SENTENÇA DE TRIBUNAL ARBITRAL
ANULAÇÃO
SECTOR ENERGÉTICO
COMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO
TARIFA SOCIAL
FINANCIAMENTO
INCONSTITUCIONALIDADE
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
Sumário

I - Nos termos do estatuído no artigo 212º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa e no artigo 1º, n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais o factor atributivo da competência aos tribunais administrativos radica na existência de uma relação jurídica administrativa, que pressupõe sempre a intervenção da Administração Pública investida no seu poder de autoridade (jus imperium), isto é, o exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público.
II – A confluência e interpenetração do direito administrativo e do direito privado na regulação de uma mesma relação jurídica e a abrangência da norma da segunda parte da alínea e) do n.º 1 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que alarga a jurisdição administrativa a contratos submetidos a regras de contratação pública exigem a distinção entre contratos administrativa e civilisticamente regulados para efeito de determinação do tribunal competente.
III – Para a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de contratos há que atender ao disposto no Código dos Contratos Públicos, que integra na esfera dos tribunais administrativos litígios atinentes a matéria contratual reportada a certo tipo de contratos, entre eles, contratos que, independentemente da sua designação e natureza, são celebrados pelas entidades adjudicantes ali identificadas e cujo procedimento de formação está sujeito a um regime de direito público e todos os contratos submetidos a regras pré-contratuais públicas, independentemente da natureza das prestações que possam ter por objecto.
IV - Os tribunais arbitrais exercem a função jurisdicional, julgando litígios, sendo a sentença arbitral equiparada à sentença de um tribunal estadual. Porém, as partes dispõem de uma ampla liberdade na conformação do procedimento a seguir, podendo estipular cláusulas escalonadas, isto é, de submissão do litígio a formas consensuais de resolução antes da arbitragem, caso em que as decisões proferidas, designadamente, por representantes das partes ou técnicos, anteriores a esta, não possuem natureza jurisdicional.
V – Não tendo as partes determinado que os árbitros julguem o litígio segundo a equidade, devem estes fazê-lo segundo o Direito constituído, nos termos do artigo 39º, n.º 1 da Lei da Arbitragem Voluntária, o que significa decidir de acordo com os parâmetros jurídico-científicos e com base no Direito substantivo estrito (civil, comercial ou administrativo), por oposição à equidade.
VI – Tendo o tribunal arbitral resolvido as questões que lhe foram colocadas baseando-se no texto do Contrato de Aquisição de Energia celebrado entre as partes, aplicando e interpretando as cláusulas nele vertidas e delas retirando as consequências que entendeu adequadas, tal não significa que se tenha abstraído do Direito constituído, designadamente das normas de Direito público e das decisões e actos administrativos praticados pela entidade reguladora do sector eléctrico, apenas sucedendo que, tendo-os ponderado, lhes retirou a relevância para a solução do litígio que as autoras lhe pretendiam conferir, o que não equivale a uma decisão com base na equidade.
VII – O contrato, devendo ser pontualmente cumprido, nos termos do artigo 406º, n.º 1 do Código Civil, vale como lei entre as contraentes, pelo que tendo o tribunal arbitral decidido com base naquilo que foi estabelecido pelas partes observou o princípio da força vinculativa dos contratos e, por via disso, conformou-se com o que resulta da lei positiva.
VIII – A doutrina tem interpretado a referência a ordem pública internacional constante do artigo 46º, n.º 3, b), ii) da Lei da Arbitragem Voluntária para efeitos de sindicância da validade de decisões arbitrais proferidas em arbitragens internas de modo distinto da ordem pública internacional convocada para análise de decisões em arbitragens internacionais, designadamente, António Menezes Cordeiro, aponta para o conceito de ordem pública “internacional-interna”, que, para além de todos os elementos integrantes da ordem pública internacional, abrange ainda os princípios totalmente injuntivos, ou seja, aqueles que se impõem e que não podem ser postergados pelo recurso a árbitros, cujas decisões não podem ser contrárias a dados básicos do sistema e António Sampaio Caramelo alude ao conceito de ordem pública internacional de direito material, com um conteúdo mais restrito do que a “ordem pública interna”, mas que tanto pode corresponder à “ordem pública interna” como à “ordem pública internacional”, dependendo da natureza da relação litigiosa e do direito material seleccionado para a reger.
IX - A decisão arbitral apenas deve ser anulada por ofensa à ordem pública internacional quando conduza a um resultado intolerável e inassimilável pela nossa comunidade, por constituir uma grosseira violação do sentimento ético-jurídico dominante e dos interesses de primeira grandeza ou de princípios estruturantes da nossa ordem jurídica, não podendo o tribunal abstrair-se totalmente da respectiva fundamentação.
X – A criação do mercado eléctrico europeu e a política energética europeia visam assegurar o abastecimento a preços competitivos, o cumprimento das metas ambientais e da política do clima e o aumento da eficiência energética, com vista ao desenvolvimento da sociedade europeia, exigindo, porém, que as entidades reguladoras do sector tomem as medidas adequadas para assegurar, simultaneamente, uma concorrência efectiva necessária ao correcto funcionamento do mercado interno da electricidade e benefícios ao consumidor e de protecção dos clientes economicamente vulneráveis, mediante a imposição às empresas do sector da electricidade, no interesse económico geral, de obrigações de serviço público.
XI – A tarifa social de fornecimento de energia eléctrica a aplicar a clientes finais economicamente vulneráveis constitui uma dessas obrigações, consistindo na aplicação de um desconto na tarifa de acesso às redes em baixa tensão normal, cujo valor é determinado pela entidade reguladora dos serviços energéticos e o respectivo financiamento é suportado pelos titulares de centros electroprodutores em regime ordinário, na proporção da potência instalada de cada centro electroprodutor.
XII – A contribuição financeira em que se traduz o mecanismo de financiamento do custo da tarifa social, distingue-se desta, ou seja, da redução do preço da energia eléctrica fornecida a consumidores vulneráveis, ainda que lhe esteja indissocialvelmente ligada e não afecta de forma autónoma os preços da electricidade.
XIII – Por essa razão, a aplicação da Cláusula 20.ª do Contrato de Aquisição de Energia e a alteração do cálculo do encargo de potência instalada, com vista a contemplar os custos incorridos pela Tejo Energia com o financiamento da tarifa social, não têm a susceptibilidade de afectar a obrigação de serviço público em que se traduz a tarifa social.
XIV – Ainda que assim não fosse e apesar de estar em causa um comando imperativo, emanado de norma da União Europeia e concretizado pelo legislador nacional, a imposição dessa obrigação não encontra acolhimento constitucional, o que indicia que não integra a ordem jurídica internacional do Estado português. A sua eventual violação pela decisão arbitral seria contra legem, mas não determinaria a anulação desta por violação de um princípio de ordem pública internacional do Estado Português.
XV - O princípio pacta sunt servanda integra os princípios de ordem pública internacional do Estado português, sendo um princípio geral comum aos Estados, quer em Direito privado, quer em Direito público, tendo valor consuetudinário universal.
XVI – A interpretação e aplicação de uma cláusula contratual, ainda que errada, não consubstancia uma violação do princípio pacta sunt servanda, pois que se trata ainda da aplicação do contrato em causa.
XVII - A dignidade constitucional da tutela e garantia dos direitos dos consumidores e o Direito da União Europeia nessa matéria apontam para a sua natureza de princípios da ordem pública internacional do Estado português.
XVIII – As regras em matéria de Direito da Concorrência visam um ambiente de paz, harmonia e equilíbrio na Europa, incentivando a iniciativa privada e a economia de mercado, com uma concorrência leal e equilibrada e disciplinam as práticas das empresas que sejam susceptíveis de afectar o comércio entre os Estados-Membros. Não existindo, no caso, projecção de efeitos para além das fronteiras nacionais e não estando em causa actos de comércio entre agentes de dois ou mais Estados-Membros ou qualquer elemento de conexão objectiva de carácter transfronteiriço relativo à relação jurídica em discussão, a afectação do direito da concorrência europeu não se coloca.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
REN – REDE ELÉCTRICA NACIONAL, S. A.[1], com sede na Avenida …, Lisboa e REN TRADING. S. A.[2], com sede na Praça …, Lisboa intentaram a presente acção especial de anulação de decisão arbitral contra TEJO ENERGIA – PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA ELÉCTRICA, S.A.[3], com sede na Central Termoeléctrica do Pego, …, Pego formulando o pedido de anulação da sentença arbitral de 7 de Março de 2023, proferida no âmbito do procedimento arbitral que correu termos entre elas e em que foi demandante a Tejo Energia, arbitragem CCI n.º 24371/JPA/AJP.
Invocam para o efeito três fundamentos principais:
a) Falta de pronúncia sobre questões que devia apreciar (subdividido em dois pontos);
b) Falta de conformidade do processo arbitral com a convenção das partes e com a Lei de Arbitragem Voluntária - Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro[4] (subdividido em duas outras questões, a segunda com diversos pontos a apreciar);
c) Ofensa dos princípios da ordem pública internacional do Estado Português (subdividido em cinco novos pontos).
E apresentam os seguintes argumentos:
Introdução
- A arbitragem foi iniciada ao abrigo da convenção de arbitragem contida num Contrato de Aquisição de Energia[5], celebrado em 1993, de que as autoras e a ré eram partes à data do surgimento do litígio, que incide sobre a tarifa social de fornecimento de energia eléctrica, criada pelo Decreto-Lei n.º 138-A/2010, de 28 de Dezembro[6], que consiste num desconto a ser aplicado na factura de electricidade dos clientes finais economicamente vulneráveis, cujo financiamento foi imposto à ré, de cujos custos pretende ser reembolsada, ao abrigo da Cláusula 20ª do CAE, por considerar que tais custos configuram um “Imposto Relevante”, tal como ali definido, do que as autoras discordam;
- A ré deu início ao mecanismo geral de resolução de litígios previsto no CAE, ao abrigo do qual começou por peticionar a um painel financeiro constituído ao abrigo do CAE, o reconhecimento do seu direito ao referido reembolso, que lhe foi negado, apesar de o painel financeiro ter entendido, embora apenas por maioria, que tais custos configurariam um “Imposto Relevante”, tal como definido no CAE;
- Posteriormente, a ré pediu perante o Tribunal Arbitral, não o reembolso directo, mas o direito a uma alteração ao CAE, de modo a ser compensada pelos custos do financiamento da Tarifa Social que lhe foi imposto por lei;
- O Tribunal Arbitral decidiu que aqueles custos constituem um “Imposto Relevante”, reconhecendo à ré o direito a obter a alteração do CAE de modo a, no possível, ser colocada na situação financeira em que se encontrava antes de lhe ter sido imposto o financiamento da Tarifa Social, tendo ainda ordenado às autoras a observância de determinados procedimentos contratuais previstos no CAE relacionados com a referida alteração;
- A Cláusula 26ª do CAE prescreve uma regra geral e genérica aplicável à resolução de litígios relacionados com o CAE, devendo o litígio ser previamente submetido a um Painel, com peritos independentes (mas não árbitros), cuja decisão unânime será final e vinculativa, até que o litígio seja objecto de transacção ou submetido a arbitragem;
- Se uma das partes pretender contestar uma decisão do Painel que não tenha reunido consenso ou caso não tenham sido observadas as regras aplicáveis ao procedimento, a parte deverá submeter o litígio a um procedimento de resolução amigável para obtenção de uma resolução conjunta e unânime;
- Se as partes não lograrem resolver o litígio de forma amigável, qualquer delas poderá submetê-lo a arbitragem para resolução definitiva, de acordo com o Parágrafo 12 da Parte I do Apêndice 9;
- Prevêem-se ainda procedimentos específicos para resolução de litígios específicos, de que é exemplo o procedimento previsto na Cláusula 20ª e no Apêndice 11 do CAE;
- A Cláusula 20.1, alínea a), do CAE estabelece que se, após a data de 27 de Novembro de 1992, o Produtor – isto é, a ré – ficar obrigado a pagar Impostos Relevantes, tal como contratualmente definidos, e desde que o efeito de tal alteração seja material (nos termos definidos no Apêndice 11), serão aplicáveis as Cláusulas 20.2 a 20.5.;
- A Cláusula 20.2.1. determina que, nas situações antes referidas, uma notificação deve ser enviada pelo Produtor (a ré), após o que um de dois procedimentos poderá ser seguido: (i) nos casos previstos na Cláusula 20.3 do CAE, o Produtor (a ré) tem o direito de repassar automaticamente os custos associados ao Imposto Relevante para a autora REN Trading; (ii) em todas as outras situações, o Produtor (a ré) tem apenas o direito a recorrer ao mecanismo previsto na Cláusula 20.4.1, nos termos do qual poderá solicitar a alteração do cálculo do Encargo de Potência Instalada e/ou do Encargo de Energia Produzida (isto é a alteração do CAE), “de acordo com os procedimentos e princípios previstos no Parágrafo 10 do Apêndice 11 na medida necessária para garantir, tanto quanto possível, que o Produtor esteja na mesma posição financeira sob o presente Contrato que estaria se a Alteração ao Imposto Relevante não tivesse ocorrido”;
- Nos termos do Parágrafo 10 do Apêndice 11 do CAE, as Partes deverão acordar na alteração ao cálculo do Encargo de Potência Instalada e/ou do Encargo de Energia Produzida e, caso tal acordo não seja possível, será a questão submetida a um painel que, de forma final e definitiva, independentemente de ser a decisão tomada por unanimidade ou por maioria, poderá apenas e tão-só escolher entre as duas propostas de alteração do CAE;
- Nos termos da sua Cláusula 25ª, o CAE “será interpretado e executado de acordo com as leis de Portugal”, devendo assim quaisquer litígios entre as Partes relacionados com o CAE ser dirimidos à luz do Direito português;
- O financiamento da Tarifa Social criada no quadro de liberalização do sector energético e protecção aos consumidores economicamente vulneráveis seria “assegurado pelos titulares de centros electroprodutores em regime ordinário, nomeadamente os beneficiários de incentivos relacionados com a garantia de potência, nos termos da Portaria n.º 765/2010, de 20 de Agosto, publicada ao abrigo do artigo 33.º-A do Decreto-Lei n.º 172/2006, de 23 de Agosto, alterado pelo Decreto-Lei n.º 264/2007, de 24 de Julho”;
- A Portaria n.º 765/2010 estabeleceu o regime dos serviços de garantia de potência que os centros electroprodutores em regime ordinário podem prestar ao Sector Eléctrico Nacional, especificando os respectivos termos e condições, através de duas modalidades: o serviço de disponibilidade e o incentivo ao investimento;
- O serviço de disponibilidade consiste na colocação à disposição da entidade responsável pela gestão técnica da Rede Nacional de Transporte de Electricidade (operador do sistema ou “ORT”) de determinada capacidade de produção de um centro electroprodutor em regime ordinário, num horizonte temporal predeterminado, remunerado em função de um montante máximo anual fixado por despacho do membro do Governo com a tutela da área de energia, aplicável apenas aos centros electroprodutores relativamente aos quais se mantivesse um contrato de aquisição de energia, entre os quais figura o centro electroprodutor gerido pela ré, nos termos do CAE;
- Ao ser sujeita ao pagamento dos custos com o financiamento da Tarifa Social, a ré optou por apresentar tais custos à autora REN Trading, solicitando o respectivo reembolso, referindo-se genericamente à Cláusula 20 do CAE e que, inicialmente, esta aceitou suportar, condicionada à posição que a Entidade Reguladora do Sector Energético[7] viesse a tomar quanto à possibilidade de consideração dos referidos custos nos custos gerais do sistema eléctrico;
- Após a ERSE ter tomado posição no sentido de que tais custos não podiam ser aceites, a autora REN Trading informou a ré de que não poderia suportar tais custos, solicitando a devolução dos montantes entretanto adiantados condicionalmente;
- Perante a recusa da autora REN Trading em suportar tais custos, a ré notificou as autoras (a REN Eléctrica na qualidade de responsável solidária pelo cumprimento das obrigações assumidas pela REN Trading no âmbito do CAE) de que dava início ao procedimento de resolução de litígios previsto na Cláusula 26ª e no Apêndice 9 do CAE, que se inicia com um painel, in casu, um painel financeiro composto por três membros;
- Perante o Painel Financeiro a ré concretizou o objecto do litígio na petição inicial apresentada, onde formulou os seguintes pedidos:
“(i) DECLARE que a REN Trading violou o CAE e que as Requeridas são solidariamente responsáveis pelo reembolso dos custos incorridos pela Tejo Energia com a Tarifa Social desde a data efetiva a partir da qual esses montantes deveriam ter sido reembolsados pelas Requerida;
(ii) DECLARE que as Requeridas estão obrigadas, até ao termo de vigência do CAE, a reembolsar os custos suportados pela Tejo Energia com o financiamento da Tarifa Social;
(iiii) ATRIBUA à Tejo Energia o montante de 6.957.683,16 € (seis milhões, novecentos e cinquenta e sete mil, seiscentos e oitenta e três euros e dezasseis cêntimos) correspondente ao montante devido resultante da violação do CAE, atinente ao reembolso dos custos incorridos pela Tejo Energia com o financiamento da Tarifa Social desde janeiro de 2015 até dezembro de 2017 (inclusive) e de todos os montantes a incorrer com esse financiamento até ao momento em que for proferida decisão pelo Painel Financeiro;
(iv) ATRIBUA à Tejo Energia juros desde a data da notificação de cada fatura pendente emitida pela Tejo Energia à REN Trading relativamente ao financiamento da Tarifa Social até pagamento integral desses montantes, à taxa aplicável;
(vi) CONDENE as Requeridas no pagamento de todos os encargos do processo, nomeadamente os honorários e despesas do Painel Financeiro e todos os custos incorridos pela Tejo Energia, incluindo os honorários devidos aos seus advogados e honorários e despesas periciais; e
(vii) CONCEDA à Tejo Energia qualquer outra medida considerada adequada”.
