CONDIÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
ARBITRAMENTO DE INDEMNIZAÇÃO NOS TERMOS DO ARTº 82.º A DO CPP
PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE
Sumário

I – Através da atribuição do estatuto de vítima especialmente vulnerável pretende –se assegurar o direito à reparação dos danos sofridos pela vítima que se encontre numa situação de especial vulnerabilidade
II – Na fixação das condições da suspensão da pena são as finalidades relativas aos fins das penas que devem prevalecer e não os interesses do ofendido na indemnização.
III - A imposição de deveres da suspensão da pena encontra-se sujeita ao princípio da razoabilidade.

Texto Integral

Proc. nº 277/20.5GBETR.P1
1ª secção criminal

Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO:

No processo comum (tribunal colectivo), nº 277/20.5GBETR.P1 do Juízo Central Criminal de Aveiro, juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, o arguido AA, nascido em ../../1959, foi submetido a julgamento e a final foi proferido acórdão de cuja parte decisória consta o seguinte:

(…)

Nos termos e pelos fundamentos expostos acordam os Juízes que constituem este Tribunal Coletivo em:

A - Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real:

1 - De 1 (um) crime de abuso sexual de criança agravado, sob burla pessoa da menor previsto e punido pelos artigos 171º nº 1 e 177º, nº 1, alínea a) e 2, do Código Penal na pena de 2 (dois) e 6 (seis) meses anos de prisão;

2 - Ao abrigo do disposto no artigo 69º-B, nº 2 do Código Penal, na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 6 (seis) anos;

3 – Ao abrigo do disposto no artigo 69º - B, nº 2 do Código Penal, na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 6 (seis) anos;

4 – Ao abrigo do disposto no artigo 69º-C, nº 3 do Código Penal, na pena acessória inibição do exercício de responsabilidades parentais, pelo período de 7 (anos) anos (relativa à menor BB.

B - De 2 (dois) crimes de coacção agravado, p.p. pelos artigos 163º, nº 1 e 177º, nº 6 do Código Penal na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão por cada um dos crimes.

1- Ao abrigo do disposto no artigo 69º-B, nº 2 do Código Penal, na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 6 (seis) anos;

2 – Ao abrigo do disposto no artigo 69º - C, nº 2 do Código Penal, na pena acessória de proibição na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 6 (seis) anos;

C - Operando o cúmulo jurídico das penas referidas nas alíneas A) e B) condenar o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão que se suspende na sua execução por igual período ficando tal suspensão subordinada às seguintes condições:

1 - a pagar a BB, a quantia indemnizatória que se fixa em €.:3.500,00 (três mil e quinhentos euros), após o trânsito em julgado, nos seguintes moldes:

€.: 405,00 (quatrocentos e cinco euros) a cada seis meses, sendo que nos últimos quatro meses pagará a quantia de €.: 260,00 (duzentos e sessenta euros), devendo comprovar nos autos os pagamentos efectuados;

- a pagar a CC a quantia indemnizatória que se fixa em €.:6.000,00 (seis mil euros), após o trânsito em julgado, nos seguintes moldes:

€.: 700,00 (setecentos euros) a cada seis meses sendo que nos últimos quatro meses pagará a quantia de €.: 400,00 (quatrocentos euros), devendo comprovar nos autos os pagamentos efectuados

2 - Sujeita a regime de prova, executado com vigilância e apoio da Direção Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais, com vista à sua recuperação e integração, mediante plano a elaborar por essa entidade, que deverá incluir a frequência do programa dirigido a Agressores Sexuais e de Reabilitação e Prevenção da Reincidência, e a homologar pelo Tribunal, tudo nos termos dos artigos 50.º, n.º 2, 53.º e 54.º do Código Penal.

E) Operando o cúmulo jurídico das penas acessórias aplicadas ao arguido DD decide-se aplicar as seguintes penas únicas:

- Na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 9 (nove) anos.

- Na pena acessória de proibição na de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 9 (nove) anos.

G) - Condenar o arguido condenar o arguido nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC, bem como nos encargos a que a sua atividade deu lugar (artigos 513º, n.ºs 1, 2 e 3, e 514º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa).

Este dispositivo veio a ser rectificado por despacho de 9/10/2023, subscrito pelas 3 Exmas Senhoras juízas do tribunal colectivo, nos seguintes termos:

“Analisando o acórdão proferido no pretérito dia 10 de Julho verifico que na folha nº 35, onde consta E) se pretendia escrever D) passando a alínea G) a ser a E).

Por outro lado, também na alínea E), e por manifesto lapso, se identificou o arguido como sendo “DD” quando o mesmo se chama “AA”.

Por último, e ainda na alínea E), onde se opera o cúmulo jurídico das penas acessórias aplicadas ao arguido, no segundo parágrafo, escreveu-se: “Na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 9 (nove) anos” quando se pretendia escrever “Na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adopção, tutela curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 9 (nove) anos”.

Tais lapsos de escrita que são manifestos em confronto com a apreciação da aplicação das penas acessórias efectuada em sede de acórdão, podem ser objeto de correção nos termos do disposto no art. 380º do Código de Processo Penal, e designadamente do disposto na al. b) do n.º 1 do citado preceito, já que não importa modificação essencial.

Assim, ao abrigo do disposto no art. 380º do Código de Processo Penal corrige-se os lapsos cometidos passando a ler-se na referida folha nº 35 o seguinte:

- a alínea E) passa a ser a aliena D) e, consequentemente, a alínea G) passa a ser alínea E);

- onde se lê “DD” passa a ler-se “AA”;

- na agora alínea D), 2º parágrafo, onde consta “Na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 9 (nove) anos” passa a constar: “Na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adopção, tutela curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 9 (nove) anos”

Notifique.

D.N.…”

(…)


*

Inconformado, o arguido AA interpôs recurso, no qual formula as seguintes conclusões:

(…)

Impõe-se a correcção do douto Acórdão, porquanto o mesmo enferma de erro/ambiguidade na sua decisão, designadamente a alínea E) deveria ser a alínea D), o nome do arguido recorrente não é DD, e dúvidas existem sobre quanto ao eventual cúmulo jurídico da pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, cujo cúmulo jurídico não foi operado, pelo que deverá o douto Acórdão recorrido ser corrigido, ao abrigo do disposto no artigo 380.º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal.

O recorrente não pode deixar de considerar injusto o Acórdão em apreço, por entender que, em face da prova produzida, deveria ter subsistido a dúvida sobre a veracidade dos factos dos quais vinha acusado e, consequentemente, deveria o arguido ter sido absolvido, por respeito ao princípio constitucionalmente consagrado in dubio pro reo, sendo assim a sua condenação inadequada, desproporcionada e desajustada da situação concreta sub judice, porquanto se entende que foi violado o artigo 127.º do Código de Processo Penal.

III

Efectivamente, confrontado com o testemunho das ofendidas menores quanto a factos cuja prática o arguido nega e relativamente aos quais não existe outra prova, nomeadamente testemunhal, o Tribunal a quo valorou integralmente e sem reservas aquele testemunho, não lhe suscitando dúvidas sobre a veracidade do mesmo, em detrimento dos depoimentos testemunhais e ainda das declarações do arguido.

