PROCEDIMENTO CAUTELAR NÃO ESPECIFICADO
INTERRUPÇÃO NO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA
IMPEDIMENTO DE ACESSO AO CONTADOR
COMUNICAÇÕES CONTRATUAIS
CONHECIMENTO PELO DESTINATÁRIO
INCONSTITUCIONALIDADE
LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
Sumário

I – Não é a parte que envia uma carta para o domicílio da outra parte na relação contratual que tem o ónus de saber se a mesma chegou ou não ao conhecimento do destinatário, bastando que pratique todos os atos para que a mesma chegue ao seu destinatário, ou seja, os atos necessários e suficientes que coloquem o destinatário em condições de a receber e ter acesso ao respetivo conteúdo.
II – Se o fornecedor de energia elétrica (declarante) enviou para a morada constante do contrato uma carta, que não foi devolvida, praticou os aludidos atos necessários e suficientes, pelo que, se a contraparte (declaratário) não a leu, só disso se pode queixar e tal omissão só a si é imputável.
III – Assim, cabia ao destinatário rececionar e tomar conhecimento do conteúdo da carta/declaração, o que não fez por culpa sua ou incúria, pelo que a referida comunicação se deve ter por eficaz, nos termos do disposto no art.º 224.º, n.º 2, do Código Civil, interpretação esta que não padece de inconstitucionalidade.

Texto Integral


Relator: Arlindo Oliveira

1.ª Adjunto: José Avelino Gonçalves

2.ª Adjunta: Catarina Gonçalves

            Processo n.º 3828/23.0T8CBR.C1 – Apelação

            Comarca de Coimbra, Coimbra, Juízo Local Cível

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

AA, residente na Rua ..., ... ..., instaurou procedimento cautelar não especificado contra EDP COMERCIAL, Comercialização de Energia S.A., com sede na Avenida 24 de Julho nº 12, 1249-300 Lisboa e E-Redes, Distribuição de Eletricidade, S.A, com sede na Rua Camilo Castelo Branco nº 43, 1050-044 Lisboa, requerendo que seja ordenado às RR. para efetuarem a ligação da energia elétrica no seu local de trabalho, morada do escritório, com urgência.

As Requeridas deduziram oposição, tendo a 1ª Requerida invocado a excepção de ilegitimidade passiva e a 2ª Requerida pugnado pela condenação da Requerente como litigante de má-fé, em multa e indemnização em montante não inferior a € 1.000,00.

A Requerente pugnou pela improcedência da excepção deduzida e da sua condenação como litigante de má-fé.

Procedeu-se à produção de prova, com recurso à gravação da prova nela produzida, cf. consta da acta respectiva.

*

Após o que se proferiu a decisão de f.ls 80 a 92 (aqui recorrida), na qual se procedeu ao saneamento dos autos, no âmbito do qual, se julgou procedente a invocada excepção de ilegitimidade passiva da requerida EDP Comercial – Comercialização de Energia, S.A., com a sua consequente absolvição da instância, prosseguindo a mesma contra a Requerida E-Redes – Distribuição de Eletricidade, S.A., na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se decidiu o seguinte:

“Em face do exposto:

1) julgo o presente procedimento cautelar improcedente, por não provado, e absolvo a Requerida E-Redes, Distribuição de Eletricidade, S.A. do pedido e

2) ao abrigo dos arts. 542.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil e 27º, n.º 3 do Regulamento das Custas Processuais, condeno a Requerente AA como litigante de má-fé, na multa de 5 (cinco) unidades de conta e em € 1.000,00 (mil euros) de indemnização à E-Redes, Distribuição de Eletricidade, S.A.

Custas pela Requerente, a atender na acção principal, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia – art. 539º n.º 1 do C.P.C.

Inconformada, com a mesma, dela interpôs recurso a requerente, AA, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo – (cf. despacho de fl.s 151), rematando as respectivas motivações, com o que apelida de “conclusões”, ao longo de 20 páginas em completo desrespeito pelo comando ínsito no artigo 639.º, n.º 1, do CPC “de forma sintética”, pelo que não se procede à respectiva transcrição, sem prejuízo de, no local próprio, se identificarem e apreciarem as questões a decidir.

