RECURSO DE REVISTA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
PODERES DE COGNIÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Sumário


O Supremo apenas pode corrigir um erro na apreciação da prova ou na fixação dos factos provados nos casos previstos nos artigos 682 n.º 2 e 674 n.º 3, ambos do CPC, o que não sucede na hipótese em que a Relação fundamenta a sua convicção em prova documental, designadamente um relatório pericial produzido num outro processo, bem como em diversa prova testemunhal.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – RELATÓRIO

l. AA, intentou a presente acção declarativa de condenação contra BB, alegando:

No dia 28 de Maio de 2021, CC, avó da A. e R., entretanto falecida, outorgou um testamento em que instituiu a ré herdeira da sua quota disponível.

Porém, à data da outorga daquele testamento a referida CC já não se encontrava na posse das suas faculdades mentais que lhe permitissem decidir e dispor dos seus bens, sofrendo de demência, desde pelo menos, 29 de Março de 2021.

Conclui pedindo que seja declarado nulo o Testamento Público celebrado em 28.05.2021 no Cartório Notarial da Sr.ª Dr.ª DD, ou se assim se não entender, anulável e a R. condenada a reconhecer que não é herdeira da quota disponível da herança da testadora, sua avó, CC com todas as demais consequências legais

2. Citada a R., contestou alegando a ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir, a sua ilegitimidade por estar desacompanhada do seu esposo e ainda a excepção da caducidade da acção por terem decorrido 13 meses entre a outorga do testamento e a citação.

No mais, defende-se por impugnação e requer a condenação da autora como litigante de má fé.

3. Na resposta a Autora pugnou pela improcedência das excepções invocadas.

4. Após convite para o efeito, foi apresentada nova petição inicial, sendo requerida e admitida a intervenção principal do cônjuge da R. EE.

5. Foi dispensada a audiência prévia.

Proferiu-se despacho saneador, fixou-se o objeto do litígio e temas da prova.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento que decorreu com observância do formalismo legal aplicável.

A final foi proferida decisão que julgou a ação improcedente, absolvendo a Ré do pedido.

6. Inconformado com o decidido, a Autora interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação de Coimbra, por Acórdão de 24 de Fevereiro de 2024 decidido:

«revogar a sentença recorrida, anulando o Testamento Público celebrado em 28.05.2021 no Cartório Notarial da Sr.ª Dr.ª DD, por incapacidade acidental da testadora CC».

7. Inconformada vem a Ré BB interpor recurso de revista formulando as seguintes conclusões:

1. Nos termos em que vem sustentado o acórdão recorrido, entende o Tribunal a quo que a Autora, aqui Recorrida, «efectuou a prova de que a testadora, em período que abrange a prática do acto, sofria de demência, atestada por perícia efectuada no âmbito de acção de acompanhamento de maior, com início, pelo menos, em 29 de Março de 2021, tendo este testamento sido outorgado em 28 de Maio desse mesmo ano».

2. Como se sabe, e enquanto conceito de direito, a «demência» tem de ser objecto de juízo probatório expresso por parte do tribunal com base no qual se pode, em termos conclusivos, fazer um juízo sobre a capacidade ou incapacidade da beneficiária, neste caso a testadora, de entender o sentido da sua declaração e de formar livremente a sua vontade de testar.

3. Ocorre que, para além de o relatório da perícia em que o Tribunal a quo sustenta a sua decisão não ter sido produzido nos presentes autos, nenhum elemento probatório foi nestes autos produzido, que tenha merecido ponderação e juízo valorativo do Tribunal a quo.

4. Não obstante a exclusiva dependência da decisão do Tribunal a quo por um relatório pericial produzido fora do âmbito dos presentes autos, foi este Tribunal ávido a socorrer-se do mesmo para, por esta via e ao arrepio de leis substantivas e adjectivas que impõem decisão oposta, derrubar por completo o que pelo Tribunal de primeira instância havia sido apreciado.

5. O presente recurso não pode, por isso, deixar de proceder, pois que, não tendo a beneficiária e testadora, nem a aqui Recorrente, também interessada processual no processo de acompanhamento de maior, tido a possibilidade de, nesses autos, exercerem o contraditório quanto à admissão e produção do meio de prova (perícia) aqui em causa, é seguro dizer-se que não ocorrem os pressupostos erigidos pelo citado artigo 421.º, n.º 1, do CPC, para a admissão do meio de prova ora em causa.

6. Admitir processualmente nestes autos o relatório da audição e exame por videoconferência através de webex da perícia realizada no processo de acompanhamento de maior a favor da testadora seria, por um lado, confrontar a aqui Recorrente com um meio de prova que a mesma não pôde minimamente contraditar, seja quanto à sua admissibilidade, seja até quanto à sua produção e respectivos termos.

7. Por outro lado, a admitir-se o relatório em causa apenas porque o mesmo se mostra incorporado nos presentes autos, estaria encontrada a forma de, pura e simplesmente, contornar as condições pressupostas pelo artigo 421º, n.º 1, do CPC para o aproveitamento num segundo processo dos meios de prova produzidos num primeiro processo, com a agravante, já devidamente salientada, de, no caso concreto, se confrontar de forma chocante o direito da defesa e o princípio do contraditório da Recorrente quanto ao meio de prova em causa.

8. O relatório pericial em causa foi remetido pela Unidade Funcional de Clínica Forense à acção especial de acompanhamento de maior proposta pela Autora em ... .09.2021, tendo a testadora falecido dez dias depois, em ... .09.2021, o que determinou que essa instância tenha sido declarada extinta por inutilidade superveniente da lide como resulta do doc. n.º 3 junto à contestação.

