ACIDENTE DE TRABALHO
NEXO DE CAUSALIDADE
EVENTO SÚBITO E ANORMAL
MORTE
PRESUNÇÃO LEGAL
ILISÃO DA PRESUNÇÃO
Sumário

I – Para que estejamos perante a ocorrência de um acidente de trabalho impõe-se que exista: uma relação laboral, um evento em sentido naturalístico, uma lesão, a morte ou redução da capacidade de ganho ou de trabalho e um nexo de causalidade entre o evento e a lesão e entre a lesão e a morte ou incapacidade (artigo 8.º da LAT).
II – Conforme resulta do artigo 10.º da LAT, a lesão constatada no local e no tempo de trabalho presume-se consequência de acidente de trabalho, ou seja, por força desta presunção, o sinistrado está dispensado da prova do nexo de causalidade entre o evento (acidente) e as lesões, no entanto, a mesma “já não o liberta do ónus de provar a verificação do próprio evento” e da lesão.
III – Tendo resultado provado que em resultado do esforço físico despendido nas tarefas preparatórias, o sinistrado sentiu-se mal, sendo que, quando os referidos colegas de equipa chegaram ao local o mesmo encontrava-se agarrado a um pilar de betão, junto do portão e a cair para trás, já não conseguia falar, apenas tendo demonstrado que sentia dor e entrado em paragem cardiorrespiratória, vindo a falecer, estamos perante um evento anormal, súbito e imprevisto que provocou a morte do trabalhador e porque ocorreu no tempo e local de trabalho e por causa deste, é um acidente de trabalho.
IV – A ilisão da presunção a que alude o artigo 10.º, n.º 1, da LAT, exigia a prova do contrário, ou seja, de que a morte súbita do sinistrado tivesse tido origem exclusiva na doença natural de que o mesmo era portador.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral



Apelação n.º 331/21.6T8VIS.C1

Acordam[1] na Secção Social (6.ª secção) do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório

AA, residente em ...

intentou a presente ação especial de acidente de trabalho contra

G... – Companhia de Seguros, SA., com sede em ...

alegando, em síntese que:

O sinistrado, seu marido, exercia as funções de sapador florestal por conta da Associação de Produtores Florestais de ... e ... e, no dia 14/01/2021, depois de ter pegado num bidão com mais de 25 litros de gasolina e carregado outros dois e três motorroçadoras com cerca de 13 kg cada uma para uma carrinha, em resultado do esforço físico despendido, sentiu-se mal e quando os colegas chegaram ao local, encontrava-se agarrado a um pilar de betão e a cair para trás, já não conseguia falar, apenas demonstrando que sentia dor; o sinistrado entrou em paragem cardiorrespiratória e veio a falecer, tendo-se concluído na autópsia que a morte se ficou a dever a hipertrofia do miocárdio; estamos perante um acidente de trabalho pois o referido esforço físico, súbito, de duração curta e limitada, terá gerado a manifestação da doença/lesão cardíaca e respetiva morte imediata do sinistrado.

Termina, formulando o seguinte pedido:

Termos em que, deve a presente ação ser julgada procedente por provada e, em consequência:

I. Ser considerado como acidente de trabalho o sinistro que vitimou o Sinistrado, a 14 de janeiro de 2021, por ocorrido no tempo e local de trabalho e em resultado e no exercício das tarefas profissionais, e bem por se verificar nexo causal entre o esforço físico levado a cabo pelo Sinistrado para execução das suas funções e a morte por hipertrofia do miocárdio;

II. Ser a Ré condenada a pagar à Autoria, na qualidade de beneficiária legal do Sinistrado:

A. O capital de 43.074,36 (quarenta e três mil e setenta e quatro euros e trinta e seis cêntimos) da pensão anual e vitalícia de 3.139,30 (três mil cento e trinta e nove euros e trinta cêntimos) por morte.

B. Subsídio por morte, no montante de 5.792,29 (cinco mil, setecentos e noventa e dois euros e vinte e nove cêntimos);

C. Despesas de funeral no montante de 1.900,00 (mil e novecentos euros).

D. Despesas de transporte com a deslocação obrigatória a este Tribunal, no valor de 20,00 (vinte euros).”

                                                                       *

A Ré Seguradora contestou alegando, em sinopse, que:

O marido da Autora não foi vítima de qualquer acidente de trabalho; o sinistrado não apresentava sinais externos de lesões traumáticas em qualquer parte do corpo, sofria de HTA e dislipidemia e tinha deixado de tomar o medicamento; e o relatório da autópsia conclui que a morte foi devida a hipertrofia miocárdica e que tal quadro constitui causa de morte natural; o sinistrado foi acometido de doença natural e dela veio a morrer, pelo que, não existiu qualquer acidente de trabalho.

Termina dizendo que a presente ação deve ser julgada não provada e improcedente e a contestante absolvida do pedido, com as legais consequências.

                                                             *                                                        

Foi proferido o despacho saneador de fls. 96, selecionada a matéria assente e enunciados o objeto do litígio e os temas da prova.

                                                             *

Procedeu-se a julgamento, conforme consta das respetivas atas.

                                                             *

Foi, depois, proferida sentença (fls. 201 e segs.) e de cujo dispositivo consta:

“Por tudo o exposto e ao abrigo das disposições legais citadas, julga-se a presente acção procedente por provada e em consequência:

I- Considera-se como acidente de trabalho o sinistro que vitimou o Sinistrado BB, a 14 de Janeiro de 2021, por ocorrido no tempo e local de trabalho e em resultado e no exercício das tarefas profissionais, e se verificar nexo causal entre o esforço físico levado a cabo pelo Sinistrado para execução das suas funções e a sua morte.

