidade e poder para dispor do direito a que o facto confessado se refira. 2. A confissão feita pelo litisconsorte é eficaz, se o litisconsórcio for voluntário, embora o seu efeito se restrinja ao interesse do confitente; mas não o é, se o litisconsórcio for necessário.”

Segundo o art.º 355º n.º 1 daquele diploma, a confissão pode ser judicial ou extrajudicial, sendo que a confissão judicial é aquela que é feita em juízo e só vale como judicial na ação correspondente (nºs. 2 e 3 do citado art.º 355º) e a confissão extrajudicial é a feita por algum modo diferente da confissão judicial (n.º 4 do citado art.º 355º).

Ademais, decorre do nosso ordenamento jurídico, art.º 356º n.º 1 do Código Civil: “a confissão judicial espontânea pode ser feita nos articulados, segundo as prescrições da lei processual ou, em qualquer outro acto do processo, firmado pela parte pessoalmente ou por procurador especialmente autorizado”, estabelecendo o n.º 1 do art.º 357º do Código Civil, que: “a declaração confessória deve ser inequívoca, salvo se a lei o dispensar”.

Outrossim, com interesse para o caso trazido a Juízo, estabelece o art.º 360º do Código Civil que a declaração confessória é indivisível e, como tal, tem de ser aceite na íntegra, salvo provando-se a inexatidão dos factos que transcendem a declaração estritamente confessória, sendo que a confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente (art.º 358º do Código Civil).

No que respeita à confissão judicial feita nos articulados, sustenta o Professor, Alberto dos Reis, in, Código de Processo Civil, Anotado, página 86, que a mesma “consiste em o réu reconhecer, na contestação, como verdadeiros, factos afirmados pelo autor na petição inicial, ou em o autor reconhecer, na réplica, como verdadeiros, factos afirmados pelo réu na contestação (…)”, importando anotar, todavia, que a confissão feita nos articulados e que, nos termos do disposto no art.º 358º n.º1 do Código Civil, como modalidade de confissão judicial, não se confunde com a simples alegação de um facto feita pelo mandatário da parte em articulado processual.

Subjacente à declaração confessória feita nos articulados pelo mandatário e que vincula a parte está, como sustenta o Professor Antunes Varela, in, Manual de Processo Civil, 2ª edição, página 548, a ideia de que, estando o mandatário por via de regra em íntimo contacto com a parte sobre a matéria de facto da ação, ele conhece a realidade desta, tendo assim o seu reconhecimento da realidade de um facto desfavorável ao respetivo constituinte, em princípio, a mesma força de convicção que tem a confissão.

Porém, impõe-se também sublinhar a exigência da aceitação do facto confessado pela parte contrária, impeditiva da retirada da confissão ou retratação, a qual tem de ser especificada, o que equivale a dizer, segundo os ensinamentos de Antunes Varela, in, Manual de Processo Civil, 2ª edição, página 555 e Alberto dos Reis, in, Código de Processo Civil, anotado, 4ª edição, Volume I, página 126 e Volume IV, página 113, que a contraparte tem que fazer menção concreta, individualizada, do facto que aceita, não bastando, para esse efeito, aceitação genérica, exigindo-se sempre um mínimo de referência, sem o qual não poderá falar-se em aceitação.

Ora, não distinguimos dos autos, desde logo, que a Autora/AA, notificada da contestação apresentada pelo 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A., tivesse feito qualquer referência de aceitação dos factos aí consignados, daí que, desde logo por aqui soçobraria a pretensão da demandante quanto à reclamada declaração confessória.

Todavia, mesmo que assim não entendêssemos, concebendo que a demandante havia declarado aceitação sobre os factos consignados no articulado apresentado pelo 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A., sempre haveria que afirmar, assumindo e reconhecendo a orientação sustentada pelo Professor Lebre de Freitas, in, A confissão no direito probatório, Coimbra editora, 1991, páginas 109 e 110, ao defender que “se os efeitos que o facto confessado é idóneo a produzir forem contrários ao interesse de uma pluralidade de sujeitos e subjetivamente incindíveis, a legitimidade para confessar radicará em consequência nessa pluralidade não podendo esses sujeitos isoladamente produzir uma confissão que se traduziria no reconhecimento da realidade de um facto que a todos é desfavorável”, carecer o 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A. de legitimidade para fazer uma qualquer válida declaração confessória.

Por outro lado, os factos alegados e enunciados supra (artºs. 54º 55º, 59º, 61º, 75º, 76º, 94º, 96º, 97º, 101º a 106º, 108º, 109º e 118º da contestação apresentada) que sustentam, com utilidade, a circunstância de o 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A. admitir que a Autora foi submetida a uma operação de artroplastia, tendo, posteriormente à mesma, surgido a necessidade de amputação da perna, não equivale a admitir qualquer facto por si praticado que tenha levado a esta segunda cirurgia, não encerram, de todo, o reconhecimento de factos que lhe seja desfavorável e favoreça a parte contrária, impondo-se, outrossim, contextualizar os alegados factos e conjugá-los com aqueloutros que constituem o articulado contestação do 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A..

Assim, convirá sublinhar que nos termos do art.º 358º n.º 1 do Código Civil, reconhecemos, inequivocamente, que a confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente.

Dever-se-á, no entanto, ter em consideração o estabelecido no direito substantivo civil quanto à declaração judicial acompanhada da narração de outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia do facto confessado ou a modificar ou extinguir os seus direitos, pois, a parte que dela quiser aproveitar-se como prova plena tem de aceitar também como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias, salvo se provar a sua inexatidão (art.º 360º do Código Civil).

A litigante não pode aproveitar-se de parte das declarações prestadas que eventualmente lhe aproveite, desprezando a narração de outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia dos factos alegadamente confessados ou a modificar ou extinguir os seus direitos, em desconsideração e ofensa à indivisibilidade da confissão, nos termos enunciados pelo direito substantivo civil.

