CRIME DE BURLA INFORMÁTICA
APREENSÃO
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
Sumário

A apreensão de objetos e valores, nos termos dos artigos 178.º, n.º 1, ou 181.º, n.º 1, do Código de Processo Penal não depende de prévia constituição de arguido; se assim fosse, em muitas situações poderia tonar-se inútil ou ineficaz.

Texto Integral

Proc. n.º 5890/23.6JAPRT-A.P1





Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto



I – O Ministério Público veio interpor recurso do douto despacho do Juiz 1 do Juízo de Instrução Criminal de Aveiro do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro que indeferiu o pedido de apreensão da conta bancária (…), titulada por (…), até ao valor de mil e quinhentos euros.

São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
«1 - Nos presentes autos investigam-se factos suscetíveis de integrar a prática, do crime de burla informática p. e p. pelo art. 221°, do Cód. Penal.
2 - O denunciante foi vítima do conhecido esquema de burla informática, designado por Hello mum/Hello dad, amplamente divulgado nos meios de comunicação social, através do qual, o agente do crime, fazendo-se passar por filho da vítima, a convence a realizar uma transferência monetária para uma conta por si indicada, apropriando-se desse valor;
3 - A conta bancária utilizada na consumação do crime pertence a um tal de AA, nascido em ../../2001, natural do Brasil, país onde reside (cfr. fls. 84/87).
4 - Não obstante, a Mma. Juiz de Instrução Criminal indeferiu a apreensão do saldo da conta bancária até ao valor de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros), correspondente ao montante ilicitamente apropriado, por considerar serem são parcos os elementos probatórios que constam dos autos, os quais não permitem com segurança decretar a apreensão da quantia monetária em causa.
5 - A apreensão operada por força do disposto no art. 181°, n.° 1, do C.P.P. não é só um meio de obtenção e conservação de prova, visando também, a segurança dos bens apreendidos.
6 - Sendo essa, a interpretação que melhor se harmoniza com o disposto no art. 178.°, n.° 1, do CPP.
7 - De modo que, se determinado ativo foi obtido com a prática de um crime, como é o caso, deve logo proceder-se à sua apreensão, até porque o dinheiro, sendo coisa fungível, é susceptível de rápida dissipação.
8 - A não ser, assim, frustrar-se-á, em definitivo, a garantia da perda de vantagens do crime e inelutavelmente, a finalidade processual penal de realização de justiça.
9 - Pelo que, no entender do Ministério Público, o Tribunal a quo violou o disposto nos arts. 178°, n.° 1 e 181°, n.° 1, do C.P.P..
9 - Consequentemente, o douto despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que nos termos do disposto nos artigos 178°, n.° 1, 181°, n.° 1 e 268.°, n.° 1, al. c), todos do C.P.P., determine a apreensão do saldo da conta bancária do (…) até ao valor de 1.500,006 (mil e quinhentos euros), valor esse que se mostra já cativo pelo (…).»