II- Condena-se a Ré G..., S.A a pagar à Autora AA, na qualidade de beneficiária legal do Sinistrado:

a) O capital de remição no montante de 43.074,34 (quarenta e três mil e setenta e quatro euros e trinta e quatro cêntimos) da pensão anual e vitalícia de € 3.139,30 (três mil cento e trinta e nove euros e trinta cêntimos), devida desde 15-01-2021.

b) O subsídio por morte, no montante de 5.792,29 (cinco mil, setecentos e noventa e dois euros e vinte e nove cêntimos);

c) O subsídio por despesas de funeral no montante de 1.900,00 (mil e novecentos euros).

d) Os juros de mora à taxa legal de 4% sobre tais quantias desde 15-01-2021 até efetivo e integral pagamento.

Absolve-se a Ré do restante pedido contra ela formulado.”

*

A , notificada desta sentença, veio interpor o presente recurso formulando as seguintes conclusões:

(…).

*

A Autora ofereceu resposta, concluindo que:

(…).

*

O Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu o douto parecer de fls. 278, no sentido de que “Assim, salvo melhor opinião, terá que se concluir, tal como consta da sentença recorrida, que estamos perante um verdadeiro acidente de trabalho indemnizável, sendo responsável pela reparação do mesmo a Ré, por se encontrar transferida para esta a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho sofridos pela vítima.

*

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

                                                             *

II – Questões a decidir

Como é sabido, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitadas pelas conclusões da alegação do recorrente (art.º 639.º, n.º 1, do CPC), salvo as que são de conhecimento oficioso.

Assim, cumpre apreciar as seguintes questões:

1ª – Reapreciação da matéria de facto.

2ª – Se não ocorreu um acidente de trabalho indemnizável.

                                                             * 

                                                             *

III – Fundamentação

a) Factos provados e não provados constantes da sentença recorrida:

1- BB faleceu no dia 14 de janeiro de 2021 (cfr. doc. de fls. 39).

2- O referido BB faleceu no estado de casado com a Autora AA, nascida a ../../1963 (cfr. docs de fls. 26 e 39).

3- O referido BB foi admitido ao serviço da Associação de Produtores Florestais de ... e ..., mediante contrato de trabalho sem termo, com início a 12 de maio de 2008, conforme documento nº 2 junto com a petição inicial.

4- Obrigando-se a trabalhar por conta da Empregadora e sob as respetivas ordens, direção e fiscalização, exercendo funções inerentes à categoria profissional de sapador florestal, entre as quais se incluem «a prevenção dos incêndios florestais através da roça de matos e limpeza de povoamentos, realização de fogos controlados, manutenção e beneficiação da rede divisional, abertura de linhas de quebra fogos e outras infra estruturas, serviços de vigilância, apoio ao combate a incêndios florestais e às operações de rescaldo, ações de sensibilização do público para as normas de conduta em matéria de prevenção, do uso do fogo e de limpeza das florestas».

5- No dia 14-01-2021, cerca das 07h45m, o referido BB, encontrava-se a exercer as suas funções ao abrigo do referido contrato de trabalho, sob as ordens, direção e fiscalização da Empregadora, em ....

6- Nesse dia, o referido BB dirigiu-se logo pela manhã, como habitualmente, para a garagem da Empregadora, sita na Avenida ..., em ....

7- Onde iniciou os trabalhos preparatórios para o dia de trabalho, ou seja, para as tarefas inerentes à prevenção dos incêndios florestais através da roça de matos, utilizando os instrumentos de trabalho postos à sua disposição pela Empregadora.

8- Tendo enchido um bidão que se encontrava no armazém com 20 litros de gasolina.

9- Posteriormente carregou tal bidão, que pesava cerca de 20kg, elevando-o cerca de 1 metro, para a carrinha em que o mesmo e os dois colegas que integrariam a sua equipa – CC e DD (trabalhadores da Empregadora) – se deslocariam pelas matas no exercício das suas funções.

10- Em resultado do esforço físico despendido nessas tarefas preparatórias, o referido BB sentiu-se mal.

11- Sendo que, quando os referidos colegas chegaram ao local em que aquele se encontrava, pelas 07h45m, o mesmo encontrava-se agarrado a um pilar de betão, junto do portão e a cair para trás.

12- Os colegas imediatamente correram na sua direção.

13- Que já não conseguia falar, apenas tendo demonstrado que sentia dor.

14- Nessa sequência, os mesmos contactaram, de imediato, o Instituto Nacional de Emergência Médica.

15- Tendo aquele BB entrado em paragem cardiorrespiratória.

16- E sendo as inúmeras tentativas de reanimação do mesmo encetadas pelo médico que se encontrava na Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER) mal sucedidas.

17- O óbito do referido BB foi declarado às 09h00m.

18- O mesmo foi, posteriormente, submetido a autópsia médico-legal, tendo sido concluído que a morte se devera a hipertrofia do miocárdio.

19- As análises toxicológicas realizadas na autópsia foram negativas para álcool, drogas de abuso e medicamentos.

20- À data do acidente, o Sinistrado auferia a retribuição mensal base de € 665,00 (seiscentos e sessenta e cinco euros) x 14 meses, acrescida de € 104,94 (cento e quatro euros) x 11 meses, a título de subsídio de alimentação.

21- A responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho encontrava-se totalmente transferida para a Ré, por contrato de seguro, titulado pela apólice n.º ...12.

22- A Empregadora participou o acidente como de trabalho à Ré, nos termos constantes do documento de fls. 16 dos autos, que aqui se dá por reproduzido, tendo esta, em consequência, participado o mesmo a este Tribunal.

23- A Autora despendeu a quantia de € 1.900,00 em despesas de funeral do seu falecido marido.

24- Do relatório de autópsia resulta que o BB não apresentava lesões externas na cabeça, no pescoço, no tórax (mas com escoriação apergaminhada da face anterior do tórax, sobre o terço distal do esterno com 25 por 10 milímetros), no abdómen, nos membros superiores e nos membros inferiores (mas com escoriações nos joelhos), sendo que em nenhuma parte do corpo o BB apresentava sinais externos de lesões traumáticas.