Tenhamos, assim, em atenção, nomeadamente, os artºs 119º a 121º da contestação onde se consignou:

“A 1.ª Ré, por meio do seu corpo clínico de Cirurgia Vascular, adoptou todos os tratamentos recomendados pela doutrina e pela prática médicas para o caso, além de tecnicamente bem ter executado todos os procedimentos.” (art.º 119º).

“A amputação da perna foi necessária tendo em vista que o procedimento de revascularização do seguimento afectado não surtiu efeitos, nem toda a terapêutica instituída e cirurgias realizadas, mesmo sendo tecnicamente as correctas, sobrevindo um quadro de infecção.” (art.º 120º).

“Nenhum dos males que acometeu a Autora decorre de conduta médica imperita, imprudente ou negligente de qualquer dos médicos que compõem o corpo clínico que assistiu a Autora na sequência do reencaminhamento pelo 2.º Réu para a Área de especialidade de Cirurgia Vascular da 1.ª Ré”. (art.º 121º).

Tudo visto, não temos como não acompanhar o segmento do acórdão em escrutínio adiante consignado, onde se evidencia que o Tribunal recorrido tomou em consideração todas as provas produzidas, cumprindo as regras substantivas e adjetivas civis.

Neste particular, respigamos, com utilidade, do aresto em escrutínio: “(…) Nos autos, constata-se que os RR. não confessam quaisquer dos factos mencionados pela apelante, e particularmente, que a causa da amputação da perna da A. tenha sido causada por qualquer acto dos RR., o que se extrai da forma como apresentam a sua versão dos factos alegados pela A..

Isto é, os RR. não reconheceram a realidade exposta pela A., nos termos e para os efeitos do art. 352º do CC, não se podendo concluir pela existência de uma declaração confessória inequívoca como exigido pelo art. 357º do CC.

Saliente-se que a circunstância de os RR. admitirem que a A. foi submetida a uma operação de artroplastia, tendo, posteriormente à mesma, surgido a necessidade de amputação da perna, não equivale a admitir qualquer facto por si praticado que tenha levado a essa operação, não sendo, por isso, possível concluir pela existência de confissão, nos termos e para os efeitos do art. 352º e ss. do CC.

Por outro lado, constata-se que a versão trazida aos autos pela A. foi impugnada pelos RR., seja de forma coincidente, seja de forma parcelar.

(…) No caso vertente, face à situação de litisconsórcio existente, o efeito da eventual confissão sempre se restringiria ao interesse do confitente, não podendo, portanto, produzir efeitos que afectem o interesse de todos os RR..

Do que se vem de expor, decorre que não existe qualquer violação do disposto no art. 413º do CPC, que cumpra sanar, o que redunda na improcedência deste segmento da apelação.”

II. 3.1.1. Tudo visto, concluímos que o acórdão recorrido não se encontra eivado de qualquer nulidade processual, uma vez que, conforme discreteado, não desconsiderou quaisquer regras de direito probatório, ao invés, tomou em consideração todas as provas produzidas, cumprindo as regras substantivas e adjetivas civis aplicáveis.

II. 3.2. O Tribunal recorrido fez errada subsunção jurídica importando revogar o acórdão recorrido, e, em sua substituição, com fundamento no valor de prova plena da confissão, condenar o 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A. na reparação dos danos sofridos pela demandante, ou, subsidiariamente, se se entender que a confissão tem o valor de prova livre, ordenar a remessa dos autos à Relação para, mediante ampliação da matéria de facto, o Tribunal recorrido proceder à apreciação do valor da confissão? (2)

A questão a decidir nos presentes autos prende-se com o instituto da responsabilidade civil e, em concreto, na problemática da responsabilidade civil por ato médico.

Impõe-se, assim, aclarar o fundamento da alegada responsabilidade civil dos Réus, a exigir que se apure qual a natureza das relações jurídicas estabelecidas entre a Autora, AA e o 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A., entre a Autora, AA e o 2º Réu, BB; e entre o 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A. e o 2º Réu, BB e as Intervenientes seguradoras, Fidelidade-Companhia de Seguros, S.A. e AGEAS PORTUGAL - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., respetivamente.

O caso trazido a Juízo, tal como delimitado pela Autora, AA, aponta a responsabilização solidária do 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A., enquanto Hospital, e do 2º Réu, BB, enquanto médico da demandante e autor da operação cirúrgica que, segundo esta, veio a desencadear a necessidade de amputação da sua perna direita.

A doutrina mais recente sustenta, para a apreensão da natureza das relações jurídicas entre a Autora, AA por um lado e, os Réus, Hospital dos Lusíadas S.A. e BB, por outro lado, uma tipologia que envolve o contrato de prestação de serviços médicos privados (neste sentido, André Dias Pereira, in, Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, 2015, páginas 684 e seguintes, aprofundando a proposta de Carlos Ferreira de Almeida, Os contratos civis de prestação de serviço médico, in, Direito e Saúde e da Bioética, 1996, páginas 75 e seguintes), tipologia cuja natureza se distingue nos seguintes termos: (i) contrato total, que é “um contrato misto (combinado) que engloba um contrato de prestação de serviços médicos, a que se junta um contrato de internamento (prestação de serviço médico e paramédico), bem como um contrato de locação e eventualmente de compra e venda (fornecimento de medicamentos) e ainda de empreitada (confeção de alimentos)”; (ii) contrato total com escolha de médico (contrato médico adicional), que corresponde a “um contrato total mas com a especificidade de haver um contrato médico adicional (relativo a determinadas prestações)”; (iii) contrato dividido, que é aquele em que “a clínica apenas assume as obrigações decorrentes do internamento (hospedagem, cuidados paramédicos, etc.), enquanto o serviço médico é direta e autonomamente celebrado por um médico (atos médicos).”, acompanhando esta orientação, na jurisprudência, veja-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Janeiro de 2016, proferido no âmbito do processo n.º 136/12.5TVLSB.L1.S1.