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo provimento do recurso. Desse parecer consta o seguinte:
«(…)
O despacho recorrido indeferiu a apreensão promovida na conta bancária, com fundamento em que não foi previamente efetuada qualquer diligência com resultado probatório relevante, sendo os elementos existentes muito parcos e rarefeitos, para além da versão dos factos apresentada pelo denunciante e não foram ainda sequer constituídos arguidos/aventados suspeitos correndo o presente inquérito ainda sem arguidos constituídos, para além de que o saldo da conta bancaria parece não estar relacionado com a quantia depositada.
Ora, temos alguma dificuldade de compreensão em entender o despacho recorrido ao exigir a prévia constituição como arguido do suspeito e todas as demais exigências que expressamente enumera.
Com todo o respeito e máxima consideração por entendimento diferente, isso seria o mesmo que ir à caça a tocar corneta ou a avisar as presas que os caçadores acabaram de chegar para as caçar. Nestas condições, seria difícil imaginar que algum dos caçadores tivesse êxito – in claris non fit demonstratio.
Bem vistas as coisas, a actividade de investigar tornar-se-ia uma tarefa impossível e a protecção dos interesses das vítimas seria uma evanescente miragem, que são valores também com dignidade e tutela constitucional.
A surpresa no decretamento da apreensão é fundamental, como garantia de sua eficácia. As razões de eficácia subjacentes ao decretamento da providência impõem que o visado só tome conhecimento da mesma após a decisão da apreensão.
Desta forma, face à natureza da apreensão e finalidades da mesma, onde se exige recatez ou invisibilidade na actuação processual, celeridade e eficácia, afigura-se-me com o devido respeito, que o regime previsto no artigo 178º e 181.º do Código de Processo Penal – C.P.P., não exigem a prévia constituição de arguido, não estando prevista a aplicabilidade do artigo 192.º n.º 2 do Código de Processo Penal – C.P.P. relativo às medidas de garantia patrimonial.
Na verdade, existindo como no caso dos autos, indícios da prática do crime de burla (ainda para mais com esta dimensão e sendo do conhecimento de todos este tipo de fenómeno criminal que se generalizou), estando a investigação ainda a decorrer, ainda sem localização precisa da pessoa que efectivamente praticou o facto, mas existindo fortes indícios de que o ofendido, em estado de engano para o qual não terá contribuído, transferiu a quantia de €=1.500,00=(euros) para a conta bancária e por conseguinte a vantagem do crime indiciado se encontra na conta identificada pela Digníssima magistrada do Ministério Público nas doutas alegações, as razões quer probatórias quer de conservação do património indicam que a apreensão deve ser obrigatoriamente realizada, apesar de ainda não estar constituído arguido, ou sequer desvendada com a necessária nitidez a comparticipação nos factos que o titular da conta teve nos mesmos, que no entanto sempre deverá explicações.
Essa possibilidade, relativa aos produtos, instrumentos ou vantagens do crime é também revelada, pela norma do artigo 109.º n.º 5 do Código Penal – C.P., que prevê a perda dos produtos e vantagens do crime, “(…) ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto .”
A apreensão de bens ou valores que constituam o produto do crime não está diretamente relacionada, por isso, com quaisquer vicissitudes processuais, mas unicamente com os próprios fins do processo penal, e é justificada à luz do interesse da realização da justiça, nas suas componentes de interesse na descoberta da verdade e de interesse na execução das consequências legais do ilícito penal.
Alias, este entendimento revela-se congruente com o objectivo específico da apreensão na medida da sua instrumentalidade para a perda e confisco de bens que no caso concreto é acabar por deixar o suspeito despojado de qualquer atribuição ilícita e numa situação patrimonial tanto quanto possível, exactamente igual aquela que precedeu a transferência bancária. Como se disse no Acórdão do T.R.L. - Tribunal da Relação de Lisboa de 24/02/2022 in www.dgsi.pt: «II - A apreensão enquanto meio de obtenção da prova serve a finalidade processual penal da descoberta da verdade e enquanto garantia processual da perda de vantagens, tem em vista a finalidade processual penal de realização de justiça. Trata-se de um importante instrumento de prevenção do perigo de aumento ou de reiteração da criminalidade, por via da reconstituição da esfera patrimonial do agente do crime, ao estágio anterior à prática do mesmo e como se este nunca tivesse sido praticado;».
Assim, sendo a apreensão um instrumento que atinge o património contaminado do suspeito e não sendo difícil conjecturar uma situação concreta de evidência de prática de crime, será a partir da apreensão dos instrumentos do crime ou das suas vantagens, que a investigação conduzirá à identificação do suspeito, ou contribuirá determinantemente para isso, que só depois aquele será constituído arguido.