9. A extinção do processo de acompanhamento de maior determinada em consequência do decesso da beneficiária, não permitiu que em relação às conclusões vertidas nesse relatório, pudessem a testadora e a aqui Recorrente ter sido exercido o respectivo contraditório, ou até mesmo interposto recurso relativamente à omissão da audição pessoal da beneficiária, a qual é susceptível de influir no exame ou na decisão da causa porque, (como se expõe no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.3.2023, processo n.º 359/22.9T8MFR.L1-7, que acompanha os acórdãos do mesmo tribunal de 6.12.2022, processo n.º 139/22.1T8MFR.L1-8, de 27.1.2022, processo n.º 2625/21.1T8CSC-A.L1-2, de 16.9.2019, processo n.º 12596/17.3T8LSB-A.L1.L1-2, e de 10.9.2019, processo n.º 14219/18.4T8LSB-A.L1-7, todos disponíveis em www.dgsi.pt), «nada é susceptível de substituir ou sanar um contacto directo e pessoal do/a juiz/a e a sua percepção sobre ele, tidos como essenciais pelo legislador», ou de reclamação desse relatório pericial por deficiência, obscuridade, contradições, ou insuficiência da sua fundamentação, pela aqui Recorrente e aí interveniente processual.

10. Para a apreciação da prova, que tem lugar na fase da sentença, só são admitidos os meios de prova propostos, após audiência da parte contrária, que relevem de acordo com as diversas soluções plausíveis da questão de direito.

11. Em virtude de a audição da beneficiária se ter realizado à distância, o referido relatório pericial foi, na sua essência, centrado na interpretação de documentos de outros clínicos, concretamente dois atestados de doença assinados pela médica assistente na Unidade de Saúde USF ..., com data de ... .03.2021.

12. Pese embora nenhum dos atestados passados pela médica assistente na Unidade de Saúde USF ... em ... .03.2021 (com base no qual o Senhor Perito elaborou o relatório pericial em virtude de a referida audição se ter realizado à distância), aludir expressamente à existência de um quadro mental de incapacidade para a testadora tomar decisões e compreender o sentido e alcance das mesmas, e não tendo esclarecido o tribunal sobre a um facto essencial como a permanência ou intermitência da incapacidade da beneficiária, o certo é que, sem qualquer justificação, o Senhor Perito «encaminhou» a conclusão sobre a incapacidade da beneficiária para o exercício do seu específico direito de testar;

13. Realizada a perícia, o resultado da mesma é expresso em relatório, no qual o perito se pronuncia fundamentadamente sobre o respetivo objecto (artigo 484.º do CPC), o qual é notificado às partes, que dele podem reclamar, se entenderem que há nele qualquer deficiência, obscuridade ou contradição, ou que as conclusões não se mostrarem devidamente fundamentadas (artigo 485.º, n.º 1 e 2 do CPC).

14. No caso sub judice, a forma como as conclusões do relatório estão apresentadas, e a fim de dissipar o subjectivismo que não pode ser aceite, mesmo no âmbito da prova pericial, o relatório em causa era por si só objectivamente passível de ser posto em causa com a realização de uma segunda perícia, por apelo ao direito legal de exercer o contraditório ao longo de todo o processo, nos termos previstos no artigo 3.º, n.º 3 do CPC, designadamente com a assistência à diligência por um assessor técnico ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 480.º do CPC.

15. O princípio do contraditório liga-se, de modo indispensável ao princípio da proibição da indefesa, que é materializada não só no direito de impugnar uma decisão, como também na possibilidade de ver apresentada a argumentação antes de uma decisão judicial ser tomada.

16. O que consta do relatório pericial em apreço é que o contexto clínico aí exposto está assumido pelo próprio clínico autor/subscritor nos seguintes termos: «Pelo exposto, somos do parecer que um tal contexto clínico (demência e cegueira) impossibilita a requerida de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.»

17. E assim, ao concluir que «a A. efectuou a prova de que a testadora, em período que abrange a prática do acto, sofria de demência, atestada por perícia efectuada no âmbito de acção de acompanhamento de maior, com início, pelo menos, em 29 de Março de 2021, tendo este testamento sido outorgado em 28 de Maio desse mesmo ano.» o Tribunal a quo não só suporta estes factos num mero parecer do Senhor Perito, como ignora ostensivamente que tais factos não foram objecto de contraditório nem acolhidos em decisão transitada em julgado.

18. Os pareceres representam apenas uma opinião de quem os elabora, tendo um carácter meramente esclarecedor ou opinativo, pelo que, estando sujeitos à livre apreciação pelo juiz, este não está vinculado ao acrescido dever de fundamentação que devem cumprir os laudos periciais.

19. Conforme decorre do artigo 421.º do CPC, a prova admitida num outro processo só pode ser invocada noutro processo contra a mesma parte desde que tenha havido audiência contraditória, nos termos do artigo 415.º do CPC, o que significa que a parte contra quem a prova é produzida, ou seja aquela que resulte desfavorecida com o resultado probatório), há-de ter tido possibilidade de intervenção no acto de produção ou no procedimento de admissão da prova;

20. No presente caso, face ao decesso da beneficiária, a instância do processo de acompanhamento e maior foi julgada extinta, sem que a beneficiária ou a aqui Recorrente hajam tido oportunidade de exercer o contraditório quanto à perícia realizada;

21. Não pode, por isso, o referido relatório sequer ser considerado como meio de prova, razão pela qual não é possível extrair do mesmo qualquer efeito.