IV

No entanto, com isso não pode o recorrente concordar, continuando a protestar a sua inocência. Na verdade, e lamentavelmente, não é incomum existirem relatos e depoimentos de jovens e crianças, neste tipo de situações, que acontecem por motivos ulteriores e, frequentemente, incentivados e “ensinados” por terceiros que sobre eles exercem um ascendente, como forma de prejudicar outrem, o destinatário de tais acusações, sendo que essas mentiras apenas vêm a ser descobertas posteriormente, se o forem.

V

É certo que, na maioria destes crimes, apenas as vítimas deles são conhecedoras, não havendo mais ninguém que possa confirmar as suas declarações. No entanto, in casu existiam vários indícios que deveriam ter levado ao Tribunal a quo a duvidar fundamentadamente dos depoimentos das ofendidas, fosse a personalidade mais rebelde de CC (“personalidade peculiar”, “rebelde”, “má influência”) e a inveja desta de BB e do que o pai lhe comprava, fosse a adoração de BB por CC e o ascendente que esta exercia sobre aquela, fosse ainda o depoimento das testemunhas que acharam estranha toda esta situação e demonstraram dificuldade em acreditar na versão das ofendidas – tal como decorre da motivação de facto do outo Acórdão recorrido.

VI

Assim, o Tribunal a quo nunca poderia ter considerado como verdade inabalável odepoimento das ofendidas, sem ter criado dúvida razoável dos mesmos em função da restante prova testemunhal produzida, pelo que ao condenar o recorrente pelos crimes em questão, dando como provados os factos de que vinha acusado, exclusivamente com fundamento na versão das ofendidas, o Tribunal a quo fez uso imprudente e precipitado do princípio da livre apreciação da prova, sendo certo que expurgadas as declarações das ofendidas, nenhuma outra prova existe que confirme a conduta criminosa do recorrente.

VII

Em conclusão, perante a possibilidade de a versão das ofendidas não corresponder à verdade, por motivação ulterior e retaliativa das mesmas, deveria o Tribunal a quo ter decidido pela absolvição do arguido, em respeito ao princípio in dubio pro reo, pelo que ao decidir como fez desrespeitou o vertido no artigo 127º do Código de Processo Penal, pelo que deverá o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que absolva o arguido recorrente.

VIII

Sem prescindir do supra alegado, a condição de suspensão da execução da pena única de 4 (quatro) meses e 4 (quatro) meses de prisão aplicada ao recorrente, nomeadamente pagar a BB a quantia indemnizatória de €3.500,00 (três mil e quinhentos euros) – sendo devidos €405,00 (quatrocentos e cinco euros) a cada seis meses, e nos últimos quatro meses a quantia de €260,00 (duzentos e sessenta euros) –, e de pagar a CC a quantia indemnizatória €6.000,00 (seis mil euros) – sendo €700,00(setecentos euros) a cada seis meses e nos últimos quatro meses a quantia de €400,00 (quatrocentos euros) não passa de uma pena de prisão efectiva disfarçada, ferindo de morte os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade,

IX

Porquanto, em face da matéria que resultou provada, nomeadamente respeitante à situação socioeconómica e familiar do arguido, e do relatório da DGRSP, conclui-se que a condição imposta é de cumprimento impossível. E assim o é porque o recorrente é um doente transplantado, que necessita de supervisão médica e terapêutica vitaliciamente, vive em casa de uma filha, aufere uma pensão de invalidez no valor diminuto de €330,00, acumulada com ajudas sociais e com algum dinheiro que o recorrente possa eventualmente receber em “biscates”, o que só por si é bastante incerto. No limite, nem sequer tem bens imóveis que possa vender para poder pagar as indemnizações em que foi condenado.

X

Assim, se é impossível ao recorrente cumprir com tal condição, então tal característica de impossibilidade torna nula essa mesma condição. Tal nulidade é de conhecimento oficioso e opera “ab initio”, sendo que não foi conhecida pela Tribunal a quo, que deveria ter averiguado da concreta e actual possibilidade de cumprimento da condição imposta pelo recorrente, antes de condicionar, da forma como condicionou, a suspensão da execução da pena de prisão.

XI

Ao impor ao recorrente o dever do pagamento da quantia global de €9.500,00 como condição da suspensão da execução da pena de prisão, o douto Acórdão recorrido desrespeitou o disposto nos artigos 40.º, 50.º e 51.º, nº 2 (princípios da razoabilidade e da proporcionalidade) do Código Penal, assim como o artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, pelo que deve o mesmo ser revogado, substituindo-se a condição de pagamento imposta ao recorrente por outra cujo cumprimento lhe seja viável, quer no que concerne ao montante indemnizatório a pagar a cada uma das ofendidas, quer no que diz respeito ao tempo concedido para o efeito.

Nestes termos, e nos mais que V. Ex.as douta e superiormente suprirão, deve o presente recurso ser considerado provido, com todas as consequências legais.

(…)

A Magistrada do Ministério Público respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.

Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto acompanhando a resposta do Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

         Cumprido que foi o disposto no artº 417º nº2 do CPP não foi apresentada resposta.


*

         Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

*

O acórdão recorrido deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respectiva motivação:

 (…)

1 - A ofendida, BB, nascida no dia ../../2011, é filha do arguido;

2 - Por sua vez, a ofendida CC, nascida a ../../2006, é sobrinha-neta do arguido;

3 - O arguido e a mãe da ofendida BB encontravam-se separados, pelo que a menor, pelo menos, durante quatro anos, quinzenalmente, por norma, passava os fins de semana com pai, na residência deste, sita na Rua ..., em ..., ..., aí pernoitando;

4 - Nessa altura, era habitual a menor e ofendida BB dormir com o arguido, no quarto e na cama deste;

5 - Em data não concretamente apurada, mas situada no verão de 2020, antes do mês de Julho, num dos fins de semana em que a ofendida BB pernoitou com o pai, quando ambos se encontravam na cama, no quarto deste, o arguido baixou as calças de pijama, colocou as mãos por cima das cuecas da ofendida BB e acariciou-a na zona vulvar;

6 - O arguido apenas cessou esta conduta porque se apercebeu que a menor estava acordada;

7 - Na sequência desse episódio, a ofendida BB mudou-se para outro quarto, de forma a aí ficar sozinha;

8 - Nesse verão de 2020 as ofendidas BB e CC, mantinham entre si uma relação de amizade, pelo que, quando a ofendida BB ficava em casa do pai, por diversas vezes, a ofendida CC também ali ficava e pernoitava;

9 - As ofendidas dormiam juntas, no quarto da ofendida BB, numa cama de casal;

10 - Nessa altura, por diversas vezes, o arguido oferecia presentes à ofendida CC, designadamente, vestidos e patins;

11 – Em data não apurada mas situada nos meses de Junho e Julho de 2020, num dos fins de semana em que as menores se encontravam em casa do arguido, durante a noite, quando as ofendidas já dormiam, este dirigiu-se ao quarto da ofendida BB e deitou-se na mesma cama onde ambas se encontravam;

12 - O arguido deitou-se ao lado da menor CC, ficando esta entre o arguido e a ofendida BB;

13 - De seguida, aproveitando o facto de a ofendida CC se encontrar a dormir e de costas para si, o arguido puxou as calças do pijama e as cuecas da mesma, até aos joelhos, e introduziu os seus dedos na vagina da ofendida CC;

14 - O arguido só parou porque a ofendida CC acordou;

15 – Em data próxima e ainda situada no Verão de 2020, num dos fins de semana em que as duas menores se encontravam em casa do arguido, durante a noite, o mesmo dirigiu-se ao quarto da ofendida BB e deitou-se na cama onde ambas se encontravam, do lado da menor CC;