No sentido de que “A apreensão não exige a prévia constituição de Arguido” pronuncia-se HÉLIO RIGOR RODRIGUES, Revista Julgar online Dezembro 2015, pág, 284.
Também JOÃO CONDE CORREIA, in «Do Confisco à Perda de Bens» pág. 36, escreve sobre os pressupostos da apreensão em estabelecimento bancário, que “: Do ponto de vista subjectivo, a coisa tanto pode pertencer ao arguido como a um mero terceiro, A qualidade processual do seu titular é, pois, irrelevante. O que importa é o interesse probatório da coisa e/ou a necessidade de garantir a execução do seu posterior confisco (artº 111º do Código Penal – C.P.) que pode existir quer a coisa seja do arguido, quer de terceiro completamente alheio à questão penal. A simples qualidade de suspeito é por outro lado, desde que a coisa tenha aquele interesse ou exista aquela necessidade, suficiente para o efeito: não se exige assim, a prévia constituição do visado como arguido.”
Isto mesmo resulta, com clareza, do citado artigo 181.º n.º 1 in fine do Código de Processo Penal – C.P.P. quando se dispôs «mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam depositados em seu nome».
Assim, o desconhecimento preciso da identidade civil do titular da conta bancária para onde foi transferido o dinheiro, mediante a prática do crime indiciado, não poderá ser obstáculo à efectivação da apreensão do montante transferido, sob pena de se frustrar a obtenção da prova do crime, e a conservação do dinheiro integrador da vantagem ilícita obtida, sob pena de estarmos a premiar os agentes do crime mais talentosos, audazes e eficazes.
Também não se pode esquecer que o dinheiro é uma coisa fungível – cfr. artigo 207º do Código Civil - e como tal passível de confusão no património, mas também substituível, por outra da mesmo género e quantidade. Como tal a existência de dinheiro em montante igual aquele que foi transferido pela prática de um crime, continua a ser indiciariamente uma vantagem desse crime, face ao disposto nos artigos 110.º n.º 4 e 11º n.º 3 do Código Penal – C.P., e revela inegável interesse para a descoberta da verdade, e para prova.
Desta forma, não se pode olvidar que importa impedir que os fundos ainda eventualmente existentes na conta em causa se dissipem e sejam utilizados em benefício do agente, o que poderá acontecer caso não sejam objeto de medida cautelar de apreensão como foi promovida pela Digníssima magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância, fazendo com que a quantia creditada na conta em causa, €=1.500,00=(euros), seja certamente canalizada para outros fins, ficando definitivamente fora do alcance da Justiça e do radar de esperança do ofendido.
Assim havendo razões para acreditar, como efectivamente há, que determinado ativo foi obtido com a prática de um crime, deve logo, e posto que se reconheça o seu grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, proceder-se à sua apreensão cautelar, o que não foi observado pelo despacho recorrido. Como se disse no Acórdão do T.R.E. - Tribunal da Relação de Évora de 11/10/2022 in www.dgsi.pt: «III - As apreensões realizadas a coberto do regime processual estabelecido no artigo 178º do CPP consubstanciam uma ferramenta essencial para obviar aos riscos de ocultação e dissipação do património ilícito – quer o resultante de práticas ilícitas (vantagem), quer o que visa servir práticas ilícitas (instrumento) – aumentando a sua importância à medida que, no mundo atual, aumenta a globalização, esta última viabilizadora de uma cada vez mais rápida movimentação dos ativos».
O conceito das «fundadas razões» previsto na norma do artigo 181.º do Código de Processo Penal – C.P.P. está ligado ao periculum in mora consubstanciado no risco de desaparecimento ou ocultação da coisa que interessa à prova de uma infração penal e na probabilidade de que os objetos efetivamente tenham relação com a investigação de um facto criminoso. Reconhecendo-se como fundada a suspeita do dinheiro em causa ter origem ilícita, é indiscutível a necessidade da medida de apreensão promovida, pois para investigação do crime e o ressarcimento do ofendido é essencial evitar o desaparecimento do dinheiro produto de ato ilícito, além de que o mesmo poderá servir como meio de prova.
A apreensão promovida além de necessária, apresenta-se como proporcional e adequada, pois a restrição que a mesma implica aos direitos do suspeito terá de ser considerada como marcadamente inferior aos valores que com ela se pretendem assegurar como realização da justiça, aquisição / conservação da prova do crime e eventual ressarcimento do ofendido.
Na conformidade do que vem sido dito e essencialmente pelo exposto, tudo visto, analisado e ponderado, sem necessidade de ulteriores ou mais apuradas considerações, aderindo ainda, sem reservas, às judiciosas considerações das doutas alegações apresentadas pela Digníssima magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância, o recurso merece provimento.»