Os factos adquiridos processualmente permitem afirmar que estamos perante um caso de contrato total com escolha de médico (com contrato de médico adicional).

“Em princípios de 2012, na sequência de consultas de ortopedia no Hospital dos Lusíadas, aqui 1º R., a autora passou a ser seguida pelo Dr. BB, 2º Réu, médico especialista em ortopedia, a prestar serviços no 1º R., atuando com total autonomia técnica e científica relativamente a este último.” (item 10 dos Factos provados)

“Na sequência, a autora passou a ser acompanhada pelo Dr. BB, e todas as consultas e tratamentos que a autora teve no âmbito desta doença, a partir de então, foi sempre por marcação e acompanhamento de pessoal do Hospital, 1º réu, nas instalações deste.” (item 11 dos Factos provados)

“Após várias consultas com o Dr. BB, e realizados todos os exames prescritos por este, feitos nas instalações e com técnicos do 1º réu, o Dr. BB propôs-se fazer, no joelho direito da autora, operação idêntica à do joelho esquerdo, assegurando a probabilidade de obtenção dos mesmos resultados do joelho esquerdo.” (item 12 dos Factos provados)

“Em 29.06.2012 o Dr. BB marcou a cirurgia, a qual foi realizada em 11.07.2012, no Hospital 1º réu, dirigida pelo Dr. BB, 2º R., e com apoio de pessoal e equipamento do Hospital réu.” (item 15 dos Factos provados)

Daqui decorre que a relação entre o 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A. e a Autora, AA assume a natureza de contrato de prestação de serviços médicos globais, ajustando-se ao negócio jurídico tipificado no art.º 1154º do Código Civil, sem prejuízo de a relação entre aquela Autora, AA e o 2º Réu, BB corresponder também a um contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos.

Ambas as relações (hospital/paciente) e médico-cirurgião/paciente) configuram relações de natureza contratual, tendo como objeto uma cirurgia ortopédica ao joelho direito da Autora, AA destinada a afastar as dores do joelho direito, e melhorar a locomoção da Autora, AA, como já tinha acontecido com a intervenção cirúrgica ao joelho esquerdo. (item 12 dos Factos provados).

Mais se apurou que foi o 2º Réu que agendou, realizou e dirigiu a cirurgia, no Hospital, 1º Réu, com o apoio de pessoal e equipamento do Hospital, 1º Réu, sendo que logo após a operação se constatou que a Autora não tinha sensibilidade na perna operada, sendo que nos dias seguintes à operação foi todos os dias acompanhada por pessoal do Hospital e pelo Dr. BB. Passados cerca de 4/5 dias da operação, o dedo grande do pé direito da Autora, e o calcanhar começaram a apresentar uma coloração escura (sinais referenciados no processo clínico da Autora. como “Zona de pressão do calcanhar/ sofrimento cutâneo por pressão”, tendo sido retirada a compressão da zona, aplicada “placa Vahreesive”, tendo a Autora alta hospitalar dada pelo 2º Réu. No subsequente dia 27 de julho de 2012, a Autora voltou à consulta no Hospital, 1º Réu e foi novamente atendida pelo 2º Réu, o qual após a examinar fez o respetivo diagnóstico e registo clínico, pedindo que fosse observada por cirurgia vascular. Realizada uma aortografia revelou este exame “lesão na art. popliteia dta”, tendo, na sequência, a Autora sido “submetida a um bypass popliteu/tronco tibioperoneal com veia safena contralateral em posição invertida” e foi feita “limpeza das zonas necrosadas da perna”. Apesar desta cirurgia de revascularição, a evolução clínica da Autora foi desfavorável e houve infeção de tecidos necrosados na perna e calcâneo, o que determinou subsequentes cirurgias, tendo sido decidido propor a amputação pelo 1/3 inferior da coxa direita, sob pena de risco de vida da Autora, o que foi feito em 21 de setembro de 2012, após consentimento (item 15 a item 27 dos Factos provados).

Importa assim saber se houve cumprimento defeituoso dos contratos de prestação de serviços médico-cirúrgicos de que são devedores o 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A. e o 2º Réu, BB, sem prejuízo de se poder convocar a responsabilidade extracontratual, uma vez que está em causa o direito à integridade física da Autora, AA, direito absoluto tutelado pelo princípio geral de responsabilidade civil delitual, donde, reconhecemos estar em causa uma situação de concurso de responsabilidade civil contratual e extracontratual, como ocorre frequentemente nas hipóteses de responsabilidade civil por atos médicos, sendo que a orientação consolidada neste Supremo Tribunal de Justiça vai no sentido da opção pelo regime da responsabilidade contratual por ser mais conforme ao princípio geral da autonomia privada e por ser, em regra, mais favorável ao lesado.

Anota-se também que a responsabilidade civil do hospital pela conduta dos auxiliares (médicos, enfermeiros, e outros) regula-se pelo regime do art.º 800º n.º 1 do Código Civil, ou seja, “O devedor é responsável perante o credor pelos actos (…) das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor”, sublinhando-se que, diversamente do que se passa no regime do art.º 500º do Código Civil, aplicável à responsabilidade extracontratual, reconhecemos que aquele preceito (art.º 800º do Código Civil) abrange tanto a conduta de auxiliares dependentes como a conduta de auxiliares independentes, donde, é indiferente determinar qual o vínculo existente entre o 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A. e cada um dos médicos envolvidos na cirurgia, na medida em que, quer se trate de contratos de trabalho quer se trate de contratos de outra natureza, o regime de responsabilidade do 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A. é o mesmo.