22. No caso dos autos, é à Recorrida, enquanto parte a quem aproveita, que incumbe «formalizar» a apresentação da prova extraprocessual, por via da junção de certidão, com nota do trânsito em julgado, da sentença proferida no âmbito do processo onde foi produzida a prova em causa, da qual constem como provados os factos inseridos no relatório a perícia e que pretende ver dados como provados nesta acção.

23. Certidão essa que, no entanto, não se encontra junta aos autos, e nem sequer podia ser passada porque, em virtude da extinção do processo de acompanhamento de maior a favor da testadora, os factos em causa não foram dados como provados.

24. Nem o princípio da aquisição processual (artigo 413.º do CPC), ou o princípio da eficácia extraprocessual das provas (artigo 421.º do CPC), habilitam o tribunal a, sem mais, dar como provados factos que assim podem ter sido dados numa outra acção.

25. Quanto mais a dar factos como provados num processo, que no âmbito de outro processo nem sequer o tenham sido por decisão transitada em julgado.

26. O acórdão recorrido, na parte em que decidiu a impugnação da fixação da matéria de facto, o que foi decisivo para a procedência do recurso de apelação, reconheceu força probatória ao relatório da audição e exame por videoconferência através de webex da perícia realizada no processo de acompanhamento de maior a favor da testadora.

27. Relatório este que, pelos fundamentos que como se deixa abundantemente expendidos, não tem eficácia extraprocessual, pelo que não poderia ser-lhe reconhecida qualquer relevância na prova dos factos alusivos aos presentes autos;

28. Tendo sido indevidamente valorado tal relatório constante de outro processo, na decisão sobre a impugnação da matéria de facto fixada pela primeira instância e tendo essa decisão determinado o desfecho do recurso de apelação, deve o acórdão recorrido ser anulado, de forma a permitir que se proceda a nova apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, sem a valoração de tal relatório.

29. A alteração da matéria de facto preconizada pelo Tribunal a quo configura erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais, previsto no artigo 674.º, n.º 1, als. a) e b) e 2 do CPC;

30. Erro este que, no caso dos autos, traduzindo-se na violação das normas que fixam o seu valor, pode ser objecto do presente recurso de revista porquanto o Tribunal a quo, ao decidir como decide, viola a aplicação da lei substantiva dos artigos 2199.º e 342.º, n.º 1 do CC e adjectiva dos artigos 421.º, n.º 1 e 415.º do CPC;

31. Em matéria de facto, em sede de recurso de revista pode ser conhecidos efectivos erros de direito cometidos pelo tribunal recorrido na fixação da prova realizada em juízo, sendo que nesta óptica, afinal, sempre se está no âmbito da competência própria Supremo Tribunal de Justiça, pois o que compete a este tribunal é pronunciar-se, certamente mediante a iniciativa da parte, sobre a legalidade do apuramento dos factos, designadamente sobre a existência de qualquer obstáculo legal a que a convicção de prova formada nas instâncias se pudesse firmar no sentido acolhido.

32. O artigo 421.º do CPC pressupõe a transferência de prova entre processos, preservando tanto a sua natureza originária como o valor probatório (mas não o resultado), sendo requisito essencial que o meio de prova seja invocado perante sujeito a quem foi permitido exercer o contraditório na produção da prova.

33. Assim, se o Supremo Tribunal de Justiça não pode emitir pronúncia sobre os resultados da livre apreciação da prova pericial, dado estar sujeita à liberdade de apreciação do juiz, tal não significa que o juízo relativo à prova pericial não seja susceptível de censura em sede de revista, maxime em casos em que a prova pericial não haja sido submetida ao contraditório, pois que, não actuando dessa forma, o julgador incorre em patente e frontal violação da lei, redundando a conformação desse seu comportamento em inequívoca questão de direito, quadrável no âmbito dos poderes de cognição do Supremo.

34. Apresentando uma acuidade visual inferior a 1/10 em ambos os olhos decorrente da degenerescência macular da idade, não é seguro presumir-se, como o Tribunal a quo, que «a incapacidade de assinar (...) resultará antes do seu (da testadora) estado demencial que, como é sabido, afecta também a capacidade de escrever e de assinar.»

35. Até porque, uma pessoa cega pode não querer assinar por receio ou por outras razões e não por demência.

36. Face ao exposto, porque o acórdão recorrido não pode manter-se, e pronunciando-se sobre a matéria de facto à luz do estatuído nos artigos 682.º, n.º 2 e 674.º, n.º 3 do CPC, deve o Supremo Tribunal de Justiça revogar o dito aresto.

37. À luz do estatuído nos artigos 682.º, n.º 2 e 674.º, n.º 3 do CPC, deve a matéria de facto ser alterada, dando-se como não provado que:

«E.1. No relatório pericial, em exame realizado em 3 de Setembro de 2021, fez o Sr. Perito médico-legal, constar que a examinanda se encontrava “em cadeira de rodas, com instabilidade postural, olhos fechados, não estabelecendo contato visual com o tribunal (está praticamente cega). Mostra-se desorientada em termos alopsiquícos e autopsiquícos, tendo dificuldade em responder ao que lhe é perguntado, ou compreender as questões que lhe são colocadas. Não diz o seu nome completo, não se lembra inclusivamente da sua idade (diz ter 49 anos de idade), nem da data de nascimento. O discurso é muito pobre, por vezes ininteligível, escasso, com lentificação psíquica. A requerida encontra-se totalmente dependente para todas as actividades de vida diária básicas. Não tem mobilidade autónoma, encontra-se acamada, realizando levante diário para cadeirão. Tem atualmente úlceras de pressão decorrentes de mobilidade reduzida.