- Perante o Painel Financeiro, a ré pretendia obter das autoras o reembolso dos custos incorridos com o financiamento da Tarifa Social, tendo baseado essa pretensão na Cláusula 20 do CAE e não pretendia alterar disposições do CAE;
- Por sua vez, as autoras suscitaram questões a respeito da validade e da exequibilidade (enforceability) da Cláusula 20ª do CAE, para efeitos do reembolso pretendido;
- O Painel Financeiro considerou, por maioria, que tais custos deveriam ser considerados um Relevant Tax para efeitos da Cláusula 20ª do CAE, mas entendeu que não se incluíam nas categorias de custos que permitiam o reembolso ao abrigo do CAE, pretensão que julgou improcedente e emitiu a sua Decisão e tomou posição final, definitiva e unânime, sobre todas os pedidos formulados pelas Partes, nos seguintes termos:
“Com base nas considerações acima expostas, este Painel Financeiro DECIDE unanimemente:
1. Rejeitar todos os pedidos da Tejo Energia.
2. Condenar a Tejo Energia a pagar o valor de € 145.198,00 (cento e quarenta e cinco mil, cento e noventa e oito euros) à REN Trading, correspondentes ao montante pago à Tejo Energia relativamente aos custos incorridos com o financiamento da Tarifa Social desde janeiro de 2011 a dezembro de 2014 (inclusive).
3. Condenar a Tejo Energia a pagar à REN Trading os juros acrescidos sobre o valor de € 145.198,00 (cento e quarenta e cinco mil, cento e noventa e oito euros) à taxa legal aplicável desde a data da sua Contestação até ao integral pagamento […]”;
- Na sequência da Decisão do Painel Financeiro, a ré procedeu aos pagamentos devidos, mas informou as autoras de que entendia que aquela decisão lhe permitia prosseguir o procedimento especial de resolução de litígios previsto na Cláusula 20ª e no Apêndice 11 do CAE, pelo que as notificou que pretendia proceder a uma alteração do CAE, por via da alteração do cálculo do Encargo de Potência Instalada;
- As autoras suscitaram diversas questões relacionadas com a legalidade da pretensão da ré e esta notificou-as de que entendia que estava a contestar certas decisões não unânimes alegadamente tomadas pelo Painel Financeiro, pelo que dava início ao procedimento de resolução amigável ao abrigo do Apêndice 9 do CAE, pretendendo, deste modo, dar continuidade ao sistema de resolução de litígios iniciado com a submissão das suas pretensões ao Painel Financeiro;
- No entender das autoras, todas as pretensões das Partes submetidas ao Painel Financeiro haviam sido por este decididas por unanimidade, pelo que não subsistia qualquer litígio que pudesse ser submetido aos procedimentos subsequentes – resolução amigável e arbitragem -, mas a ré recorreu à arbitragem nos termos do disposto na Parte I do Apêndice 9 do CAE, tendo dado início ao processo CCI n.º 24371/JPA/AJP, no âmbito do qual veio a ser proferida a Sentença Final;
- No seu requerimento de arbitragem a ré formulou a pretensão de reembolso dos custos de financiamento e perante a argumentação das autoras que essa questão já havia sido rejeitada pelo Painel Financeiro, por unanimidade, a ré densificou a sua pretensão do seguinte modo:
“a. O reconhecimento da natureza vinculativa de quaisquer decisões unânimes tomadas pelo Painel Financeiro em 27 de setembro de 2018 e da existência de competência para definitivamente dirimir o presente litígio e decidir conceder os pedidos formulado pela Requerente;
b. O reconhecimento da Tarifa Social como uma Alteração ao Imposto Relevante nos termos do CAE;
c. A confirmação de que a Tarifa Social é uma Alteração ao Imposto Relevante que excede o Montante Limiar Aplicável, de acordo com os cálculos propostos pela Requerente ou em conformidade com quaisquer outros cálculos determinados pelo Tribunal nos termos e condições do CAE;
d. A confirmação do direito da Requerente ao reembolso pelas Requeridas dos custos incorridos com o financiamento da Tarifa Social desde a sua criação até à cessação do CAE ou à revogação da Tarifa Social (conforme a que ocorra primeiro);
e. A alteração ao cálculo do Encargo de Potência Instalada de acordo com a fórmula proposta pela Requerente ou por qualquer outra fórmula de cálculo que mantenha a Requerente, tanto quanto possível, na mesma situação financeira que se considere mais apropriada; e
f. O reembolso pelas Requeridas dos custos suportados com o financiamento da Tarifa Social desde a sua criação e até à cessação do CAE ou à revogação da Tarifa Social (conforme a que ocorra primeiro) nos termos e condições do CAE (incluindo os juros às taxas aplicáveis) e de acordo com as decisões do presente Tribunal”.
- As partes acordaram que o processo arbitral teria uma primeira fase na qual se iria discutir e decidir apenas a questão relativa à competência do Tribunal Arbitral e, caso este se considerasse competente, o processo arbitral seguiria para uma segunda fase onde seria apreciado e decidido o mérito do litígio;
- O Tribunal Arbitral emitiu uma sentença parcial sobre competência, na qual decidiu do seguinte modo:
A [maioria] do Tribunal declara que:
a) As matérias contidas na Secção VI (Decisão do Painel Financeiro), Parte 2 (O Mérito do Caso) da Decisão são “decisões” para os efeitos do Procedimento de Resolução de Litígios do CAE, na medida em que constituem determinações após a consideração dos factos e da lei;
b) O Painel Financeiro decidiu por unanimidade que a aplicação da Cláusula 20.ª não depende da capacidade da Segunda Demandada de repercutir o custo da tarifa social nas tarifas pagas pelos consumidores; em conformidade, esta decisão é final e vinculativa para as Partes;
c) O Painel Financeiro decidiu por unanimidade que a aplicação da Cláusula 20.ª do CAE não é vedada pela lei Portuguesa relevante; e em conformidade, esta decisão é final e vinculativa para as Partes;
d) O Painel Financeiro decidiu que a aplicação da Cláusula 20.ª do CAE não configura um Auxílio de Estado. Em conformidade, esta decisão é final e vinculativa para as Partes;
e) As questões decididas de forma não unânime pelo Painel Financeiro são definitivas e vinculativas para as Partes ao abrigo do CAE, salvo quando contestadas;
f) As Demandadas contestaram: (i) a decisão não unânime do Painel Financeiro de que a Tarifa Social constituía uma Alteração Relevante; e (ii) a decisão não unânime do Painel de que a Demandante tem direito a utilizar os mecanismos estabelecidos nas Cláusulas 20.2 a 20.5 do CAE, se for capaz de demonstrar o efeito material da imposição da Tarifa Social. Consequentemente, a Demandante tem direito a remeter o litígio para arbitragem nos termos do Apêndice 9 do CAE;
g) O Tribunal tem competência, mas a sua competência é limitada a decisões não unânimes do Painel Financeiro que foram contestadas pelas Demandadas; e
h) O Tribunal tem poderes para condenar as Demandadas ao cumprimento do procedimento nos termos da Cláusula 20.ª e do Apêndice 11 do CAE, caso venha a decidir que a Tarifa Social é um Imposto Relevante nos termos do CAE.
(….) A maioria do Tribunal indefere outros os pedidos apresentados pelas Partes nesta fase do processo”.
- O Tribunal Arbitral entendeu, assim, que o Painel Financeiro tomou decisões, incluídas no corpo da sua decisão, que, tendo sido tomadas por maioria e contestadas, podiam ser reapreciadas;
- As autoras impugnaram a sentença parcial de competência perante o Tribunal da Relação de Lisboa, que deu origem ao processo n.º 1435/20.8YRLSB, 6.ª Secção, no qual foi proferido acórdão que a anulou;
- A ré interpôs recurso de Revista para o Supremo Tribunal de Justiça, que deu origem ao processo n.º 1435/20.8YRLSB.S1, 2.ª Secção, no qual foi proferido acórdão que, concedendo a Revista, julgou improcedente a impugnação da sentença parcial;
- O procedimento arbitral prosseguiu os seus termos até à prolação da Sentença Final, notificada às Partes a 14 de Março de 2023, onde o Tribunal Arbitral decidiu o seguinte:
“369. Face ao exposto:
a) Este Tribunal declara por maioria que a Tarifa Social corresponde a um Imposto Relevante nos termos do CAE;
b) O Tribunal declara por maioria que, desde que comprovado o efeito relevante da Tarifa Social perante o futuro painel financeiro (a ser constituído nos termos do Ponto 10.4 do Anexo 11 do CAE), a Requerente tem direito a uma alteração do Encargo de Potência, nos termos da Cláusula 20.4 e ponto 10, do Anexo 11 do CAE, “na medida do necessário para garantir, na medida do possível, que o Produtor esteja na mesma situação financeira ao abrigo deste Contrato em que estaria se a [Tarifa Social] não tivesse ocorrido;”
c) Este Tribunal condena por maioria as Requeridas a cumprir o procedimento para a alteração do Encargo de Potência estabelecido na Cláusula 20.4 e no ponto 10, Anexo 11 do CAE;
d) o Tribunal condena as Requeridas a reembolsar à Requerente 70% dos seus custos legais e outros custos, e 70% da taxa de sucesso do advogado da Requerente, no valor, respetivamente, de 277.642,25€ e 140.000,00€, acrescido de 32.200,00€ de IVA, ou seja, num total de 449.842,25 €;
e) o Tribunal condena as Requeridas a pagar 70% das custas de arbitragem da CCI (honorários e despesas dos árbitros e custas administrativas da CCI), fixadas pelo Tribunal em 485.800,00 USD, em 17 de fevereiro de 2023, ou seja, 340.060,00 USD. As Requeridas são condenadas a reembolsar a Requerente pela sua provisão para custas de arbitragem da CCI no montante de 97.160,00 USD; e
f) o Tribunal condena as Requeridas ao pagamento de juros simples sobre os montantes indicados nos itens (d) e (e) acima, à taxa de juro legal prevista no Código Civil Português, desde a data em que forem notificadas desta Sentença Final até ao pagamento integra.
370. Todos os demais pedidos são indeferidos”.
*
A - Omissão de pronúncia - Artigo 46.º, n.º 3, alínea a), subalínea v) da LAV
- Ao vício de omissão de pronúncia da decisão arbitral previsto no artigo 46.º, n.º 3, alínea a), subalínea v) da LAV, aplicam-se as orientações doutrinárias e jurisprudenciais desenvolvidas acerca do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil[8];
i) Inconstitucionalidade do financiamento da Tarifa Social se considerado uma “forma de tributação”
- As pretensões da ré fundam-se na Cláusula 20ª do CAE, que, para que se desencadeiem os mecanismos nela previstos de reembolso e de alteração do CAE, requer que a ré fique sujeita a (obrigada a pagar) um “Imposto Relevante” que não existisse à data da celebração do CAE, para o que a ré defendeu que o conceito de “Imposto Relevante” ali mencionado não se refere às categorias de tributos prescritas na lei portuguesa, mas, por outro, sustentou que, em qualquer caso, a obrigação de financiamento da Tarifa Social que lhe foi imposta constitui “uma forma de tributação à luz do direito português, definindo-a quer como forma de tributação atípica, quer como imposto ou contribuição”;
- Por seu turno, as autoras sempre sustentaram que o conceito de “Imposto Relevante” tem de ser interpretado, necessariamente, por referência às categorias de tributos previstas na lei portuguesa, sendo que a obrigação de financiamento da Tarifa Social constitui uma obrigação de serviço público, pelo que não pode ser considerada uma forma de tributação;
- E se a Tarifa Social fosse considerada, dentre essas categorias de tributos, como um imposto, seria inconstitucional, tanto do ponto de vista orgânico como do ponto de vista material, porque, nos termos da Constituição da República Portuguesa[9], a criação de impostos é, por um lado, matéria da competência reservada da Assembleia da República, tendo a Tarifa Social (e a obrigação do seu financiamento) sido estabelecida por acto do Governo, sem autorização legislativa por parte da Assembleia da República; por outro lado, a tributação das empresas deve incidir sobre o seu rendimento real, sendo, ao contrário, a Tarifa Social calculada sobre a potência instalada dos centros electroprodutores em regime ordinário; sendo inconstitucional, a ré não estaria obrigada a cumprir e, como tal, não se verificaria um dos requisitos essenciais de aplicabilidade do mecanismo de alteração do CAE previsto na Cláusula 20.4, que é o de a ré ser obrigada a pagar um “imposto relevante” e, assim, o Tribunal Arbitral não podia condenar as autoras no pagamento;
- O Tribunal Arbitral, não obstante reconhecer estar-se perante uma forma de tributação, optou por, deliberadamente, ignorar a necessária qualificação da obrigação de financiamento da Tarifa Social, designadamente se é ou não um tributo (em particular um imposto), conforme categorizado na Constituição e ao apuramento das consequências a retirar dessa qualificação, sendo que um dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade da obrigação de financiamento da Tarifa Social é que esta deixaria de vincular a ré, e então a Cláusula 20ª do CAE nunca poderia ter aplicação;
- Daí que a apreciação e decisão sobre a questão da inconstitucionalidade da obrigação de financiamento da Tarifa Social (i) não se encontra prejudicada por qualquer outra decisão do Tribunal Arbitral, e (ii) é essencial à decisão do mérito do litígio, pelo que ao se escusar a determinar a natureza, em concreto, da obrigação de financiamento da Tarifa Social e a sua eventual inconstitucionalidade (se de imposto se tratar), o Tribunal Arbitral deixou de se pronunciar sobre uma questão que devia ter apreciado, o que deve conduzir à anulação da totalidade da decisão;
ii. A Cláusula 20ª do CAE constitui uma ‘cláusula de estabilidade’ que impede os efeitos pretendidos pela Ré
- No procedimento perante o Painel Financeiro a autora REN Eléctrica alegou que a Cláusula 20ª do CAE é uma ‘cláusula de estabilidade’ (fiscal), inserida num contrato celebrado entre um privado e uma entidade pública, motivo pelo qual não podia ser oposta a duas entidades privadas como as autoras, questão que não foi apreciada pelo Painel Financeiro na sua decisão;
- O Tribunal Arbitral escusou-se a apreciar e decidir esta questão por entender que tinha sido apreciada de forma unânime pelo Painel Financeiro, mas não apontou em que parte da Decisão do Painel Financeiro essa questão foi concretamente apreciada, porque, de facto, não foi;
- Os dois trechos da Decisão do Painel Financeiro transcritos pelo Tribunal Arbitral na Sentença Final para justificar uma alegada decisão unânime do Painel sobre a questão de a Cláusula 20ª ser uma ‘cláusula de estabilidade’ reportam-se a uma questão totalmente distinta, que é a de saber se as disposições do DL Tarifa Social impedem a aplicação da Cláusula 20ª do CAE;
- O Painel Financeiro entendeu que nada indicava que os produtores de electricidade no sistema ordinário não pudessem ser compensados por esses custos e referiu-se ao mecanismo contratual da Cláusula 20ª do CAE atendendo apenas ao seu texto para determinar se tal mecanismo seria contrário ao regime obrigatório de alocação de custos previsto no artigo 4.º, n.º 1, do DL da Tarifa Social, daí não resultando, ao contrário do que é sustentado pelo Tribunal Arbitral, qualquer apreciação ou ponderação sobre a eventual natureza da Cláusula 20ª do CAE como ‘cláusula de estabilidade’;
- Quando o Painel Financeiro, no § 188 da sua decisão, refere que “deve considerar-se a Cláusula 20 do CAE válida e aplicável”, fá-lo como uma conclusão da sua análise sobre se o regime de alocação de custos do artigo 4.º, n.º 1, do DL da Tarifa Social é incompatível com o mecanismo contratual previsto na Cláusula 20 do CAE;
- Tendo o Tribunal Arbitral reconhecido que esta questão (isto é, ser a Cláusula 20ª do CAE uma ‘cláusula de estabilidade’) foi suscitada pela autora REN Eléctrica no procedimento arbitral e, ainda assim, não a tendo apreciado e decidido, designadamente por entender (erradamente) que o Painel Financeiro a teria decidido de forma unânime, verifica-se uma omissão de pronúncia pelo Tribunal Arbitral de questão que devia apreciar, o que constitui fundamento para anulação da Sentença Arbitral, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 46.º, n.º 3, alínea a), subalínea v), da LAV;
- A apreciação e decisão dessa questão são essenciais à decisão do mérito do litígio submetido ao Tribunal Arbitral, pois o facto de a Cláusula 20 do CAE constituir uma “cláusula de estabilidade” determina que não seja oponível às autoras;
- Caso se entendesse que o Painel Financeiro, nos §§ 165 e 188 da sua decisão apreciou e decidiu de forma unânime que a Cláusula 20ª do CAE não é uma ‘cláusula de estabilidade’, tal decisão padece de um vício de falta de fundamentação uma vez que em parte alguma foi apreciada a alegação da autora REN Eléctrica a este respeito;
- As “decisões unânimes” do Painel Financeiro têm natureza obrigacional, ficando a sua validade dependente, da conformidade com as regras constantes do CAE e/ou acordadas pelas Partes, assim como da conformidade com a lei e com a ordem pública, o que terá necessariamente de ser apreciado pelo Tribunal Arbitral;
- As autoras sempre sufragaram o entendimento segundo o qual as únicas decisões tomadas na decisão do Painel Financeiro são as constantes da respectiva secção 4, pelo que nunca consideraram existir qualquer decisão sobre se a Cláusula 20 do CAE é uma ‘cláusula de estabilidade’, motivo também pelo qual não sindicaram, perante o Tribunal Arbitral, qualquer vício dessa alegada “decisão unânime”;
- Assim, caso o Tribunal Arbitral entendesse – como entendeu – que estava perante uma decisão unânime do Painel Financeiro que o impedia de (re)apreciar o respectivo objecto, sempre estaria obrigado a controlar a conformidade dessa “decisão unânime”, o que não fez, incorrendo, por isso, também aqui, num vício de omissão de pronúncia sobre questão essencial à decisão da causa, o que constitui fundamento de anulação da Sentença Final, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 46.º, n.º 3, alínea a), subalínea v), da LAV;
B - O processo arbitral não foi conforme com a convenção das partes e com a LAV – artigo 46.º, n.º 3, alínea a), subalínea iv), da LAV
i. O Tribunal Arbitral não fundamentou a sua decisão no Direito constituído e decidiu por equidade
- Nos termos da Cláusula 25ª do CAE, as Partes escolheram o Direito português como o Direito aplicável ao mérito da causa e o artigo 39.º, n.º 1, da LAV manda que os árbitros decidam segundo o Direito constituído, salvo se as partes, por acordo, determinarem o julgamento por equidade;
- Para decidir qual o âmbito da definição de “Imposto Relevante”, o Tribunal Arbitral limitou-se à referência, num singelo parágrafo, à letra do CAE, sem qualquer alusão aos critérios de interpretação aplicáveis de acordo com o Direito português, alegados pelas autoras, que ignorou;
- Para decidir se os custos com o financiamento da Tarifa Social se enquadravam na definição de “Imposto Relevante”, o Tribunal Arbitral limitou-se a aludir, uma vez mais à letra, no seu entender lata, do CAE e à decisão do Painel Financeiro;
- Para decidir sobre os argumentos suscitados pelas autoras acerca da necessidade de autorização prévia da ERSE e da DGEG para efeitos de qualquer alteração ao CAE e da inoponibilidade da Cláusula 20ª do CAE às autoras, em razão de se tratar de uma cláusula de estabilidade, o Tribunal Arbitral limitou-se a referir que tais questões já teriam sido tratadas pelo Painel Financeiro;
- O Tribunal Arbitral não se poderia louvar apenas nas decisões do Painel Financeiro, sem efectuar qualquer controlo sobre o seu conteúdo, porque isso viola o direito fundamental de acesso à justiça (art. 20.º da Constituição e art. 2.º CPC) e configura uma renúncia inadmissível à impugnação por via de anulação;