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.


II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se deverá, ou não ser autorizada a apreensão da conta bancária identificada pelo Ministério Público nos termos por este requeridos.

III –
O teor do douto despacho recorrido é o seguinte:
«Nos termos da douta promoção que os presentes autos tiveram origem na queixa apresentada por (…), denunciando, em síntese, que no dia 16 de Outubro de 2023, via WhatsApp recebeu uma mensagem do n.º (…) na qual, indivíduo desconhecido, fazendo-se passar pelo seu filho, lhe comunicou que aquele n.º era o seu novo contacto, e lhe pediu que transferisse com urgência a quantia de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros) para a conta com o IBAN (….), o que o mesmo fez com recurso à conta bancária n.º (…), convencido de que a mensagem em causa provinha do seu filho, o que veio a verificar não ser verdade, com o seu consequente prejuízo patrimonial (cfr. relatório fotográfico de fls. 52 e doc. de fls. 53).
Com base no modus operandi em causa a Polícia Judiciária concluiu, desde logo, que o denunciante, (…) fora vítima do conhecido esquema de burla informática, designado por Hello mum /Hello dad, através do qual, o agente do crime, fazendo-se passar por filho da vítima, a convence a realizar uma transferência monetária para uma conta por si indicada, apropriando-se daquele valor.
Solicitada a identificação dos titulares da conta bancária utilizada pelos agentes do crime, resulta que a mesma pertence a (…) (cfr. fls. 84/87).
Resulta ainda da documentação bancária junta aos autos que a quantia monetária transferida pelo denunciante (…) para a conta bancária do suspeito, (…) foi apreendida cautelarmente pelo (…) por forma a impedir o seu descaminho/apropriação por parte do suspeito (cfr. fls. 69 e 75/verso).
Com efeito, conforme se extrai da análise do extrato com o movimento da conta, as quantias nela depositadas são de imediato movimentadas a débito, sendo o saldo da conta de valor reduzido (cfr. fls. 73/verso).
Porque tais factos, em abstracto, são susceptíveis de integrar a prática do crime de burla informática p. e p. pelo art. 221º do Cód. Penal., nos termos do disposto no art. 181º, n.º 1 e 269º, n.º 1, ambos do C.P.P., promove a apreensão do saldo da conta bancária do Banco 1... com o IBAN (…) até ao valor de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros).
Ora, quanto a apreensão de tal montante, e como é bom de ver nos termos do disposto no art. 178º/1 do Código de Processo Penal, São apreendidos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova.
Ainda segundo estatui o art. 181º/1 do mesmo diploma, O juiz procede à apreensão em bancos ou outras instituições de crédito de documentos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objectos, mesmo que em cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam depositados em seu nome.
A apreensão, enquanto meio de obtenção de prova (veja-se a inserção sistemática sob o Título III – dos meios de obtenção de prova), destina-se essencialmente a conservar provas reais e, bem assim, objectos que, em razão do crime com que estão relacionados, podem ser declarados perdidos a favor do Estado, nos termos do disposto nos arts. 109º e sgs. do Código Penal - neste sentido, Código de Processo Penal Comentado, Comentário de António Henriques Gaspar e outros, Almedina, 2014, pág. 757.
Como refere Germano Marques da Silva, na obra “Curso de Processo Penal”, Vol. II, 4ª Edição, Verbo, pág. 242, A apreensão não é apenas um meio de obtenção e conservação de provas, mas também de segurança de bens. Nesta perspectiva a apreensão é um meio de segurança dos bens que tenham servido, ou estiveram destinados a servir, a prática do rime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa, como forma de garantir a execução da sentença penal, o que também justifica a conservação dos objectos ou direitos apreendidos à ordem do processo até à decisão final.
Ora, no caso em mãos, com o devido respeito, compreendendo a urgência da apreensão que vem promovida pelo Ministério Público, os parcos elementos probatórios que constam dos autos não permitem com segurança decretá-la.
Na verdade, não foram ainda constituídos arguidos no inquérito, não foram os suspeitos sequer ouvidos, correndo o presente inquérito ainda sem arguidos constituídos mas com o eventual suspeito com residência bancária fixada no Brasil, sendo que se os titulares da conta em crise se mostra identificado pelo banco, o contacto ali constante não se mostra identificado pelas operadoras de telemóveis ou com o próprio número de telemóvel usado, o que sem mais, o que nos parece insuficiente para podermos concluir, como legalmente requerido no art. 181º/1 do Código de Processo Penal pela existência de fundadas razões para crer que eles [os saldos bancários] estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
Nestes termos, indefere-se para já a douta promoção que antecede.»