25- O relatório de autópsia conclui que: “ A morte de BB foi devida a hipertrofia miocárdica; Tal quadro constitui causa de morte natural; Os exames toxicológicos realizados foram negativos para as substâncias pesquisadas”.

26- De tal relatório de autópsia consta ainda que “Segundo um familiar sofreria de HTA e dislipidemia e estaria medicado com a medicação para o efeito, mas teria deixado de tomar.”

27- Em tal relatório consta ainda que a espessura do miocárdio do ventrículo esquerdo é de 20mm.

28- O valor da espessura do miocárdio do ventrículo esquerdo de 20mm é considerada de grau grave, definido na avaliação com recurso a ecocardiograma transtorácico, a mais comummente realizada para fins de diagnóstico na prática clínica, como superior a 16mm no homem.

29- É possível que na vítima a hipertrofia miocárdica – inequivocamente não fisiológica, categoricamente tradutora de doença subjacente – possa ter sido causada pelo quadro crónico de hipertensão arterial não adequadamente controlada, sendo, neste contexto, definida como lesão do órgão secundária à hipertensão arterial e constituindo, per se, um marcador de alto risco para a ocorrência de eventos cardiovasculares, no qual se enquadra a morte súbita de causa cardíaca.

30- No entanto, a hipertrofia constatada nos quadros de hipertensão arterial não controlada raramente excede 15mm.

31- Independentemente da causa, a existência de hipertrofia miocárdica, quer ocorra em indivíduos com hipertensão arterial ou com tensão arterial normal, está associada a um aumento do risco de ocorrência de morte súbita.

32- Existem vários mecanismos para o aumento desse risco, sendo que um desses mecanismos decorre de alterações eletrofisiológicas do ritmo cardíaco, para as quais a existência de fibrose, constatada na autópsia da vítima, constitui uma alteração anatómica deletéria que serve de substrato para o desenvolvimento de arritmias malignas que podem degenerar em mortes súbitas.

33- Para a realização das tarefas aludidas nos nºs 8 e 9 é realizado esforço isométrico acrescido.

34- A morte súbita da vítima, BB, teve causa cardíaca, a hipertrofia miocárdica constitui um substrato para a ocorrência de morte súbita de causa cardíaca, independentemente da sua etiologia, sendo a hipertrofia miocárdica constatada na autópsia de grau grave, categoricamente tradutora de doença subjacente, e apesar de ser possível que a sua etiologia tenha sido o quadro de hipertensão arterial não controlada, a sua gravidade faz com que causas hereditárias – como a miocardiopatia hipertrófica – não possam ser excluídas, sendo que a realização do esforço da vítima nas tarefas aludidas nos nºs 8 e 9, com hipertrofia miocárdica, pode ter causado o evento da morte súbita.

Factos não provados:

Da petição inicial não se provou a demais matéria dos artigos 10º, 11º, 12º, 40º, 41º e 53º (no que concerne às despesas de deslocação) que não consta dos factos provados, sendo que os artigos 6º (demais matéria que não consta dos factos provados), 25º, 26º, 31º, 32º, 33º, 34º, 35º, 36º, 37º, 38º, 39º, 42º, 43º, 44º, 45º, 46º, 47º, 48º, 51º e 53º (demais matéria que não consta dos factos provados e não provados), contêm apenas matéria conclusiva ou de direito ou sem interesse para a decisão.

Da contestação da Ré seguradora não se provou a demais matéria que consta dos artigos 5º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º e 13º que não consta dos factos provados, sendo que os artigos 1º, 2º e 14º contêm apenas matéria de impugnação, conclusiva ou de direito.

                                                             *

                                                             *

b) - Discussão

1ª questão

Reapreciação da matéria de facto

A Ré recorrente interpôs o presente recurso visando a reapreciação da prova gravada.

Conforme o disposto no artigo 640.º, do C.P.C.:

<<1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo da possibilidade de poder proceder à respectiva transcrição dos excertos que considere relevantes; (…)>>.

Acresce que, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação nos casos previstos no artigo 662.º, do N.C.P.C..

Lidas as alegações, constatamos que a recorrente indicou os pontos concretos da matéria de facto que considera incorretamente julgados (pontos 7, 8, 9 e 10 da matéria de facto provada), os meios probatórios que impunham decisão diversa, ou seja, os depoimentos das testemunhas que identifica e, ainda, a decisão que, no seu entender devia ter sido proferida.

Acontece que, apesar de ter indicado os depoimentos das testemunhas que identifica, não procedeu à indicação das passagens da gravação em que se funda.

Na verdade, a recorrente nem no corpo das alegações nem nas conclusões procede àquela indicação, posto que, apenas refere o supra enunciado, sendo certo que não releva para efeitos de cumprimento do ónus que sobre si impende o apelo, sem mais, ao constante da fundamentação da decisão recorrida.

Ora, conforme se decidiu no acórdão do STJ, de 08-04-2021, disponível em www.dgsi.pt:

II - O sentido e alcance dos requisitos formais de impugnação da decisão de facto previstos no n.º 1 do art. 640.º do CPC devem ser equacionados à luz das razões que lhe estão subjacentes, mormente em função da economia do julgamento em sede de recurso de apelação e da natureza da própria decisão de facto, conciliando o princípio da autorresponsabilidade das partes que as obriga ao cumprimento de regras muito precisas no âmbito do recurso da decisão sobre a matéria de facto com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando prevalência a aspetos de ordem material, e não formal.

III - O recorrente que impugne a decisão sobre determinados pontos da matéria de facto deve indicar, nas conclusões, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; por sua vez, na motivação deve identificar os meios de prova que, na sua perspetiva, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos impugnados, bem como as passagens da gravação relevantes e a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”[2]

Assim sendo, omitindo a recorrente o cumprimento do ónus fixado na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC, impõe-se, nesta parte, a rejeição imediata da impugnação da matéria de facto.

Na verdade, <<a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão sobre a matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:

a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, al. b)).

b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640.º, n.º 1, al. a)).

c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.).

d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda.

(…)

As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo>>[3].