- O Tribunal Arbitral não pode “deixar de aplicar as regras legais e de respeitar os actos administrativos que limitavam a validade dos acordos das partes”;
- O Tribunal Arbitral deveria ter procedido ao controlo das decisões do Painel Financeiro, enquanto questões prejudiciais para a decisão do mérito do litígio, mesmo que as não pudesse apreciar a título principal e porque está obrigado a aplicar todas as regras e princípios relevantes para a decisão do caso sobre as quais as partes tenham tido oportunidade de se pronunciar, ou mesmo independentemente deste pronunciamento, se tais regras e princípios forem fundamentais no sentido da ordem pública internacional do Estado português;
- Ao remeter para as decisões do Painel Financeiro, o Tribunal Arbitral não fundamentou a sua decisão no Direito constituído, não sendo um caso de erro na determinação, interpretação ou aplicação do Direito constituído, mas de manifesta não-aplicação deste;
ii. A não aplicação do Direito constituído teve influência decisiva na resolução do litígio
a) A aplicação das regras, princípios e actos administrativos de Direito público conduziria necessariamente à absolvição das Autoras do pedido
(1) O CAE está funcionalizado à prossecução do interesse público, estando submetido a vinculações regulatórias que condicionam a autonomia contratual das partes
- Não se pode olhar para o CAE, como fez o Tribunal Arbitral, apenas como um contrato entre privados, porque estando em causa sujeitos sob forma jurídico-privada, “que actuam nas suas relações de acordo com o Direito Civil e o Direito Comercial (contratos privados), não deixam de existir instrumentos tradicionais do Direito Público que configuram tais relações com vista à protecção da concorrência e do interesse público”;
- A ré encontra-se submetida “a intensos poderes regulatórios”, que passa pela “regulação administrativa de contratos entre sujeitos privados” e o CAE, apesar de contrato privado, tem de ser entendido, interpretado e executado no quadro deste ambiente regulatório, estando assim “submetido a intensas vinculações regulatórias que condicionam a autonomia contratual” das partes, pois que está funcionalizado à prossecução do interesse público, com possibilidade de o seu conteúdo ser afectado, comprimido ou modificado devido a influências legislativas, regulamentares ou decisões administrativas externas que durante toda a vigência do contrato se podem manifestar;
- No caso concreto, não podia a ré deixar de estar ciente de tal facto e da essencialidade dos contratos de aquisição de energia – e do CAE em particular – na segurança do abastecimento de electricidade ao país;
- A intervenção do regulador sectorial foi ganhando progressiva presença no âmbito do Sistema Eléctrico Nacional[10], sendo-lhe progressivamente reconhecida competência para intervir impositivamente no âmbito das actividades reguladas; a ERSE viu os seus poderes sucessivamente reforçados, dispondo, sobre o sector eléctrico, de um alargado leque de competências e atribuições, concretamente de natureza regulamentar, de regulação e supervisão, consultivas, sancionatórias e de arbitragem;
- Nem a ré nem o Tribunal Arbitral podiam desconhecer ou ignorar a existência de todas estas mudanças no ambiente legislativo e regulatório em que o CAE devia ser executado, tanto que na última alteração da organização e funcionamento do SEN, operada pelo Decreto-Lei n.º 15/2022, de 14 de Janeiro, se consideram como nele intervenientes os titulares de instalações de produção ou armazenamento de electricidade e se estipula que, sem prejuízo de as actividades serem exercidas em regime livre e concorrencial, aqueles estão sujeitos a obrigações de serviço público, entre elas a segurança, a regularidade e a qualidade do abastecimento;
- Daí que a interpretação e execução do CAE é indissociável do enquadramento legal aplicável;
(2) O regime instituído pelo DL da Tarifa Social modificou o CAE
- A intervenção pública também se aferiu aquando da liberalização do mercado da electricidade, em cumprimento das Directivas comunitárias com vista à criação do mercado interno da electricidade, em que a criação do Mercado Ibérico da Energia Eléctrica (MIBEL) foi um dos primeiros passos, e o Estado determinou a cessação de todos os contratos de aquisição de energia em vigor, uma vez que a concretização do mercado interno europeu da energia impunha que a actividade de produção de electricidade fosse exercida em regime de mercado e livre concorrência;
- Estabeleceu assim, por diploma legal – Decreto-lei n.º 240/2004, de 27 de Dezembro –, a cessação de todos os contratos de aquisição de energia em vigor e determinou as medidas compensatórias a aplicar, mas dois dos centros electroprodutores afectados – as centrais do Pego (em causa no presente processo) e a da Tapada do Outeiro (maioritariamente detida pelos mesmos accionistas da ré) – se recusaram a fazê-lo e negociaram um regime transitório de excepção com o Estado;
- De acordo com esse regime, o CAE poderia permanecer em vigor, a título transitório, devendo, em todo o caso, obedecer às disposições do DL n.º 185/2003, de 20 de Agosto; foi criado um mecanismo de repercussão tarifária que assegura a devolução ao SEN de todos os custos e proveitos decorrentes da compra e venda de electricidade ao abrigo do CAE, garantindo que não são internalizados pela autora REN Trading, entidade encarregue da compra e venda da electricidade à ré, que fica assim numa posição sui generis no âmbito do SEN – para assunção da qual foi exclusivamente criada –, em que assume funções meramente instrumentais, comprando (aos produtores titulares de contratos de aquisição de energia não cessados) e vendendo (em mercado organizado ou mediante contratos bilaterais previamente aprovados pela ERSE) electricidade, sem ter a possibilidade de exercer esta actividade visando o lucro, como qualquer outra sociedade comercial, uma vez que a margem de remuneração que pode manter para si é a fixada pela ERSE e limitada exclusivamente ao valor necessário a fazer face aos custos da sua actividade;
- Num segundo momento, o regime remuneratório previsto no CAE sofreu uma nova modificação decorrente da aprovação do regime jurídico da Tarifa Social, transpondo e concretizando as obrigações de serviço público resultantes do Direito da União Europeia[11];
- Nos termos do DL Tarifa Social, os consumidores economicamente vulneráveis passaram a beneficiar de um desconto na sua factura de electricidade, cujo valor é calculado pela ERSE, a ser financiado pelos titulares de centros electroprodutores em regime ordinário, como é o caso da ré, na proporção da potência instalada de cada centro electroprodutor;
- A obrigação de financiamento foi concretizada através de um procedimento previsto no próprio DL Tarifa Social e regulamentado no Regulamento Tarifário aprovado pela ERSE, a saber: a. Por instrução expressa da ERSE, a autora REN Eléctrica (operador de rede de transporte[12]) recolhe dos produtores (incluindo a ré) os montantes correspondentes aos custos destinados a financiar o desconto aplicado na factura dos consumidores economicamente vulneráveis; b. Por instrução expressa da ERSE, a autora REN Eléctrica transfere a totalidade dos montantes recolhidos para a E-Redes (concessionária da Rede Nacional de Distribuição); A E-Redes aplica aos comercializadores que utilizam a rede de distribuição em Baixa Tensão um desconto nos custos com a utilização dessa rede [actuando na sua qualidade de concessionária das redes de distribuição em Baixa Tensão – cujos concedentes são os municípios – já que se trata de um desconto na tarifa de acesso às redes em Baixa Tensão]; d. Este desconto permite que os comercializadores o repercutam na factura de electricidade aplicando aos consumidores uma tarifa descontada, mais barata, i.e. aquilo que o legislador designou por Tarifa Social;
- Da perspectiva dos titulares de centros electroprodutores em regime ordinário (como é o caso da ré), a Tarifa Social não corresponde a qualquer desconto, mas sim ao cumprimento de uma obrigação de serviço público de financiamento do desconto de que os consumidores vulneráveis são beneficiários;
- Justifica-se que seja a ré a suportar o custo porque os contratos de aquisição de energia beneficiam de remunerações garantidas (contrariamente aos contratos celebrados posteriormente, em ambiente puramente concorrencial), designadamente através da remuneração pela garantia de potência, que visa compensar os produtores em regime ordinário pelos chamados ‘custos ociosos’, i.e. a não venda da produção reservada e o funcionamento das centrais em mínimos de pré-aquecimento com consumos que não se traduziam em venda de electricidade;
- O artigo 4.º, n.º 1 do DL da Tarifa Social, enquanto lei nova aplicável a um contrato de execução continuada, “modifica imperativamente o equilíbrio das relações contratuais entre as partes, implicando, designadamente, que a cláusula 20.ª do contrato só possa atuar dentro dos limites resultantes deste regime legal”, impossibilitando a repassagem desses custos para qualquer outro sujeito do sistema eléctrico, como é o caso das autoras, por “indisponibilidade do exercício dos direitos das partes na relação contratual”;
- Se é certo que a actividade de produção de energia, desenvolvida pela ré, é feita em regime livre, as actividades desenvolvidas pelas autoras são reguladas, decorrendo do regime legal que a autora REN Trading tem, obrigatoriamente, de ter uma posição de neutralidade económica, não podendo assumir quaisquer encargos que não sejam repassados para as tarifas;
(3) As decisões da ERSE acerca da impossibilidade de repercussão dos custos incorridos com a Tarifa Social modificaram igualmente o CAE
- Compete à ERSE estabelecer as regras necessárias para a repercussão dos custos da gestão dos contratos de aquisição de energia nas tarifas e quando exerce tais competências modifica reflexamente o conteúdo do CAE;
- A ERSE entendeu que os custos correspondentes ao financiamento da Tarifa Social não podem ser transferidos para as tarifas do sector eléctrico, constituindo, quer o acto de homologação do referido parecer, quer o acto da ERSE, actos administrativos ablativos da posição jurídica da ré, que deles tomou conhecimento e com eles se conformou, e que, por não terem sido por esta oportunamente impugnados, adquiriram força de caso decidido;
- Ao ignorar este “conjunto unitário de manifestações de ius imperi que disciplinam a relação jurídico-privada entre a Tejo Energia e a REN-Trading”, o Tribunal Arbitral deixou, assim, de aplicar o Direito constituído;
(4) A decisão de certificação da autora REN Eléctrica vincula igualmente a ré
- O Tribunal Arbitral ignorou regras e decisões de Direito da UE, às quais se encontrava vinculado;
- A autora REN Eléctrica, enquanto ORT, tem de ser certificada como tal, em cumprimento dos requisitos e procedimentos comunitários aplicáveis e, no âmbito do seu processo de certificação, o parecer positivo emitido por parte da Comissão Europeia determinou que a autora REN Trading não poderia operar em condições normais de mercado, sendo a sua actividade objecto de regulação directa pela ERSE, nomeadamente quanto à questão da repercussão dos custos de gestão do CAE nas tarifas, o que fez para garantir que a separação de actividades de transporte e comercialização de electricidade (um dos pilares do mercado europeu da energia) era respeitada;
- Tal parecer integra o acto administrativo a ele vinculado emitido pela ERSE, vinculando os seus destinatários, “e vale erga omnes, com força de caso decidido, no âmbito da ordem jurídica da União e da ordem jurídica nacional”, pelo que, ao admitir-se que a autora REN Trading pudesse suportar os custos com o financiamento da Tarifa Social, por via de uma alteração ao CAE, está-se a violar o conteúdo dispositivo desta decisão da Comissão Europeia;
- Pela natureza sui generis das funções que desempenha no âmbito do SEN, a autora REN Trading não tem, nem poderá ter, fundos disponíveis para fazer face a esse encargo e se for obrigada a suportá-lo terá de recorrer ao regime da insolvência e/ou a autora REN Eléctrica é chamada, como responsável solidária, ao pagamento da sua dívida, caso em que pode ser acusada de potencial infracção do princípio do Direito da Energia da UE de separação de actividades, pois que estaria o ORT a suportar um encargo originado por uma actividade de comercialização;
- Assim, a aplicação das regras, princípios e actos administrativos que conformam a relação contratual controvertida impedem o reembolso da tarifa social, o que conduziria à absolvição da REN Eléctrica e da REN Trading dos pedidos formulados pela Tejo Energia, de modo que a não-aplicação do Direito europeu e interno vigente na ordem jurídica portuguesa pelo tribunal arbitral teve influência decisiva na resolução do litígio;
b) A aplicação das regras legais em matéria de interpretação do contrato conduziria necessariamente à absolvição das Autoras do pedido
- Também a não aplicação das regras vigentes no Direito português a respeito da interpretação contratual, plasmadas nos artigos 236.º a 238.º do Código Civil, a que o Tribunal Arbitral estava vinculado, conduziriam necessariamente à absolvição das autoras do pedido, pelo que teve influência decisiva na resolução do litígio;
- Todas as categorias enumeradas na definição de “Impostos Relevantes” constante da letra da Cláusula 20ª do CAE correspondem a esse conceito de tributos de acordo com as leis fiscais portuguesas, pelo que, sendo os custos com o financiamento da Tarifa Social uma obrigação de serviço público, jamais poderia ser considerado um “Imposto Relevante”, sendo que se as partes se tivessem querido afastar do conceito teriam inscrito na cláusula a referência a “quaisquer custos impostos por acto legislativo” ou algo similar e a conjugação com a Cláusula 1ª revela que não tiveram em consideração alterações que não digam respeito ao sistema fiscal;
- Esta é a única interpretação possível e a que permite o maior equilíbrio das prestações, pois o financiamento da tarifa social já é assegurado aos produtores de energia por outras vias, designadamente, através da remuneração pelo encargo de potência;
- A interpretação do Tribunal Arbitral não tem um mínimo de correspondência verbal no texto do documento;
C - A sentença arbitral ofende os princípios da ordem pública internacional do Estado Português – artigo 46.º, n.º 3, alínea b), subalínea ii), da LAV
i. A Sentença Arbitral ofende regras e princípios fundamentais de Direito público
a) A Sentença Final viola obrigações de serviço público impostas aos Estados Membros com vista à protecção dos consumidores vulneráveis e o princípio da separação de poderes
- Conforme o Considerando 58 e o artigo 9.º da Directiva 2019/944 (UE), do Parlamento Europeu e do Conselho de 5 de Junho de 2019, que alterou a Directiva 2012/27/UE, “[o] sistema energético europeu prevê a obrigatoriedade de os Estados-Membros assumirem obrigações de serviço público, entre as quais se conta a proteção dos consumidores vulneráveis e o combate à pobreza energética”, podendo impor às empresas do sector da electricidade, obrigações de serviço público, como é o caso da tarifa social, tendo a lei imposto o seu financiamento aos titulares de centros electroprodutores em regime ordinário;
- Esta concretização de um princípio constitucional com assento na ordem jurídica da UE é uma manifestação da ordem pública internacional do Estado português, que é posta em causa pelo resultado da Sentença Final, que contraria a vontade expressa pelo legislador;
- No caso concreto, os custos com a Tarifa Social foram impostos aos produtores de electricidade em regime ordinário, tendo o legislador considerado tratar-se de justa contrapartida pelo benefício que estes receberam em sede de garantia de potência por via da Portaria n.º 765/2010, de 20 de Agosto;
- O resultado da manutenção da Sentença Final é o de que a ré, que é um centro electroprodutor em regime ordinário, apesar de ter recebido o referido benefício de garantia de potência, tem a possibilidade de transferir, por via contratual, os custos que lhe foram impostos por lei para uma outra entidade – a autora REN Trading – que não tem, e legalmente não pode ter, capacidade para suportar o encargo, pondo em causa, por sua vez, por via da responsabilidade solidária existente com a REN Eléctrica, a certificação de que esta carece para exercer a actividade de ORT;
- A decisão põe em causa o funcionamento do SEN ao arrepio da vontade, decisão, e intervenção do poder legislativo, o que afronta claramente o princípio da separação do poder legislativo do poder judicial, conforme consagrada na Constituição;
- Por outro lado, cria uma situação de facto em que o responsável pelo pagamento não o pode fazer e não haverá – no quadro criado pela Sentença Final – quem suporte os custos com a Tarifa Social, pelo que os consumidores vulneráveis não poderão dela beneficiar, o que é inadmissível, quer na perspectiva do legislador nacional, quer na do legislador comunitário;
- A imputação dos custos com a Tarifa Social à autora REN Trading desrespeita os critérios definidos pelo TJUE: a. Primeiro, porque o resultado alcançado pela Sentença Final não é proporcional: não é equilibrado nem razoável a imposição destes custos à autora REN Trading, que não os pode repercutir nas tarifas, ou, no limite à autora REN Eléctrica, por força do regime de solidariedade, pondo em causa os termos da sua certificação como ORT, sem a qual não poderá desenvolver a sua actividade e a adequação das medidas de salvaguarda para protecção dos clientes vulneráveis, que resultará desadequada por força da decisão arbitral, o que contraria também o objectivo plasmado no artigo 28.º, n.º 1, da Directiva (UE) 2019/944, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de Junho de 2019, relativa a regras comuns para o mercado interno da electricidade; o resultado contraria a opção legislativa tomada, acarretando a sua preterição uma violação da ordem pública do Estado português, na medida em que “[a] regulação da energia, pelo seu impacto na vida económica e social, assume o caráter de uma questão de Estado”;
b) A Sentença Final viola o princípio da racionalidade e eficiência económica do sector eléctrico
- Segundo este princípio, hoje plasmado no artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/2022, o abastecimento energético deve fazer-se ao menor custo possível, tipicamente através da livre concorrência e da liberdade de empresa, conforme decorre da política energética europeia, em especial da Directiva (UE) 2019/944 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de Junho de 2019;
- No caso das actividades de transporte e distribuição (a autora REN Eléctrica é o ORT), estamos perante monopólios naturais, pelo que a retribuição destes operadores tem necessariamente de ser feita através de tarifas fixadas pelo regulador, pagas por todos os consumidores, pelo que a imputação dos custos da Tarifa Social ao ORT “prejudicaria a eficiência e a racionalidade do sistema, que se apresenta como o vértice regulatório do setor elétrico”, princípio relevante para a ordem pública internacional do Estado Português, sendo a sua violação intolerável;
c) A Sentença Final viola o dever de Unbundling