A este propósito, sustenta a doutrina que “no contrato de internamento com escolha de médico (contrato médico adicional), a clínica também assume a responsabilidade por todos os danos ocorridos, incluindo a assistência médica e os danos causados pelo médico escolhido”, André Dias Pereira, Ob. cit., página 688.

No regime decorrente do art.º 800º n.º 1, do Código Civil, aplicável à responsabilização do 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A., sustenta o Professor Vaz Serra, Responsabilidade do devedor pelos factos dos auxiliares, dos responsáveis legais ou dos substitutos, in, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 72, página 270: “O devedor que se aproveite de auxiliares no cumprimento, fá-lo a seu risco e deve, portanto, responder pelos factos dos auxiliares, que são apenas um instrumento seu para o cumprimento. Com tais auxiliares alargaram-se as possibilidades do devedor, o qual, assim como tira daí benefícios, deve suportar os prejuízos inerentes à utilização deles”.

Aqui chegados e elaborado este breve enquadramento jurídico acerca da natureza da responsabilidade civil emergente das relações hospital/paciente e médico-cirurgião/paciente, importa apreciar os pressupostos gerais da responsabilidade civil atinentes, quais sejam, facto ilícito, culpa, dano, e nexo de causalidade entre o facto e o dano, para daí concluímos, ou não, pela bondade do reclamado direito de indemnização da Autora, AA, sendo que quanto ao 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A. os pressupostos da responsabilidade civil aferem-se a partir da conduta dos auxiliares de cumprimento da obrigação de prestação de serviços médicos, que são todos os agentes envolvidos, sendo que a conduta destes auxiliares imputa-se ao devedor, 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A. tendo em consideração o já adiantado regime decorrente do estabelecido no art.º 800º n.º 1 do Código Civil, ao passo que quanto ao 2º Réu, BB, devedor da prestação de serviços médico-cirúrgicos, tais pressupostos aferem-se pela sua conduta pessoal, e ainda pela conduta daqueles que sejam auxiliares de cumprimento da sua prestação, também por aplicação do mencionado regime do art.º 800º nº 1 do Código Civil.

Assim, sendo inquestionável a ocorrência de danos, são os pressupostos da ilicitude, culpa e nexo de causalidade que temos de apreciar, relativamente a um e outro dos Réus, começando por analisar a conduta do 2º Réu, BB, quer enquanto auxiliar de cumprimento da obrigação de prestação de serviços médicos, a imputar ao 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A., e enquanto devedor, ele próprio, da prestação de serviços médico-cirúrgicos.

Indagar a responsabilidade contratual quanto à execução da obrigação por parte do profissional médico é, assim, sindicar a falta de realização integral da prestação devida (artºs. 762º n.º 1 e 763º n.º 1, ambos do Código Civil.) ou a sua realização defeituosa, como é o caso, embora se tenha generalizado que não seja típico das intervenções médicas com funções de cura ou melhoria do estado de saúde a obrigação de resultado, antes precipitam-se em obrigação ou obrigações de meios para a realização do tratamento ou intervenção adequados, neste sentido, Rute Teixeira Pedro, A responsabilidade civil do médico. Reflexões sobre a noção da perda de chance e a tutela do doente lesado, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, páginas 90 e seguintes, Pedro Romano Martinez, in, Responsabilidade civil por acto médico ou omissão do médico, páginas 476 a 478, Carlos Ferreira de Almeida, in, Os contratos civis de prestação de serviço médico, Direito da Saúde e Bioética, AAFDL, Lisboa, 1996, páginas 110 e seguintes.

Estamos perante um erro médico na consecução dessa obrigação de meios desde que o ato da “competência funcional de um profissional de medicina” se revele “descaracterizado e desadequado aos fins que a ciência e a arte da medicina injungiam para a debelação ou minoração de um padecimento previamente diagnosticado e reconhecido pela cognoscibilidade da ciência médica” neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de março de 2017, proferido no âmbito do Processo n.º 6669/11.3TBVNG.S1, in www.dgsi.pt., que sobre esta temática sustenta ajustadamente: “O erro médico resulta quase sempre de uma inadequado e incorrecto exercício, manuseamento de conhecimentos, teórico-práticos, da ciência médica e de que, naturalmente, resulta, na maior parte das situações em que se precipita, num dano para o corpo, para a saúde e para a vida das pessoas que o repercutem na sua esfera vivencial”.

Daqui resulta que a referida obrigação de meios, integrada num quadro abstrato, típico e comum de atuação onde se subsume a situação concreta, exige que o profissional médico realize e concretize os procedimentos que, com a certeza possível e adquirida de acordo com as práticas médicas estabelecidas e disponíveis (não sendo a medicina uma ciência dotada de exatidão plena) e as evidências conhecidas e cognoscíveis à data da intervenção e/ou da tomada de decisão, sejam aptos a evitar e a impedir as lesões ou as perturbações da incolumidade física e psicológica do paciente, para além daquela ou daquelas que são inerentes à própria intervenção em que consiste o ato médico.

“a responsabilidade médica (…) por violação das leges artis tem lugar quando, por indesculpável falta de cuidado, o médico deixe de aplicar os conhecimentos científicos e os procedimentos técnicos que, razoavelmente, face à sua formação e qualificação profissional, lhe eram de exigir: a violação do dever de cuidado pelo médico traduz-se precisamente na preterição das leges artis em matéria de execução da sua intervenção”, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de abril de 2016, proferido no âmbito do Processo n.º 6844/03.4TBCSC.L1.S1, in, www.dgsi.pt.

É com este conteúdo e densidade que se constrói um verdadeiro dever objetivo de cuidado ou de diligência, mais ou menos qualificado, no cumprimento das regras aceites e conhecidas da ciência da medicina e da arte traduzida na prática médica (leges artis), como critério de ilicitude – o que joga com a conformidade e respeito de “deveres de conduta profissionais”, neste sentido, André Dias Pereira, “Breves notas sobre a responsabilidade médica em Portugal”, Revista Portuguesa do Dano Corporal n.º 17, 2007, pág. 17.