Posto isto, dúvidas não existem de que a recorrente não cumpriu na totalidade o ónus que sobre si impendia e, consequentemente, este tribunal não pode proceder à reapreciação da matéria de facto com base no depoimento das testemunhas indicadas e impondo-se, por isso, nesta parte, a rejeição do presente recurso.

A Ré recorrente alega, ainda, que:

- Os Factos Assentes sob os nºs 7, 8, 9 e 10 estão em manifesta contradição com os Factos Assentes sob os nºs 11, 12 e 13.

- Se, por um lado, é dado como provado que quando os colegas chegaram ao local viram o sinistrado agarrado a um pilar, e já nem conseguia falar, como é que, por outro lado, se dá como provado que pegou no bidão e sentiu-se mal?

 - A contradição é, pois, manifesta.

Apreciando a pretensão da recorrente:

Consta dos alegados pontos da matéria de facto provada o seguinte:

7- Onde iniciou os trabalhos preparatórios para o dia de trabalho, ou seja, para as tarefas inerentes à prevenção dos incêndios florestais através da roça de matos, utilizando os instrumentos de trabalho postos à sua disposição pela Empregadora.

8- Tendo enchido um bidão que se encontrava no armazém com 20 litros de gasolina.

9- Posteriormente carregou tal bidão, que pesava cerca de 20kg, elevando-o cerca de 1 metro, para a carrinha em que o mesmo e os dois colegas que integrariam a sua equipa – CC e DD (trabalhadores da Empregadora) – se deslocariam pelas matas no exercício das suas funções.

10- Em resultado do esforço físico despendido nessas tarefas preparatórias, o referido BB sentiu-se mal.

11- Sendo que, quando os referidos colegas chegaram ao local em que aquele se encontrava, pelas 07h45m, o mesmo encontrava-se agarrado a um pilar de betão, junto do portão e a cair para trás.

12- Os colegas imediatamente correram na sua direção.

13- Que já não conseguia falar, apenas tendo demonstrado que sentia dor.

Pois bem, não vislumbramos qualquer contradição entre a matéria descrita nos pontos 7 a 10, por um lado, e a constante dos pontos 11 a 13, por outro.

Na verdade, nos pontos 7 a 10 encontram-se descritas as tarefas desempenhadas pelo sinistrado e o seu estado, ao passo que nos pontos 11 a 13 se descrevem factos posteriores presenciados pelos colegas quando chegaram ao local.

E, por fim, a recorrente alega que:

- Não é só por estes motivos que deve ser alterada a resposta dada aos Factos Assentes acima descritos, e muito particularmente o Facto Assente sob o nº 10, pois, a este respeito, há que ter em linha de conta, PRINCIPALMENTE, o Relatório de Autópsia e o Parecer da Especialidade de Cardiologia.

 - O Parecer de Cardiologia não é, de todo, conclusivo quanto ao que esteve na origem da hipertrofia miocárdica.

 - O que consta desse Parecer é que o alegado esforço exercido pelo sinistrado (que não sabemos, sequer, que existiu) PODE TER DESENCADEADO O EVENTO DE MORTE SÚBITA, sendo certo que, entre “pode ter desencadeado” e “desencadeou” vai, na modesta opinião da demandada, uma grande distância, inultrapassável em termos de ónus probatório.

- O Parecer, que foi elaborado com base em elementos meramente documentais, sem qualquer exame direto ao sinistrado, não foi, sequer, conclusivo quanto ao que esteve na origem da morte.

- O próprio Parecer enumera uma série de patologias que, essas sim, potenciam, com um grande grau de probabilidade, a morte do sinistrado, como por exemplo, causas hereditárias.

- Só existe um elemento de prova idóneo para determinar a causa da morte do sinistrado, precisamente o relatório de Autópsia, produzido com base num exame direto ao sinistrado, e que determinou que a causa da morte foi: DOENÇA NATURAL.

- Não pode o Tribunal, como fez, desvalorizar um meio de prova pericial, idóneo a determinar a causa da morte, apenas porque, no Parecer em Causa, é referida como possível causa da morte súbita a realização de um determinado esforço físico.

- É de lembrar que a autópsia foi realizada logo após o decesso do sinistrado, ao passo que o Parecer foi produzido mais de dois anos após esse mesmo decesso.

- Assim sendo, os Factos Assentes sob os nºs 7, 8, 9 e 10º da Douta Sentença deverão, pois, passar a figurar com a resposta de NÃO PROVADOS.

- Mais deve passar a constar como Facto Assente o seguinte: “O sinistrado faleceu em consequência de doença natural”.

Vejamos:

Resulta da fundamentação de facto da sentença recorrida que a matéria descrita nos referidos pontos 7 a 10 resultou do depoimento das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento.

Por outro lado, nem o relatório da autópsia nem o parecer de cardiologia juntos aos autos consubstanciam meios de prova capazes de infirmar, por si só, os factos descritos no ponto 10 da matéria de facto provada.

Assim sendo, e porque como consequência do incumprimento do ónus que impendia sobre a recorrente, este tribunal não pode proceder à reapreciação da matéria de facto com base no depoimento das testemunhas indicadas, tendo-se, nesta parte, rejeitado o presente recurso, nada mais se impõe dizer, mantendo-se como provada a matéria descrita nos pontos 7, 8, 9 e 10 do elenco dos factos provados.

Resta dizer que também não acompanhamos a recorrente na sua pretensão de ver dado como provado que: O sinistrado faleceu em consequência de doença natural.

Na verdade, a este propósito consta da fundamentação da decisão recorrida que: “O tribunal não considerou o relatório pericial que foi efectuado no GML dado que do mesmo constam apenas conceitos de direito, sem justificação técnica da área da medicina, designadamente da especialidade de cardiologia, sendo que a causa da morte está relacionada com esta especialidade, sendo certo que os esclarecimentos prestados em audiência de julgamento pela perita médica que o realizou, também não lograram contrariar o relatório pericial da especialidade de cardiologia, tanto mais que se fundou em factos que não correspondem à realidade, designadamente que o sinistrato era fumador, facto este contrariado por todas as testemunhas inquiridas em audiência, que conviviam diariamente com o sinistrado e conheciam os seu hábitos.