- Este dever, plasmado no Considerando 68 da Directiva (UE) n.º 2019/944, do Parlamento Europeu e do Conselho de 5 de Junho de 2019, é um pilar fundamental do sistema eléctrico europeu, obrigando os Estados-membros a assegurar uma separação efectiva entre as actividades concorrenciais (de produção e comercialização de energia) e as actividades de rede (transporte e distribuição);
- Para que a autora REN Eléctrica fosse certificada como ORT, a Comissão Europeia, no seu parecer vinculativo, condicionou essa certificação a que a autora REN Trading não operasse em condições normais de mercado e que os seus rendimentos e custos de gestão com os contratos de aquisição de energia em vigor fossem integralmente repercutidos nas tarifas, i.e., que a sua actividade obedecesse a um princípio de neutralidade económico-financeira, sendo a sua actividade objecto de regulação directa pela ERSE;
- Se for imposto à autora REN Eléctrica, por incapacidade financeira da autora REN Trading, suportar os encargos com a Tarifa Social, estar-se-á, na prática, a permitir a um operador de rede o financiamento de uma operação enquadrável na actividade de produção, o que é manifestamente vedado pelo ordenamento jurídico comunitário;
d) A Sentença Final viola o princípio da segurança no abastecimento
- A oneração dos operadores de rede com sobrecustos não previstos nos seus planos de actividades, como o financiamento da tarifa social, terá necessariamente impacto nas operações destinadas a assegurar as suas funções primordiais: a manutenção e o investimento na rede, que se irá reflectir na garantia da regularidade, segurança e qualidade do abastecimento energético, colocando em causa um princípio relevante para a ordem pública internacional do Estado português, respeitante a um serviço público essencial;
ii. A Sentença Arbitral viola o princípio pacta sunt servanda
- O princípio pacta sunt servanda tem sido considerado quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, como um dos princípios que integram o conceito de ordem pública internacional do Estado português, que se relaciona, designadamente, com o princípio da confiança;
- Na medida em que a Sentença Final admite a transferência de um custo de uma obrigação de serviço público de natureza social que, por lei, é imputado a uma das partes no CAE – a ré –, invocando precisamente o CAE para determinar o seu direito ao reembolso (por via de alteração do modo de cálculo da remuneração), sem que tal direito resulte do ali clausulado e contra decisões vinculativas emitidas pela ERSE, resulta evidente a violação da essência do princípio pacta sunt servanda;
iii. A Sentença Arbitral viola o princípio constitucional da protecção dos consumidores
- A Tarifa Social constitui “uma medida de política social de proteção dos consumidores economicamente vulneráveis”, sendo que a Sentença Final ignora as ponderações realizadas pelo legislador e põe em causa o serviço universal de energia, ao colocar em crise a sustentabilidade económico-financeira do sistema, pois que a REN Trading não terá como fazer face ao custo com o financiamento da Tarifa Social, podendo perder a sua certificação, o que contende com a continuidade da prestação do serviço universal de electricidade, assim se afectando os direitos dos consumidores, sobretudo dos mais vulneráveis
iv. A Sentença Arbitral viola o Direito da Concorrência da UE
- O artigo 81.º do Tratado da Comunidade Europeia (hoje artigo 101.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia) foi considerado como uma disposição de ordem pública internacional por se tratar de “uma disposição fundamental indispensável para a realização das missões conferidas à Comunidade e, em particular, para o funcionamento do mercado interior”;
- Na Sentença Final, o Tribunal Arbitral estava obrigado a aplicar o Direito da Concorrência da UE e, não o tendo feito, é aquela anulável por ter um conteúdo ofensivo da ordem pública internacional do Estado português;
- O reembolso pretendido pela ré (através da alteração da fórmula de cálculo da sua remuneração, aí considerando os custos incorridos com o financiamento da Tarifa Social) constitui um apoio de Estado e viola o disposto no artigo 107.º, n.º 1 do Tratado, que visa prevenir que um Estado-membro distorça artificialmente a concorrência através da concessão de ajudas de Estado a determinadas empresas ou indústrias, assim fazendo uma incorrecta alocação de recursos;
- A qualificação de uma intervenção como apoio de Estado implica quatro requisitos cumulativos: (i) a intervenção tem de ser do Estado ou através de recursos do Estado; (ii) tem de constituir uma vantagem; (iii) deve ser selectiva; e (iv) deve afectar ou ameaçar afectar a concorrência e ser apta a afectar o comércio entre Estados-membros, o que ocorre no caso, pois que o regime de repercussão tarifária obrigatória, levará ao aumento dos valores cobrados através das tarifas pagas pelos consumidores e a ré, única entidade beneficiada, ficará numa posição de vantagem face aos seus concorrentes.
v. A Sentença Arbitral viola o princípio da censura do enriquecimento indevido
- O legislador, consciente do encargo que impunha aos produtores titulares de contratos de aquisição de energia, tomou medidas para os compensar desse sacrifício no âmbito do SEN, dando-lhes um benefício como contrapartida;
- Se a Sentença Final tiver por efeito transferir o sacrifício da ré para as autoras, ou mesmo para os custos gerais do sistema, então o sacrifício imposto à ré desapareceu e ela manteve o benefício que lhe foi atribuído.
Concluem, assim, que deve ser anulada a sentença final.
Citada a ré, que requereu a prorrogação do prazo para contestar, oportunamente deferida[13], veio esta deduzir oposição, o que faz com os seguintes fundamentos (cf. Ref. Elect. 651757):
- A cláusula 26.ª do CAE e os parágrafos 12 e 14 do seu Anexo 9 contêm uma cláusula compromissória, que prevê mecanismos de resolução alternativa dos potenciais litígios prévios à arbitragem, como um Painel Financeiro e/ou Técnico (conforme a natureza do litígio) e a composição amigável;
- O Painel Financeiro tem poderes para conhecer de disputas emergentes ou relacionadas, inter alia, com interpretação, legislação ou fiscalidade e com os Anexos 1 (que regula a Capacity Charge) e 2 (que regula a Energy Charge) e cláusulas relacionadas, tendo também poderes para conhecer da disputa;
- Os poderes do Painel Financeiro não estão previstos, unicamente, no Anexo 9 do CAE, mas também no Anexo 11, a respeito da alteração da fórmula de cálculo da Capacity Charge e/ou da Energy Charge; a decisão que vier a ser tomada pelo Painel (Financeiro ou Técnico) ao abrigo dos poderes que lhe são conferidos pelo Anexo 11 do CAE, contrariamente ao que sucede no âmbito do Anexo 9, é vinculativa, mesmo que tenha sido tomada apenas por maioria;
- Excepto se o Painel Financeiro tomar decisão ou decisões unânimes, as Partes poderão contestar a decisão ou decisões maioritárias, submetendo a disputa a resolução mediante composição amigável;
- Se não chegarem a acordo, qualquer das partes pode submeter a disputa a arbitragem;
- Imediatamente após a imposição do Mecanismo de Financiamento da tarifa social, a ré solicitou à autora REN Trading o reembolso dos custos incorridos, que esta aceitou proceder, mediante um procedimento de (re)facturação mensal directa desses custos, tendo efectuado reembolsos desde 2011 e até final de 2014;
- Na sequência do aumento dos custos associados e do parecer n.º 39/2012 da Procuradoria-Geral da República, bem como da pronúncia da ERSE, em Fevereiro de 2015, a REN Trading cessou o reembolso dos custos e devolveu as facturas emitidas pela ré, levando-a a recorrer ao Procedimento de Resolução de Disputas, nos termos do CAE, tendo as partes acordado na composição do Painel Financeiro e nas regras processuais que regeriam a disputa, que proferiu a sua Decisão no dia 27 de Setembro de 2018;
- Embora tenha indeferido os pedidos da ré, o Painel Financeiro tomou várias decisões que são relevantes, decidindo por maioria dos seus membros que:
(i) o Mecanismo de Financiamento é um Relevant Tax para efeitos do CAE;
(ii) a Ré tem direito reaver os custos suportados com o Mecanismo de Financiamento se recorrer aos mecanismos previstos nas cláusulas 20.2 a 20.5 do CAE e contanto demonstre o efeito material da imposição do referido mecanismo;
- E decidiu por unanimidade:
(i) a aplicação da cláusula 20.ª do CAE não depende da capacidade da Autora REN Trading repercutir os custos suportados a esse título nas tarifas cobradas aos consumidores;
(ii) a aplicação da cláusula 20.ª do CAE não é vedada pela legislação relevante; e
(iii) que a aplicação da cláusula 20.ª do CAE não constitui um auxílio de Estado;
- Na sequência da Decisão do Painel Financeiro, em 7 de Novembro de 2018, a ré deu cumprimento ao procedimento previsto no parágrafo 10. do Anexo 11 do CAE, tendo apresentado a sua proposta de alteração da fórmula de cálculo da Capacity Charge, não tendo sido possível a composição amigável da disputa;
- A ré submeteu o seu requerimento de arbitragem, tendo-se discutido e decidido primeiro os temas relativos à competência do tribunal arbitral, tendo sido proferida decisão parcial, em 10 de Maio de 2020, concluindo o tribunal que o Painel Financeiro havia tomado várias decisões unânimes fora do capítulo “Holding” e decisões não unânimes e que as autoras as haviam contestado, motivo pelo qual decidiu que: “f) As Demandadas contestaram: (i) a decisão não unânime do Painel Financeiro de que a Tarifa Social constituía uma Relevant Change; e (ii) a decisão não unânime do Painel de que a Demandante tem direito a utilizar os mecanismos estabelecidos nas Cláusulas 20.2 a 20.5 do CAE, se for capaz de demonstrar o efeito material da imposição da Tarifa Social. Consequentemente, a Demandante tem direito a remeter o litígio para arbitragem nos termos do Anexo 9 do CAE;”;
- O Tribunal Arbitral veio a declarar-se competente para: “g) O Tribunal tem competência, mas a sua competência é limitada a decisões não unânimes do Painel Financeiro que foram contestadas pelas Demandadas; h) O Tribunal tem poderes para condenar as Demandadas ao cumprimento do procedimento nos termos da Cláusula 20.ª e do Anexo 11 do CAE, caso venha a decidir que a Tarifa Social é um Relevant Tax nos termos do CAE”;
- As autoras discordaram e recorreram dessa decisão e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça resolveu definitivamente as questões referentes à competência do Tribunal Arbitral e determinou as matérias que o Painel Financeiro havia resolvido definitivamente; as questões sobre as quais o Tribunal Arbitral poderia exercer o seu poder adjudicatório; e as matérias que, não tendo sido decididas pelo Painel Financeiro, lhe caberá, no futuro, decidir, tal como assinalado pelo Tribunal Arbitral;
- O processo arbitral seguiu os seus termos, tendo culminado na prolação da Sentença Arbitral, cujo sentido decisório foi o seguinte: “a) (…) a Tarifa Social corresponde a um Imposto Relevante nos termos do CAE; b) (…) desde que comprovado o efeito relevante da Tarifa Social perante o futuro painel financeiro (a ser constituído nos termos do ponto 10.4 do Anexo 11 do CAE), a Requerente tem direito a uma alteração do encargo de Potência, nos termos da Cláusula 20.4 e ponto 10 do Anexo 11 do CAE, «na medida do necessário para garantir, na medida do possível, que o Produtor esteja na mesma situação financeira ao abrigo do Contrato em que estaria se a [Tarifa Social] não tivesse ocorrido»; c) (…) [condenar] as Requeridas a cumprir o procedimento para a alteração do Encargo de Potência estabelecido na Cláusula 20.4 e no ponto 10, Anexo 11 do CAE (…)”;
- As autoras vêm discordar de decisões do Painel Financeiro que são vinculativas e finais, nos termos do CAE, pois que este decidiu, por maioria, que o Mecanismo de Financiamento é um Relevant Tax para efeitos do CAE e, por unanimidade, que a aplicação da cláusula 20. do CAE não depende da capacidade da autora REN Trading repercutir os custos suportados a esse título nas tarifas cobradas aos consumidores, que a aplicação da cláusula 20. do CAE não é vedada pela legislação relevante, que a aplicação da cláusula 20. do CAE não constitui um auxílio de Estado e, ainda, por maioria, que a ré tem direito reaver os custos suportados com o Mecanismo de Financiamento se recorrer aos mecanismos previstos nas cláusulas 20.2 a 20.5 do CAE e contanto demonstre o efeito material da imposição do referido mecanismo;
- Conforme decidido pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, o tribunal arbitral não podia revisitar matérias que estivessem cobertas por decisões unânimes do Painel Financeiro;
- O argumento das autoras atinente à natureza da cláusula 20. do CAE, enquanto cláusula de estabilização, não respeita a qualquer decisão do Tribunal Arbitral, mas sim à decisão do Painel Financeiro a respeito da validade e eficácia da cláusula 20. do CAE, que este entendeu não visar alterar a entidade à qual incumbe a responsabilidade de proceder ao pagamento da tarifa perante o organismo competente, mas antes prevê os mecanismos contratuais entre as duas entidades privadas de forma a preservar o encargo fiscal para o Produtor no momento da celebração do CAE e, assim, minimizar o impacto de reformas fiscais sobre a Tejo Energia, nada se prevendo no sentido de não poder o produtor ser compensado por esses custos por outra entidade privada, se assim for acordado entre as partes, pelo que é matéria que o Tribunal Arbitral não poderia apreciar;
- A alegada não aplicação do Direito constituído, mas da equidade, não respeita à Sentença Arbitral, pois que incide sobre matéria que foi objecto de uma decisão do Painel Financeiro, que afirmou a validade e eficácia da cláusula 20., sendo que a única finalidade do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 138-A/2010, de 28 de Dezembro é estipular quem é responsável perante o organismo competente pelo pagamento da Tarifa Social, o que não impede que a Tejo Energia seja compensada pela REN Trading através dos mecanismos previstos no CAE e que a neutralidade financeira da REN Trading vis-a-vis os fluxos financeiros resultantes do CAE (isto é, a repercussão nas tarifas pagas pelos consumidores da diferença entre os custos suportados pela REN Trading e as receitas por si obtidas) não é absoluta e não pode ser interpretada como uma condição sine qua non para a aplicação da Cláusula 20 do CAE;
- Toda a regulação sectorial foi expressamente considerada pelo Painel Financeiro e essas matérias foram tratadas, compreendendo-se no âmbito das suas decisões unânimes;
- Quanto à violação dos deveres de unbundling também não respeita à Sentença Arbitral, pois foi considerado pelo Painel Financeiro (cf. § 172 da Decisão do Painel Financeiro), integrando a decisão unânime, matéria que antes nunca fora sequer suscitada;
- No que diz respeito à alegada violação do Direito da Concorrência da UE também não respeita à Sentença Arbitral, tendo a matéria atinente a um eventual auxílio de Estado para a ré sido considerada pelo Painel Financeiro, que referiu que não estaria em causa o envolvimento de recursos estatais para efeitos do n.º 1 do artigo 107.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia[14], porque os custos daí decorrentes seriam internalizados pela REN Trading, que é uma empresa integralmente detida por privados – e não seriam reflectidos nas tarifas pagas pelos consumidores –, tal como foi estabelecido pela ERSE;
- Esta matéria foi objecto de uma decisão unânime do Painel Financeiro e o Tribunal Arbitral concluiu que não poderia revisitar tal argumento;
- As autoras não pretendem sindicar a validade da sentença arbitral, mas as decisões do Painel Financeiro, pelo que a sua pretensão anulatória não pode proceder;
- Tanto mais que renunciaram à faculdade de impugnar as decisões do Painel Financeiro quando aderiram ao CAE, pois que apenas as decisões tomadas por maioria podem ser sindicadas e apenas o podem ser no âmbito do Procedimento de Resolução de Disputas (i.e., em última linha pelo Tribunal Arbitral);
- Assim, apenas são atendíveis os putativos fundamentos a ela respeitantes: a) o Mecanismo de Financiamento é um Relevant Tax ao abrigo do CAE; b) a ré tem direito a obter a alteração da fórmula da Capacity Charge, na medida necessária para assegurar que fica colocado na mesma posição financeira em que estaria caso não lhe tivesse sido imposto do Mecanismo de Financiamento, desde que demonstre o respectivo efeito material; e c) as autoras estão obrigadas a cumprir o procedimento para alteração da fórmula da Capacity Charge nos termos do CAE;
- Um dos fundamentos apresentados pelas autoras, e rejeitado pelo Supremo Tribunal de Justiça, era o de que, ao fixar a sua competência por referência às decisões unânimes e maioritárias tomadas pelo Painel Financeiro, o Tribunal Arbitral havia ultrapassado o âmbito da Convenção de Arbitragem, mas a sentença parcial, ainda que em matéria de competência, estabeleceu – nesse âmbito – quais as decisões que haviam sido tomadas pelo Painel Financeiro e o respectivo sentido;
- Assim, a sentença parcial afirmou a consolidação no ordenamento jurídico nacional das decisões do Painel Financeiro, em especial as tomadas por unanimidade, como finais, vinculativas e imutáveis;
- As autoras jamais se pronunciaram no sentido de sustentar a invalidade das decisões do Painel Financeiro ou sequer que a sua manutenção no ordenamento jurídico nacional seria incompatível com a ordem pública internacional do Estado Português, pelo que se conformaram com a possibilidade de, não sendo bem-sucedida a sua pretensão anulatória, as decisões do Painel Financeiro tomadas por unanimidade se tornarem finais, vinculativas e imutáveis;
- As autoras não questionaram o resultado da Sentença Parcial, permitindo a sua consolidação, o que determina a preclusão do seu direito a questionar a validade de tais decisões;
- À presente data, em virtude do disposto no artigo 18.º, n.º 9 da LAV, as autoras já não podem invocar tal fundamento, uma vez que se mostra esgotado o prazo de que dispunham para o efeito;
- Opera também a preclusão de tais putativos fundamentos com base no caso julgado emergente do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, pois que este entendeu ser conforme à ordem pública internacional do Estado Português o resultado da Sentença Parcial;
- Existe caso julgado quanto à não incompatibilidade entre o resultado da Sentença Parcial – e por extensão das decisões do Painel Financeiro – e a ordem pública internacional do Estado Português, pois que o indeferimento da pretensão anulatória das autoras perante a Sentença Parcial confirma a existência de uma decisão implícita;
- Ainda que assim não fosse, a pretensão anulatória das autoras seria manifestamente abusiva, uma vez que se seguiria a uma inegável conformação com o teor das decisões do Painel Financeiro, a que respeitam os putativos fundamentos em causa;
- Existem ainda outras decisões proferidas no âmbito da disputa que opôs a ré às autoras a respeito do Imposto sobre os Produtos Petrolíferos (ISP), em que estas se opuseram à pretensão daquela de ser colocada na posição em que estaria, ao abrigo do CAE, caso o ISP nunca lhe tivesse sido imposto;
- A Disputa ISP foi submetida à apreciação do Painel Financeiro, que decidiu, por maioria – com relevância nestes autos – (i) que a alteração dos pagamentos feitos ao abrigo do CAE não carece de qualquer autorização ou parecer prévio da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (“ERSE”) ou da Direcção-Geral de Energia e Geologia (“DGEG”), (ii) que a aplicação da cláusula 20. do CAE não depende da repercussão, pela Autora REN Trading, dos custos nas tarifas, e (iii) que a cláusula 20. do CAE é válida e eficaz;