IV – Cumpre decidir.
Estatui o artigo 178.º, n.º 1, do Código de Processo Penal: «São apreendidos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova».
Estatui o artigo 181.º, n.º 1, do mesmo Código: «O juiz procede à apreensão em bancos ou outras instituições de crédito de documentos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objetos, mesmo que em cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam depositados em seu nome».
Como se afirma no douto despacho recorrido, a apreensão serve de instrumento para conservar (evitando o seu desaparecimento ou dissipação) objetos ou valores que, em razão do crime com que estão relacionados, poderão vir a ser declarados perdidos a favor do Estado, nos termos do disposto nos artigos 109.º e seguintes do Código Penal. Entre estes contam-se, nos termos do artigo 110.º, n.º 1, b), desse Código, os que representem vantagens do crime, sendo que, nos termos do artigo 111.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo Código, eles poderão não pertencer ao agente do crime, mas a terceiro.
Está indiciada (isso mesmo é reconhecido no douto despacho recorrido) a prática de um crime de burla informática, p. e p. pelo artigo 221.º do Código Penal. O denunciante terá sido vítima do esquema que vem sendo designado como ”Hello mum, Hello dad”: recebeu uma mensagem via “WhatsApp” de um desconhecido que se fez passar por seu filho solicitando uma transferência da quantia de mil e quinhentos euros para a conta a que alude o Ministério Público e procedeu a essa transferência.
Considera o despacho recorrido que a prova até agora obtida é escassa e não permite, para já, afirmar que haja razões para crer que os sados dessa conta bancária estejam relacionados com o crime em apreço. Invoca a circunstância de ainda não terem sido constituídos arguidos, nem ouvidos, os suspeitos. Invoca também a circunstância de o titular dessa conta bancária não ter sido identificado pela operadora do telemóvel usado.
Vejamos.
Antes de mais, importa sublinhar que a apreensão não depende da prévia constituição como arguido de qualquer pessoa que por ela possa ser afetada. Como bem refere o Ministério Público junto desta instância no seu douto parecer, exigir essa prévia constituição de arguido tornaria, em muitos casos, inútil e ineficaz a apreensão. Esta destina-se a evitar o desaparecimento ou dissipação dos objetos ou valores sobre que recai. Se, existindo o perigo desse desaparecimento ou dissipação, o possuidor desses objetos ou valores tem prévio conhecimento da pendência do processo, facilmente concretizará esse desaparecimento ou dissipação antes da apreensão, que se tornará, desse modo, inútil e ineficaz.
Não rege neste caso a regra do artigo 192.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, relativa às medidas de garantia patrimonial (não à apreensão aqui em causa), que exige a prévia constituição de arguido para a aplicação dessas medidas. Mas mesmo essa regra comporta, nos termos do n.º 3, desse artigo uma exceção, relativa ao arresto, precisamente quando (como se verificará em muitos casos com a apreensão) este possa tornar-se inútil ou ineficaz se vier a ser decretado depois de o arguido ter conhecimento da pendência do processo.
Parece-nos evidente que há razões para crer que a conta bancária a que alude o Ministério Público está relacionada com o crime de burla em apreço e que a quantia de mil e quinhentos euros transferida pelo denunciante para essa conta representa uma vantagem do crime. Estranho seria que o agente do crime solicitasse a transferência para uma qualquer conta bancária de que não fosse titular, ou cujo titular nenhuma participação no crime tivesse.
O facto de o titular dessa conta bancária não ter sido identificado pela operadora do telemóvel usado não invalida tal conclusão, sendo que, de qualquer modo, está em causa uma análise de indícios, não uma decisão definitiva sobre prova.
Como vantagem do crime, essa quantia poderá vir a ser declarada perdida a favor do Estado, nos termos do referido artigo 110.º, n.º 1, b), do Código Penal (eventualmente do referido artigo 111., n.ºs 1 e 2, do mesmo Código, caso o autor do crime de burla não seja o titular dessa conta).
Também nos parece evidente que se se verifica o perigo de dissipação dessa quantia caso ela não seja apreendida.
Mas importa também salientar que a apreensão não compromete irremediavelmente os direitos do titular da conta bancária em apreço, nem os seus direitos de propriedade, nem os seus direitos de defesa. Estamos perante uma medida cautelar, revogável a todo o tempo em função do que possa alegar em sua defesa esse titular depois de constituído arguido e em função da prova que venha a ser produzida ulteriormente, não perante uma medida definitiva de perda de bens ou valores.
Não há, pois, motivo para não deferir, nos termos dos artigos 178.º, n.º 1, 181.º, n.º 1, e 268.º, n.º 1, c), do Código de Processo Penal, a pretensão do Ministério Público de apreensão da conta bancária do (…) com o IBAN (…), titulada por (…), até ao valor de mil e quinhentos euros.
Deverá, assim, ser concedido provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público.


V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, revogando o douto despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro, que defira a pretensão do Ministério Público de apreensão da conta bancária do (…) com o IBAN (…), titulada por (…), até ao valor de mil e quinhentos euros.


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Porto, 20 de março de 2024
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
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Maria Joana Grácio