Assim densificado, só com a violação do dever de cuidado – avaliado em função de um padrão médio de comportamento, mediatizado pelas referidas “legis artis” – é que, independentemente das consequências, mais ou menos graves, para o doente, e numa análise neutra a posteriori, teremos um erro juridicamente relevante, base para um ilícito de natureza pessoal e uma responsabilidade subjectiva e com conteúdo ético – o médico “não se compromete a evitar todas as complicações possíveis, mas vincula-se (…) ao uso de todo o empenho e cuidado no desempenho de uma actividade rodeada de riscos, entre os quais se contam riscos constantes que são os que estão associados (…) ao estado pré-operatório do doente”; levando em conta a obrigação de meios, averigua-se desta forma, e logo no plano de uma ilicitude de conduta, “se existe uma desconformidade da concreta actuação do médico com o padrão de conduta profissional exigível a um profissional medianamente considerado, ou seja, se subsiste um desvalor da conduta”, Maria Paula Ribeiro de Faria, in, O erro em medicina e o direito penal, Lex Medicinae, Revista Portuguesa de Direito da Saúde, 2010, n.º 14, páginas 11, 13-14, 18 e seguintes, 23 e seguintes.

Por fim, note-se que, como se consigna no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de dezembro de 2020, proferido no âmbito do Processo n.º765/16.8T8AVR.P1.S1 “em sede de distribuição do ónus da prova perante obrigações de meios, incumbe ao doente-paciente lesado, na qualidade de credor, provar a falta de cumprimento do referido dever objetivo de cuidado na atuação técnica como fundamento de ilicitude na responsabilidade contratual médica (art.º 342º n.º 1 do Código Civil.), nele incluindo a obrigação omissiva de não afetar a sua integridade física e saúde, naturalmente assistido em regra por prova pericial, que complemente e supra a falta de conhecimentos técnico-científicos do paciente onerado, e sem prejuízo de facilitações de prova em benefício do lesado (como o recurso à prova de “primeira aparência”, sem abdicar da valência da “presunção judicial”); sobre o médico, na qualidade de devedor, recai o ónus de contra-provar (artºs. 342º n.º 2, 346º, ambos do Código Civil) a inexigibilidade de comportamento contrário ao adotado, em atuação conforme com as leges artis, a fim de afastar a responsabilidade (atuação não ilícita ou justificada; atuação sem ser causa do dano ocorrido; ilidir a presunção da culpa, nos termos do art. 799.º do CCiv.), sendo logicamente mais reforçado este ónus - em contrabalanço do aligeiramento probatório a cargo do credor paciente - nas situações de dano desproporcionado à natureza da intervenção, neste sentido, Acórdão do STJ de 24/4/2016, proferido no âmbito do Processo n.º 6844/03.4TBCSC.L1.S1, Acórdão do STJ de 23/3/2017, proferido no âmbito do Processo n.º 296/07.7TBMCN.P1.S1, in, www.dgsi.pt., e na doutrina, em geral e por todos, Manuel Carneiro da Frada, Direito Civil. Responsabilidade civil. O método do caso, Almedina, Coimbra, 2006, págs. 81-82 (“é (…) ao credor que compete identificar e fazer provar a exigibilidade de tais meios ou da diligência (objetivamente) devida. (…) se a falta de cumprimento carece sempre de ser positivamente demonstrada pelo credor lesado, esta exigência traduz-se aqui, em termos práticos, na demonstração da ilicitude da conduta do devedor. (…) Ele [credor] tem sempre de individualizar uma concreta falta de cumprimento (ilícita). Dada a índole da obrigação, carece de demonstrar que os meios não foram empregues ao devedor ou que a diligência prometida com vista a um resultado não foi observada.”)”

Revertendo ao caso trazido a Juízo, temos com adquirido processualmente:

“7- A autora sofre desde há cerca de 20 anos de artrite reumatoide, doença que causa inflamações nas articulações, entre outras alterações.

8- Devido a esta doença, a autora tinha problemas sobretudo nos joelhos e, por essa razão, em 2005 foi operada ao joelho esquerdo, tendo sido feita artroplastia total do joelho, ou seja, substituição da articulação do joelho da perna esquerda por prótese.

9- Em resultado desta operação, a autora, relativamente ao joelho esquerdo, ficou sem inflamações, inchaços ou dores.

10- Em princípios de 2012, na sequência de consultas de ortopedia no Hospital dos Lusíadas, aqui 1º R., a autora passou a ser seguida pelo Dr. BB, 2º Réu, médico especialista em ortopedia, a prestar serviços no 1º R., atuando com total autonomia técnica e científica relativamente a este último.

11- Na sequência, a autora passou a ser acompanhada pelo Dr. BB, e todas as consultas e tratamentos que a autora teve no âmbito desta doença, a partir de então, foi sempre por marcação e acompanhamento de pessoal do Hospital, 1º réu, nas instalações deste.

12- Após várias consultas com o Dr. BB, e realizados todos os exames prescritos por este, feitos nas instalações e com técnicos do 1º réu, o Dr. BB propôs-se fazer, no joelho direito da autora, operação idêntica à do joelho esquerdo, assegurando a probabilidade de obtenção dos mesmos resultados do joelho esquerdo.

13- Depois da operação ao joelho esquerdo, em 2005, a A., apesar de sofrer de artrite reumatoide, fazia a sua vida normal deslocando-se de forma independente e sem ajuda de terceiros, assegurava a lide da casa e apoiava a filha na educação dos netos, cuidando deles.

14- A operação cirúrgica proposta pelo 2º R. destinava-se a afastar as dores do joelho direito, e melhorar a sua locomoção, como já tinha acontecido com a intervenção cirúrgica ao joelho esquerdo.