16 - Acto contínuo, pensando que as duas ofendidas estariam a dormir, o arguido, baixou as calças e as cuecas da ofendida CC e introduziu os dedos da sua mão na vagina da menor;

17 - O arguido só se absteve de continuar a levar a cabo a referida conduta, quando se apercebeu que a CC se encontrava acordada;

18 - Ao levar a cabo a conduta descrita nos pontos 5 e 6, em relação à ofendida BB, agiu o arguido com a intenção de satisfazer os seus desejos libidinosos, bem sabendo que a mesma era sua filha, que contava, aquando dos factos, apenas 9 anos de idade e que, como tal, carecia completamente de capacidade para se autodeterminar sexualmente, não ignorando que, ao agir daquela forma, prejudicava gravemente o livre desenvolvimento da personalidade da mesma menor;

19 - Por outro lado, ao levar a cabo a conduta acima descrita nos pontos 10, 11, 12, 13, 14, 15 e 16, o arguido, agiu igualmente com intenção de satisfazer os seus desejos libidinosos, bem sabendo que a ofendida CC, à data dos factos, contava apenas 14 anos de idade e que agia completamente contra a vontade da mesma, colocando em crise os seus sentimentos de pudor e vergonha, além do sentimento de decência inato à generalidade das pessoas;

20 - Em todas as situações acima descritas, o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente e, não obstante ter o perfeito conhecimento que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se absteve de as levar a cabo;

21- Da condição pessoal, social e familiar do arguido (elaborado pela DGRSP/Equipa Baixo Vouga e com base em entrevista telefónica com EE, filha do arguido; articulação com estruturas no meio sócio residencial do arguido (Junta de Freguesia ...; Centro Paroquial e ...); análise/consulta das peças processuais subjacentes à instauração do presente processo)

21. 1 – O arguido AA é natural de ... e oriundo de família tradicional e estrato sociocultural modesto,

21.2 - O seu desenvolvimento psicossocial decorreu no seio da fratria de 8 descendentes e sob a responsabilidade dos progenitores;

21.3 - A dinâmica familiar pautava-se pelos princípios e regras normativas, num ambiente de entreajuda e vínculos afetivos;

21. 4 - A subsistência dos integrantes era assegurada pelo rendimento salarial do pai, trabalhador da construção civil, mediante a gestão criteriosa dos recursos;

21. 5 - Em termos escolares, aos 13 anos, concluiu o 1º ciclo e abandonou o sistema de ensino, sem motivação para prosseguir estudos;

21.6 -  Na mesma idade iniciou atividade laboral junto do pai, na construção civil, como forma de contribuir para a subsistência do agregado; consolidou o seu trajeto laboral neste setor até 2012, ano em que foi atribuída reforma por invalidez;

21. 7 - Em termos clínicos, em 2011, foi diagnosticada situação de doença grave dos rins, com sujeição a hemodiálise regular (4 vezes/semana), durante 18 meses;

21-8 -  Em 2013 foi sujeito a transplante renal do rim (doado pela filha mais velha), com posterior supervisão médica e terapêutica adequada;

21.9 - A nível psicoafectivo casou aos 18 anos, com FF da mesma faixa etária, construiu o seu projeto de vida e teve 4 filhas, todas atualmente autónomas, com vidas constituídas;

21.10 - Em 2009 o casal divorciou-se por alegadas incompatibilidades intrafamiliares;

21.11 -  Em 2011, iniciou vida em comum com GG, à data com 19 anos, e desta união tiveram uma filha, BB;

21.12 - No seu relato, em retrospetiva, o arguido identifica dificuldades na dinâmica familiar, por incompatibilidade nos interesses/objetivos entre os elementos do casal, que deram lugar à separação, em 2014;

21.13 - De seguida, GG e a filha menor de ambos, mudaram residência para ..., região de origem da ex-companheira;

21.14 - Não obstante, o convívio entre pai e filha ficaram assegurados através de contactos telefónicos regulares e visitas com pernoita da menor nos períodos de interrupção e férias escolares;

21. 15 - Nesta conjuntura, o arguido regressou e mantém residência, na morada de família, propriedade de uma das filhas do anterior casamento, EE, de 23 anos, operária fabril;

21.16 -  O domicilio corresponde a moradia modesta inserida em zona rural e munida de adequadas condições de habitabilidade;

21.17 -  A subsistência do arguido está assegurada pela pensão de invalidez (€.: 330,00) de que é beneficiário, apoio social/cabaz de alimentos da ... – Sociedade de ... e retaguarda familiar;

21.18 - Organiza o seu quotidiano de acordo com as atribuições domésticas e responsabilidades familiares, nomeadamente, colaborando com familiares nas tarefas de manutenção das respetivas habitações, continuando a executar trabalhos na sua área;

21.19 - No meio sócio residencial não foram recolhidos indicadores desfavoráveis à presença do arguido e família, colhendo, ainda, parecer favorável e preocupação perante os procedimentos jurídico penais, por parte dos familiares.

22 – O arguido não possui antecedentes criminais;

Factos não provados:

a) não obstante a meteria dada como provada no ponto 5 da matéria dada como provada o arguido colocou as mãos por baixo das cuecas da ofendida BB e acariciou-a nas nádegas;

b) o arguido só cessou a sua conduta porque a ofendida BB puxou as calças do pijama para cima e pediu-lhe para parar;

c) os factos dados como provados no ponto 11 tiveram lugar no dia 1 de de Julho de 2020; 

d) não obstante a matéria dada como provada no ponto 15 que os factos tenham ocorrido antes do mês de Agosto de 2020;

e) não obstante a matéria dada como provada no ponto 17, o arguido absteve-se de continuar com a sua conduta porque a ofendida CC se levantou para ir à casa-de-banho;

f) que o arguido tenha oferecido à menor CC umas sandálias e unhas de gel, dizendo: “logo à noite já sabes”.

III - Motivação de Facto:

A livre convicção do Tribunal deve assentar nas provas produzidas em audiência de julgamento, valoradas em consonância com os princípios que enformam o direito processual penal, designadamente os ínsitos nos artigos 127º e 355º do Código de Processo Penal.

No processo de formação da convicção do julgador, as primeiras regras a observar são, naturalmente, as da lógica, seguidas pelas regras da experiência, que resultam da estrutura nomológica da realidade física e emergem, fundamentalmente, da intervenção do princípio da causalidade.

O arguido, em suma, negou a prática dos factos, tendo explicado com que regularidade a menor BB passava os fins-de-semana consigo, uma vez que esta reside em ... com a mãe, de quem se separou passado cerca de dois anos de vivência em comum. Referiu que a sua filha, nessas alturas, dormia juntamente consigo porque ela assim o desejava.

Explicou que à data residia com a sua ex-mulher, a testemunha FF, mãe de outra sua filha, também de nome EE, que também consigo residia.

Descreveu como se desenvolveu a amizade da sua sua filha com a CC, neta de uma sua irmã, sendo que, a dado momento aquela, sempre que a menor BB ia passar o fim-de-semana consigo, passava a noite em sua casa dormindo ambas num quarto, numa cama de casal e o arguido noutro quarto, situando-se os dois no primeiro andar da sua residência.

Que por vezes ia até junto das menores, quando já se encontravam deitadas o que fazia porque, no quarto onde ambas pernoitavam, se encontrava a única televisão existente naquele piso, sentando-se na beira da cama onde as menores se encontravam, passando lá 1/2 horas indo depois para o seu quarto, tendo negado alguma vez se ter deitado junto das mesmas.