Contra-alegando, a requerida, E-Redes, SA, pugna pela manutenção da decisão recorrida, com o fundamento em que a prova produzida foi bem apreciada, devendo manter-se a factualidade dada como provada e não provada na decisão recorrida e, consequentemente, deve o requerido procedimento cautelar ser julgado improcedente.

Colhidos os vistos legais, há que decidir.   

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Incorrecta análise e apreciação da prova, relativamente aos itens 11.º a 14.º, 16.º, 18.º, 19.º, 23.º e 24.º dos factos indiciariamente dados como provados, que devem passar a considerar-se como não provados e;

- que a Requerente não tenha recebido nenhuma comunicação escrita por parte da E-Redes sobre a interrupção da eletricidade, nem sobre a mudança de contador, dado como não provado, que deve ser eliminado e substituído, pelo seguinte:

“Não provado que a E-redes enviou a comunicação escrita sobre a interrupção da eletricidade, nem sobre a mudança de contador e que a Requerente a recebeu.”

B. Se o presente procedimento cautelar deve ser julgado procedente, com fundamento em a requerida não ter demonstrado ter comunicado à requerente que iria proceder à interrupção do fornecimento de energia eléctrica, encontrando-se verificados os respectivos requisitos;

C. Se a decisão recorrida viola o disposto no artigo 20.º, da CRP e;

D. Se a requerente litiga de má fé.

É a seguinte a matéria de facto dada como indiciariamente provada na decisão recorrida:

1- A Requerente é titular do contrato de eletricidade, serviço de eletricidade pela EDP Comercial, S.A. no local sito na Rua ..., ... ..., contrato que teve o seu início em Dezembro de 2012 (art. 1º da p.i. e 27º da oposição da 1ª Requerida).

2- A 2ª Requerida exerce as funções de operadora de rede de distribuição de eletricidade (art. 20º da oposição da 2ª Requerida).

3- A atividade de distribuição de eletricidade é exercida em regime de concessão de serviço público, em exclusivo, mediante a exploração da Rede Nacional de Distribuição (RND) e das redes de distribuição de eletricidade em baixa tensão (art. 17º e 21º da oposição da 2ª Requerida).

4- Na qualidade de concessionária, a 2ª Requerida efetua a ligação à rede elétrica de serviço público das instalações de consumo, cujos titulares tenham celebrado um contrato de fornecimento de energia elétrica com um comercializador que opere no mercado regulado ou no mercado livre (art. 22º da oposição da 2ª Requerida).

5- Aquando da ligação das instalações de consumo à rede elétrica, a concessionária instala equipamentos de medição, destinados a registar os consumos efetuados, e procede à selagem dos referidos equipamentos para evitar a sua violação e adulteração dos registos por parte de pessoas não autorizadas (art. 23º da oposição da 2ª Requerida).

6- O equipamento de mediação instalado pela ora 2ª Requerida na instalação referida em 1), encontra-se no interior da mesma, sem acesso através da via pública (art. 36º da oposição da 2ª Requerida).

7- No dia 15/05/2023, em cumprimento da decisão proferida nos autos de Procedimento Cautelar n.º 2037/23...., que corre termos no Juízo Local Cível ... Juiz ..., a E-Redes S.A. restabeleceu o fornecimento de energia elétrica à instalação da Requerente (arts. 2º e 4º da p.i.).

8- No dia 06.06.2023 foi enviado SMS para o contacto telefónico associado à Requerente (...79), por esta recebido em 7-6-2023, às 9h51m20s, a informar que seria realizada uma deslocação para substituição do contador entre os dias 26-6-2023 e 26-7-2023 (art. 35º da oposição da 2ª Requerida).

9- No dia 07.06.2023 foi enviada comunicação eletrónica à Requerente a informar que seria realizada uma deslocação para substituição do contador (art. 34º da oposição da 2ª Requerida).

10- No dia 28-7-2023, a 2ª Requerida telefonou à Requerente e tentou agendar a mudança do contador, tendo a mesma respondido que lhe mandassem uma carta escrita (art. 32º da oposição da 2ª Requerida).