Ora, resulta desta fundamentação que o conteúdo do relatório da autópsia foi apreciado em conjugação com o depoimento da perita médica que o elaborou e este com o teor do parecer de cardiologia, pelo que, e independentemente de outras considerações, facilmente se conclui que, por si só, aquele relatório não constitui prova bastante de que o sinistrado faleceu em consequência de doença natural.

Improcedem, assim, as conclusões da recorrente, mantendo-se inalterada a matéria de facto provada e não provada constante da sentença recorrida.

2ª questão

Se não ocorreu um acidente de trabalho indemnizável.

Alega a Ré recorrente que:

- Competia aos beneficiários o ónus de provar, quer a existência de um acidente de trabalho, quer o nexo causal entre esse acidente e a morte do sinistrado.

- Não só os beneficiários não lograram atingir tal desiderato, como a demandada logrou fazer a prova do contrário.

- A demandada conseguiu provar, através do Relatório de Autópsia, que o sinistrado faleceu de doença natural.

- Quer pelo facto de os beneficiários não terem provado, como lhes competia, a existência de um acidente de trabalho e respetivo nexo causal com a morte do sinistrado, quer porque a demandada logrou provar o contrário, não se poderá classificar o acidente dos autos como sendo acidente de trabalho.

- Em função da alteração à resposta à matéria de facto acima preconizada, terá que se considerar que não estamos perante um acidente de trabalho, por não estarem preenchidos os requisitos dos artigos 8º e 9º, ambos da Lei 98/2009, de 04/09.

Pois bem, a matéria de facto manteve-se inalterada, sendo certo que, ao contrário do alegado pela recorrente, a Ré não logrou provar que o sinistrado faleceu de doença natural.

Por outro lado, a este propósito consta da sentença recorrida o seguinte:

“Ora, o conceito de acidente de trabalho encontra-se previsto no artº 8º da NLAT que estabelece no seu nº 1 que “É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo do trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.”

Por local de trabalho entende-se todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador (cfr. nº 2, al.a) do referido artº 8º). Por sua vez, por tempo de trabalho entende-se, além do período normal de trabalho, o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho (nº 2, al. b) do referido artigo).

Atento o referido regime jurídico o acidente de trabalho é caracterizado pela verificação cumulativa de três elementos: a) um elemento espacial (o local do trabalho); b) um elemento temporal (o tempo do trabalho); c) um elemento causal (o nexo de causa-efeito entre o evento e a lesão, perturbação ou doença).

Tendo presentes os apontados elementos, segundo a sua definição legal, verifica-se estarmos perante uma concepção ampla no que concerne à noção de local de trabalho, bem como relativamente à dimensão temporal da prestação de trabalho. Porém, o acidente de trabalho pressupõe necessariamente uma cadeia de factos concatenados entre si por um nexo causal: o evento em que se traduziu o acidente deverá resultar da relação de trabalho; a lesão corporal, perturbação funcional ou a doença têm que resultar daquele evento; a morte ou a redução da capacidade de trabalho ou de ganho devem ter por causa a lesão corporal, perturbação funcional ou a doença (cfr., entre outros, Cruz de Carvalho, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ª edição, páginas 25 e ss.; Vítor Ribeiro, Acidentes de Trabalho, edição de 1984, págs. 192 e segs.).

Como refere Carlos Alegre in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, 2ª ed. p. 35 “São múltiplas e complexas as causas dos acidentes de trabalho. Trata-se sempre, de um acontecimento não intencionalmente provocado (ao menos pela vítima), de carácter anormal e inesperado, gerador de consequências danosas no corpo ou na saúde, imputável ao trabalho, no exercício de uma actividade profissional, ou por causa dela, de que é vítima um trabalhador.”

E, como se refere também no Ac. do STJ de 30-05-2012, no proc. 159/05.0TTPRT.P1.S1 in www.dgsi.pt, “O acidente de trabalho pressupõe uma cadeia de factos, em que cada um dos relativos elos está interligado por um nexo causal. Assim, o evento naturalístico que ele pressupõe há-de resultar duma relação de trabalho; a lesão corporal, perturbação funcional ou doença tem de resultar desse evento; e a morte ou a redução na capacidade de trabalho ou de ganho devem ter por causa a lesão corporal, perturbação funcional ou a doença. Contudo, o acidente de trabalho em termos naturalísticos pode não ser instantâneo nem violento.” Adianta-se ainda em tal acórdão que se pode “concluir que o acidente de trabalho pressupõe a ocorrência dum acidente, entendido, em regra, como evento súbito, imprevisto, exterior à vítima e que lhe provoque uma lesão na saúde ou na sua integridade física e que este evento ocorra no tempo e no local de trabalho.” sendo que um acidente em sentido naturalístico abrange “tudo o que é susceptível de alterar o equilíbrio anterior em que o trabalhador se encontrava, tudo o que viole esse equilíbrio”

Em tal acórdão do STJ e no Ac. da RP de 10-03-2008, no proc. 0716615, disponível no mesmo site, é citado Victor Ribeiro, in Acidentes de trabalho, reflexões e notas práticas, 1984, p. 208 a 210, constando deste último acórdão que “Para que se desencadeie o dispositivo legal reparatório, torna-se necessário que alguma coisa aconteça no plano das coisas sensíveis. Algo que seja, enfim, uma condição ou causa próxima e dinâmica da produção do dano indemnizável”. [...]; “tudo o que é susceptível de alterar o equilíbrio anterior; tudo quanto “viole” esse equilíbrio, quer seja uma explosão, quer seja uma emanação de gás tóxico, um golpe de frio ou calor, ou mesmo uma situação particularmente angustiante, ou de trabalho excessivo que faça, por exemplo, desencadear um ataque cardíaco ou uma perturbação mental. Ou que possa agravar um estado patológico já existente, acrescentamos nós.”