 Negou, também ter praticado qualquer um dos factos de que vem acusado, justificando a existência deste processo devido a uma história que ambas as menores inventaram e combinaram entre si, por não lhes ter permitido fazer umas madeixas e unhas que as mesmas queriam, referindo que era hábito comprar aquilo que a sua filha lhe pedia, acabando por comprar também para a menor CC, a pedido da BB.

            HH, avó materna da menor e irmã do arguido, relatou que a menor CC está à sua guarda desde que tinha 3/4 anos, sendo que se recorda que os factos terão ocorrido no Verão de 2020, data em que o arguido andava a fazer umas obras na sua residência.

À data, a sua neta ia dormir a casa do arguido quando lá se encontrava a menor BB, esclarecendo quem habitava na referida residência e acrescentando que a EE e a FF não gostavam que a sua neta lá dormisse, desconhecendo o motivo. 

Recorda-se de uma vez, a testemunha FF telefonar-lhe para ir buscar a CC tendo-lhe dito que o arguido andava apenas com boxers junto das meninas. Quando lá chegou a testemunha FF confidenciou-lhe que a CC tinha ido até ao seu quarto, na noite anterior, a chorar queixando-se que o arguido havia querido tocar nas cuecas daquela.

Já chegada a casa, a menor nada lhe contou mas mais tarde desabafou contando-lhe o que o arguido lhe havia feito, mais concretamente que se havia deitado junto de si, passando a sua mão pelas cuecas e que tinha posto os dedos na vagina, causando-lhe dores, nunca mais tendo falado no assunto.

A partir do ocorrido, a sua neta nunca mais dormiu em casa do seu irmão e também nunca mais manteve contacto com a menor BB.

Referiu, ainda, que o arguido fazia algumas compras para a sua filha, acabando também por comprar para a CC, recordando-se desta surgir com vestidos novos e uns pantins, achando este comportamento do arguido estranho.

Concluiu, dizendo que pese embora, a sua neta possua uma personalidade peculiar sempre acreditou nela, referindo que a mesma não é mentirosa, acreditando, por isso, que o que lhe contou era verdade.

EE, filha do arguido e da testemunha FF, começou por esclarecer que os factos em causa nos autos terão ocorrido no Verão de 2020, só tendo tido conhecimento dos mesmos quando foi inquirida perante as autoridades policiais.

Referiu que nesse Verão a sua irmã ia lá passar os fins de semana tendo a CC, começado a ir lá dormir, a pedido da sua avó, para, segundo o que esta lhe disse “não fazer asneiras”.

Especificou o quarto em que as duas meninas dormiam, situado no 1º andar, onde o seu pai também tinha o seu, dizendo que era no quarto deste que existia televisão, sendo que só na cozinha havia outro aparelho destes.    

Referiu que, pelo que ia se apercebendo da relação mantida entre as menores, que tudo o que a sua irmã pedia para comprar a CC também queria, referindo que a sua irmã “amuava” sempre que não via satisfeitas as suas pretensões, como sucedeu com as unhas de gel e madeixas, último pedido que se lembra de a sua irmã ter efectuado.

Quanto aos factos em causa nos autos, recorda uma situação em que a sua mãe, a testemunha FF, lhe relatou que, num dia em que a CC havia lá dormido, logo de manhã pediu-lhe para telefonar à avó para a ir buscar porque “o arguido lhe havia querido tocar”.

Relativamente à amizade mantida entre as menores, não se mostrou agradada com a mesma referindo que a CC era uma má influência pois “metia-se com todos os meninos”, relatando conversas que ouviu, em que aquela pedia à sua irmã para efectuar videochamadas para um rapaz tendo ainda visto a CC a fazer o mesmo.

Acrescentou que, segundo a avó da CC, esta era rebelde, preferindo andar com os rapazes do que ir à escola. Contudo, e questionada nesse sentido, admitiu que a mesma não “era menina de inventar histórias”.

Por todos estes motivos, entende que o seu pai é inocente, nunca tendo observado ou ouvido alguma coisa que a levasse a concluir pelo contrário.

GG, mãe da menor BB, explicou em que moldes se desenvolviam as visitas da sua filha ao pai, referindo que pelo que se foi apercebendo a menor no início dormiria com o pai, passando a dormir sozinha.

Sabia que a CC era amiga da sua filha, referindo ainda ter conhecimento de que o pai da BB lhe comprava bastantes presentes “dava-lhe tudo o que ela queria”, referindo que fazia o mesmo com a menor CC.

Recorda-se de que, forma inesperada, a BB deixou de querer passar os fins-de-semana com o pai, pensando, na altura, que esta se encontrava chateada “porque não lhe havia comprado alguma que aquela quisesse”.

Disse, ainda que soube dos factos que ocorreram com aquela depois de ser chamada a prestar declarações perante as autoridades policiais, tendo a menor lhe dito que o pai havia feito “coisas” à CC acabando por lhe contar o que o pai lhe havia feito, descrevendo de que modo é que o mesmo procedia, tudo sucedendo quando as menores se encontravam deitadas e o arguido acabava por se deitar junto delas, referindo que a menor lhe confidenciou que não havia contado mais cedo por medo.

Actualmente, a menor tem apoio psicológico, o que se reflectiu no seu rendimento escolar, que aumentou substancialmente tendo, segundo as suas palavras “apagado o pai”, nunca mais o tendo visitado.

Relativamente à CC nunca privou com a mesma, só sabendo que a sua filha era muito sua amiga, por ser divertida, tendo-a visto trocar mensagens com a mesma. 

FF, ex-mulher do arguido, esclareceu que à data dos factos vivia na residência pertencente ao seu ex-marido, confirmando que a CC dormia lá nalguns fins-de-semana juntamente com a menor BB.

Referiu recordar-se de um episódio em que a CC a procurou no seu quatro queixando-se de dores de barriga, pelo que a testemunha a deixou dormir consigo razão que a levou, no dia seguinte a ligar à avó da menor, a testemunha HH, para ir buscar.

Acrescentou que, na sua ideia, a CC tinha um ascendente sobre a BB, fazendo com que esta pedisse ao pai para lhe comprar roupa e outras, acabando a menor BB a pedir àquele para também comprar à CC. No seu entender, esta iludia a BB, referindo que sua avó dizia que não se podia acreditar nela porque mentia. Salientou que não acreditar no ocorrido, sendo uma uma invenção de ambas uma vez que uns dias antes a CC demonstrou-se desagradada por o arguido não lhes ter comprado madeixas e deixado fazer as unhas.   

Resta analisar o depoimento prestado pelas menores em declarações para memória futura e também as que prestaram em audiência de julgamento, face às deficiências existentes na gravação dos depoimentos antes prestadas, tendo em audiência de julgamento a menor CC prestado novas declarações e a menor BB apenas alguns esclarecimentos.

Começando pela menor CC, esta, num discurso seguro e claro, relatou em que circunstâncias ocorreram os factos que sobre si foram perpetrados pelo arguido, confirmando que os mesmos tinham lugar quando já se encontrava deitada com a BB, acordando nas duas vezes em que tal sucedeu o que levava o arguido a abandonar o quarto. O seu depoimento foi seguro transparecendo no mesmo todo o incómodo e tristeza que a situação lhe causou, o que o Tribunal percecionou nas pequenas pausas e hesitações que a menor efectuou durante o mesmo tendo chegado a ser necessário retirar a menor da sala em face da emoção que a impedia que continuasse o seu relato.