11- No dia 02.08.2023 a 2ª Requerida enviou à Requerente uma carta, dirigida à morada referida em 1), com o seguinte teor: “No dia 02-08-2023, pelas 15:00, uma equipa técnica ao serviço da E-REDES deslocou-se à sua instalação para verificar o contador de eletricidade e não foi possível o acesso 

Lembramos que o acesso ao contador é obrigatório

De acordo com as disposições legais e regulamentares do setor elétrico, o acesso ao contador de eletricidade é obrigatório, sempre que a E-REDES o solicite.

Vai receber visita de uma equipa técnica devidamente identificada

A nova visita técnica à instalação vai ser realizada no próximo dia 23-08-2023, no período das 15:30 às 18:00 horas. A sua presença, ou a de alguém que o represente, é indispensável para nos facultar o acesso ao contador de eletricidade.

Evite a interrupção do fornecimento de eletricidade à sua instalação

Se o acesso ao contador de eletricidade continuar a não ser possível, de acordo com a regulamentação em vigor, iremos proceder à interrupção de fornecimento de eletricidade à sua instalação, na data acima indicada. As despesas associadas ao corte e religação da energia elétrica variam entre 25,08 e 122,14 euros (mais IVA à taxa legal), em função dos meios utilizados para sua realização”. (art. 38º e 39º da oposição da 2ª Requerida).

12. No dia 02.08.2023 foi enviado SMS para o contacto telefónico associado à Requerente (...79), por esta recebido nesse mesmo dia, às 15h03m41s, com o seguinte teor: “No dia 2-8-2023, pelas 15h00, uma equipa técnica deslocou-se à Rua (…) não tendo sido possível o acesso. Irá receber uma nova comunicação (por e-mail e carta) com uma nova proposta de agendamento da visita técnica” (art. 38º da oposição da 2ª Requerida).

13- No dia 02.08.2023 foi enviado SMS para o contacto telefónico associado à Requerente (...79), por esta recebido nesse mesmo dia, às 15:04:21, com o seguinte teor: “Confirmamos o agendamento de visita técnica para o dia 23-08-2023, entre as 15:30 e as 18:00 horas…” (art. 41º da oposição da 2ª Requerida).

14- No dia 21.08.2023 foi enviado SMS para o contacto telefónico associado à Requerente (...79), por esta recebido nesse mesmo dia, às 12:12:06, com o seguinte teor: “Recordamos o agendamento de visita técnica para o dia 23-Aug-2023 (4ª feira), entre as 15:30 e as 18:00 horas…” (art. 42º da oposição da 2ª Requerida).

15- No dia 23.08.2023, pelas 16h43m, a equipa técnica ao serviço da 2ª Requerida deslocou-se às instalações da Requerente e não pôde aceder ao contador, por não se encontrar ninguém no local (art. 43º da oposição da 2ª Requerida).

16- Tendo sido tentado estabelecer contacto telefónico com a Requerente, a mesma não atendeu (art. 45º da oposição da 2ª Requerida).

17- Foi interrompido o serviço de fornecimento de energia elétrica (art. 47º da oposição da 2ª Requerida).

18- No dia 24/08/2023, pelas 17h43, a Requerente contactou a linha telefónica da 2ª Requerida, a solicitar o restabelecimento de energia elétrica sem substituição do contador, tendo sido informada que no dia 25/08/2023, entre as 10h30 e as 13h00, um técnico iria religar a eletricidade (arts. 7º e 8º da p.i. e art. 48º da oposição da 2ª Requerida).

19- Na sequência do contacto referido em 18), no dia 25.08.23 o call center da 2ª Requerida contactou a Requerente, tendo-a informado que o restabelecimento de electricidade só seria realizado, caso o acesso ao contador fosse desimpedido, havendo que proceder à respectiva substituição, o que a mesma recusou (art. 49º da oposição da 2ª Requerida).

20- A Requerente encontra-se sem eletricidade no local contratado, que é o seu escritório e local de trabalho, onde exerce a actividade de advogada (arts. 26º da p.i.).

21- Em virtude do corte de eletricidade, desde 23/08/2023 a Requerente não pode por o computador portátil a carregar, utilizar a impressora e acender as luzes do escritório (arts. 27º da p.i.).