- A ré remeteu a Disputa ISP para a arbitragem, cujo tribunal se considerou competente para decidir apenas se o ISP se subsume ao conceito de Relevant Tax e se o requisito de notificação das autoras havia sido cumprido;
- As decisões referidas, apesar de maioritárias, tornaram-se igualmente finais e vinculativas para as Partes e o prazo de que as partes dispunham para reagir contra a aquela sentença arbitral ISP já transcorreu, o que obsta igualmente à pretensão das autoras nestes autos, uma vez que o teor conjunto das decisões tomadas no âmbito da Disputa ISP contraria frontalmente os putativos fundamentos invocados nestes autos, cuja pretensão sempre se teria de tomar por abusiva;
- O Tribunal Arbitral não omitiu qualquer juízo quanto à suposta “inconstitucionalidade do financiamento do mecanismo de financiamento”, que as autoras configuraram como um tributo que seria inconstitucional, perante o qual a ré poderia ter invocado o direito de resistência recusando o pagamento, afastando assim a aplicação da cláusula 20ª do CAE, o que corresponde apenas a um argumento utilizado e não a uma questão fáctico-jurídica estruturante da posição das partes, pelo que o seu não conhecimento não constitui vício de omissão de pronúncia;
- O Tribunal Arbitral procedeu à subsunção do Mecanismo de Financiamento ao sentido interpretativo do CAE – que dispensa a qualificação prévia tributária e legal da imposição –, tendo concluído tratar-se de um Relevant Tax, tendo notado ainda que a discussão em torno da sua natureza tributária ficava prejudicada, uma vez que, perante o peticionado pela ré e a correcta interpretação do CAE, apenas se mostrava necessária a subsunção contratual, daí que tenha ficado prejudicada a apreciação da conformidade constitucional do referido Mecanismo;
- Argumentam ainda as autoras que, apesar de o Tribunal Arbitral afirmar que a qualificação da cláusula 20.ª do CAE enquanto “cláusula de estabilização” foi resolvida pelo Painel Financeiro, tal não sucedeu, pelo que dela deveria ter conhecido, para além de estar obrigado a sindicar a validade das decisões do Painel Financeiro, uma vez que estas têm natureza obrigacional, mas as autoras nunca sustentaram, no decurso do processo arbitral, que as decisões do Painel Financeiro fossem ‘inválidas’;
- Por outro lado, é um contra-senso invocar uma putativa omissão de pronúncia a respeito de uma matéria que o Tribunal Arbitral decidiu não ser competente para apreciar;
- A propósito da natureza da cláusula 20ª do CAE, o Painel Financeiro não só considerou tal matéria, como concluiu que a natureza privada das Partes não determinava nem a invalidade nem a insusceptibilidade de aplicação da cláusula, daí que o Tribunal Arbitral tenha entendido que não tinha competência, na sequência do decidido na Sentença Parcial, para apreciar tal argumento das autoras, pelo que também aqui não se verifica qualquer omissão;
- O Tribunal Arbitral não podia, ao contrário do que alegam as autoras, proceder ao controlo da legalidade das decisões do Painel Financeiro e não deixou de aplicar o Direito, sucedendo apenas que não podia deixar de respeitar as decisões do Painel Financeiro e, consequentemente, abster- se de sobre o seu âmbito se pronunciar;
- As questões sobre o CAE estar funcionalizado à prossecução do interesse público, estando submetido a vinculações regulatórias que condicionam a autonomia contratual das Partes e de ter sido modificado pelo Decreto-Lei 138-A/2010, de 28 de Dezembro e pelas decisões da ERSE acerca da impossibilidade de repercussão dos custos incorridos com a Tarifa Social ou ainda a necessidade de autorização prévia da ERSE e da DGEG para alteração do CAE, não poderiam ser reapreciadas pelo Tribunal Arbitral pelo facto de já terem sido decididas pelo Painel Financeiro;
- As autoras não pretendem discutir a validade da sentença arbitral, revelando antes discordância com a subsunção nesta afirmada, o que significa que não existe qualquer incumprimento da convenção das Partes quanto ao Direito aplicável, mas apenas – na perspectiva das próprias autoras – um alegado, mas inexistente, erro de julgamento;
- E ainda que a pretensão das autoras fosse admissível nunca seria procedente, porque o raciocínio expendido pelo Tribunal Arbitral é consentâneo com a aplicação das regras, princípios e actos administrativos de Direito público e com o regime instituído pelo Decreto-Lei 138-A/2010 de 28 de Dezembro, pois que também a CRP impõe ao legislador um dever de respeito pelos contratos administrativos que tenham sido anterior e livremente celebrados pela Administração Pública;
- Se o Estado não pode alterar unilateralmente, por via de lei, os contratos celebrados entre ele próprio e os particulares, por maioria de razão, também não poderá alterar unilateralmente os contratos vigentes entre entes privados, como é o caso do CAE;
- Estando em causa perante o Tribunal Arbitral a dimensão interna do CAE, apenas era exigido que reconhecesse a existência do DL 138-A/2010 de 28 de Dezembro, como fez, aplicando o regime do CAE para decidir as questões que lhe foram colocadas uma vez que as regras e princípios de Direito Público não colidem com as obrigações contratuais livremente assumidas entre as partes;
- A aplicação das regras e princípios de Direito Público não determinava a rejeição dos pedidos da ré na arbitragem, uma vez que impõem o cumprimento do CAE, caracterizam e impactam a sua dimensão externa e por essa razão o DL Tarifa Social, não implicou qualquer alteração ou modificação do CAE nem impede a sua aplicação nos termos afirmados na Sentença Arbitral;
- Os pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República são restritos a matéria de legalidade, devem ser de carácter geral e abstracto, podem ser utilizados como meios acessórios de interpretação da lei pelo Ministério Público e apenas serão vinculativos para os serviços ministeriais se o requerente os homologar;
- Os tribunais não estão vinculados ao sentido interpretativo propugnado em tais pareceres, (ii) os particulares também não se encontram adstritos a acolher, subscrever ou cumprir o conteúdo de tais pareceres e, (iii) as próprias estruturas administrativas, desde que alheias aos serviços do órgão que procedeu à homologação – como a ERSE – também não se encontram vinculadas ao respectivo conteúdo;
- Se é certo que o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 39/2012 procede a uma interpretação oficial para o Secretário de Estado da Energia, por força da respectiva homologação, a verdade é que, desde que esteja em causa a interpretação, a validade ou a execução de contratos, segundo resulta de um princípio geral do Direito Administrativo, hoje acolhido no artigo 307.º, n.º 1 do Código de Contratos Públicos, a decisão administrativa sobre tais matérias não reveste carácter obrigatório, ante a falta de concordância do co-contratante;
- Assim, o Parecer n.º 39/2012 nunca seria apto a interferir na esfera intersubjectiva do CAE;
- O Tribunal Arbitral não deixou de atender a tal matéria, tendo sucedido que, considerando os argumentos das partes e os pareceres por estas juntos, concluiu que o Parecer da PGR e a decisão da ERSE eram de relevância limitada para a Disputa tendo em consideração a sua natureza jurídica e a sua força vinculativa para os particulares, e, em especial, para o regime contratual do CAE, pelo que aplicou o Direito constituído, decidindo, porém, em sentido contrário ao pretendido pelas autoras;
- Não explicam as autoras por que razão a decisão de certificação como ORT vincularia a ré, ou porque é que essa certificação poderia implicar a modificação de um regime contratual válida e livremente acordado entre as Partes, tanto mais que a decisão de certificação afirma expressa e inequivocamente que, apesar da certificação concedida à autora REN Eléctrica, o CAE se mantém inalterado e plenamente em vigor, pois que tal contrato foi celebrado num contexto histórico anterior ao unbundling da actividade de transporte face à actividade de produção, entre os proprietários das centrais e a entidade que, à data, era responsável pela gestão do sistema e que actuava como comprador único.
- Em matéria de interpretação do contrato, certo é que o Tribunal Arbitral não anunciou expressamente, na Sentença Arbitral, que estava a analisar o conceito contratual de Relevant Tax, por referência ao Mecanismo de Financiamento, ao abrigo dos artigos 236.º a 239.º do Código Civil, nem tinha de o fazer, pois que, em substância, o seu excurso interpretativo é precisamente o imposto pela lei portuguesa;
- Depois de analisar o contrato, o Tribunal Arbitral transcreveu a definição contratual de Relevant Taxes contida na Cláusula 1.1 do CAE e assinalou que, segundo as autoras, tal definição apenas poderia ser entendida por referência às tipologias de tributo na doutrina e legislação portuguesas à data do contrato, mas que tal interpretação não encontrava suporte nos elementos relevantes e, depois de analisados os argumentos das Partes, concluiu que: “A maioria deste Tribunal considera que a linguagem da definição da Cláusula 1.1, no entanto, não sustenta a posição das Requeridas. «Tributos Relevantes» são amplamente definidos como «todos os tipos de tributos, direitos de importação, direitos e deveres aduaneiros e fatores percentuais (“impostos”) imponíveis onde quer que seja, e quando quer que seja». Os termos literais utilizados pelas Partes denotam a intenção de deixar claro que todas as formas de tributação, ou seja, «todas as imposições governamentais» devem ser englobadas nesta definição e, como tal, consideradas Impostos Relevantes para fins do CAE. As exceções – ou seja, as formas de tributação que não devem ser consideradas Tributo Relevante – encontram-se precisamente enumeradas na definição. Nada consta dessa definição que indicie que possam existir outras exceções”;
- O Tribunal Arbitral socorreu-se dos elementos literal, histórico e sistemático, como impõe a lei;
- Logo, a aplicação das regras legais de interpretação não levaria à absolvição das autoras, mas apenas à afirmação do acerto da Sentença Arbitral;
- O que está em causa não é uma não aplicação do Direito constituído, mas, antes, um desacordo quanto ao modo como o Tribunal Arbitral interpretou o conceito de Relevant Taxes por referência à definição contratual da Cláusula 1.1 do CAE.;
- Nenhum dos princípios e regras invocados pelas autoras são violados pelo resultado a que conduz o dispositivo da sentença arbitral: quanto à suposta violação de obrigações de serviço público impostas aos Estados-Membros e ao princípio da separação de poderes, porque a ré, ao contrário do referido, não recebeu qualquer benefício de garantia de potência, pelo que não está a ser beneficiada duas vezes, como é afirmado, assim como não é correcto que a autora REN Trading não tenha capacidade para suportar os custos que a ré teve com o Mecanismo de Financiamento ou que, se as autoras os assumirem, fique em causa a certificação da autora REN Eléctrica como ORT;
- A Tarifa Social foi concedida aos consumidores vulneráveis e a ré suportou os custos do Mecanismo de Financiamento, tal como previsto na lei;
- A determinação do ente responsável pelo financiamento da Tarifa Social através do DL Tarifa Social é apenas relevante para a dimensão externa do CAE não relevando para efeitos das relações entre as Partes (enquanto entidades privadas) e a Sentença Arbitral apenas trata da dimensão interna do CAE;
- Os custos com o Mecanismo de Financiamento já tiveram lugar e o desconto corporizado na Tarifa Social já foi concedido aos consumidores, pelo que não existe qualquer risco de os consumidores vulneráveis dele não poderem beneficiar, sendo que o que está em causa é o cumprimento do CAE pelas autoras, internalizando o custo;
- Não faz qualquer sentido qualificar o Mecanismo de Financiamento como uma obrigação de serviço público, ao contrário do que sucede com a Tarifa Social; as prestações pecuniárias em que se consubstancia o financiamento de obrigações de serviço público não são, elas próprias, obrigações de serviço público, tendo natureza e finalidade distintas;
- Se a imposição de financiamento da Tarifa Social fosse uma obrigação de serviço público, dado o seu carácter ablativo, precisaria de ser compensada, sendo manifestamente ilógico que o financiamento da Tarifa Social tivesse de ser, ele próprio, financiado;
- O cumprimento pontual do CAE não coloca em causa a certificação da autora REN Eléctrica, pois que tal certificação considerou expressamente a manutenção do contrato nos precisos termos em que foi celebrado, acrescendo somente a adesão da autora REN Trading;
- As autoras não fazem o mínimo esforço para demonstrar, de modo claro, preciso e sustentado, que os princípios da racionalidade e eficiência económica do sector eléctrico e da segurança no abastecimento integram a ordem pública internacional portuguesa;
- Além disso, as razões subjacentes às violações da ordem pública invocadas são baseadas em eventualidades meramente especulativas, sem amparo na realidade, podendo, aliás, a autora REN Trading suportar os custos através de uma multiplicidade de vias, que incluem a aportação de capital pela sua sociedade-mãe, REN Redes Energéticas Nacionais, SGPS, S.A.;
- A REN Redes Energéticas Nacionais, SGPS, S.A. registou, em 2022, um resultado líquido de 111.771.000,00 (cento e onze milhões, setecentos e setenta e um mil euros) milhões de euros (o que representou um incremento de 15% em relação a 2021) e, até Junho de 2023, registou um resultado líquido superior a 63 milhões de euros (correspondente a um crescimento de 37,5% face ao período homólogo de 2022)
- Ademais, a obrigação de compensar a ré pelos custos incorridos com o Mecanismo de Financiamento foi livre, informada e voluntariamente aceite pelas autoras, que a cumpriram, nos termos do CAE, até ao ano de 2014 e continuaram a cumprir mesmo após a reformulação do SEN e o estabelecimento dos princípios aqui em causa no Direito europeu, que agora afirmam constituir impedimento;
- As autoras não demonstram um nexo inultrapassável entre o teor da Sentença Arbitral e o resultado consistente em ser o operador de rede a financiar uma actividade de produção e a sua intolerabilidade pelo sistema;
- Além disso, o que resulta do processo de certificação da REN Eléctrica é que a REN Trading, gere, até ao respectivo termo, os dois contratos de aquisição de energia (CAE) que não foram objecto de cessação antecipada ao abrigo de DL n.º 240/2004, de 27 de Dezembro, cabendo-lhe, de acordo com o estabelecido no DL n.º 172/2006, de 23 de Agosto, com a redacção do DL n.º 215-B/2012, de 8 de Outubro, revender no mercado grossista a energia eléctrica produzida pelas centrais enquadradas por esses CAE e pagar essa energia aos proprietários destas centrais, com base nos custos definidos nos respectivos CAE, estabelecidos num contexto histórico anterior ao unbundling da actividade de transporte face à actividade de produção, entre os proprietários das centrais e a entidade que, à data, era responsável pela gestão do sistema e que actuava como comprador único;
- A REN Trading apenas foi criada para satisfazer as obrigações estabelecidas nos CAE e a sua actividade tem um carácter temporário, até ao termo dos CAE em 2021 e 2024;
- Em terceiro lugar, a ERSE considera que o peso das centrais eléctricas abrangidas pelos CAE pode ser considerado residual, representando menos de 1% da capacidade instalada e menos de 2% da electricidade negociada em 2011, quando consideradas no contexto do Mercado Ibérico de Electricidade (MIBEL);
- O regulador sectorial sustentou perante a Comissão Europeia que a autora REN Trading “não pode, por diversas razões, ser considerada um produtor ou vendedor de electricidade”; o unbundling respeita à separação patrimonial, governativa e operacional entre a autora REN Trading e a autora REN Eléctrica enquanto ORT e a certificação desta em nada impactou o CAE e o seu regime;
- Nos termos do n.º 1 do artigo 70.º do Decreto-Lei 172/2006: “[a]té que o processo de extinção dos contratos de aquisição de energia (CAE) esteja concluído, os centros electroprodutores, relativamente aos quais os contratos vinculados ainda se mantenham a produzir efeitos, continuam a operar de acordo com o estabelecido no respectivo contrato e com o disposto no Decreto-Lei n.º 183/95 (…)”; a mesma regulação foi mantida no artigo 300.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/2022, pelo que é o próprio enquadramento legislativo que impõe o cumprimento pontual do CAE;
- O unbundling não é uma proposição fundamental da ordem jurídica do nosso Estado nem reclama aplicação em sentido divergente ao afirmado na Sentença Arbitral, uma vez que na definição do esquema organizativo que corporiza o CAE foi considerado e tutelado;
- Afirmam ainda as autoras que a Sentença Arbitral viola o princípio de pacta sunt servanda porque o direito que a ré se arroga e que a Sentença Arbitral entendeu ter abstractamente direito não se encontra vertido no CAE e, aliás, vai contra decisões vinculativas emitidas pela ERSE, argumento que implicaria aceitar que decisões administrativas modificam unilateralmente contratos entre privados;
- As autoras sustentam ainda que a Sentença Arbitral viola o princípio da protecção dos consumidores pelo facto de a REN Trading não ter como fazer face ao sobrecusto representado pela compensação devida à ré e por implicar que a REN Eléctrica assuma a responsabilidade por tal sobrecusto, podendo perder a sua licença como ORT, colocando em causa a continuidade da prestação do serviço universal de electricidade, argumentos já rebatidos;
- A Sentença Arbitral apenas firma a qualificação contratual do Mecanismo de Financiamento e reconhece que a ré terá direito a ser colocada na posição em que estaria caso o Mecanismo não a afectasse, se demonstrar o respectivo efeito material e que as autoras estão vinculadas a seguir o procedimento previsto no CAE;
- As autoras são duas operadoras privadas, com um conjunto de receitas e de património que estão afectos às suas actividades e o modo como tais receitas e património é gerado não tem qualquer impacto no cumprimento do CAE, especialmente considerando que este não depende da possibilidade de a REN Trading repercutir os custos nas tarifas cobradas aos consumidores;
- Não existe qualquer intervenção estatal, estando apenas em causa a alocação de um encargo financeiro entre entidades privadas, pelo que não há um auxílio de Estado;
- Além do mais, esta matéria está coberta pelo efeito e autoridade de caso julgado resultante do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, pelo que esse argumento nunca seria sequer admissível;
- Também não se verifica o alegado enriquecimento indevido da ré, se vier a ser colocada na posição em que estaria caso o Mecanismo de financiamento não a afectasse se demonstrar o respectivo efeito material, porque a ré nunca beneficiou da garantia de potência e, baseando-se o reembolso da tarifa social no contrato, nele reside a causa deste incremento patrimonial da Tejo Energia, de modo que nunca se poderá falar de um enriquecimento sem causa;
- As autoras não pretendem um controlo da conformidade/tolerabilidade do resultado afirmado na Sentença Arbitral, mas sim um controlo amplo do seu mérito.