Também no acórdão da RG de 04-10-2017, no proc. 1942/16.7T8BRG.G1, in www.dgsi.pt, se refere que “É acidente de trabalho o evento súbito e imprevisto, que provoque lesão na saúde ou na integridade física do trabalhador, que ocorra no tempo e no local de trabalho, por causa do trabalho. O acidente de trabalho é constituído por uma cadeia de factos em que cada um dos respectivos elos deve estar entre si sucessivamente interligados por um nexo causal: o evento súbito deve estar relacionado com a relação de trabalho; a lesão, perturbação ou doença, deve resultar daquele evento; e finalmente a morte ou a incapacidade para o trabalho deverão resultar da lesão, perturbação funcional ou doença. É de qualificar como acidente de trabalho o evento que ocorreu no local e no tempo de trabalho e que consistiu no esforço físico desenvolvido pelo sinistrado durante a descarga de móveis associado ao calor excessivo que se fazia sentir, o que lhe causou uma insolação, vindo a falecer.”

E, no acórdão do STJ de 30-06-2011, no proc. 383/04.3TTGMR.L1.S1, in www.dgsi.pt, citado pela Autora na petição inicial, refere-se que “É acidente de trabalho o evento, inesperado e súbito, que se verifique, no local, no tempo e por causa do trabalho, do qual resulte agravamento de doença anterior, com a consequência de lesão corporal ou da morte. A actividade física desenvolvida por um atleta profissional durante um desafio oficial de futebol que potenciou arritmia cardíaca (fibrilação ventricular) derivada de miocardiopatia hipertrófica, doença congénita de que aquele sofria mas até então não detectada, vindo aquele atleta a falecer devido àquela arritmia, é evento que integra um acidente de trabalho. Por tal evento revestir as necessárias características de um acontecimento súbito, inesperado e exterior à vítima, ocorrido no local, no tempo e por causa do trabalho, produzindo agravamento de anterior doença, que foi causa adequada da morte do sinistrado, não se pode considerar tal evento como integrante de uma situação de “morte natural”, mas antes de um verdadeiro acidente de trabalho.”

Tal Acórdão do STJ de 30-06-2011, veio a confirmar a decisão proferida no AC da RL de 10-11-2010, no proc. 383/04.3TTGMR.L1, disponível no mesmo site, (também referido pela Autora na petição inicial) onde se referiu que “Configura-se como acidente de trabalho, ao abrigo do art.º6 da Lei n.º100/97, a morte súbita do atleta C..., por se ter apurado que foi precipitada pelo esforço físico (causa exógena) que a sua actividade enquanto futebolista profissional lhe exigiu, esforço que lhe potenciou uma arritmia cardíaca, lesão que lhe causou a morte. II- E, ainda que aquela arritmia possa ter sido consequência de uma cardiomiopatia hipertrófica, considerada uma doença genética apenas detectada ao sinistrado post mortem, resultou provado que o esforço físico despendido pelo sinistrado na sua actividade profissional, ao serviço da 2ª ré, B..., foi determinante na lesão que lhe provocou a morte, ou seja, a relação de trabalho foi determinante no resultado verificado – a morte do sinistrado – que merece a protecção do regime jurídico dos acidentes de trabalho.”

Acresce que, em conformidade com o disposto no artº 10º, nº 1 da NLAT “A lesão constatada no local e no tempo de trabalho ou nas circunstâncias previstas no artigo anterior presume-se consequência de acidente de trabalho.”

Trata-se de uma presunção ilidível, que como vem sendo entendido jurisprudencialmente, liberta o sinistrado ou seus beneficiários da prova do nexo de causalidade entre o evento (acidente) e as lesões, mas já não o desonera do ónus de provar a verificação do próprio evento causador das lesões.

Efectivamente, como se refere no supra referido acórdão da RG de 04-10-2017 “a simples constatação da morte de um trabalhador no local e tempo de trabalho não faz presumir a existência de um acidente de trabalho, não dispensando os interessados da sua prova efetiva da ocorrência do «acidente». Acresce dizer que aquele nexo de causalidade exprime apenas a relação de causalidade directa ou indirecta, entre o acidente e as suas consequências, ou seja, entre o evento e a lesão perturbação funcional ou doença e não propriamente, uma relação de causalidade entre o trabalho e o acidente. Como uniformemente tem sido defendido pelo Supremos Tribunal de Justiça, designadamente no recente acórdão de 1/06/017, proferido no Proc. n.º 919/11.3TTCBRA.C1.S1 (relator Ferreira Pinto) e sustentado pela generalidade da doutrina, a presunção de causalidade, estabelecida no citado artigo 10.º tem apenas o alcance de libertar os sinistrados ou os seus beneficiários da prova do nexo de causalidade entre o acidente e o dano físico ou psíquico reconhecido na sequência do evento infortunístico, não os libertando, do ónus de provar a verificação do próprio evento causador das lesões. Como refere Pedro Romano Martinez, “Direito do Trabalho”, 2ª Ed., Almedina, 2005, pp.816, nota 2ª. “não se trata de uma presunção da existência do acidente, mas antes uma presunção de que existe nexo causal entre o acidente e a lesão ocorrida”. Ora, não tendo o legislador definido o que deve entender-se por acidente de trabalho, tendo apenas fornecido alguns critérios tais como o lugar e tempo de trabalho e o nexo de causalidade e sendo certo que que para além destes pressupostos importa que ocorra um evento que possa ser considerado como “acidente”, teremos de o definir. (…) Trata-se assimde ocorrência anormal, em geral súbita, pelo menos de curta duração ou limitada que acarreta uma lesão à integridade ou à saúde do corpo humano. Com efeito um esforço excessivo que origina uma lesão no corpo é, em si mesmo, uma causa exterior, estranha à constituição orgânica da vítima e súbita, já que actua num espaço de tempo breve. (…) São assim complexas e enumeras as causas dos acidentes de trabalho, tendo-se presente que trata-se sempre de um acontecimento não intencionalmente provocado, de caráter anormal, súbito e inesperado, gerador de consequências danosas no corpo ou na saúde, imputável ao trabalho, no exercício de uma atividade profissional, ou por causa dela, de que é vitima um trabalhador. (…) Do exposto se conclui que é acidente de trabalho o evento súbito, imprevisto, que provoque lesão na saúde ou na integridade física do trabalhador, que ocorra no tempo e no local de trabalho, por causa do trabalho.”