A menor BB, em declarações para memória futura, falou sobre a amizade que mantinha com a CC, com quem dormia nos fins-de-semana em que ia a casa do seu pai tendo por uma vez se apercebido do sucedido com a CC, porque o arguido julgou que estava a dormir e porque a CC lhe contou mais tarde.

Relativamente ao que lhe aconteceu, e uma vez que nas declarações prestadas para a memória futura não se compreendeu integralmente o que disse, em audiência de julgamento foi muito clara recordando que à data ainda dormia com o seu pai tendo uma noite se apercebido que o mesmo tocava no seu corpo especificando de modo claro onde o fez tendo, a partir desse momento, deixado de dormir com o mesmo.        

No presente caso temos duas situações em que as menores foram abordadas pelo arguido quando se encontravam sozinhas.

Assim, cabe aqui fazer, uma referência teórica ao valor do testemunho quando se trata de factos cuja prática o arguido não assume e relativamente aos quais não existe outra prova testemunhal, estando em causa uma criança e factos de cariz sexual.

Aqui, permitimo-nos citar o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12-04-2010,  onde são feitas referências doutrinais e jurisprudências para as quais ousamos remeter.

São expressivos os seguintes excertos:

“É sabido que em matéria de “crimes sexuais” as declarações do ofendido têm um especial valor dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante (cfr. v.g. Ac. da Rel. do Porto de 6-3-1991, in Col. de Jur., ano XIII, tomo 2, pág. 287, Ac. do STJ de 2-2-2004 apud Ac. da Rel. de Coimbra de 9-3-2005, Col. De Jur. ano XXX, tomo 2, pág. 38 e Ac. da Rel. de Coimbra de 22-4-2009, proc.º n.º 376/04.0GAALB.C1, in www.dgsi.pt), pelo que não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta como são os crimes sexuais.

Em função das especialidades dos crimes sexuais e do especial valor que as declarações do ofendido assumem no âmbito daquela criminalidade, quando o tribunal não dispuser de outra prova, as declarações de uma única testemunha, seja ou não vítima, de maior ou menor idade, opostas, em maior ou menor medida, ao do arguido, podem fundamentar uma sentença condenatória se depois de examinadas e valoradas as versões contraditórias dos interessados se considerar aquela versão verdadeira em função de todas as circunstâncias que concorrem no caso.

(…)

Esta questão - que não é, naturalmente, privativa do direito português - tem merecido um desenvolvimento assinalável na doutrina e jurisprudência do País vizinho onde se tem vindo reiteradamente a declarar que um único testemunho, ainda que da vítima e inclusivamente de uma criança, pode ser suficiente para desvirtuar a presunção de inocência desde que ocorram as seguintes notas: a) ausência de incredibilidade subjectiva derivada das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade; b) verosimilhança: o testemunho há de estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objectivo que o dotem de aptidão probatória e; c) persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições.

(…)

Estas regras jurisprudenciais vigentes no país vizinho revelam-se instrumentos úteis na valoração das declarações da vítima, mas não podem ser erigidos em princípios vinculativos na ordem jurídica portuguesa onde vigora o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127º do Código de Processo Penal) e onde não se prevê qualquer regra de corroboração necessária (cfr. neste sentido, o Ac. da Rel. de Èvora de 24-6-2008, proc.º n.º 437/08-1, rel. António João Latas, in www.dgsi.pt)

(…)

Com efeito, a experiência científica nesta área ensina-nos que as vítimas de crimes sexuais tendem a não verbalizar o sucedido remetendo-se a um penoso silêncio, recatando a traumática experiência e quando a revelam fazem-no de forma sentida e muitas das vezes com retalhos de memória selectivos. É neste contexto muito especial, ademais agravado pela idade do menor, pela sua situação de filho do abusador e pelas suas limitadas capacidades intelectuais decorrentes da desordem de desenvolvimento da personalidade de que padece, que deve ser apreciado o depoimento da vítima.”

Após esta exposição, voltemos ao caso dos autos.

As apontadas “contradições” nas declarações prestadas pelas menores (indicadas pelo seu Ilustre Defensor em alegações finais) não são suficientes para pôr em causa a veracidade do ocorrido, sendo normal que haja diferença entre relatos feitos em momentos diferentes: estranho seria se fossem totalmente coincidentes fossem plenamente alinhados e “fotocópias” uns dos outros.

Isso, sim, seria motivo para duvidar da credibilidade do declarado.

Cabe realçar que a convocação para julgamento não teve em vista obter novas e globais declarações, mas apenas tentar clarificar alguns aspectos pontuais, como se fez, mais concretamente com a menor BB.

A posição assumida pelo arguido e pelas testemunhas EE e FF, não se mostra capaz de abalar as declarações prestadas por ambas as menores. Pretendendo convencer o Tribunal de que tudo não passou de uma invenção das menores, apontando-se à menor CC como figura principal, não se mostra de todo credível nem convincente. O facto de a menor CC ser uma menina rebelde que “gostava mais de estar com os rapazes do que ir à escola” é típico da idade que tinha à data dos factos, uma adolescente que começa a interessar-se por conhecer outras realidades, já não sendo a menina que só brinca com bonecas. Daqui não se pode concluir que o relato que a mesma fez é falso e combinado só pela razão de o arguido não satisfazer o pretendido pelas menores.

Depois de se ouvirem estas em audiência de julgamento, o Tribunal não teve qualquer dúvida de que o que estas relataram é verdade recordando-se a forma emotiva e magoada como falaram, sendo patente que ainda sofrem com o sucedido, não se vislumbrando qualquer tentativa de ludibriar o Tribunal, realçando-se aqui a importância que teve o princípio da imediação.

Atendeu-se ainda à seguinte prova documental:

- Auto de Notícia, de fls. 4 e 5.

- Relatório da perícia de natureza sexual em direito penal, de fls. 52 a 54.

Relativamente às condições de vida do arguido teve-se em conta o relatório elaborado pela DGRSP.

Quanto à inexistência de condenações sofridas pelo arguido teve em conta o certificado de registo criminal do arguido junto aos autos.


***

Quanto aos factos dados como não provados os mesmos foram assim considerados em face das declarações prestadas pelas ofendidas que prestaram declarações em sentido inverso e também por inexistência de prova suficiente que permitisse concluir de forma contrária ao que foi dado como provado.

(…)

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.

No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:

- Rectificação do dispositivo do acórdão;

- Se o acórdão recorrido violou o princípio da livre apreciação da prova previsto no artº 127º do CPP.

- Se o acórdão recorrido violou o princípio in dubio pro reo;

- Se a condição da suspensão da execução da pena viola os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, e o disposto nos artigos 40.º, 50.º e 51.º, nº 2 do Código Penal, assim como o artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa;


*

II - FUNDAMENTAÇÃO:

1ª questão

Alega o recorrente a existência de lapsos e ambiguidade no dispositivo do acórdão, relativo ao nome do arguido, numeração e repetição de alíneas, e quanto ao cúmulo jurídico das penas acessórias.

Tem na verdade razão o recorrente o recorrente quanto aos lapsos apontados. Porém como responde o MP, tais lapsos foram já corrigidos por despacho de 9/10/2023, o qual deverá de ora avante acompanhar todas as certidões do acórdão. Como tal encontra-se prejudicada a rectificação impetrada.