22- Em virtude do corte de eletricidade, a Requerente deixou de atender clientes, no escritório (arts. 28º da p.i.).

23- A morada para a qual foi enviada a comunicação referida em 11) corresponde à morada de contacto indicada à 2ª Requerida pela 1ª Requerida aquando da celebração do contrato de fornecimento de energia elétrica entre a última e a Requerente e não foi devolvida (art. 81º da oposição da 2ª Requerida).

24- O facto de a Requerente impedir o acesso ao contador, desconhecendo-se o estado e condições em que tal equipamento atualmente se encontra, constitui um facto potencialmente perigoso (arts. 16º da oposição da 2ª R.).

*

Com relevância para a decisão da causa, não se provaram os seguintes factos:

- que no dia 27/05/2023, a Requerente tenha comunicado à EDP Comercial S.A. que o seu e-mail “..........@.....” não se encontra válido, por não permitir receber, nem enviar e-mails (art. 3º da p.i.);

- que no dia 25/08/2023 a 2ª Requerida não tenha comunicado à Requerente que a electricidade não seria religada sem que a mesma consentisse na mudança de contador (art. 11º da p.i.);

- que a Requerente não tenha recebido nenhuma comunicação escrita por parte da E-Redes sobre a interrupção da eletricidade, nem sobre a mudança de contador (arts. 5º, parte final, 12º e 14 da p.i.)

- que em 2-8-2023, às 19h25m, a comunicação referida em 11) tenha sido enviada por correio eletrónico para o e-mail ..........@..... (art. 40º da oposição da 2ª Requerida).

 

A. Incorrecta análise e apreciação da prova, relativamente aos itens 11.º a 14.º, 16.º, 18.º, 19.º, 23.º e 24.º dos factos indiciariamente dados como provados, que devem passar a considerar-se como não provados e;

- que a Requerente não tenha recebido nenhuma comunicação escrita por parte da E-Redes sobre a interrupção da eletricidade, nem sobre a mudança de contador, dado como não provado, que deve ser eliminado e substituído, pelo seguinte:

“Não provado que a E-redes enviou a comunicação escrita sobre a interrupção da eletricidade, nem sobre a mudança de contador e que a Requerente a recebeu.”

(…).

Pelo que, quanto a esta questão, improcede o recurso, mantendo-se toda a factualidade, dada como provada e não provada na sentença recorrida.

B. Se o presente procedimento cautelar deve ser julgado procedente, com fundamento em a requerida não ter demonstrado ter comunicado à requerente que iria proceder à interrupção do fornecimento de energia eléctrica, encontrando-se verificados os respectivos requisitos.

No que a esta questão concerne, alega a requerente que não se poderia dar como provado o envio de comunicação escrita por parte da E-Redes avisando sobre o corte de energia, com o argumento (não já que seria necessário o recurso a carta registada com aviso de recepção) em que foi enviada uma carta para o endereço que constava como sendo o do contrato, a que se deu relevância na decisão recorrida, em violação do disposto no artigo 224.º, do Código Civil, uma vez que não se provou que a requerente, efectivamente, a tenha recebido.

Na sentença recorrida, considerou-se ser de aplicar o disposto no artigo 224.º, n.º 2, do Código Civil e que a comunicação foi eficaz, com a seguinte fundamentação:

A morada para a qual foi expedido corresponde à morada de contacto indicada à 2ª Requerida pela 1ª Requerida aquando da celebração do contrato de fornecimento de energia elétrica entre a última e a Requerente, conforme resulta dos pontos 1) e 23) dos factos indiciariamente provados. A carta não foi devolvida, embora a Requerente invoque que a mesma não lhe foi entregue.

Sobre a situação em apreço rege o disposto no art. 224º do Código Civil, que tem por epígrafe “Eficácia da declaração negocial”.

De acordo com as regras gerais sobre repartição do ónus da prova, incumbe ao autor da declaração demonstrar que empregou um meio de transmissão que se revele idóneo a atingir a esfera de conhecimento do declaratário e que a declaração foi por ele efectivamente recebida, ao passo que compete a este último demonstrar que a declaração foi recebida em condições de, sem culpa sua, não poder ser recebida (Fernando A. Ferreira Pinto, Anotação ao artigo 224º, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Setembro de 2014, pág, p. 506).