Também no Ac. da RP de 10-12-2019, no proc. 4796/16.0T8MTS.P1, disponível no mesmo site, (também citado pela Autora na petição inicial), se refere que “A lei limita-se a indicar três elementos caracterizadores de acidente de trabalho - o elemento espacial, o elemento temporal e o elemento causal –, mas não fornece uma noção básica de “acidente”, vindo tal conceito a ser definido pela doutrina e jurisprudência, perante o concreto caso em apreciação. Os requisitos de um acidente de trabalho hão-de ser alegados e provados por quem reclama a respectiva reparação, por se tratar de factos constitutivos do direito invocado. No entanto, há aspectos em que a lei facilita a tarefa do sinistrado ou seus beneficiários, criando presunções a seu favor, como a presunção - ilidível -constante do n.º 1, do artigo 10.º da LAT, nos termos da qual a lesão, perturbação ou doença reconhecida a seguir a um acidente, se presume consequência deste. A ilisão dessa presunção deve ser categórica, não deixando a mínima dúvida no espírito do julgador e nos destinatários da sua decisão. Tal presunção exige a prova do contrário, isto é, que a arritmia cardíaca tivesse tido origem, exclusiva, na doença natural de que o sinistrado era portador. O esforço físico inerente à descarga de várias caixas de peixe com cerca de 20 Kg cada, durante 10 a 15 minutos, subindo e descendo mais de 14 degraus estreitos, depois de uma noite no mar, precedida apenas de um período de descanso de 3 a 4 horas em terra, é potenciador de arritmia cardíaca, em trabalhador portador de aterosclerose coronária com obstrução de 70%. Não tendo a ré/recorrente ilidido a referida presunção legal, nem provado que a doença natural do sinistrado tenha sido ocultada, a morte ocorrida no tempo e local de trabalho constitui acidente de trabalho indemnizável.”

Ora, tendo presentes tais ensinamentos doutrinais e jurisprudenciais, no caso em apreço, dos factos provados terá que se concluir que se encontram provadas circunstâncias que exteriormente vieram a determinar o falecimento do sinistrado, não tendo a Ré logrado demonstrar que o mesmo se ficou a dever apenas a causas endógenas ou a doença natural da vítima.

Efectivamente, ficou demonstrado nos autos que no dia 14-01-2021, cerca das 07h45m, em ..., a vítima BB, encontrava-se a exercer as suas funções ao abrigo de um contrato de trabalho, sob as ordens, direção e fiscalização da Empregadora, a Associação de Produtores Florestais de ... e ...

Nesse dia, o referido BB dirigiu-se logo pela manhã, como habitualmente, para a garagem da Empregadora, sita na Avenida ..., em ..., onde iniciou os trabalhos preparatórios para o dia de trabalho, ou seja, para as tarefas inerentes à prevenção dos incêndios florestais através da roça de matos, utilizando os instrumentos de trabalho postos à sua disposição pela Empregadora.

Efectivamente, nesses actos preparatório, encheu um bidão que se encontrava no armazém com 20 litros de gasolina, sendo que posteriormente carregou tal bidão, que pesava cerca de 20kg, elevando-o cerca de 1 metro, para a carrinha em que o mesmo e os dois colegas que integrariam a sua equipa, se deslocariam pelas matas no exercício das suas funções.

Mais se provou que em resultado do esforço físico despendido nessas tarefas preparatórias, o referido BB sentiu-se mal, sendo que, quando os referidos colegas de equipa chegaram ao local em que aquele se encontrava, pelas 07h45m, o mesmo encontrava-se agarrado a um pilar de betão, junto do portão e a cair para trás.

Os colegas imediatamente correram na sua direção, o qual já não conseguia falar, apenas tido demonstrado que sentia dor, pelo que aqueles contactaram, de imediato, o Instituto Nacional de Emergência Médica.

Tendo aquele BB entrado em paragem cardio-respiratória e sendo as inúmeras tentativas de reanimação do mesmo encetadas pelo médico que se encontrava na Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER) mal sucedidas, a vítima veio a falecer, tendo o óbito sido declarado às 09h00m.

É certo que também se provou submetido a autópsia médico-legal, tendo sido concluído que a morte se devera a hipertrofia do miocárdio, sendo que em nenhuma parte do corpo o BB apresentava sinais externos de lesões traumáticas, constando do relatório de autópsia que que tal quadro constitui causa de morte natural.

No entanto, ficou também provado que em tal relatório consta ainda que a espessura do miocárdio do ventrículo esquerdo é de 20mm.

O valor da espessura do miocárdio do ventrículo esquerdo de 20mm é considerada de grau grave, definido na avaliação com recurso a ecocardiograma transtorácico, a mais comummente realizada para fins de diagnóstico na prática clínica, como superior a 16mm no homem.

É possível que na vítima a hipertrofia miocárdica – inequivocamente não fisiológica, categoricamente tradutora de doença subjacente – possa ter sido causada pelo quadro crónico de hipertensão arterial não adequadamente controlada, sendo, neste contexto, definida como lesão do órgão secundária à hipertensão arterial e constituindo, per se, um marcador de alto risco para a ocorrência de eventos cardiovasculares, no qual se enquadra a morte súbita de causa cardíaca. No entanto, a hipertrofia constatada nos quadros de hipertensão arterial não controlada raramente excede 15mm. Acresce que, independentemente da causa, a existência de hipertrofia miocárdica, quer ocorra em indivíduos com hipertensão arterial ou com tensão arterial normal, está associada a um aumento do risco de ocorrência de morte súbita.