(…)

No caso em apreço a beneficiária encontra-se num estádio muito avançado do quadro demencial, com profunda deterioração cognitiva e total dependência de terceiros. Importa relevar que sofre, também, de incapacidade visual (quase cegueira total) em resultado de patologia oftalmológica grave.

Pelo exposto, somos do parecer que um tal contexto clínico (demência e cegueira) impossibilita a requerida de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.

Igualmente, impossibilita-a de exercer os seus direitos pessoais como, entre outros, os contemplados no artigo 147.º, n.º 2 do Código Civil, com especial relevo para o direito pessoal de testar.

Estas limitações não podem ser supridas pela cooperação e assistência de familiares.

Pelo exposto, do ponto de vista psiquiátrico forense, justifica-se plenamente que possa beneficiar de medidas de acompanhamento.”

Todos têm direito à fruição e criação cultural, bem como o dever de preservar, defender e valorizar o património cultural (artigo 78º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa)

«M) À data da outorga do testamento, a CC, por vezes não sabia onde estava, não sabia em que ano estava, acreditava ter uma idade muito inferior à que tinha, e não compreendia perguntas simples que lhe faziam.»

38. Por sua vez, deve dar-se como provado que:

«1) Não obstante o descrito em C), H) e J), no momento na outorga do testamento referido em B), a CC conseguia compreender o que a rodeava.»

Termos em que, e nos melhores de direito que V. Ex.ªs doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o acórdão de que se recorre e substituindo-o por outro que confirme a decisão de facto e de direito da primeira instância e declare a existência e validade do testamento outorgado, declarando-se o teor do mesmo como válido, suficiente e eficaz, com força probatória plena, para os fins tidos por convenientes;

Caso assim não se entendendo, deve ser ordenada a remessa dos autos ao Tribunal a quo para que, agora em conformidade com as regras de direito probatório e de valoração dos elementos da prova presentes nos autos, proceda a nova apreciação do recurso de apelação, tendo em consideração a impossibilidade de valoração do relatório da perícia realizada por videoconferência através de webex no âmbito do processo de acompanhamento de maior a favor da testadora.

8. A Autora/recorrida AA, apresentou contra-alegações tendo formulado as seguintes conclusões:

a) Não merece revista o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, por não se enquadrar em nenhum dos normativos contidos nos artigos 682.º, n.º 2, e 3 e 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil; que confiram ao Supremo Tribunal o poder de excepcionalmente o rever.

b) A reapreciação das provas pelo Tribunal da Relação de Coimbra visou a formação e a formulação de uma convicção própria, autónoma, sobre os pontos da matéria de facto impugnados e que é, por referência a tal convicção, que a decisão da 1.ª instância será alterada, total ou parcialmente. Sendo que, para a formação de tal convicção própria foi cumprido o dever da Relação de examinar criticamente as provas produzidas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção (n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º do CPC).

c) O Acórdão recorrido explicou de forma suficientemente detalhada o sentido da sua convicção, à luz dos meios de prova cuja reapreciação havia sido solicitada, nomeadamente:

c.1)- “Dos autos resulta que a testadora se encontrava em 3 de Setembro de 2021, num estado de demência muito avançado, acamada, sendo já incapaz de comunicar, sem saber onde se encontrava, sem saber a sua idade ou nome, que este estado de demência existia já em 29 de Março de 2021, fixando o Sr. Perito médico-legal, a data provável de início da incapacidade da testadora, desde pelo menos 29 de Março de 2021. O óbito da testadora, entretanto ocorrido, determinou a extinção da lide na acção de acompanhamento de maior, mas não altera esta conclusão que decorre de um juízo médico. Ou seja, é o Perito que indica a data do início da incapacidade e o grau desta incapacidade.

c.2) - Ora, dos autos não resulta feita a prova de que a testadora, pese embora a doença psíquica que sofria, já em estado muito avançado, se encontrava num momento excepcional de lucidez, nem tal se afigura credível e possível, quer atendendo à doença psíquica de que padecia e à sua concreta evolução (lenta), quer ao facto de este estado ser anterior à elaboração do testamento, quer ao facto de esta testadora em momento ainda anterior à data do testamento se encontrar já cega, totalmente dependente de terceiros para as actividades da sua vida diária, de cadeira de rodas, estado conhecido da beneficiária deste testamento, como resulta das mensagens de whattsap trocadas com a A.”

c.3) - Ora, como bem ressalta o Acórdão recorrido “a testadora tinha 90 anos, estava cega, não tinha mobilidade, tinha doença prolongada, demência, perda das faculdades e veio a falecer cerca de três meses depois da outorga do testamento e da procuração, logo, é de afiançar que não estava capaz de se autodeterminar e compreender o verdadeiro sentido e alcance do testamento e o que isso representaria para as suas duas únicas herdeiras, suas netas.”

d) - Ainda assim, pela mão da Ré, ora Recorrente, CC celebrou Testamento a seu favor em 28.05.2021 e, no mesmo dia, também outorgou Procuração com poderes gerais e especiais de administração civil, sem haver lugar a prestação de contas à Autora e co-herdeira, podendo ainda fazer negócio consigo mesma.

e) - Sobre a formação da vontade da testadora é ilustrativo que a procuração celebrada na mesma data em causa, permitiria à Ré, sem prestar contas à A. dispor de todos os bens da mandante/testadora.