No caso em apreço importa ter em consideração que a Requerente estava ciente de que a 2ª Requerida pretendia proceder à substituição do contador, o que já vem tentando fazer há anos, e que, a decisão referida no ponto 7) dos factos indiciariamente provados clarificava que, para proceder ao corte de electricidade, tinha que dar um pré-aviso por escrito à Requerente.

Parece, por isso, ser legítimo imputar à destinatária da comunicação em causa um especial dever de diligência no sentido de assegurar que a correspondência dirigida para o endereço indicado “seria recebida sem mais impedimentos” (cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/02/2012, Processo n.º 3792/08.5TBMAI-A.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt). Demonstrando-se que a referida carta foi enviada para a morada que indicada pela Requerente como sendo a sua, aquando da celebração do contrato referido em 1), é de concluir que a devia ter rececionado e tomado conhecimento do respetivo conteúdo, pelo que tal comunicação se tornou eficaz – relativamente às cartas simples em PERSI, vd. o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-01-2023, Proc. n.º 5517/18.8T8VIS-A.C1, disponível em www.dgsi.pt.

No caso concreto a 2ª Requerida demonstrou ter cumprido com o dever de envio do pré-aviso para a morada indicada e que a respectiva carta não foi devolvida. A Requerente, por seu turno, não demonstrou não a ter recebido.

Não logrou, assim, a Requerente demonstrar a possibilidade da existência do direito a que se arroga, termos em que não pode o presente procedimento cautelar deixar de improceder.”.

Impõe-se, pois, que se averigue da eficácia da carta enviada a comunicar a intenção de se proceder à interrupção do fornecimento de energia eléctrica no escritório da requerente, se não fosse facultado o acesso ao contador, a fim de o substituir.

Carta, esta, que foi enviada para o local de consumo e que não foi devolvida (cf. itens 1.º, 11.º e 23.º)

De acordo com o disposto no artigo 224.º, n.º 1 do CC:

“A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou dele é conhecida; as outras, logo que a vontade do declarante se manifesta na forma adequada”.

Acrescentando-se, todavia, no seu n.º 2 que:

“É também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida.”.

Estabelece-se no n.º 1 deste preceito a distinção entre declarações “receptícias e não receptícias”, considerando-se como receptícias as que se dirigem a um destinatário ou declaratário e como não receptícias as que não se dirigem a um destinatário.

Como refere Heinrich Ewald Horster, in Sobre a formação do contrato Segundo os arts. 217.º e 218.º, 224.º a 226.º e 228.º a 235.º do Código Civil, na Revista de Direito e Economia, Ano IX, N.os 1-2, 1983, a pág.s 135 e 136, “é necessário e suficiente que se verifique um dos dois pressupostos enunciados – ou a chegada ao poder ou o conhecimento – para que a declaração se torne eficaz. Consequentemente, esta solução legal dá relevância jurídica, no sentido de originar a perfeição da declaração negocial, àquele pressuposto que se verifica primeiro, combinando nesta medida a teoria da recepção («… logo que chega ao poder …») com a teoria do conhecimento («… logo que … é dele conhecida»).”.

Ali acrescentando que, no caso da verificação da chegada ao poder não se exige conhecimento efectivo por parte do destinatário, partindo a lei da situação regular e normal de que, com a chegada ao poder, o destinatário está em condições de tomar conhecimento e que ele toma este conhecimento e bastando para tal o depósito no local indicado para o efeito em condições normais ou a entrega a pessoa autorizada para tal.

E adiantando, ainda, que a previsão do n.º 2 do artigo 224.º do CC, tem em vista a protecção do declarante, em caso de não recebimento de uma declaração que só por culpa do destinatário, não foi por este recebida, no sentido de «chegada ao poder», esclarecendo que “a declaração é tida como eficaz apesar de não ter chegado ao poder, quando isso foi culposamente impedido pelo destinatário. P. ex., o destinatário recusa-se a receber a carta do carteiro ou não vai levantá-la à posta restante, como costumava fazer.” – ob. cit., a pág.s 137 e 138.