2ª Questão

O recorrente alega que a decisão do acórdão violou o princípio da livre apreciação da prova previsto no artº 127º do CPP.

Contudo não procede à impugnação da matéria de facto, não dando cumprimento a nenhuma das imposições do artº 412º nº2 e 4 do CPP, seja por não indicar os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, seja por não indicar as provas que imporiam uma diferente convicção.

Na verdade, e com o devido respeito, o recorrente limita-se a fazer uma apreciação critica à credibilidade atribuída pelo tribunal às declarações das menores, em detrimento das declarações do arguido e das testemunhas que indica, baseado na própria leitura que faz das provas, sem demostrar a existência de qualquer erro de julgamento, erro de raciocínio ou violação de regra da experiência.

Esquece o recorrente, que o tribunal no uso do princípio da investigação da verdade material, não obstante as menores terem prestado declarações para memória futura, determinou a sua audição em audiência nos termos do artº 271ºnº8 do CPP, beneficiando do princípio da imediação em toda a sua plenitude.

Invoca o recorrente a violação do artº 127 do CPP no qual se dispõe, “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

Na verdade, contra a livre convicção do julgador, desde que não colida com provas proibidas ou com as regras da experiência, de nada vale a convicção de terceiros.

É certo, que como escreve Maia Gonçalves em anotação ao artº 127º do CPP «a livre convicção da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova», pois que «a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica». Código de Processo Penal, pág. 354, 17ª edição Almedina.

E, por isso mesmo é que o legislador processual consagrou no artigo 374º nº2 do CPP, a obrigatoriedade de uma concreta fundamentação fáctica da sentença/acórdão, de modo a alcançar-se um efectivo controlo da sua motivação.

Lida a motivação fáctica do acórdão recorrido, verifica-se que na mesma está bem evidenciado o percurso lógico que esteve subjacente à motivação da convicção do tribunal, que apreciou a conjugação de todas as provas produzidas, não se detectando qualquer violação ao princípio da livre apreciação da prova contido no artº 127º do CPP ou valoração de provas proibidas, improcedendo pois esta questão.

Por outro lado, o recorrente não invoca a verificação de algum dos vícios do artº 410º nº2 do CPP, os quais sendo de conhecimento oficioso, conforme jurisprudência fixada pelo STJ no ac. de 19/10/95, publicado no DR- 1ª Série de 28/12/95, também não são por nós detectados no texto da decisão recorrida.

A violação do princípio in dubio pro reo

O princípio in dubio pro reo, como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. Afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal.-cfr. Figueiredo Dias- Dtº Processual Penal, pág 213.

Daí que a violação deste princípio só ocorra quando resulta da decisão que o tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto e, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido. Ora, a decisão impugnada não revela, em momento algum, que o tribunal recorrido tenha ficado na dúvida em relação a qualquer facto dado como provado. Com o que não tem fundamento invocar a violação de tal princípio [nesse sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-07-2008, Processo n.º 1787/08 - 5.ª Secção (Cons. Souto Moura): I - A invocação do princípio in dubio pro reo só tem razão de ser se, depois do tribunal a quo reconhecer ter caído num estado de dúvida, contornasse um non liquet decidindo-se, sem mais, no sentido mais desfavorável para o arguido. Mas já não assim se, depois de ultrapassadas as dúvidas que o pudessem ter assaltado, perfilhasse uma determinada convicção e decidisse coerentemente – in Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - Secções Criminais, http://www.stj.pt acedido em Janeiro de 2009].

Como tal, não relevam as dúvidas suscitadas pelo recorrente no recurso, com base na leitura pessoal que faz das provas, é antes necessário que demonstre a sua efectiva e concreta existência no texto da decisão recorrida, não sendo função do tribunal superior dar resposta a todas as dúvidas e hipóteses que os recorrentes coloquem, mas sim verificar se o percurso cognitivo seguido na sentença, expressa os motivos da decisão e não tem distorções lógicas ou violadoras das regras da experiência comum .

Como se escreveu no ac. do STJ  de 5/7/2007, “ Na verdade o princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos, mas é antes uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido m obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.”[1]  (negrito nosso).

Improcede pois esta questão.

Assim e mantendo-se inalterada a matéria de facto, a qual permite a integração jurídica efectuada no acórdão, a qual aliás o arguido não questiona, naturalmente improcede o pedido de absolvição do arguido pelos crimes pelos quais foi condenado, uma vez que tal pedido era sustentado na alteração da matéria de facto.

4ª questão

a condição da suspensão da execução da pena.

O recorrente alega que “a condição de suspensão da execução da pena única de 4 (quatro) meses e 4 (quatro) meses de prisão aplicada ao recorrente, nomeadamente pagar a BB a quantia indemnizatória de €3.500,00 (três mil e quinhentos euros) – sendo devidos €405,00 (quatrocentos e cinco euros) a cada seis meses, e nos últimos quatro meses a quantia de €260,00 (duzentos e sessenta euros) –, e de pagar a CC a quantia indemnizatória €6.000,00 (seis mil euros) – sendo €700,00 (setecentos euros) a cada seis meses e nos últimos quatro meses a quantia de €400,00  (quatrocentos euros) não passa de uma pena de prisão efectiva disfarçada, ferindo de morte os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.”

Invoca para tal que tal condição é de “cumprimento impossível” porquanto “o recorrente é um doente transplantado, que necessita de supervisão médica e terapêutica vitaliciamente, vive em casa de uma filha, aufere uma pensão de invalidez no valor diminuto de €330,00, acumulada com ajudas sociais e com algum dinheiro que o recorrente possa eventualmente receber em “biscates”, o que só por si é bastante incerto. No limite, nem sequer tem bens imóveis que possa vender para poder pagar as indemnizações em que foi condenado.”

Conclui que face a tal “impossibilidade de cumprimento”, a condição imposta “é nula”.

Contrapõe o Ministério Público que: o acórdão recorrido “na fixação do quantitativo pecuniário atendeu o Tribunal, para além do mais, à natureza dos crimes pelos quais vinha o arguido acusado (um dos quais praticado contra a sua própria filha, criança com apenas 9 anos à data dos factos), ao grau de culpa do agente, às exigências de prevenção geral decorrentes do caso concreto (nomeadamente da natureza do crime em apreço), mas também às especificidades do próprio arguido quanto à sua situação sócio-económica sendo tal preocupação facilmente perceptível do respectivo texto.”

O acórdão recorrido sujeitou a suspensão da execução da pena ao pagamento de quantias indemnizatórias às menores, com a seguinte fundamentação:

No caso presente, pese embora a repulsa social por este tipo de condutas, com a inerente censura dirigida aos seus autores, importa ter em conta que o arguido não tem passado criminal, estando integrado social e familiarmente, executando ainda trabalhos na sua área, apesar de reformado, já contando com 63 anos de idade, pelo que se determina a suspensão da execução dessa pena de prisão, cujo período de duração se considera ajustado fixar em 4 anos e 4 meses, a contar do trânsito em julgado (art. 50.º, n.ºs 1 e 5, do C. Penal).

Porém, tal suspensão da pena é acompanhada necessariamente, atenta a sua duração, de regime de prova, executado com vigilância e apoio da Direção Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais, com vista à sua recuperação e integração, mediante plano a elaborar por essa entidade, que deverá incluir a frequência do programa dirigido a Agressores Sexuais e de Reabilitação e Prevenção da Reincidência, e a homologar pelo Tribunal, nos termos dos artigos 50.º, n.º 2, 53.º e 54.º do Código Penal.