f) - À beneficiária, ora Recorrente, deste testamento caberia o ónus de demonstrar que, pese embora este facto, a testadora, naquele momento, se encontrava num intervalo de lucidez e capaz de testar, o que não fez!

g) - A data de ... .03.2021 como sendo a data a partir da qual se fixou a demência de CC, foi a decorrente do processo Acompanhamento de Maior instaurado pela A. Aqui Recorrida, em15.07.2021.

h) - A referida perícia estabeleceu que “a beneficiária se encontra num estádio muito avançado do quadro demencial, com profunda deterioração cognitiva” que a impossibilita de “exercer os seus direitos pessoais como, entre outros, os contemplados no artigo 147º, nº2 do Código Civil, com especial relevo para o direito de testar.”

i) – Foi junto aos autos imagens de troca de mensagens via WhatsApp entre Autora e ré onde é escrito pela Ré, Recorrente, que CC não se recordou do nome da neta, nem soube responder sobre a sua idade numa consulta médica, em 30.04.2021.

j) - A Recorrida apresentou factos demonstrativos da incapacidade da testadora no momento da outorga, designadamente, com a Perícia e com o Depoimento de FF.

K) - Por seu turno, a Recorrente não demonstrou, nem poderia, que à data da outorga do testamento e da procuração CC estivesse “perfeitamente consciente e lúcida”, como lhe caberia.

l) - O Acórdão recorrido não se consubstanciou apenas na perícia medico -legal, como a Recorrente quer fazer crer, mas antes, na ponderação de toda a prova produzida em audiência e da restante documentação junta aos autos.

m) - Insiste a Recorrente alegando que não teve a possibilidade de exercer o contraditório quanto à admissão e produção do meio de prova (perícia) em causa, pelo que, é seguro dizer-se que não ocorrem os pressupostos erigidos pelo citado artigo 421.º, n.º 1, do CPC, para a admissão do meio de prova ora em causa.

n) - Contudo, tal não corresponde à verdade, porquanto, a Recorrente, omite factos de relevo.

o) - Assim, de forma sucinta atente-se na cronologia dos factos dos autos de Acompanhamento de Maior, no que respeita ao interesse da Recorrente:

1. Em 17 de Agosto de 2021 requereu a consulta dos autos;

2. Em 20 de Agosto de 2021 requereu que fosse indicada como acompanhante da sua avó;

3. Em 23 de Agosto de 2021 foi deferida a consulta dos autos;

4. Em 01 de Setembro junta aos autos documentos e entrega um requerimento alegando as suas razões para ser indicada como acompanhante, que não mereceram pronúncia;

5. Em 3 de Setembro esteve presente, através da sua mandatária, na audição e exame pericial da beneficiária, avó da Recorrente, tendo sugerido perguntas.

6. Posteriormente a Recorrida foi notificada para indicar as medidas de acompanhamento e em13 de setembro de 2021, juntou requerimento em conformidade, que não mereceram oposição de nenhum dos intervenientes processuais, tendo então requerido, tal como já o havia feito na sua petição inicial, que fosse nomeada acompanhante da beneficiária e consignado que a beneficiária é incapaz de testar para efeitos do disposto no art.º 2189º, al. b) do Código Civil. Além destas, requereu outras medidas que não mereceram censura;

7. Em16 de setembro de 2021 Recorrente e Recorrida foram notificadas do relatório pericial.

8. Em nenhum momento a Recorrente alegou que a beneficiária estivesse capaz ou com incapacidade intermitente que permitisse reger a sua pessoa e bens e com capacidade para testar.

9. A beneficiária esteve sempre representada pelo Ministério Público;

10. Em 27 de setembro é a própria Recorrente que junta aos autos a certidão de óbito datada de ... de setembro, do falecimento da sua avó;

11. Em 30 de setembro é proferida sentença que extinguiu os autos por inutilidade superveniente da lide;

p) - Ora, desde 16 a 30 de Setembro, independentemente do falecimento da beneficiária, decorreram mais de 10 dias para que a Recorrente pudesse, se assim o entendesse, requerer e contraditar aquele Relatório, o que não aconteceu.

q) - Pelo que dúvidas não restam que o relatório pericial não foi contraditado e consolidou-se enquanto prova pericial;

r) – Mas mesmo que assim não se entenda, o Acórdão recorrido considerou que “(…) o relatório pericial não é um meio de prova estanque, podendo ser complementado ou contraditado por outros meios de prova, quer documentais (relatórios médicos, exames feitos à testadora), quer testemunhais, nomeadamente mediante o depoimento de testemunhas com especiais conhecimentos na área (especialistas na área da psiquiatria e/ou neurologia, médicos que tenham examinado a testadora), de forma a sobrepor-se à opinião do perito médico-legal. Já não será de admitir o afastamento deste juízo pericial, meramente com base no depoimento de testemunhas não munidas destes especiais conhecimentos, sendo para o caso absolutamente irrelevante que o Sr. Perito não tenha solicitado testes e exames auxiliares de diagnóstico que revelem a etiologia e o estádio da doença, pois que podendo fazê-lo se o considerar necessário ao diagnóstico, não é obrigatório que o faça quando entender que o estado da examinanda e o relatório médico a que se refere permite o diagnóstico.