No mesmo sentido, se pronunciam P. de Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição Revista E Actualizada, a pág. 214.

E também Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, Almedina, 1999, a pág. 291.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 14 de Novembro de 2006, in CJ, STJ, Ano XIV, tomo 3, pág.s 109 a 111, o regime legal previsto no n.º 2 do art.º 224.º do CC visa “contrariar práticas como as dos que se esquivam a receber declarações, de que constituirão a maior parte cartas registadas, que são devolvidas aos respectivos remetentes.

Por isso se compreende que a não recepção se fique a dever exclusivamente ou apenas a culpa do destinatário a declaração seja havida como eficaz.”.

Ali se acrescentando que se houver culpa do declarante ou de terceiro, caso fortuito ou de força maior, afastada fica a aplicabilidade desta norma, pelo que se impõe demonstrar em cada caso que sem a acção ou a abstenção culposas do destinatário, a declaração teria sido recebida, não dispensando a concretização do regime “um juízo cuidadoso sobre a culpa, por parte do declaratário, no atraso ou na não recepção da declaração”, citando-se, em abono deste entendimento, Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2.ª edição, a pág. 296.

Igualmente no Acórdão do STJ, de 09 de Fevereiro de 2012, Processo n.º 3792/08.5TBMAI-A.P1.S1, disponível no respectivo sítio da dgsi, se refere que no juízo de culpabilidade do destinatário deve ponderar-se a situação de as partes terem estabelecido endereços para onde deveriam remeter as comunicações relevantes em termos contratuais e na ausência de outro critério delimitador do conceito de culpa para efeitos do n.º 2 do artigo 224.º do CC, teremos de nos socorrer do disposto nos artigos 799.º, n.º 2 e 487.º, n.º 2, do CC, nos termos do qual esse elemento subjectivo deve ser concretamente aferido através do critério de um devedor criterioso e diligente.

Como se refere neste último Aresto, “a apreciação deve ser feita casuisticamente, ponderando designadamente o específico contexto contratual”, acrescentando-se que um de tais elementos a considerar é o de as partes terem “estabelecido endereços para onde deveriam remeter as comunicações relevantes em termos contratuais”.

Reforçando que “o critério de um devedor criterioso e diligente”, tem em vista contrariar as práticas vulgares, por parte dos destinatários de declarações negociais e não negociais, de se furtarem à recepção das comunicações que lhes são dirigidas, devendo demonstrar-se que sem a acção ou a abstenção culposas do destinatário, a declaração teria sido recebida.

Mais ali se mencionando o seguinte:

“a diversidade de respostas não se funda tanto numa diversa interpretação do preceituado no artigo 224.º, n.º 2, do CC, antes na diversidade das circunstâncias relevantes em cada um dos casos e da necessidade de preencher conceitos indeterminados.

Neste contexto, parece evidente que deve estabelecer-se uma distinção entre uma situação em que as partes nada previram acerca da efectivação das comunicações, de outra, como a dos autos, em que, por razões de certeza e de segurança jurídica, deixaram expresso um certo endereço postal.

Também deve ponderar-se o facto de os devedores estarem cientes de que se encontravam em situação de incumprimento capaz de despoletar da parte do credor reacções tendentes à defesa dos seus direitos,

Assim, ponderando o clausulado contratual a respeito da eventual resolução (…) era legítimo imputar aos devedores e potenciais destinatários de uma tal comunicação um especial dever de diligência no sentido de assegurarem que a correspondência respeitante a tal contrato e que seria dirigida para os endereços indicados seria recebida sem mais impedimentos.

Não seria, com efeito, compreensível que, em tal contexto, os devedores se alheassem do local para onde as comunicações deveriam ser dirigidas, invocando, posteriormente, o desconhecimento do seu teor.”.

Sem esquecer que também as obrigações acessórias dos contratos devem ser pontualmente cumpridas (cf. artigo 406.º, n.º 1, CC), o que implicava que a E-Redes enviasse a referida carta para a morada constante do contrato e, igualmente, faz impender sobre a requerente a diligência devida de molde a que fosse efectivamente assegurada a recepção e conhecimento das comunicações relevantes e atinentes, que lhe fossem enviadas pelo fornecedor de electricidade.