15- Em 29.06.2012 o Dr. BB marcou a cirurgia, a qual foi realizada em 11.07.2012, no Hospital 1º réu, dirigida pelo Dr. BB, 2º R., e com apoio de pessoal e equipamento do Hospital réu.

16- Logo após a operação verificou a autora e fez notar ao pessoal do Hospital, 1º R., e ao 2º R., que não tinha sensibilidade na perna operada.

17- Nos dias seguintes à operação, a autora foi todos os dias acompanhada por pessoal do Hospital e pelo Dr. BB, e sempre a autora se queixou de que não sentia a perna do joelho para baixo.

18- Passados cerca de 4/5 dias da operação, o dedo grande do pé direito da A., e o calcanhar começaram a apresentar uma coloração escura.

19- Tais sinais foram referenciados no processo clínico da A. como “Zona de pressão do calcanhar/ sofrimento cutâneo por pressão”, foi retirada a compressão da zona, aplicada “placa Vahreesive”, e a autora teve alta dada pelo dr. BB, no dia 20 de julho de 2012.

20- No subsequente dia 27 de julho de 2012, a autora voltou à consulta no Hospital réu e foi novamente atendida pelo Dr. BB, o qual após a examinar fez o seguinte diagnóstico e registo clínico:

“Úlcera de pressão no calcanhar dtº assim como lesões (flictenas na face anterior do 1/3 médio da face anterior da perna dtª) cutâneas e sinal evidente de sofrimento vascular em declive com recuperação e retornos capilares, mas sinais evidentes de lesão arterial. Estas lesões instalaram-se no decorrer desta semana, apesar da medicação profilática e do uso de contenção elástica.

Pede-se observação por cirurgia vascular”.

21- Em 12 de Agosto de 2012 foi feita à autora no Hospital dos Lusíadas uma aortografia que revelou “lesão na art. popliteia dta”.

22- Tal exame foi efetuado por se ter revelado “quadro isquémico distal na perna/pé dto (necrose 1º dedo, calcâneo e loca tibial anterior)”.

23- Na sequência, a autora foi “submetida a um bypass popliteu/tronco tibioperoneal com veia safena contralateral em posição invertida” e foi feita “limpeza das zonas necrosadas da perna”.

24- Apesar desta cirurgia de revascularição, a evolução clínica da A. foi desfavorável e houve infeção de tecidos necrosados na perna e calcâneo.

25- Nessa sequência, foi feita nova intervenção cirúrgica para desbridamento, constatando-se coleção purulenta pré-tibial.

26- Nesta última intervenção, a autora foi avaliada no bloco operatório, sob anestesia, pela equipa de Cirurgia Vascular, Plástica e Ortopedia, tendo sido feita exploração do compartimento posterior da perna e a loca tibial anterior, tendo-se constatado a existência de infeção marcada, pelo que se decidiu propor a amputação pelo 1/3 inferior da coxa, sob pena de risco de vida da autora.

27- Dia 21.09. 2012, após consentimento, foi feita a amputação da perna direita da A. pelo 1/3 da coxa, ou seja, acima do joelho.

29- Por seu lado, o Dr. BB é um conceituado e experimentado cirurgião na especialidade de ortopedia e traumatologia.

51- Dos diários de enfermagem, consta que a Autora, aos 13.07.2012, se queixava de “ausência de sensibilidade e mobilidade do pé (membro operado)” e que se verificou uma flictena no calcâneo (em linguagem não científica uma “bolha” no osso que forma o calcanhar) no caso com conteúdo hemático.

52- Na véspera da alta, no dia 17.07.2012, o 2.º Réu, depois de observar a Autora, refere, conforme registou no processo clínico, que “a sensibilidade táctil já existe a nível do 1/3 médio do pé direito, mas mantém défice de extensão ativo” (referindo-se à movimentação anatómica do pé), fazendo um diagnóstico favorável à alta médica.

53- Depois da alta, o 2.º Réu agendou nova consulta com a Autora para o dia 27.07.2012, tendo-se esta deslocado às instalações do 1.º Réu no referido dia para ser observada pelo 2.º Réu, que constatou novamente que a Autora não esboçava extensão ativa do pé, e apresentava, segundo o diagnóstico registado no processo clínico pelo 2.º Réu, uma úlcera de pressão no calcâneo direito e lesões/flictenas na face anterior do 1/3 médio da face anterior da perna direita (aquilo a que é chamado popularmente de "canela"), Lesões cutâneas essas com “sinal evidente de sofrimento vascular em declive com recuperação e retornos capilares, mas com “sinais evidentes de lesão arterial”, as quais segundo o 2.º Réu, se instalaram no decurso da semana em que esteve em casa, “apesar da medicação profilática e do uso de contenção elástica”, mais requerendo o 2º R. ao 1º R. a intervenção da equipa de cirurgia vascular.

54- Intervenção que foi de imediato instituída pela referida Área de especialidade vascular, que além de pedir a realização de exames, observou “importante edema da perna e pé e com grande flictena do calcanhar direito”, tendo sido drenado e aplicado penso de proteção, administrando-se a terapêutica médica no sentido de anti coagulação, tentando com isso uma melhoria do estado clínico da A.

55- O padrão arteriográfico demonstrado pelos exames realizados à Autora no dia 02.08.2012, pela Cirurgia Vascular (Ecodoppler e Angiotac), revelou a existência de uma lesão segmentar da artéria poplítea.

57- Na sequência da análise dos exames pedidos pelo 2º R. e das observações feitas em consulta, este diagnosticou à A. uma osteoartrose grau IV, joelho valgo grave em artrite reumatoide, pelo que foi proposta à doente cirurgia artroplástica do joelho direito e eventual remoção de material de osteossíntese do fémur direito – cavilha, caso intra operatoriamente se entendesse necessário, o que veio a ser realizado a 11-07-2012.