Mas existem vários mecanismos para o aumento desse risco, sendo que um desses mecanismos decorre de alterações eletrofisiológicas do ritmo cardíaco, para as quais a existência de fibrose, constatada na autópsia da vítima, constitui uma alteração anatómica deletéria que serve de substrato para o desenvolvimento de arritmias malignas que podem degenerar em mortes súbitas.

Mais se provou que na realização das tarefas que foram executadas pela vítima é realizado esforço isométrico acrescido, sendo que a morte súbita da vítima, BB, teve causa cardíaca, a hipertrofia miocárdica constitui um subtrato para a ocorrência de morte súbita de causa cardíaca, independentemente da sua etiologia, sendo a hipertrofia miocárdica constatada na autópsia de grau grave, categoricamente tradutora de doença subjacente, e apesar de ser possível que a sua etiologia tenha sido o quadro de hipertensão arterial não controlada, a sua gravidade faz com que causas hereditárias – como a miocardiopatia hipertrófica – não possam ser excluídas, sendo que a realização do esforço da vítima naquelas tarefas, com hipertrofia miocárdica, pode ter causado o evento da morte súbita.

Assim, mesmo que a vítima já padecesse de doença natural, o certo é que o esforço exercido nas tarefas que a mesma estava a realizar no tempo e local de trabalho, podem ter causado o evento da morte súbita.

Assim sendo, nada afasta a possibilidade de ter sido a actividade que a vitima estava a exercer em actos preparatórios da sua profissão de sapador florestal, ao serviço da sua entidade patronal, embora não consubstancinado um evento traumático, tal como habitualmente é entendido, tenha provocado a morte súbita, não podendo excluir-se que a realização do esforço da vítima naquelas tarefas, com hipertrofia miocárdica, pode ter causado o evento da morte súbita.

Desta forma a morte súbita, pode ter sido potenciada pelo esforço físico da vítima ao encher o bidão de 20 litros de gasolina e ao coloca-lo na carrinha, com um peso de 20kg, tendo para o efeito que o elevar cerca de um metro.

Assim, e de acordo com o relatório pericial efectuado por perito da especialidade de cardiologia, não se pode concluir com a certeza e a segurança jurídicas, que no caso em apreço a morte da vítima tenha sido de origem natural.

E, como se refere no Ac. da RP de 10-12-2019, no proc. 4796/16.0T8MTS.P1, supra citado, “a ilisão da presunção, prevista no artigo 10.º, n.º 1, da LAT, deve ser categórica, isto é, não deixar a mínima dúvida no espírito do julgador e nos destinatários da sua decisão. Tal presunção exige a prova do contrário, isto é, que a arritmia cardíaca tivesse tido origem, exclusiva, na doença natural de que o sinistrado era portador.”

Assim, também no caso em apreço, consideramos que a aludida presunção prevista no artº 10º, nº 1, não foi ilidida, não tendo sido feita prova categórica que a morte súbita da vítima tivesse tido, origem exclusiva na doença natural de que o referido BB era portador, não tendo a Ré ilidido a referida presunção.

Acresce que, como é referido no mesmo Acórdão, e também ocorre no caso em apreço, “nem a predisposição patológica, nem a prévia doença, excluem o direito à reparação integral, pois, no caso em apreço, a ré não alegou, nem provou, que essa doença tivesse sido ocultada (n.º 1) ou que, por ela, estivesse o sinistrado a receber pensão ou tivesse recebido capital de remição (n.º 2), ambos os n.ºs do artigo 11.º da LAT.”

Em conformidade com o exposto, não tendo a Ré ilidido a presunção legal, prevista no artigo 10º, n.º 1 da NLAT, como lhe competia, e decorria das regras do ónus da prova previstas no artº 342º do Cód. Civil, enquanto factos impeditivos do alegado direito da Autora,, terá que se concluir pela existência de um acidente de trabalho, por se considerar também provado o terceiro elemento: o nexo causal entre a relação de trabalho e a lesão que determinou a morte da vítima.

Verifica-se desta forma que, dos factos provados, se encontra estabelecida a relação causal entre a actividade laboral que a vítima estava a realizar e morte súbita da vítima, ainda que esta pudesse estar associada a outros fatores.

Por tudo o que ficou exposto terá que se concluir que estamos perante um verdadeiro acidente de trabalho indemnizável, sendo responsável pela reparação do mesmo a Ré, por se encontrar transferida para a mesma a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho sofridos pela vítima.”

Pois bem, tendo em conta a matéria de facto provada e que se manteve inalterada na improcedência da alteração pretendida pela recorrente e da qual esta faz depender a procedência da questão em análise, acompanhamos a sentença recorrida supratranscrita, nada mais se impondo dizer.

Improcedem, por isso, as conclusões da recorrente.

                                                                       *

Na improcedência do recurso impõe-se a manutenção da sentença recorrida em conformidade.

                                                             *

                                                             *

V – Sumário[4]

(…).

                                                             *

                                                             *

V – DECISÃO

Nestes termos, sem outras considerações, na improcedência do recurso acorda-se em manter a sentença recorrida.

                                                             *

                                                             *

Custas a cargo da Ré recorrente.

                                                             *

                                                                       *

                                                                                              Coimbra, 2024/04/19

                                                                                             ____________________                                                                                                                                                                                                                            (Paula Maria Roberto)

                                                                                        _____________________

               (Mário Rodrigues da Silva)

                                         ___________________

                                             (Felizardo Paiva)

         




[1] Relatora – Paula Maria Roberto
  Adjuntos – Mário Rodrigues da Silva
                      Felizardo Paiva

[2] No mesmo sentido, cfr. o acórdão do STJ, de 19/05/2021, disponível em www.dgsi.pt.
[3] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª Edição Atualizada, Almedina, págs. 200 e 201.
[4] O sumário é da exclusiva responsabilidade da relatora.