Por outro lado, como resulta dos supra citados itens, a carta foi enviada para a morada acordada e não foi devolvida.

Ora, como ensinou Vaz Serra, in Provas, BMJ n.º 103, a pág. 32, não é quem envia uma carta para o domicílio de uma pessoa, que tem o ónus de saber se a mesma chegou ou não ao seu conhecimento, bastando que pratique todos os actos para que a mesma chegue ao seu destinatário, que leve a cabo a prática de actos necessários e suficientes que coloque o destinatário em condições de a receber e ter acesso ao respectivo conteúdo – neste sentido, veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa, de 20 de Abril de 2006, Processo n.º 1827/2006-6, disponível no respectivo sítio do itij.

E mais recentemente, no mesmo sentido, pode ver-se o Acórdão do STJ, de 16 de Dezembro de 2021, Processo n.º 4679/19.1T8CBR-C.C1-S1, disponível no mesmo sítio dos anteriores.

Ora, reitera-se, no caso em apreço, a E-Redes enviou para a morada constante do contrato, a referida carta que não foi devolvida. Se a requerente não a leu, só disso se pode queixar e tal omissão só a si mesma poderá ser imputada.

Assim, nos termos expostos, impunha-se-lhe que, tendo sido a mesma enviada, nos moldes já expostos, a recepcionasse e tomasse conhecimento do respectivo conteúdo, o que não fez por culpa sua ou incúria, pelo que a referida comunicação se tem de ter por eficaz, nos termos do disposto no artigo 224.º, n.º 2, do Código Civil, sufragando-se a solução a que se chegou na decisão recorrida.

De resto, a requerente, não alegou qualquer facto que inculque a ideia de que tal não recebimento se ficou a dever a acto de terceiro, fortuito ou de força maior que isso justificasse.

Pelo que, nesta parte, não merece censura a decisão recorrida.

Assim, quanto a esta questão, improcede o presente recurso.

C. Se a decisão recorrida viola o disposto no artigo 20.º, da CRP.

Relativamente a esta questão, a recorrente alicerça a referida inconstitucionalidade no facto de ter alegado o não recebimento do pré-aviso de corte de energia, sem que se tenha demonstrado não o ter recebido, em face do que na decisão recorrida se inverteu o ónus da prova, em violação do disposto no artigo 224.º, n.º 1, do Código Civil, o qual, de acordo com o que defende, impõe à ré o ónus de provar o envio e entrega de tal carta, o que, considera, não se verificar.

De acordo com o artigo 20.º, n.º 1, da CRP, a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, princípio que vem igualmente, plasmado no n.º 2 do seu artigo 202.º, de acordo com o qual, incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.

No caso em apreço, todas as partes processuais tiveram ao seu dispor os articulados respectivos, nos quais alegaram, em pé de igualdade e em obediência às leis processuais civis, as respectivas pretensões e fundamentos e arrolaram os meios de prova respectivos.

A tramitação do processo seguiu os trâmites legalmente estabelecidos, designadamente em obediência ao princípio do contraditório e “da igualdade de armas” concedidos a ambas as partes.

No seguimento do normal iter processual foi proferida a decisão recorrida que apreciou e decidiu, de acordo com a lei, o conflito de interesses que subjaz aos presentes autos.

Pelas razões expostas aquando da análise e decisão da anterior questão, tem-se por certo que a carta de pré-aviso de corte de energia eléctrica, foi enviada de forma eficaz, cumprindo à requerente o ónus da prova das circunstâncias a que se alude no n.º 3 do artigo 224.º, do Código Civil, o que não logrou.

Assim, nenhum destes comandos constitucionais se mostra violado.

Consequentemente, também, com base nesta questão, tem o presente recurso de improceder.

D. Se a requerente litiga de má fé.

No que a esta questão respeita, alega a recorrente que não litigou de má fé, com o fundamento em que não actuou dolosamente nem com negligência grave, nem com o intuito de prejudicar a requerida, até porque não recebeu a comunicação de 23/8, informando da possibilidade do corte.