59- Quando foi dada alta à A. em 20-7-2012, esta foi encaminhada para o ambulatório da consulta de ortopedia com marcação para o Dr. BB para o dia 27 de julho de 2012, sendo medicada quer para as dores, quer para a prevenção do risco trombo-embólico e mantendo apoio de fisioterapia no domicílio, bem como instruída sobre os procedimentos vários a seguir, como sejam a contenção elástica dos membros inferiores e a aplicação de gelo no joelho direito.

60- Durante o período que decorreu desde a alta até à consulta de dia 27 de Julho de 2012 o 1º R. manteve contacto telefónico com o marido da A. de modo a ser informado quanto à evolução da situação clínica desta, tendo a A. e marido o contato telefónico do 1º R.

61- Aquando do descrito em 20, o 2º R. foi falar pessoalmente com a colega Drª FF, médica da cirurgia vascular, manifestando-lhe estar preocupado com a perna da autora, pelo que esta observou a A. nesse mesmo dia 27-7-2012.

62- Nessa observação a Dr.ª FF detetou edema acentuado da perna direita da A., com flictenas (bolhas de líquido), e diagnosticou trombose venosa profunda, a confirmar por exames que prescreveu, medicando de imediato a A. para esse quadro, o qual se confirmou após os exames.

63- Nessa observação a Dr.ª FF fez constar do processo clínico:

“Flictena do calcanhar dtº (drenou-se e penso de proteção); Lesão com pequena flictena da face anterior da perna, sem alteração da temperatura do membro.

Fez-se Doppler arterial – Fluxos bi/trifásicos popliteia e mono/bi na tibial posterior Boa reperfusão capilar. Pede-se eco Doppler venoso e medica-se com lovenox 80, augmentin duo e nimed.

Elevação do membro Reavaliar após 1 semana.”

64- No dia 3 de Agosto de 2012 os especialistas de cirurgia vascular concluíram, após a realização do eco-doppler arterial, pela existência de oclusão popliteia com reabitação monofásica distalmente, tendo também sido identificada TVP popliteio femoral.

65- O 2º R. pediu também a colaboração do Dr. GG, especialista de cirurgia plástica, para o tratamento das úlceras, tendo este médico observado a A. no dia 8 de Agosto, prescrevendo então a realização de penso com placa de hidrocoloide e hidrogel 3 vezes por semana, fazendo desbridamento com lâmina do tecido necrosado durante os pensos.

66- No dia 10 de agosto a A. voltou à consulta do 2º R., que manteve a indicação de ser observada e seguida pela cirurgia vascular, bem como a realização de pensos.”

Relembrando que a ilicitude resulta da “relação de desconformidade entre a conduta devida (a prestação debitória) e o comportamento observado”, neste sentido, Antunes Varela, in, Das obrigações, Volume II, página 94, importando averiguar se houve ou não erro médico na conduta seguida para a realização do ato médico-cirúrgico adotado pelo médico, 1º Réu, BB, no que respeita à realização da cirurgia ao joelho direito, pretendendo-se saber se, no essencial, se era ou não de exigir, no âmbito do procedimento cirúrgico de artroplastia total do joelho, ou seja, substituição da articulação do joelho da perna direita por prótese, uma atuação e técnica assente em protocolos médicos que, no limite evitariam os danos físico-corporais decorrentes dessa execução.

Conquanto saibamos que o procedimento não logrou obter o resultado pretendido por ambas as partes, bem pelo contrário, distinguimos o desfecho dramático da amputação da perna direita da Autora, AA, não podemos afirmar que, naquele universo factual, o procedimento cirúrgico tenha sido inadequado, tampouco desencadeador dos atos médico-cirúrgicos ulteriores, outrossim, tenha sido uma decorrência de negligência ou imprudência do médico cirurgião, que estariam enraizadas na falta da adoção, exigível à luz do cânone do procedimento cirúrgico, a atender na situação em concreto, não sendo despiciendo sublinhar decorrer dos factos não provados: “Que na cirurgia de 21-09-2012 onde foi amputada a perna à A., tenha sido constatado que, na sequência da operação feita pelo Dr. BB em 11 de Julho de 2012, tenha ficado lesada a artéria poplítea direita, ficando a perna sem ser irrigada pelo fluxo sanguíneo.”; “Que o pessoal do 1º R. que acompanhou a autora em todo o processo e o Dr. BB, como responsável principal da operação, não prestaram a devida atenção aos sinais que a autora lhe ia referindo sobre a sua falta de sensibilidade na perna e deixaram arrastar a situação durante um mês e, unicamente por esta razão, a autora teve a sua perna amputada; “Que logo após os primeiros sintomas referidos pela A., se o 2º Réu tivesse mandado realizar exames às artérias, teria sido evitada a amputação da perna.” cuja motivação também deixamos aqui expressa: “Alínea e- Sobre a factualidade descrita em e salienta-se que não foi produzida prova alguma de que a artéria poplítea direita tenha ficado lesada na operação feita pelo 2º R. a 11-7-2012.

Alínea f e g- Tal matéria foi repudiada na perícia médico legal feita à A., sopesando o tribunal os esclarecimentos do senhor perito Dr. HH, o qual pela forma detalhada, minuciosa e fundamentada com que descreveu todo o historial clinico da A., o seu estado de saúde antes da operação de 11-7-2012 e as doenças de que já padecia, bem como todo o desenrolar dos fatos, até ao evento que redundou na amputação da perna direita da A., explicando de forma clara e objetiva quais os procedimentos médicos a adotar e os adotados no caso da A., concluindo de forma sustentada que o 2º R., no momento em que foram detetados sinais de que existiam problemas vasculares, pediu de imediato a colaboração da cirurgia vascular (resposta ao quesito 3 (fls. 403); assim como reafirmando a sua resposta positiva ao quesito 8, explicando os procedimentos médicos e medicamentosos ministrados à A. e a sua adequação aos sintomas e resultados dos exames realizados, concluindo assim que foram prestados à autora pela equipa de cirurgia vascular, a partir de 27-7-2012, todos os cuidados e tratamentos adequados e de forma atempada.