A ré pugna, assim, pela improcedência da acção, suscitando ainda que as autoras litigam de má-fé, pois que baseiam a sua causa de pedir, em parte, em fundamentos cuja falta de mérito ou falsidade não desconhecem nem podiam ignorar, desconsiderando o efeito de caso julgado da sentença parcial e do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, peticionado a anulação da sentença arbitral com fundamento em decisões unânimes do painel financeiro e insurgindo-se contra decisões finais e vinculativas a respeito de outra Disputa, com que se conformaram e produzem afirmações falsas, pelo que pede a sua condenação no pagamento de indemnização apta a compensar todos os custos incorridos com os presentes autos, incluindo nomeadamente as custas judiciais e os honorários de advogados e jurisconsultos, devendo ainda ser condenadas no pagamento de uma multa.
Sem prescindir e à cautela, requer ainda a ré, ao abrigo do disposto no artigo 46.º, n.º 8, da LAV, que, caso o Tribunal entenda existir algum fundamento para anulação, seja determinada a suspensão dos presentes autos, concedendo-se ao Tribunal Arbitral a possibilidade de tomar medidas susceptíveis de eliminar algum fundamento para anulação.
Em 30 de Outubro de 2023, após terem requerido prorrogação de prazo, que lhes foi concedida[15], as autoras vieram apresentar resposta, em que argumentam do seguinte modo (cf. Ref. Elect. 657760):
i. Quanto à alegada inadmissibilidade das pretensões anulatórias por respeitarem à decisão do painel financeiro e não à sentença arbitral
- Sustenta a ré que a questão relativa à natureza da Cláusula 20ª do CAE, enquanto ‘cláusula de estabilidade’, se encontra referida expressamente no § 165 da decisão do Painel Financeiro e que foi decidida de forma unânime, sendo que a simples leitura desse parágrafo basta para se concluir que ali não é feita qualquer referência (nem tácita, nem muito menos expressa) a uma putativa apreciação da Cláusula 20ª do CAE como ‘cláusula de estabilidade’, pois que contém apenas as considerações do Painel Financeiro, exclusivamente, sobre se as disposições do DL Tarifa Social, são susceptíveis de impedir a aplicação da Cláusula 20ª do CAE;
- No âmbito do procedimento perante o Painel Financeiro, a REN Eléctrica alegou que a consequência jurídica de a Cláusula 20ª do CAE revestir a natureza de ‘cláusula de estabilidade’ é a insusceptibilidade de ser oposta às autoras, sendo que na secção 2.4 da sua decisão o Painel apreciou tal alegação, no confronto com as disposições do DL Tarifa Social, sem apreciar a natureza da Cláusula 20ª do CAE enquanto ‘cláusula de estabilidade”, o que tem influência, entre outras, nas decisões constantes das alíneas b) e c) do § 369 da Sentença Final, tendo tal questão sido suscitada no procedimento arbitral sem que o tribunal Arbitral a tenha apreciado;
ii. As decisões tomadas na Sentença Final por equidade, sem fundamento no Direito constituído
- A alegação da ré quanto ao fundamento de anulação invocado pelas autoras com base na não aplicação do Direito constituído mas sim na equidade constituir argumento que não respeita à Sentença Arbitral, incidindo antes sobre matéria que foi objecto de uma decisão do Painel Financeiro, não contém qualquer referência à questão da determinação do conceito de Relevant Tax, matéria que não foi tratada por aquela decisão do painel, mas ainda que tivesse sido, tal não obsta a que as decisões unânimes fiquem sujeitas a controlo jurisdicional, sob pena de violação do direito à tutela jurisdicional efectiva, a efectuar, não através da reapreciação do seu mérito, mas pela fiscalização da sua validade, nomeadamente através da aferição da sua conformidade com a lei e a ordem pública, estando sujeitas ao escrutínio, in casu, do Tribunal Arbitral, pelo que a recusa do Tribunal Arbitral em considerar e aplicar “as regras, princípios e actos administrativos” enunciados constitui recusa na aplicação do Direito português designado pelas Partes para governar o CAE;
- O Tribunal Arbitral, ao decidir impor a manutenção das decisões unânimes do Painel Financeiro consolidou-as no ordenamento jurídico através da Sentença Final, sendo assim susceptíveis de apreciação em sede de acção de anulação da Sentença Final;
iii. A Sentença Final viola o dever de Unbundling e, assim, a ordem pública internacional do Estado português
- A ré alega que os argumentos em torno da invocada violação de deveres de Unbundling foram expressamente considerados pelo Painel Financeiro, integrando a decisão unânime, pelo que não respeitaria à Sentença Final e, como tal, não seriam admissíveis, mas estando tais decisões consolidadas por esta sentença final, é esta susceptível de apreciação em sede de acção de anulação da Sentença Final;
- O fundamento de anulação com base em ofensa dos princípios da ordem pública internacional do Estado português reporta-se ao conteúdo da Sentença Final e a quaisquer considerações (relevantes para as decisões) dela constantes;
iv. A Sentença Final viola o Direito da Concorrência da União Europeia e, assim, a ordem pública internacional do Estado português
- A ré alega ainda que o fundamento de anulação da Sentença Final relacionado com a violação do Direito da Concorrência da União Europeia respeita igualmente a questão que foi apreciada e decidida de forma unânime pelo Painel Financeiro, aplicando-se também aqui o entendimento segundo o qual o Tribunal Arbitral, ao decidir impor a manutenção da decisão do Painel Financeiro e desconsiderar os fundamentos de natureza legal suscitados pelas autoras, consolidou aquela decisão no ordenamento jurídico através da Sentença Final, pelo que é susceptível de apreciação em sede de acção de anulação da Sentença Final;
- O Tribunal Arbitral ao decidir que, se comprovado o efeito material da Tarifa Social, “a Requerente tem direito a uma alteração do Encargo de Potência, nos termos da Cláusula 20.4 e ponto 10, do Anexo 11 do CAE”, concedeu à ré um direito a ser compensada pelos custos incorridos com o financiamento da Tarifa Social, o que determina a concessão de um apoio de Estado, que é vedado pelo artigo 107.º, n.º 1, do TFUE
v. A autoridade de caso julgado
- Segundo a ré, a Sentença Parcial teria consolidado as referidas decisões no ordenamento jurídico, nomeadamente as tomadas por unanimidade que, assim, teriam passado a ser “imutáveis” e que na impugnação dessa sentença as autoras nunca suscitaram a invalidade das decisões do Painel Financeiro ou a incompatibilidade da sua manutenção com a ordem pública internacional do Estado português, pelo que se teriam conformado com a possibilidade de as decisões unânimes do Painel Financeiro se tornarem imutáveis, em caso de insucesso da pretensão anulatória, mas, ao contrário, todas as pretensões anulatórias invocadas se reportam a decisões e ao teor da Sentença Final e/ou aos seus efeitos no ordenamento jurídico;
- Na Sentença Parcial o Tribunal Arbitral não procedeu a qualquer apreciação da validade das decisões do Painel Financeiro; ao invés, limitou-se a determinar o que entendia serem decisões do Painel Financeiro, tomadas por maioria ou unanimidade, para determinar o âmbito da sua competência para reapreciar o mérito das questões previamente submetidas ao Painel;
- As autoras estavam legalmente impedidas de impugnar as decisões do Painel Financeiro no âmbito da impugnação da Sentença Parcial, estando igualmente legalmente impedidas de submeter nos autos de anulação da Sentença Parcial as pretensões anulatórias apresentadas nos presentes autos;
v.a. A decisão do Supremo Tribunal de Justiça sobre a Sentença Parcial não contém qualquer decisão com autoridade de caso julgado com relevância jurídica no contexto das pretensões anulatórias das Autoras
- A Ré entende que, como a anulação da sentença arbitral com fundamento na ofensa dos princípios da ordem pública internacional do Estado português é de conhecimento oficioso, deve considerar-se que, ao decidir manter a Sentença Parcial, o Supremo Tribunal de Justiça “entendeu ser conforme à ordem pública internacional do Estado português o resultado da Sentença Parcial”, incluindo no que respeita às decisões do Painel Financeiro nela mencionadas, mas nenhuma referência constante da decisão do Supremo Tribunal de Justiça apresenta qualquer indício de que o Tribunal tivesse aferido se o teor da Sentença Parcial seria ofensivo da ordem pública internacional do Estado português, designadamente no que respeita ao teor e aos efeitos das decisões do Painel Financeiro referidas na Sentença Parcial, tanto mais que apenas lhe incumbia aferir da conformidade da decisão interlocutória sobre competência, ao abrigo das subalíneas i) e iii) da alínea a) do n.º 3 do artigo 46.º da LAV;
v.b. Não existem decisões finais e vinculativas tomadas ao abrigo do CAE susceptíveis de impedir a alegação dos fundamentos anulatórios
- A ré invoca ainda alegadas decisões finais e vinculativas que constariam de decisão proferida, por maioria, por um painel financeiro constituído para apreciar as pretensões da ré a respeito do litígio ISP, mas nesse procedimento as autoras não deixaram de manifestar a sua discordância com as referidas decisões não unânimes do painel financeiro e o tribunal arbitral do litígio ISP não confirmou nem infirmou as tais decisões do painel financeiro invocadas pela ré porque não as apreciou;
- A decisão do painel financeiro do litígio do ISP foi proferida em Junho de 2019 e nessa data não havia um claro entendimento sobre se aquilo a que a ré agora se refere como decisões eram, de facto, verdadeiras decisões ao abrigo do CAE, sujeitas aos efeitos previstos no seu Anexo 9, questão que integrou o objecto da acção de anulação da Sentença Parcial, sendo que por acórdão de 2 de Junho de 2021, este Tribunal decidiu que as considerações do painel financeiro espalhadas pela sua decisão, não podiam considerar-se decisões para efeitos do procedimento de resolução de litígios do Anexo 9 do CAE e apenas no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Novembro de 2021, se veio a entender que no “corpo” da decisão do painel financeiro poderia considerar-se haver decisões para efeitos do Anexo 9 do CAE;
- No momento em que foi proferido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça a respeito do conceito de ‘decisão’ do painel financeiro, o procedimento arbitral do litígio ISP encontrava-se praticamente concluído, aguardando a prolação da sentença arbitral, pelo que nesse procedimento as autoras não se insurgiram contra as tais decisões do painel financeiro ora invocadas pela ré, impugnando-as, porque, à data (Outubro de 2019), nenhum indício havia de que se estava perante verdadeiras decisões para efeitos do procedimento de resolução de litígios do Anexo 9 do CAE;
- Tais decisões não unânimes do painel financeiro em nada se relacionam, por exemplo, com as situações de omissão de pronúncia imputadas pelas autoras à Sentença Final;
- E as decisões proferidas por painéis financeiros constituídos ao abrigo do CAE têm efeitos meramente obrigacionais e, como tal, não limitam sequer o direito que assiste às autoras de apresentarem as suas pretensões à luz do Direito constituído e da ordem pública;
vi. Litigância de má-fé
- Atenta a incompletude da alegação e a falta de fundamento do seu pedido condenatório, resulta que a ré apenas pretende impressionar este Tribunal apresentando pretensão cuja falta de fundamento não pode ignorar, porque o teor dos articulados permite constatar que as autoras e a ré têm entendimentos diferentes (até contrários) relativamente aos efeitos da Sentença Parcial, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e das considerações constantes da decisão do painel financeiro do litígio ISP, o que não constitui litigância de má-fé, sendo que o entendimento sufragado pelas autoras relativamente às três questões colocadas em crise pela ré na oposição constitui a sua perspectiva jurídica dos factos destes autos, sendo alicerçado na sua melhor interpretação das disposições da lei aplicável à causa, assim como em reconhecida doutrina nacional.
Pronunciaram-se ainda as autoras sobre o parecer subscrito pelo Professor Doutor Dário Moura Vicente e concluíram pela improcedência das excepções dilatórias e do pedido de condenação como litigantes de má fé.
Por requerimento de 13 de Novembro de 2023, a ré, considerando que o requerimento das autoras não contém apenas uma resposta às excepções invocadas na contestação, discorrendo ainda sobre matéria de defesa, pugnou pela inadmissibilidade parcial de tal requerimento, pedindo que sejam tidos por não escritos os artigos 12º a 23º, 24º a 26º, 47º a 61º, 141º a 148º, 151º a 159º e 160º a 165º do requerimento de 30 de Outubro de 2023 e, subsidiariamente, caso se mantenham, que lhe seja dada oportunidade para exercer o contraditório (cf. Ref. Elect. 659858).
As autoras pugnaram pelo indeferimento do requerido pela autora (cf. Ref. Elect. 662133).
Em 29 de Janeiro de 2024 foi proferido despacho pela ora relatora dando conta às partes que se ponderava apreciar a competência absoluta, em razão da matéria, desta Relação para a apreciação da presente causa, por se perspectivar uma eventual competência do Tribunal Central Administrativo, convidando-as a, querendo, se pronunciarem sobre tal matéria (cf. Ref. Elect. 20813464).
Por requerimento de 12 de Fevereiro de 2024, as autoras mencionam o facto de o contrato em discussão ser qualificado como um contrato de natureza privada, mas submetido a intensas vinculações regulatórias que condicionam a autonomia das partes, estando funcionalizado à prossecução do interesse público, conforme alegaram na petição inicial, sendo complexa a determinação da jurisdição competente, mas referindo que a natureza cível do litígio entre as partes nunca foi questionada e concluem ser este o Tribunal competente em razão da matéria para aferir da validade da sentença arbitral anulanda, por se tratar de causa cuja competência não se encontra inscrita na esfera de competência de outra jurisdição, designadamente dos tribunais administrativos (cf. Ref. Elect. 676296).