Já a medicação prescrita a esta paciente também não afasta a conclusão a que chegou este relatório. Qualquer medicação é prescrita tendo em conta não só o estado do paciente, como os benefícios que com ela se esperam retirar e, neste caso, não se sabe se quer as razões para a permanência desta medicação.”

s) - Pelos argumentos exarados a Recorrida demonstrou cabalmente que a sua avó em 28.05.2021 não estava capaz de testar, em suma não estava capaz de se auto determinar, de entender e querer nos termos que testou.

t) - Pelo que tendo-se dado procedência à reclamação da apelante, aqui Recorrida, o Tribunal da Relação de Coimbra deu como não provados os factos constantes na sentença da !ª Instância, designadamente, da alínea K) e por provado o teor do ponto 1 da matéria não assente, que assim se deverá manter, consignando-se os pontos B.1, E., E.2 e M do Acórdão e manter como factos não provados que no momento na outorga do testamento referido em B), a CC conseguia compreender o que a rodeava, que ao celebrar aquele testamento beneficiaria a Ré em relação à Autora, o que queria, e estava capaz de sugerir à ré o agendamento daquele testamento.

Nestes termos devem ser admitidas as presentes contra-alegações e manter-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, confirmando-o, negando-se a revista por não padecer de vícios ou nulidades que o enfermem, por se encontrar muito bem fundamentado e consequentemente manter-se a decisão de anulação do Testamento Público celebrado em 28.05.2021 no Cartório Notarial da Sr.ª Dr.ª DD, por incapacidade acidental da testadora CC.

II – FUNDAMENTAÇÃO

Foram dados como provados os seguintes factos:

A) A. e R. são netas de CC, com última residência conhecida em Estrutura Residencial para Idosos (ERPI) denominada “...”, sita em ..., entretanto falecida em ... de setembro de 2021, com 89 anos.

B) A supra identificada CC outorgou um Testamento Público em 28 de Maio de 2021 no Cartório Notarial da Srª Drª DD, sito em Rua ... – ..., pelo qual nomeou herdeira da sua quota disponível da sua herança a ora R. BB.

B.1. Neste testamento foi feita a menção de que a testadora “não assina por não poder”, sendo após aposta a impressão digital do indicador da mão direita.

C) A referida Testadora em 10.04.2021 deu entrada na ERPI “...”, em ..., por carecer de apoio e acompanhamento de terceiras pessoas quer quanto à sua alimentação, quer quanto à sua saúde e higiene pessoal.

D) Em 15.07.2021 a ora A. apresentou no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo Local Cível da ... – Juiz 1, uma acção especial de Acompanhamento de Maior a favor da acima identificada CC, a qual correu termos com o processo nº 1195/21.5...

E) Na sequência da normal tramitação do ora referido processo a situação clínica da CC, foi objecto de audição e perícia psiquiátrica.

E.1. No relatório pericial, em exame realizado em 3 de Setembro de 2021, fez o Sr. Perito médico-legal, constar que a examinanda se encontrava “em cadeira de rodas, com instabilidade postural, olhos fechados, não estabelecendo contato visual com o tribunal (está praticamente cega). Mostra-se desorientada em termos alopsiquícos e autopsiquícos, tendo dificuldade em responder ao que lhe é perguntado, ou compreender as questões que lhe são colocadas. Não diz o seu nome completo, não se lembra inclusivamente da sua idade (diz ter 49 anos de idade), nem da data de nascimento. O discurso é muito pobre, por vezes ininteligível, escasso, com lentificação psíquica. A requerida encontra-se totalmente dependente para todas as actividades de vida diária básicas. Não tem mobilidade autónoma, encontra-se acamada, realizando levante diário para cadeirão. Tem atualmente úlceras de pressão decorrentes de mobilidade reduzida.

(…)

No caso em apreço a beneficiária encontra-se num estádio muito avançado do quadro demencial, com profunda deterioração cognitiva e total dependência de terceiros. Importa relevar que sofre, também, de incapacidade visual (quase cegueira total) em resultado de patologia oftalmológica grave.

Pelo exposto, somos do parecer que um tal contexto clínico (demência e cegueira) impossibilita a requerida de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.

Igualmente, impossibilita-a de exercer os seus direitos pessoais como, entre outros, os contemplados no artigo 147.º, n.º 2 do Código Civil, com especial relevo para o direito pessoal de testar.

Estas limitações não podem ser supridas pela cooperação e assistência de familiares.

Pelo exposto, do ponto de vista psiquiátrico forense, justifica-se plenamente que possa beneficiar de medidas de acompanhamento.”

E.2. Neste relatório, fixou o Sr. Perito médico-legal o início desta incapacidade, pelo menos, em 29 de Março de 2021.

F) CC faleceu no dia ... de setembro de 2021.

G) Em virtude do óbito, e por decisão datada de 29.09.2021, foi determinada a extinção da instância do processo referido em D) por impossibilidade superveniente da lide.

H) À data da outorga do testamento a CC apresentava uma acuidade visual inferior a 1/10 em ambos os olhos decorrente da degenerescência macular da idade.

I) Nesse mesmo dia 28.05.2021, e também perante a Dr.ª DD, notária do Cartório Notarial sito na Rua ..., na ..., a outorgante CC outorgou uma procuração, pela qual instituiu a aqui ré como sua procuradora.

J) Desde, pelo menos, ... de Março de 2021, a CC padecia de demência e, por vezes, não sabia a sua idade e não reconhecia o nome dos seus familiares.

L) A acção entrou em juízo em 09.12.2021 e a ré foi citada em 23.06.2022.

M) À data da outorga do testamento, a CC, por vezes não sabia onde estava, não sabia em que ano estava, acreditava ter uma idade muito inferior à que tinha, e não compreendia perguntas simples que lhe faziam.