O valor probatório da perícia e dos esclarecimentos do senhor perito devem sobrepor-se, no entender do tribunal, à opinião médica da testemunha Dr. II, que sem nunca ter examinado ou visto a A., com base no processo clinico e nas declarações desta, concluiu ter havido atraso no diagnóstico, bem como do Dr. JJ, o qual apesar de declarar não saber, em concreto, o que motivou a necessidade de amputação da perna da A., declarou como hipóteses possíveis a lesão da artéria na cirurgia de 11-7-2012, e um diagnóstico não atempado.

Ademais, a própria testemunha Dr. JJ declarou que a sua intervenção na situação dos autos foi apenas a de elaborar o Relatório médico suprarreferido, a pedido da A., e com base nas declarações desta e dos elementos clínicos que esta lhe apresentou.

De salientar que no aludido Relatório a página 7, 1º parágrafo, o Dr. JJ declarou que “Na “Discussão” inserida neste relatório de avaliação de dano corporal pós-traumático, apenas se pretende estabelecer o nexo de causalidade entre o evento ou sequencia de eventos e o dano atual (.).

Sai fora do âmbito desta “Discussão” (…) a sequência anátomo-patológica, conhecida ou não, que leva da causa (cirurgia de artroplastia total do joelho) ao efeito (amputação) não é por isso abordada nesta “Discussão”.”

Não se pode concluir que o procedimento médico assumido pelo 2º Réu, BB exigisse zelo diferenciado e cuidados de outro quilate e medida, acrescendo que “o Dr. BB é um conceituado e experimentado cirurgião na especialidade de ortopedia e traumatologia”, logo, sem que sem alguma temeridade permita identificar uma prática incipiente, inexperiente ou eivada de problemas e incertezas.

Ademais, não dispomos no complexo factual de qualquer indicação para que o cânone técnico procedimental, entendido na sua globalidade, seguido na artroplastia total do joelho direito tivesse que ser alterado no caso concreto da paciente, Autora, AA de modo que as especificidades desta pudessem ditar adaptações à regra geral, a chamada leges artis ad hoc, enquanto “especificação da regra abstrata ao caso específico”. Outrossim, também não se divisa nos factos adquiridos processualmente circunstância que nos mostre a razoabilidade de se assumir a posteriori que outra técnica na artroplastia total do joelho direito deveria ter sido utilizada, eventualmente inibidora do evento ocorrido, nem sequer se propõe, em alternativa cientificamente comprovada, qual seria essa técnica e o seu procedimento, que fossem cautelarmente preventivos do dramático evento ocorrido no organismo da paciente.

Sabemos que a matéria de facto provada e não provada, da competência das Instâncias, delimita o quadro disponível para a formulação do escrutínio técnico-jurídico, e só deste aqui curamos, sobre os pressupostos da responsabilidade, nomeadamente, a ilicitude, a culpa e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, daí que temos de convir que cabendo o onus probandi à Autora, AA, da ilicitude da conduta, não se logrou reunir uma base factual sólida para que se conclua no sentido do incumprimento da obrigação de meios exigida pelas leges artis, enquanto diligência conveniente e adequada à satisfação do interesse do credor, imediatamente com vista ao resultado visado, e, mediatamente, à proteção da sua integridade física e saúde, donde, não merece censura o acórdão em escrutínio quando consignou, com utilidade, a este propósito: “Recorde-se, mais uma vez, que cabia à A. alegar e provar a desconformidade objectiva entre os actos praticados/omitidos pelo R. médico e as legis artis (o incumprimento ou cumprimento defeituoso), bem como o nexo de causalidade entre tais actos e o dano, sendo certo que não se presume o cumprimento defeituoso em si mesmo, mas tão somente a culpa desse cumprimento defeituoso, desde que feita a prova da violação das legis artis.

Não estando assente essa violação das legis artis, não pode operar a presunção de culpa constante do art. 799º do CC, não estando, assim, demonstrados os pressupostos da ilicitude e da culpa, que constituem elementos integradores da causa de pedir dos autos, o que redunda na improcedência da acção quanto ao 2º R., como decidido em primeira instância.

No mais, e uma vez que a responsabilidade dos demais RR. dependeria da responsabilidade do R. BB, na medida em que responsabilidade da R. Lusíadas, S.A. se fundava no art. 800º do CC, e as responsabilidades das seguradoras decorriam dos contratos de seguro celebrado com os dois RR., dependendo por isso da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil relativamente aos mesmos, improcedendo a acção relativamente àquele R., improcede necessariamente também no demais.”

Na ausência de verificação do pressuposto ilicitude, não se afigura viável a atribuição de qualquer responsabilidade aos Réus, sendo despiciendo discutir qualquer outro pressuposto constitutivo da responsabilidade civil.

Tudo visto, em face da facticidade demonstrada, a subsumir juridicamente nos termos discreteados, não reconhecemos à argumentação aduzida pela Recorrente/Autora/AA, virtualidade bastante no sentido de alterar a decisão recorrida, merecendo a solução encontrada pelo Tribunal recorrido, a aprovação deste Tribunal ad quem.

III. DECISÃO

Pelo exposto, os Juízes que constituem este Tribunal, julgam improcedente o recurso interposto pela Recorrente/Autora/AA, negando-se a revista, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente/Autora/AA.

Notifique.

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 2 de maio de 2024

Oliveira Abreu (relator)

Sousa Lameira

Fátima Gomes