Por sua vez, a ré, por requerimento de 14 de Fevereiro de 2024, veio também sustentar a competência material desta Relação para julgar a presente acção de anulação de decisão arbitral, com a seguinte ordem de fundamentos (cf. Ref. Elect. 676413):
- Foram apreciadas por este Tribunal da Relação de Lisboa e pelo Supremo Tribunal de Justiça várias acções de anulação de decisões arbitrais relativas à interpretação do CAE no contexto de litígios que envolviam a as partes e relativas a um contrato similar, sem que se tenha colocado qualquer questão relativa à competência material destes Tribunais;
- O CAE é um contrato de natureza privada, celebrado entre duas entidades privadas, não estando incluído no perímetro da concessão da RNT à REN Eléctrica, não tendo qualquer ligação com esta;
- Do Anexo II do Decreto-Lei n.º 15/2022, de 14 de Janeiro, que estabelece a organização e funcionamento do Sistema Eléctrico Nacional, que contém as bases da concessão do RNT e que fixa, em particular, o objecto da concessão, não se encontra qualquer menção ou habilitação a que a REN Eléctrica adquira energia dos centros electroprodutores para, subsequentemente, a transportar, o que está excluído, aliás, pela decisão de certificação do Operador da Rede de Transporte proferida pela ERSE;
- Precisamente por não ter qualquer ligação à concessão da RNT é que se atribuiu à REN Trading a gestão dos CAE;
- A posição da REN Eléctrica no CAE, após a inclusão da REN Trading, é a de mero garante das obrigações desta última;
- Não existem no CAE quaisquer prerrogativas de autoridade que indiciem essa ambiência de direito público, tendo as partes afastado expressamente a qualificação da EDP (ou de qualquer entidade que sucedesse na sua posição contratual) como uma entidade dotada de poderes públicos no âmbito da celebração e execução do CAE, conforme Cláusula 3ª, ou seja, não assume no contrato as suas “vestes” de entidade com prerrogativas de direito público, apresentando-se como qualquer outra entidade privada;
- A inserção, no contrato, de uma cláusula de confidencialidade (cláusula 21. do CAE) demonstra que as partes “nunca se sentiram sequer vinculadas pelo princípio da transparência e do acesso à informação e à documentação administrativa” (cf. p. 27 do parecer do Professor Paulo Otero);
- A REN Eléctrica, ao abrigo do CAE, não dispõe de qualquer prerrogativa de poder público típica dos contratos administrativos, não tendo o poder de modificação unilateral dos termos e condições do contrato, pois que toda e qualquer modificação terão de ser feitas por acordo expresso e reduzido a escrito, por ambas as partes, que detêm iguais direitos quanto à resolução do contrato, não se prevendo qualquer resolução com base no interesse público ou situações em que a REN Eléctrica possa resolver o contrato por força de uma qualquer prerrogativa de poder público;
- Existe também um procedimento próprio para modificação do contrato em virtude de alteração substancial das circunstâncias ou de alterações legislativas fiscais;
- O CAE está redigido na língua inglesa, o que não pode ocorrer em contratos e actos administrativos, que devem ser redigidos em português;
- Os contraentes são três entidades privadas, inteiramente detidas por accionistas privados;
- À data da celebração do CAE, vigorava o Decreto-Lei n.º 99/91, de 2 de Março, que estabelecia o regime jurídico do exercício das actividades de produção, transporte e distribuição de energia, ao abrigo do qual existia um sistema misto de produção de energia, dividido entre os produtores titulares de licença vinculada e os produtores titulares de licença não vinculada, sendo que o contrato de vinculação se distinguia do contrato administrativo, previsto no artigo 14.º desse diploma legal, nunca tendo este existido, nem ao abrigo do Decreto-Lei n.º 99/91, nem dos vários diplomas reguladores do sector que lhe sucederam.
Por despacho proferido pela relatora em 13 de Abril de 2024 foi indeferido o requerimento da ré de 13 de Novembro de 2023, mantendo-se, na íntegra, a resposta apresentada pelas autoras (cf. Ref. Elect. 21183919).
Nos termos do artigo 46.º, n.º 2, al. e) da LAV, os presentes autos seguem nesta fase a tramitação do recurso de apelação, com as necessárias adaptações, tendo sido colhidos os vistos legais.
*
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade.
*
Da competência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal da Relação de Lisboa
Conforme se consignou no despacho proferido em 29 de Janeiro de 2024, a presente acção visa alcançar a anulação da decisão proferida pelo tribunal arbitral que incidiu sobre questões que contendem com a aplicação de diversas cláusulas de um contrato de aquisição de energia celebrado entre a Tejo Energia, aqui demandada, e as REN Eléctrica e REN Trading, aqui demandantes, sendo que para a determinação da competência dos tribunais em razão da matéria relevam essencialmente os elementos identificadores da causa, designadamente a causa de pedir, o pedido alicerçado por esta, e as partes, tendo-se em atenção a pretensão tal como é configurada pelo autor – cf. art.º 38º, n.º 1[16] da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto[17].
Esse contrato foi celebrado em 24 de Novembro de 1993, entre um produtor vinculado (a Tejo Energia) e a entidade concessionária da Rede Nacional de Transporte (então, a EDP, Electricidade de Portugal, S. A.), mediante o qual o produtor se comprometeu a vender à referida entidade a capacidade total da sua produção, contrato firmado na vigência do DL 99/91, de 2 de Março, que estabeleceu os princípios gerais do regime jurídico do exercício das actividades de produção, transporte e distribuição de energia eléctrica[18], que nasceu no âmbito da liberalização do mercado energético, com a sua abertura à concorrência, não deixando, porém, de se manterem fortes limitações jurídico-públicas por força da intervenção do Estado regulador, atenta a missão de serviço público subjacente a tal sector.
Como então se referiu, o contrato vigora, actualmente, entre entes privados, sendo um deles, porém, a concessionária da rede nacional de transporte de energia - concessão atribuída à REN – Rede Eléctrica Nacional, S.A. -, como compradora, e, a contraparte, um produtor vinculado de energia, como vendedor, que se obrigou a vender àquela entidade a capacidade total da instalação produtora de acordo com as condições técnicas e comerciais ajustadas entre as partes.
Configurou-se então que tal contrato de aquisição de energia devesse ser qualificado como um contrato administrativo, à luz do Código do Procedimento Administrativo de 1991[19], ou do Código dos Contratos Públicos[20], aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, enquanto relação jurídica administrativa, para efeitos da previsão da alínea e) do n.º 1 do art.º 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais[21], aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, face à ligação do objecto do contrato às finalidades de interesse público, podendo estar sujeito a marcas de administratividade e traços que revelam uma ambiência de direito público nas relações que nele se estabelecem, pelo que se considerou ser de admitir não ser este o Tribunal competente para apreciar a questão submetida a juízo, pertencendo tal competência ao Tribunal Central Administrativo, nos termos do disposto no art.º 59º, n.ºs 1, g) e 2 da LAV.
Auscultadas as partes, vieram estas, contudo, pronunciar-se no sentido da competência, em razão da matéria, desta Relação, para o conhecimento das questões suscitadas nos presentes autos, argumentando com a natureza civil do litígio, apesar das intensas vinculações regulatórias que condicionam a sua autonomia, sustentando que a REN Eléctrica é mera garante das obrigações emergentes desse contrato, que nada tem que ver com o âmbito da concessão desta enquanto operador da rede de transporte, para além de não existirem quaisquer prerrogativas de autoridade que indiciem a mencionada ambiência de direito público, tendo as partes afastado expressamente a qualificação da EDP (ou de qualquer entidade que sucedesse na sua posição contratual) como uma entidade dotada de poderes públicos no âmbito da celebração e execução do CAE, que nele não interveio nas suas “vestes” de entidade com prerrogativas de direito público.
Face ao estatuído no art.º 211º, n.º 1 da CRP, no art. 64º do CPC e no art. 40º, n.º 1 da LOSJ, à jurisdição comum compete apreciar as causas não atribuídas a outra ordem jurisdicional.
A competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual. Em função do primeiro, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial; por força do segundo - o critério da competência residual -, incluem-se na competência dos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum ou a nenhum tribunal especial.
Nos termos do art. 212º, n.º 3 da CRP compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
Na senda deste normativo constitucional, o art. 1º, n.º 1 do ETAF[22] estipula que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.
Decorre desta norma uma cláusula geral positiva de atribuição de competência aos Tribunais administrativos para os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, ou seja, esta é a regra básica sobre a delimitação da competência jurisdicional dos tribunais administrativos no confronto com os demais tribunais, sem prejuízo dos casos em que, pontualmente, o legislador atribua competência a outra jurisdição (como sucede, desde logo, com os casos previstos nos n.ºs 3 e 4 do art.º 4º do ETAF).
No entanto, o critério substantivo assente no conceito de “relações jurídicas administrativas e fiscais” não deve ser entendido como absoluto, pois, como tem entendido o Tribunal Constitucional, “o legislador ordinário, desde que não descaracterize o modelo típico, segundo o qual a regra é que o âmbito da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material, pode sem ofensa à lei constitucional, alterar o perímetro natural da jurisdição, quer atribuindo-lhe algumas competências em matérias de direito comum, quer atribuindo aos tribunais comuns algumas competências em matérias administrativas[23], daí que não constitua impedimento à atribuição aos tribunais comuns de competências em matéria administrativa (como é o caso, por exemplo, das expropriações), ou, em sentido contrário, de atribuição à jurisdição administrativa de competências em matérias de direito comum.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, 1993, pág. 815, referem a propósito do art. 212º, n.º 3 da Constituição:
“Estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais) (n.º 3, in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e os recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.”
Poder-se-á também afirmar que este tipo de relação jurídica pressupõe sempre a intervenção da Administração Pública investida no seu poder de autoridade (jus imperium), isto é, o exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público.
Relação jurídica administrativa é, assim, aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração, de modo que nela pelo menos um dos sujeitos tem de actuar sob as vestes de autoridade pública, investido de ius imperium, com vista à realização do interesse público.
O conceito de relação jurídica administrativa assume-se como decisivo para determinar a competência material dos tribunais administrativos, conceito que a doutrina tem procurado densificar e que maioritariamente tem reconduzido ao sentido tradicional de relação jurídica de direito administrativo, regulada por normas de Direito Administrativo, e que serão aquelas em que “pelo menos um dos sujeitos seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido” – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 8-10-2015, processo n.º 77842/14.0YIPRT.G1.[24]
Um dos modos mais frequentes de se estabelecerem relações jurídicas é através de contrato, que será administrativo quando se possa afirmar que através dele é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica de direito administrativo, isto é, aquela que “confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração” – cf. Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo (vol. III), Lisboa, 1989, pp. 439-440.
Como se discorre no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7-02-2019, processo n.º 13312/17.5T8LSB.L1-6:
“[…] como bem se chama à atenção em Acórdão do Tribunal de Conflitos, é “tendo sempre presente o conceito de relação jurídica administrativa que devem ser lidas e interpretadas as várias alíneas do art.º 4.º do ETAF”, sendo hoje pacífico que a “ lei passou, agora, a incluir na competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal apenas a matéria derivada de contratos administrativos ou dos contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública.
Isto dito, recorda-se que, por relação jurídico-administrativa deve considerar-se, no entender de Carlos Alberto Fernandes Cadilha, toda “a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, inter-administrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou inter-orgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa colectiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem.”
[…] segundo Marcello Caetano, o que na verdade caracteriza o contrato administrativo, é a especial sujeição, nele, do particular ao interesse público, traduzido no dever de acatamento das leis, regulamentos e actos administrativos que se refiram as condições jurídicas e técnicas de carácter circunstancial (não essencial) estipuladas quanto à execução das obrigações contraídas.
Também para Mário Esteves de Oliveira, “sempre que por força de um encontro de vontades entre a administração e particulares, ou entre pessoas colectivas públicas se gere (modifique ou extingue) uma relação jurídica regulada por normas de direito público, aí temos um contrato administrativo”.
Ou seja, e como também o defende Mário Aroso de Almeida, “as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas segundo um critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teleológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis”, e, consequentemente, “serão relações jurídicas administrativas as derivadas de actuações materialmente administrativas, praticadas por órgãos da Administração Pública ou equiparados”.”
Nem sempre é fácil identificar a natureza do contrato que motivou as relações conflituais, não sendo bastante para o efeito a presença de um contraente público e a ligação do objecto do contrato às finalidades de interesse público que esse ente prossiga, sendo essencial atentar nas características que decorrem das relações estabelecidas e que possam implicar a convocação de regras de direito público.
O contrato há-de estar conexionado à realização de um resultado ou interesse especificamente protegido no ordenamento jurídico, se e enquanto se trata de uma tarefa assumida por entes da própria colectividade, isto é, interesses que só têm protecção específica da lei quando são prosseguidos por entes públicos (ou por quem actue no contexto de «concessão» pública) – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19-12-2019, processo n.º 18362/19.4YIPRT.E1.
Além da cláusula geral positiva de atribuição que emerge do art.º 1º do ETAF, o art.º 4º, n.º 1 deste diploma legal contém uma enunciação de matérias que, em concreto, são identificadas como sendo da competência dos tribunais administrativos. Quando o litígio não encontre acolhimento naquele elenco, haverá que determinar o que define uma relação jurídica como sendo de natureza administrativa.
Como refere Maria Helena Barbosa Canelas, in A amplitude da Competência Material dos Tribunais Administrativos em sede de Acções Relativas a Responsabilidade Civil Contratual[25]:
“Na verdade, é na área dos litígios relativos a contratos (e através daquelas normas) que sobretudo se operam os maiores desvios ao enunciado critério material (geral) de delimitação da competência dos Tribunais Administrativos […]. É que se bem que na exposição de motivos da Proposta de Lei de onde emergiu o actual ETAF se tenha referido que a atribuição de causas não administrativas à jurisdição administrativa na necessidade de superar «as maiores dificuldades no traçar da fronteira com o âmbito da jurisdição dos tribunais comuns» que tradicionalmente se colocavam, quer pela dificuldade de distinguir o direito administrativo do direito privado quer pela confluência e interpenetração de ambos na regulação de uma mesma regulação jurídica, com as alterações entretanto introduzidas o ETAF acabou por ficar recheado de casos em que se exige essa distinção. […] Estas dificuldades de distinção não impediram o legislador de considerar administrativos aqueles contratos que sejam regulados, em aspectos substantivos do seu regime, por normas de direito público, exigindo, portanto, que se distinga entre contratos administrativa e civilisticamente regulados exactamente para estes mesmos efeitos.”
A alínea e) do n.º 1 do art. 4º do ETAF estende a competência dos tribunais administrativos a questões atinentes à interpretação, validade e execução não só de contratos administrativos mas também de quaisquer outros contratos, administrativos ou não, celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.
E a este propósito refere-se no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2022, de 26 de Abril de 2022[26], que a partir da entrada em vigor do CCP a delimitação da figura do contrato administrativo[27], passou a efectuar-se de modo mais cristalino, daí que a alínea e) do n.º 1 do art.º 4º do ETAF para ele remeta embora dela resulte “como já sucedia antes da revisão de 2015 (ou seja, desde a redacção inicial do ETAF de 2002), que a jurisdição administrativa, em matéria de contratos, não se circunscreve aos contratos administrativos, continuando a estender o âmbito da jurisdição administrativa a «quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas de direito público ou outras entidades adjudicantes», ou seja, «o âmbito da jurisdição administrativa em matéria de contratos é mais amplo do que a categoria dos contratos administrativos: o critério do contrato administrativo é um dos critérios adotados pelo art. 4.º/1 do ETAF, mas não é o único critério do qual ele faz depender a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de contratos, pois há outro critério, o da submissão do contrato a regras de contratação pública.»”
Para a delimitação deste âmbito contribui o CCP, que no seu art.º 1º torna claro que se encontram na esfera dos tribunais administrativos litígios atinentes a matéria contratual reportada a certo tipo de contratos.
Neste sentido, como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7-02-2019, processo n.º 13312/17.5T8LSB.L1-6 já acima mencionado:
“[…] como o chamam à atenção Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, vem o Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro [maxime o respectivo artº 1º, na Redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 149/2012, de 12 de Julho] a tornar mais claro que a alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF […] sujeita à apreciação dos tribunais administrativos os litígios em matéria contratual respeitantes a dois tipos/grupos:
I)– Os contratos administrativos, cujas relações jurídicas emergentes são submetidas a um regime substantivo de direito administrativo, sendo que, devem como tal ser qualificados (em face dos artigos 1.º, 3.º e 8.º do CCP) e, por conseguinte, submetidos à jurisdição administrativa:
(a) - os contratos que a própria lei directamente submete a um regime substantivo de direito público, sendo que integram este grupo:
(i) os contratos administrativamente típicos previstos no Título II da Parte III do CCP;
(ii) os demais contratos administrativos típicos previstos em legislação avulsa; e
(iii) os contratos qualificados como administrativos pelas alíneas b) e c) do n.º 6 do artigo 1.º do CCP [actualmente, art.º 280º, n.º 1, b) e c) do CCP, na redacção do Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de Agosto, com início de vigência em 1 de Janeiro de 2018]; e
(b)- os contratos atípicos com objecto passível de contrato de direito privado que, em conformidade com o disposto nos artigos 1.º, n.º 6, alínea a), 1.º e 8.º do CCP, são administrativos quando uma das partes seja um contraente público e as partes expressamente submetam a um regime substantivo de direito público [actualmente, art.º 280º, n.º 1, a) do CCP, na redacção do Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de Agosto];
II) – Os contratos que, independentemente da sua designação e natureza, são celebrados pelas entidades adjudicantes a que se refere o CCP e cujo procedimento de formação está sujeito a um regime de direito público, esteja ele previsto no CCP ou resulte de legislação avulsa: esta categoria compreende os contratos administrativos previstos na alínea d) do n.º 6 do artigo 1.º do CCP [alínea d) do n.º 1 do art. 280º], mas não se esgota nela, porque se estende a todos os contratos submetidos a regras pré-contratuais públicas, independentemente da natureza das prestações que eles possam ter por objecto.”
Importará, pois, saber, se a decisão arbitral anulanda, abordou questões de execução/interpretação de um contrato - o CAE -, passível de ser integrado no tipo de relações jurídicas abrangidas pelas alíneas do n.º 1 do art.º 4º do ETAF.
O CAE foi, como se referiu, celebrado em 24 de Novembro de 1993, na vigência do DL 99/91, de 2 de Março, que estabeleceu os princípios gerais do regime jurídico do exercício das actividades de produção, transporte e distribuição de energia eléctrica, tendo surgido no âmbito da liberalização do mercado energético, com a sua abertura à concorrência, com o acesso de entidades privadas ao exercício das actividades de produção, transporte e distribuição de energia eléctrica para consumo público, sem se deixar, porém, de ter presente que a importância fulcral do sector energético no desenvolvimento da economia nacional exigia a sua organização em termos de a energia poder ser oferecida em quantidades e preços que permitissem a intensificação das actividades económicas em condições de concorrência de mercado.
Refere-se, aliás, no Preâmbulo do diploma legal o seguinte:
“Considerando, todavia, a particular natureza da energia eléctrica como bem de indesmentível interesse público, não pode o Governo alhear-se da imperiosa necessidade de garantir o seu abastecimento fora dos quadros da mera iniciativa dos empresários. Lança-se, assim, um quadro misto em que se estimula a iniciativa privada e se mantém ainda uma zona nuclear, em regime de concessão de serviço público, bastante para garantir a segurança do abastecimento do País.
Nesta óptica, estabelece-se um sistema eléctrico de abastecimento público (SEP), constituído por um lado uma Rede Nacional de Transporte de Energia Eléctrica (RNT), explorada em regime de concessão de serviço público, e que compreende a rede de transporte de energia eléctrica em alta e muito alta tensão, a rede de interligação e o despacho nacional e, por outro, por entidades que, em regime contratual, se vinculam ao sistema: a montante os produtores, a jusante os distribuidores.