Factos não provados

1) No momento na outorga do testamento referido em B), a CC conseguia compreender o que a rodeava, que ao celebrar aquele testamento beneficiaria a Ré em relação à Autora, o que queria, e estava capaz de sugerir à ré o agendamento daquele testamento.

III – DA SUBSUNÇÃO – APRECIAÇÃO

Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.

A) O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do Recorrente, artigo 635 do Código de Processo Civil.

A única questão a decidir é a de se saber se o Acórdão recorrido ao proceder à alteração da matéria de facto incorreu em erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais, vício este previsto no artigo 674.º, n.º 1, als. a) e b) e 2 do CPC, pois teria violado a aplicação da lei substantiva dos artigos 2199.º e 342.º, n.º 1 do CC e adjectiva dos artigos 421.º, n.º 1 e 415.º do CPC?

B) Vejamos

1 - O direito

Nos termos do artigo 342 do Código Civil, relativo ao ónus da prova

«1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.

2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.

3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito».

Estatui o artigo 2199 do Código Civil, relativo à Incapacidade acidental, que «É anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória».

Dispõe também o artigo 415 do Código de Processo Civil, relativo ao Princípio da audiência contraditória, que:

«1- Salvo disposição em contrário, não são admitidas nem produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas.

2- Quanto às provas constituendas, a parte é notificada, quando não for revel, para todos os atos de preparação e produção da prova, e é admitida a intervir nesses atos nos termos da lei; relativamente às provas pré-constituídas, deve facultar-se à parte a impugnação, tanto da respetiva admissão como da sua força probatória».

E, nos termos do artigo 421 do mesmo diploma legal, relativo ao valor extraprocessual das provas:

«1 - Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 355.º do Código Civil; se, porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova.

2 - O disposto no número anterior não tem aplicação quando o primeiro processo tiver sido anulado, na parte relativa à produção da prova que se pretende invocar».

Nos termos do n.º 3 do artigo 674.º do Código de Processo Civil, relativo aos Fundamentos da revista, «O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova».

Por último importa salientar que «A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º», n.º 2 do artigo 682 do CPC.

2 – Ponderando os princípios jurídicos sumariamente enunciados supra 1 e considerando a factualidade provada e o teor do Acórdão recorrido, entendemos ser inequívoco que a pretensão da Recorrente não pode proceder.

O Acórdão recorrido, na sequência da apelação da ora recorrida, alterou a factualidade provada e não provada e a Recorrente na presente revista pretende que o Supremo altere a matéria de facto que a Relação deu como provada e não provada, invocando para o efeito que a Relação suportou aquela alteração em prova que não podia ser considerada (a perícia).

Mas não lhe assiste qualquer razão.

Na verdade, a presente situação não se enquadra em nenhuma das hipóteses consagradas nos artigos 682 n.º 2 e 674 n.º 3, ambos do CPC, ou seja, não estamos perante uma das situações excepcionais em que o Supremo pode rever o Acórdão recorrido.

O STJ pode corrigir qualquer erro na apreciação da prova ou na fixação da matéria de facto, mas apenas nos casos excepcionais previstos nos artigos 682 n.º 2 e 674 n.º 3, ambos do CPC, ou seja se houver ofensa pelo tribunal recorrido de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de certo meio de prova.

Relembremos os factos.

Na sentença da primeira instância foi dada como provada certa matéria de facto (alínea K) e não provada outra (ponto 1 da matéria não assente).

Tendo sido pedida a reapreciação da matéria de facto a Relação deu procedência à Apelação e deu como não provados os factos constantes da alínea K) - Não obstante o descrito em C), H) e J), no momento na outorga do testamento referido em B), a CC conseguia compreender o que a rodeava, que ao celebrar aquele testamento beneficiaria a Ré em relação à Autora, o que queria, e estava capaz de sugerir à ré o agendamento daquele testament - e por provado o teor do ponto 1 da matéria não assente, - À data da outorga do testamento, a CC, por vezes não sabia onde estava, não sabia em que ano estava, acreditava ter uma idade muito inferior à que tinha, e não compreendia perguntas simples que lhe faziam.

Mais considerou provado, ao abrigo do disposto no artº 662, nº1, do C.P.C., os pontos B.1. E.1. e E.2.

B.1. Neste testamento foi feita a menção de que a testadora “não assina por não poder”, sendo após aposta a impressão digital do indicador da mão direita.

E.1. N relatório pericial, em exame realizado em 3 de Setembro de 2021, fez o Sr. Perito médico-legal, constar que a examinanda se encontrava “em cadeira de rodas, com instabilidade postural, olhos fechados, não estabelecendo contato visual com o tribunal (está praticamente cega). Mostra-se desorientada em termos alopsiquícos e autopsiquícos, tendo dificuldade em responder ao que lhe é perguntado, ou compreender as questões que lhe são colocadas. Não diz o seu nome completo, não se lembra inclusivamente da sua idade (diz ter 49 anos de idade), nem da data de nascimento. O discurso é muito pobre, por vezes ininteligível, escasso, com lentificação psíquica. A requerida encontra-se totalmente dependente para todas as actividades de vida diária básicas. Não tem mobilidade autónoma, encontra-se acamada, realizando levante diário para cadeirão. Tem atualmente úlceras de pressão decorrentes de mobilidade reduzida.

(…)

No caso em apreço a beneficiária encontra-se num estádio muito avançado do quadro demencial, com profunda deterioração cognitiva e total dependência de terceiros. Importa relevar que sofre, também, de incapacidade visual (quase cegueira total) em resultado de patologia oftalmológica grave.

Pelo exposto, somos do parecer que um tal contexto clínico (demência e cegueira) impossibilita a requerida de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.