Na sentença recorrida, em resumo, concluiu-se pela existência de má fé por parte da requerente, com o fundamento em que a mesma alegou no requerimento inicial, factos de que tinha conhecimento que não correspondiam à verdade e que tinham importância no desfecho da acção, designadamente que não lhe foi enviada qualquer comunicação escrita avisando da possibilidade de corte de electridade, vindo-se, ao invés, a apurar que lhe foram enviadas cartas e SMS, a disso avisar, bem como a indicar/agendar as datas de visita de um técnico para a mudança do contador, bem como contactos telefónicos, com vista à mudança do contador, o que tudo resultou infrutífero.

Para além de que negou a chamada telefónica referida no item 19.º, apenas vindo a admitir a sua veracidade após a junção aos autos da respectiva gravação, o que tudo constitui “comportamento processual reprovável”.

Posto isto, impõe-se começar por clarificar, antes de nos debruçarmos sobre o “mérito” de tal consideração/condenação, que, para tal juízo de censura processual, relevam apenas e só os factos dados como provados; ou seja, no raciocínio lógico (silogismo judiciário) que conduz à condenação de alguém como litigante de má-fé, a premissa menor só pode ser composta pelo cotejo entre o que a parte alegou e o que, em oposição ao alegado, consta dos factos dados como provados.

Dito doutra forma, o tribunal não pode alicerçar um juízo sobre a má-fé no que se fez constar na motivação da decisão de facto (e, muito menos, na de direito); assim como não pode extrair um juízo de má-fé dum facto não provado, uma vez que, todos o sabemos, num processo, um facto não provado não é sinónimo da prova positiva do facto contrário.

Tendo isto presente, importa salientar que, cotejando a alegação da requerente constante do requerimento inicial e os factos dados como provados verifica-se, efetivamente, que contrariamente ao alegado pela requerente, demonstrou-se a veracidade de todas as comunicações efectuadas entre as ora partes, melhor descritas nos itens 11.º a 14.º e 18.º e 19.º, com vista à substituição do contador e/ou corte/religação da electricidade no escritório da requerente.

Mais do que isso, a requerente só admitiu a existência do contacto telefónico mencionado no item 19.º, depois de ter sido junta a respectiva gravação.

Trata-se do núcleo dos factos essenciais em que a requerente baseia a sua pretensão.

Assim, em nossa opinião tem de se concluir que a requerente alterou a verdade de factos relevantes (essenciais, segundo o art. 5.º/1 do CPC) para a decisão de causa.

Pode/deve ser considerado litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver, designadamente, deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou quem tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa (cfr. art. 542.º/2/a) e b) do CPC).

Significa isto que a mera falta de razão – quer quando a parte não demonstra a sua versão factual quer ainda quando se demonstra a versão factual oposta – não é por si só suficiente para legitimar uma condenação como litigante de má-fé (em tal hipótese, a “sanção” está justamente na improcedência da sua pretensão ou oposição); sendo necessário, para poder ser proferida uma condenação como litigante de má-fé, que a oposição entre a versão alegada e a que resultou provada seja subjectivamente imputável ao litigante a título de dolo ou de negligência grave, ou seja, que tenha havido uma alteração intencional ou, pelo menos, consciente e voluntária da verdade dos factos (dolo) ou uma culpa grave (culpa lata), que não se basta com qualquer espécie de negligência, antes exige a negligência grave, grosseira.

Trata-se de factos pessoais, relativamente à requerente, de que esta, necessariamente, tinha de ter conhecimento, de que apresentou uma versão completamente oposta do que se veio, efectivamente, a demonstrar, o que, face ao exposto, integra os fundamentos para que a requerente seja, como o foi, condenada como litigante de má fé.

Esta, apenas questionou a existência de tais fundamentos, não tendo suscitado a questão da fixação e/ou redução dos montantes da multa e/ou indemnização fixadas na decisão recorrida, pelo que, quanto a tal, nada há a referir.

Assim, igualmente, improcede esta questão do recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pela apelante, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.

Coimbra, 23 de Abril de 2024.