Por outro lado, tendo em conta o tipo de ilícito, sempre marcante para as vítimas, considera-se que a suspensão deve ser sujeita a uma outra condição, não só com vista a reforçar o efeito punitivo, mas também no intuito de contribuir para a reparação do mal do crime, atenuando o sofrimento das menores BB e CC.

Com efeito, dispõe o n.º 2 desse artigo 50.º do C. Penal que “O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta”.

Um desses deveres a que pode ser subordinada a suspensão da execução da pena de prisão consiste em “Pagar, dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado …” (art. 51.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código).

VI – Indemnização:

Cumpre atribuir às ofendidas BB e CC uma indemnização, em obediência ao disposto no artigo 82.º-A do CPP e 16.º, n.º 2, do Estatuto da Vítima (aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 04-09), o que é regulado pela lei civil (art. 129.º do C. Penal).

Nos termos do artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

De acordo com esta norma, a obrigação de indemnizar imposta ao lesante depende da verificação de vários pressupostos, sendo eles: o facto voluntário do agente; a ilicitude; a imputação de facto ao lesante; o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume I, pág. 495).

Desde logo, dispõe o artigo 70.º, n.º 1, do Código Civil que “a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa à sua personalidade física ou moral”. Este preceito, que consagra uma verdadeira tutela geral da personalidade, protege uma multiplicidade de direitos pessoais, onde se inclui, necessariamente, o direito à liberdade e autodeterminação sexual.

De entre os danos indemnizáveis contam-se os de natureza não patrimonial sempre que, “pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”, conforme resulta do artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, dispondo o n.º 3 deste preceito que o montante da indemnização será “fixado equitativamente pelo Tribunal”.

Trata-se, neste caso, não de uma reparação ou reconstituição natural, como sugere o artigo 562.º do referido Código, mas antes de uma compensação pela dor, sofrimento ou transtornos causados ao lesado, uma vez que se torna impossível repor a situação no estado anterior à lesão. Na fixação do quantitativo pecuniário devem considerar-se, entre outros factores, o grau de culpabilidade do responsável, a sua situação económica e a do lesado e as flutuações do valor da moeda, devendo o montante ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta os valores normalmente encontrados para situações similares e a justa medida das coisas.

Nesta situação é manifesto, à luz dos mencionados preceitos, que sobre o arguido AA recai a obrigação de indemnizar pelos danos não patrimoniais que causou às menores BB e CC, em virtude dos actos de natureza sexual a que a sujeitou, integradores dos ilícitos acima imputados (que sustentam a responsabilidade criminal).

Com efeito, ainda que não tenham sido alegados factos a sustentar um pedido indemnizatório, é um facto notório que a sujeição de uma pessoa a esse tipo de atos provoca, necessariamente, na mesma, sofrimento e perturbações de ordem psicológica, embora variando de caso para caso, em função da gravidade da situação e da sua sensibilidade, sendo que neste caso há que realçar os actos praticados pelo arguido na pessoa da menor BB, sua filha, com apenas 9 anos de idade e que na altura tinha à sua guarda.

É sabido que a indemnização não pagará nunca a dor e o sofrimento, pois que não são avaliáveis monetariamente, mas, pelo menos, contribuirá para a sua atenuação, pois que, com a mesma, poderá satisfazer alguma necessidade ou desejo que de outra forma não conseguiria concretizar.

Como tem sido assinalado de forma constante na jurisprudência, a indemnização por danos não patrimoniais, se nunca poderá constituir um enriquecimento sem causa, também não pode ser meramente simbólica ou miserabilista, devendo fixar-se em montante que tendencialmente viabilize o fim a que se destina.

Sopesando em conjunto a natureza e a gravidade dos danos sofridos pela vítima, a capacidade económica do demandado e da demandante e os valores habitualmente fixados pela jurisprudência em situações semelhantes, consideramos justo e equitativo fixar as seguintes indemnizações:

Fixar a indemnização devida a menor BB no montante de €.: 3.500,00 (três mil e quinhentos euros).

Relativamente à menor CC o Tribunal fixou-lhe a indemnização de €.: 6.000,00 (seis mil euros).

Tais quantias, que totalizam €.: 9.500,00, deverão ser pagas nos seguintes moldes:

Relativamente à menor BB o arguido terá de €.: 405,00 (quatrocentos e cinco euros) a cada seis meses, sendo que nos últimos quatro meses pagará a quantia de €.: 260,00 (duzentos e sessenta euros), devendo comprovar nos autos os pagamentos efectuados;

Quanto à menor CC a quantia indemnizatória de €.:6.000,00 (seis mil euros), após o trânsito em julgado, serão pagos €.: 700,00 (setecentos euros) a cada seis meses sendo que nos últimos quatro meses pagará a quantia de €.: 400,00 (quatrocentos euros), devendo comprovar nos autos os pagamentos efectuados

Caso o arguido não cumpra as obrigações impostas ou venha a cometer algum crime nesse período, poderá ser revogada a suspensão e determinado o cumprimento de tal pena (art. 56.º do C. Penal).

Ora desta fundamentação emerge, com o devido respeito, a confusão entre os institutos da suspensão da execução da pena subordinada a deveres, previsto no s artº 50º e 51  nº1 a) do CP, com o arbitramento de indemnização nos termos do artº 82º A do CPP.

O arbitramento da indemnização encontra-se regulado no artº 82º A do CP no qual se dispõe:

1- Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.

2 - No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.

3 - A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização.…”

Sendo que da conjugação do disposto nos artsº 1º al.al.j) e 67º nº3   do CPP as ofendidas destes autos têm o estatuto de vítimas especialmente vulneráveis, sendo obrigatório a atribuição de uma indemnização nos termos do artº 16º nº2 da Lei 130/2015 de 4 de Setembro, conjugado com o artº 82ºA do CPP.

Pretende-se através destas normas assegurar o direito à reparação dos danos sofridos pela vítima que se encontre numa situação de especial vulnerabilidade.

Já os arts 50º e 51º do CP, respeitam à pena de substituição da suspensão da execução da pena sujeita a condição, presidindo à sua aplicação as finalidades relativas aos fins das penas, que nos termos do artº 40º do CP são «a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade». Como escreve o Prof. Figueiredo Dias a finalidade político criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é “o afastamento do delinquente no futuro, da prática de novos crimes”, em última análise traduzida na “prevenção da reincidência”[2].

Como se considerou no acórdão desta Relação de 21/3/2013 “São as finalidades da pena, não os interesses de reparação do ofendido e demandante civil, que, neste aspecto, devem prevalecer.”[3]

Feitos estes considerandos, constata-se que a decisão recorrida depois de afirmar na fundamentação a obrigatoriedade de arbitramento de indemnização nos termos do artº 82º A, e de ter fixado os montantes respectivos, em sede de decisão apenas inclui tal obrigação como um dever inserido na condição imposta para a suspensão, o que faz incorrer a decisão nesta parte na nulidade prevista no artº 379º nº1 al.a) do CPP por não conter na decisão condenatória o dispositivo da condenação na indemnização arbitrada.