Igualmente, impossibilita-a de exercer os seus direitos pessoais como, entre outros, os contemplados no artigo 147.º, n.º 2 do Código Civil, com especial relevo para o direito pessoal de testar.

Estas limitações não podem ser supridas pela cooperação e assistência de familiares.

Pelo exposto, do ponto de vista psiquiátrico forense, justifica-se plenamente que possa beneficiar de medidas de acompanhamento.”

E.2. Neste relatório fixou o Sr. Perito médico-legal o início desta incapacidade, pelo menos, em 29 de Março de 2021.

Alterando a matéria de facto provada e não provada a Relação alterou também, em conformidade, a decisão de direito.

A Recorrente, como se disse, entende que a Relação não podia ter alterada a matéria de facto uma vez que utilizou prova – a perícia – que não podia.

Sem razão o faz.

A Relação ao reapreciar e alterar a matéria de facto fê-lo ao abrigo das normas legais aplicáveis (artigo 607 n.ºs 4 e 5 do CPC), não podendo este Supremo Tribunal censurar a alteração efectuada.

A Relação examinou de forma crítica as provas produzidas (basta ler o Acórdão recorrido nessa parte para se ver que a Relação indicou as provas que convenceram e aquelas que não mereceram credibilidade, pelo que nos dispensamos de aqui as voltar a transcrever).

E não se diga, como a Recorrente pretende fazer crer, que a Relação se fundamentou apenas no Relatório pericial. Basta ver que a Apelante no recurso para a Relação indicou outras provas, designadamente testemunhais que foram consideradas no Acórdão.

(A apelante indicou o teor do relatório pericial elaborado na acção de acompanhamento de maior intentada em favor da testadora, as mensagens de whattsapp trocadas entre A. e R. relativas à sua avó, o depoimento da testemunha FF, o depoimento da testemunha GG, tudo provas consideradas e analisadas pela Relação).

A Relação indicou de forma clara quais as provas, documentais e testemunhais que foram decisivas para formar a sua convicção.

Ao contrário do que pretende a ora Recorrente é manifesto – basta ler o Acórdão recorrido – que para além do relatório pericial foi produzida outra prova e que foi considerada para o Tribunal formar a sua convicção.

O Acórdão recorrido, os Juízes (as) formaram a sua própria convicção, convicção essa que é autónoma e fizeram-no ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova.

Lendo o Acórdão recorrido vemos que os julgadores examinaram de forma critica as provas produzidas e indicaram quais as que foram essenciais para decisivas para formar a sua convicção. A formação da convicção da Relação está sujeita às mesmas exigências da 1ª instância.

E foi isso que sucedeu. Acontece que havendo provas contraditórias ou opostas o Tribunal pode dar prevalência a umas em detrimento de outras.

E, nada impedia a Relação de fazer uso do Relatório pericial para decidir em sentido contrário ao da primeira instância, como igualmente nada impediu a Sr.ª Juíza de desvalorizar esse relatório pericial para poder julgar a acção improcedente.

Afirma a Recorrente que o uso (admissão) do relatório da perícia ofende o artigo 421 n.º 1 do CPC, pois não pode exercer o contraditório.

Ora, o documento em causa foi admitido em primeira instância e a Recorrente não se opôs. Nada disse. A sentença de primeira instância apreciou tal relatório para o desvalorizar.

Nada impedia que a Relação apreciasse tal relatório valorizando-o em sentido inverso ao da sentença da 1ª instância.

Nem o princípio do contraditório se mostra violado pois que a Recorrente podia ter exercido a sua oposição ao relatório em causa, seja no próprio processo de maior acompanhado seja nos presentes autos.

O Princípio do contraditório não se mostra minimamente beliscado ou colocado em causa uma vez que a recorrente teve oportunidade de contraditar ou opor-se ao referido relatório pericial.

O Relatório pericial em questão podia ser, como foi, apreciado pelo Acórdão recorrido (como já havia sido apreciado pela decisão da primeira instância, ainda que para não aceitar as suas conclusões).

Mas como se disse a Relação não usou apenas – como afirma a recorrente – o relatório pericial para formar a sua convicção, mas usou todo um conjunto de provas, que analisou e das quais fez o exame crítico.

Ambas as instâncias – e bem – analisaram o relatório, usaram-no para formar a sua convicção, ainda que tenham concluído em sentidos opostos.

Como se referiu supra a presente situação não se enquadra em nenhuma das hipóteses previstas nos artigos 682 n.º 1 e 674 n.º 3 ambos do CPC (não se mostrando violada nenhuma norma de direito substantivo ou adjectivo, designadamente os preceitos legais invocados pela Recorrente), pelo que não é possível no presente caso o STJ de forma excepcional rever o Acórdão recorrido e alterar a matéria de facto que foi dada como provada e não provada pela Relação.

Afigura-se-nos ser manifesto e evidente que não se verificam os requisitos do direito pretendido pela Ré, ora Recorrente, pelo que o Acórdão recorrido não merece censura, devendo manter-se.

Em suma, dúvidas não nos restam em como se impõe a improcedência desta questão e consequentemente da presente revista, devendo subsistir a decisão recorrida.

III - Decisão

Nos termos expostos acordam os juízes que compõem este Tribunal em julgar improcedente a presente revista e, em consequência, confirmam o Acórdão recorrido.

Custas pela Ré/recorrente.

Lisboa, de de 2024

José Sousa Lameira (relator)

Conselheiro Nuno Ataíde

Conselheira Maria Fátima Gomes