Uma vez que o recorrente não contesta o valor da indemnização arbitrada de acordo com os critérios dos arts 483º, 496º e 562º do CC, tendo oportunamente sido notificado para exercer o contraditório nos termos do artº 82º-A nº2 do CPP este tribunal de recurso pode conhecer e suprir/sanar tal nulidade nos termos do artº 379º nº2 do CPP, condenando o arguido nos termos dos artºs 16º nº2 da Lei 130/2015 de e 82ª do CPP no pagamento a título de arbitramento de uma indemnização, à menor a BB, no montante de €.:3.500,00 (três mil e quinhentos euros), €), e à menor CC  no montante de€.:6.000,00 (seis mil euros)  acrescidas de juros de mora a contar desta decisão até efetivo e integral pagamento.

Aquilo que o recorrente questiona no recurso é antes, o montante da indemnização fixados, enquanto condição da suspensão nos termos do disposto no artº 51º nº1 ala) do CP.

Vejamos …

Nos termos do artº 51º nº 1 do CP,« - A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente:

a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea;».

Dispõe-se no nº2 do citado artº 51º do CP que “Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.”. Como refere o Prof. Germanos Marques da Silva “Trata-se da consagração do principio da razoabilidade a que tem de obedecer a imposição de deveres”. [4]

Por outro lado e como já supra se prevalecem aqui em causa finalidades da pena e não os interesses do ofendido na indemnização.

 Também o Professor Figueiredo Dias, a propósito dos deveres impostos “ Quanto à exigibilidade de que, em concreto, devem revestir-se os deveres e regras de conduta, o critério essencial é o de que eles têm de encontrar-se numa relação estrita de adequação e de proporcionalidade com os fins preventivos almejados. [5]

Dito isto, tendo o acórdão recorrido imposto como dever ao arguido, de pagar a quantia de 3.500,00 € (três mil e quinhentos euros) à menor BB, fixando o pagamento de €.: 405,00 (quatrocentos e cinco euros) a cada seis meses, sendo que nos últimos quatro meses pagará a quantia de €.: 260,00 (duzentos e sessenta euros), a quantia  €.:6.000,00 (seis mil euros), à menor CC, ser pagos €.: 700,00 (setecentos euros) a cada seis meses sendo que nos últimos quatro meses pagará a quantia de €.: 400,00 (quatrocentos euros), comprovando nos autos os pagamentos efectuados, o recorrente alega a impossibilidade do cumprimento, e que tal condição é uma pena de prisão efectiva disfarçada.

Quanto a esta última alegação, afigura-se ser manifesta a falta de razão do recorrente, uma vez que o não cumprimento da obrigação não determina a revogação automática da suspensão da execução da pena, antes estando sempre dependente nos termos do atº 55º e 56º do CP, de a falta do pagamento ser culposa, não tendo pois, e com o devido respeito, qualquer sentido a invocação da violação do disposto no artº 27º da CRP.

Também não se enxerga, em que norma jurídica o recorrente fundamenta a alegação de que a condição imposta “é nula”, inexistindo norma que comine como nulidade a alegada desproporcionalidade do montante da indemnização fixada pelo tribunal.

Dito isto, resulta da matéria de facto que;

“-  Em 2013 foi sujeito a transplante renal do rim (doado pela filha mais velha), com posterior supervisão médica e terapêutica adequada …”

.(…) o arguido regressou e mantém residência, na morada de família, propriedade de uma das filhas do anterior casamento(…)

. A subsistência do arguido está assegurada pela pensão de invalidez (€.330,00) de que é beneficiário, apoio social/cabaz de alimentos da ... – Sociedade de ... e retaguarda familiar;”

Antes de mais, há que diferenciar que uma coisa são os rendimentos auferidos pelo condenado, e outra é a sua situação económica e financeira que abrange toda uma situação de facto económica de que aquele aufere, sendo a esta que se deve atender para efeitos de avaliar a adequação e razoabilidade da condição imposta, a qual é ainda uma sanção e tem inerente algum sacrifício para o condenado desde que não seja desproporcionado, com vista à realização das finalidades das penas.

Tendo presentes os mencionados princípios da adequação e proporcionalidade que devem presidir à fixação da condição, e face ao que se apurou da situação económica do arguido, designadamente o valor auferido mensalmente, considera-se adequado o dever de, após o trânsito em julgado desta decisão:

 .pagar 2500 € (dois mil e quinhentos euros) do valor da indemnização fixado à menor BB, procedendo ao pagamento de 300€ (trezentos euros) a cada seis meses, sendo que nos últimos quatro meses pagará a quantia de 100 €( cem euros), devendo comprovar nos autos os pagamentos efectuados;

.pagar €.:3.500,00 (três mil e quinhentos euros), do valor da indemnização fixado à menor CC, procedendo ao pagamento de €.: 405,00 (quatrocentos e cinco euros) a cada seis meses, sendo que nos últimos quatro meses pagará a quantia de €.: 260,00 (duzentos e sessenta euros), devendo comprovar nos autos os pagamentos efectuados.   


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III – DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em:

Sem prejuízo do supra referido quanto às rectificações operadas por despacho de 9/10/2023 que deverão ser anotadas no dispositivo acórdão, sanar nos termos do artº 379º nº2do CPP a omissão do acórdão recorrido, e

Condenar o arguido AA, nos termos dos artºs 16º nº2 da Lei 130/2015 de e 82ºA do CPP, no pagamento a título de arbitramento de uma indemnização, à menor BB, no montante de 3.500,00 € (três mil e quinhentos euros),  e à menor CC no montante de 6.000,00€  (seis mil euros) acrescidas de juros de mora legais a contar do trânsito desta decisão, até efectivo e integral pagamento.

No parcial provimento do recurso, alterar a decisão recorrida quanto à condição de indemnização das ofendidas, e suspender a execução da pena de prisão 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses aplicada, por igual período, sob a condição de o mesmo, nos termos do artº 51º nº1 al.a) do CP durante esse período e após o trânsito desta decisão, pagar:

 - 2500 € (dois mil e quinhentos euros) do valor da indemnização fixado à menor BB, procedendo ao pagamento de 300€ (trezentos euros) a cada seis meses, sendo que nos últimos quatro meses pagará a quantia de 100 € (cem euros), devendo comprovar nos autos os pagamentos efectuados;

- pagar 3.500,00 € (três mil e quinhentos euros), do valor da indemnização fixado à menor CC, procedendo ao pagamento de 405,00 € (quatrocentos e cinco euros) a cada seis meses, sendo que nos últimos quatro meses pagará a quantia de 260,00€ (duzentos e sessenta euros), devendo comprovar nos autos os pagamentos efectuados.

No mais confirmar a decisão recorrida.

Sem tributação


Elaborado e revisto pela relatora

 


Porto, 20/3/2024
Lígia Figueiredo
Paula Guerreiro
Nuno Pires Salpico

__________________
[1] Ac.STJ de 5/7/2007 proferido no proc. 07P2279 (relator conselheiro Simas Santos).
[2] Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime,  pág. 343.
[3] Ac. Rel. Porto de 21/3/2013 proferido no proc. 506/10.3TAMCN.P1 (relator Pedro Vaz Pato).
[4] Direito Penal Português, Parte Geral III, Teoria das penas e medidas de segurança, 1999, Editorial Verbo,.pág. 208. Mais escrevendo “O juiz deve pois averiguar da possibilidade de cumprir do dever imposto, ainda que, posteriormente, em caso de incumprimento, deva apreciar da alteração das circunstâncias que determinaram a impossibilidade, para efeitos de decisão sobre a falta de cumprimento.”
[5] Ob. Cit. Pág. 351.