À RNT é confiado, assim, o papel de coordenador do sistema, deste modo assegurando quer a conjugação dos interesses em causa quer a estabilidade e segurança do abastecimento público.
Fora do quadro da concessão de serviço público, estabelece-se o regime de exercício de actividade mediante licença, que comporta dois tipos: a licença vinculada para os que pretendam fazer parte do sistema, abastecendo-o ou por ele sendo abastecidos, mediante contratos a celebrar com a RNT; e a licença não vinculada, para os que pretendam exercer as actividades para uso próprio ou de terceiros, em claro regime de concorrência.
Por outro lado, quando o exercício das actividades relativas à energia eléctrica envolva a utilização de bens do domínio público ou privado do Estado ou das autarquias, prevê-se a celebração de contrato administrativo, que então englobará a licença.”
A satisfação das necessidades dos consumidores seria então assegurada pelo Sistema Eléctrico de Abastecimento Público, que compreendia a Rede Nacional de Transporte de Energia Eléctrica e o conjunto de instalações de produção e redes de transporte e distribuição a ela vinculados, nos termos desse diploma legal – cf. art.º 4º, n.º 2.
O art.º 11º, n.º 2 do DL 99/91, de 2 de Março fazia depender a emissão de licença de produção vinculada da prévia celebração do contrato de vinculação, que surge, em face do enquadramento que se extrai do texto do Preâmbulo e do n.º 3 do art.º 4º, apartado do regime da actividade de concessão de serviço público, estando as entidades vinculadas – os produtores – sujeitas ao “regime contratual”.
E embora o diploma não esclareça se esse regime contratual será regido por normas substantivas de direito privado ou direito administrativo, seguro é que não o qualificou como contrato administrativo, categoria a que submeteu expressamente o exercício de tais actividades quando envolvessem a utilização de bens do domínio público ou privado do Estado ou das autarquias – cf. art.ºs 14º e 15º do DL 99/91, de 2 de Março.
Assim, a legislação específica ao abrigo da qual o CAE foi celebrado não permite, de modo claro, concluir que aquele deve integrar a categoria dos contratos administrativos, face à distinção de figuras jurídicas ali vertida, remetendo-se o produtor vinculado, singelamente, para o “regime contratual” (embora, subsequentemente, o DL 182/95, de 27 de Julho, que revogou aquele diploma legal, faça preceder a celebração do contrato de vinculação de lançamento e condução de um processo de consulta pela entidade concessionária – cf. art.º 15º e seguintes -, o que, porém, no caso não há notícia de ter ocorrido[28]).
Como se referiu acima, não basta a presença de um contraente público e a ligação do objecto do contrato às finalidades de interesse público para qualificar a relação como administrativa, havendo que ter presentes as características das relações estabelecidas e que estas possam implicar a convocação de regras de direito público.
Assim, há que aferir se o CAE se encontra sujeito a regras de contratação pública e se foi celebrado por pessoas colectivas de direito público ou por outras entidades adjudicantes.
Não colhe dúvidas a circunstância de o CAE ter sido inicialmente celebrado entre a EDP – Electricidade de Portugal, S. A., empresa de capitais exclusivamente públicos, que resultou da transformação da empresa Electricidade de Portugal (EDP), E. P. em sociedade anónima, conforme DL 7/91, de 8 de Janeiro e DL 131/94, de 19 de Maio, por meio de cisão simples, deliberada em Assembleia Geral de 18 de Agosto de 1994.
Porém, seguro é também que a EDP foi objecto de reprivatização, com alienação de acções representativas do capital social, que decorreu por diversas fases, tendo a REN – Rede Eléctrica Nacional, S. A., resultado dessa cisão, vindo a ser transformada, em 2007, em holding do grupo e redenominada REN – Redes Energéticas Nacionais, SGPS, que detém a REN – Rede Eléctrica Nacional, S. A. e a REN Trading[29].
Por sua vez, a Tejo Energia é uma sociedade comercial constituída de acordo com o Direito português, consistindo numa joint-venture entre a TrustEnergy, com uma participação de 56,25%, e a Endesa Generación com 43,75%[30].
Trata-se, assim, de sociedades comerciais regidas pelo Direito Privado, sem qualquer capital do Estado português e maioritariamente controladas por investidores estrangeiros.
Como tal, as contrapartes actuais do CAE não são pessoas colectivas de direito público e, por outro lado, não podem ser consideradas entidades adjudicantes, para efeitos do disposto nos art.ºs 2º e 3º do CCP e art.º 4º, n.º 1, e) do ETAF.
E apesar de a REN Eléctrica ser a concessionária do serviço público de operação da rede de transporte de electricidade, ainda assim, tendo em conta que na economia do CAE aqui em presença, aquela acaba por intervir como garante das obrigações de quem actua como adquirente da energia – a REN Trading -, ou seja, na vertente de uma actividade comercial, não se pode dizer que nele actue enquanto entidade dotada de poderes de autoridade ou como contraente público, para efeitos do disposto nos art.ºs 7º e 8º do CCP.
Ademais, como dá nota a ré, as próprias contraentes afastaram, desde o início, a qualificação da EDP, S. A. ou uma sua qualquer sucessora na relação da operação, como uma entidade dotada de poderes públicos, no âmbito da celebração e da execução do CAE, o que emerge da definição do § 1.1 do CAE, no sentido de que a contraente-compradora não é (nem pode) ser qualificada como uma “Competent Authority”[31].
Consequentemente, as próprias partes contraentes cuidaram de deixar claro que a EDP, S. A. ou um qualquer sucessor na sua posição neste contrato, não poderia aqui assumir a qualidade de entidade pública, pelo que a sua intervenção se afigura despida de poderes de autoridade.
Estando em causa um contrato de aquisição de energia junto de um centro electroprodutor, ou seja, uma actividade de produção e comercialização, a REN Eléctrica não actua no contexto do CAE enquanto concessionária da rede de transporte de energia, nem no âmbito do regime de concessão de serviço público.
Não sobram dúvidas que o sector energético esteve sujeito durante muito tempo à intervenção do Estado, promotor e prestador dos respectivos serviços, mas a liberalização do mercado energético veio permitir a intervenção de entidades privadas em actividades não sujeitas a monopólio, permitindo a confluência das relações jurídicas estabelecidas entre as partes com os poderes públicos.
Sobre o enquadramento do sector energético em Portugal e nos países da Europa continental, discorre Filipe Matias Santos, in A Regulação do Setor Energético[32], pp. 37 e seguintes:
“O setor energético é estratégico. […] relevante para a competitividade das empresas, a energia é ainda um serviço de base com relevância em múltiplos outros setores (transportes, ambiente, mercados financeiros, infraestruturas). […]
Em Portugal, como na generalidade dos países da Europa continental, os serviços essenciais de eletricidade e gás natural, como os demais prestados pelas grandes indústrias de redes de capital intensivo, foram geralmente erigidos pelos Estados no pós-guerra, que assumiram a titularidade das tarefas de serviço público.
Paralelamente, o paradigma tradicional de organização dos sistemas elétrico e gasista era o de integração vertical numa única empresa das diferentes funções e atividades que integram a cadeia de valor de cada um dos setores. O Estado, para além de legislador, apresentava-se, as mais das vezes, como detentor do prestador único. O que impedia, desde logo, a concorrência.
Nas últimas décadas, […] muito por força do projecto político-legislativo europeu da criação de um mercado interno da energia, os setores elétrico e do gás natural passaram por uma profunda transmutação, que ditou: o abandono do modelo dos monopólios verticalmente integrados e a abertura (possível) à concorrência; a hétero-regulação dos monopólios naturais (que persistiram), através do acesso regulado, por forma a permitirem a criação de mercados concorrenciais (level playing field); a integração europeia, por via da definição de regras harmonizadas; o apoio a energias de fonte renovável, que aliadas à descentralização da produção e ao desenvolvimento tecnológico, promovem mais recentemente a transição energética, dando lugar a uma maior electrificação da economia […]
A liberalização do setor elétrico no quadro europeu da criação do mercado interno da energia levou, como se viu, a que os segmentos da produção/provisionamento, a montante das redes, e da comercialização, a jusante, bem como os mercados que permitem a compra e venda da energia, pudessem ser abertos à concorrência, num quadro de supervisão setorial.
O caminho trilhado assentou estruturalmente na imposição da separação (unbundling), no direito de acesso de terceiros às redes (third party access ou TPA) e no cumprimento de obrigações regulatórias no quadro da definição tarifária por entidades reguladoras.
O unbundling de actividades foi evoluindo de contabilístico e funcional (basic requirements) para jurídico e, por fim, tendencialmente patrimonial no que respeita aos operadores das redes de transporte. O que permitiu que os operadores das redes, mantendo-se monopolistas, ficassem proibidos de produzir e comercializar energia. Correspondentemente, os produtores e comercializadores puderam passar a atuar em todo o espaço da UE, competindo entre si, incluindo através de mercados organizados.
Por sua vez, os aprovisionadores e produtores, a montante das redes, e os comercializadores, a jusante, passaram progressivamente a poder aceder às redes de forma livre, sem discriminações, contra o pagamento das tarifas de acesso […]
O profundo movimento liberalizador dos sistemas elétrico e de gás natural e o acentuar das regras de mercado não permitiu, contudo, a eliminação de todos os monopólios. As infraestruturas essenciais à intermediação entre a produção, a montante das redes, e a comercialização, a jusante, em virtude das suas características (maxime sub-aditividade, custos afundados – sunk costs – e elevados custos inerentes), avultam enquanto monopólios naturais cuja atividade permanece (necessariamente) excluída da concorrência.
As empresas verticalmente integradas foram sujeitas à separação por atividades e, por sua vez, os operadores das redes ficaram geralmente proibidos de comercializar energia, passando antes a veicular a energia adquirida pelos comercializadores (junto dos produtores, dos comercializadores grossistas ou dos mercados organizados) que é depois vendida aos clientes” […]
No caso português, como noutros, a liberalização das atividades veio a ser acompanhada por um fenómeno de privatizações das empresas energéticas incumbentes. O que ditou que o Estado deixasse de poder condicionar, por via do papel acionista, o comportamento das empresas que operam no sector energético.
Ainda assim, em muitos casos, o Estado manteve-se concedente de atividades que são essenciais ao regular funcionamento setorial. Assim, os operadores das redes dos setores elétrico e de gás natural, atualmente todos de capital privado, operam ao abrigo de contratos de concessão e estão, concomitantemente, sujeitos à regulação económica e à supervisão setorial.
O que redunda num mecanismo de “reforço da responsabilidade de garantia” e mesmo de preservação da titularidade pública, mantendo estas atividades redobradamente sobre poder público. […]
Os contratos de concessão resumem-se a elementos essenciais, vincando que o concedente procede a uma transferência do exercício da atividade que além de temporária é parcial. O que implica não só propriedade resolúvel e momentos concorrenciais quanto à titularidade do exercício da atividade (i.e. de concorrência pela rede), mas também poderes de modificação unilateral do contrato pelo concedente com fundamento no interesse público (ius variandi).”
Não é possível, assim, ignorar o “ambiente regulatório” que, conforme referem os Professores Luís de Lima Pinheiro e Francisco Paes Marques, no seu Parecer de 12 de Maio de 2023[33], perpassa nos direitos e obrigações que emergem do CAE, de modo que esta matéria não pode ser desconectada da soberania do Estado e dos seus poderes de ius imperiicf. página 28 do mencionado Parecer.
A necessária confluência e pontos de encontro que possam ser detectados, por força do contexto regulatório, na articulação entre as relações jurídico-privadas estabelecidas entre sujeitos privados num mercado liberalizado e as relações jurídico-públicas que decorrem da estipulação de direitos e deveres emergentes do exercício de competências jurídico-públicas não têm de conduzir necessariamente à conclusão de que o CAE aqui em presença está sujeito a regulação pública ou, mais especificamente, que a interpretação e aplicação das cláusulas vertidas em tal contrato se devam orientar pelas regras de direito público.
Atente-se que a liberalização do mercado energético permitiu a intervenção de actores privados em alguns dos seus segmentos - produção e comercialização - mantendo a estrutura de monopólio noutros - transporte e distribuição -, de modo que a abertura à concorrência e o livre jogo entre sujeitos privados pressupõe, quanto aos primeiros, a existência de relações paritárias e, quanto aos segundos, a regulação e limitações jurídico-públicas que demandam a manutenção de uma regulação que origina relações de autoridade ou supraordenadas. “Aumentou assim a interação entre Direito Público e Direito Privado, porque se “na base do sistema se encontram sujeitos sob forma jurídico-privada, que atuam nas suas relações de acordo com o Direito Civil e o Direito Comercial (contratos privados), não deixam de existir instrumentos tradicionais do Direito Público que configuram tais relações com vista à proteção da concorrência e do interesse público.” – cf. Parecer acima referido, página 32.
Não obstante isso, os Professores Luís de Lima Pinheiro e Francisco Paes Marques não deixam de reconhecer que o Direito Civil é o Direito comum da actuação dos sujeitos intervenientes no mercado de energia, sobremaneira daqueles que actuam nas actividades de produção e comercialização, ainda que submetidos a poderes regulatórios que visam assegurar a manutenção do abastecimento, a estabilidade dos preços e a protecção do ambiente.
Todavia, sendo possível admitir a sobreposição entre uma relação jurídico-privada decorrente do vínculo que emerge do CAE, enquanto contrato de Direito Privado e certos aspectos dessa relação que são objecto de regulação pública, não se pode deixar de conferir especial relevância, no contexto da presente acção de anulação de decisão arbitral, ao segmento da relação jurídico-privada, pois que a decisão impugnada apreciou a concreta execução e aplicação de cláusulas desse contrato, ou seja, aspectos que sobrelevam essencialmente das estipulações que as partes estabeleceram e a que se obrigaram no âmbito da sua autonomia privada, ainda que tal relação possa ser conformada ou deva suportar a influência do exercício de competências jurídico-publicas, o que não afasta, porém, a competência dos tribunais judiciais para a apreciação das contingências litigiosas, enquanto regidas pelo Direito Privado.
E neste sentido, merecem acolhimento os aspectos do CAE apontados pela ré e que são referidos no Parecer subscrito pelo Professor Paulo Otero, com data de 11 de Dezembro de 2017[34], que depõem no sentido da natureza jurídico-privada das questões submetidas à apreciação do tribunal arbitral:
“(ii) a própria exclusão contratual da publicidade dos termos do contrato ou de qualquer informação adquirida no decurso da sua execução, através do estabelecimento de uma cláusula de confidencialidade. [cfr. Cláusula 2P do CAE PPA)] demonstra que as partes contraentes nunca se sentiram sequer vinculadas pelo princípio da transparência e do acesso à informação e à documentação administrativa. Aliás, o § 21.2, alínea d), do CAE (: PPA) comprova que as partes contraentes apenas consideraram esse princípio da transparência administrativa como determinante nas suas relações com entidades externas — i.e, com as autoridades administrativas competentes ("Coinpetent Authority") —, mas nunca nas suas relações internas ao contrato:
(iii) Em terceiro lugar, a contraente-compradora também não dispõe de qualquer poder de modificação unilateral dos termos e condições do contrato, conforme fica por demais demonstrado pela Cláusula 27a do CAE (: PPA), que exige que toda e qualquer alteração seja feita mediante acordo expresso e reduzido a escrito, por ambas as partes;
(iv) Em quarto lugar, apesar de os §§ 22.1.2 e 22.1.3 do CAE (: PPA) concederem à contraente-compradora um direito à resolução do contrato, esse direito também é concedido, de modo simétrico, à contraente-produtora e, sempre, desde que verificadas determinadas condições objetivas. Todas essas condições objetivas de resolução do contrato emergem de factos que revelariam o incumprimento do mesmo ou a incapacidade de uma das partes para o cumprir (ex: insolvência ou perda da licença de exploração da central elétrica), pelo que não são específicos dos contratos administrativos, sendo usual que constem de qualquer negócio jurídico tipicamente privado.
(vi) Em quinto lugar, a circunstância de o contrato estar redigido em inglês realça a natureza transnacional do contrato e, até, denota alguma preponderância da contraente-produtora (i.e., da Tejo Energia), na medida em que não segue a regra específica dos contratos administrativos, que impõe que todos os documentos administrativos sejam escritos em português (cfr. artigo 54.º do CPA/2015 e artigos 58.º, n.º 1. 86.º. n.º 1, alínea c). 169.º, n.º 1, 170.º, n.º 4, 211.º, n.º 1, 468.º, n.ºs 1 e 2, todos do CCP2008, tal como sucessivamente alterado42);
(vi) Em sexto lugar, por último, nem sequer em caso de alteração substancial de circunstâncias ("change in circumstances"), incluindo de alterações legislativas fiscais ("change in law"), o contrato admite que a contraente-compradora possa alterar, unilateral e contra a vontade da Tejo Energia, as condições contratuais livremente negociadas e estabelecidas entre ambas: quanto à primeira situação (conforme melhor se demonstrará infra), o Apêndice 11 prevê um complexo e intrincado processo de composição amigável e negociada de qualquer diferendo que decorra de eventual alteração circunstancial de circunstâncias, incluindo um processo de resolução alternativa de litígio; no respeitante à segunda situação […], a Cláusula 20ª do CAE (: PPA) também estabelece um procedimento para notificação de acréscimos de custos e de encargos decorrentes de alterações fiscais, determinando um procedimento de negociação bilateral acerca da necessidade da adaptação e equilíbrio do contrato.”
Estes aspectos realçam a natureza predominantemente jurídico-privada do contrato e tanto mais assim será se se tiver presente que, não obstante os poderes regulatórios cuja incidência e influência sobre o contrato serão detectáveis, do que se trata, in casu, ainda e sempre, é de cuidar da aplicabilidade ou não da Cláusula 20ª do CAE e das consequências que dessa aplicação a ré (demandante na acção junto do tribunal arbitral) pretendia retirar.
E o Professor Paulo Otero adita ainda a seguinte argumentação:
“[…] ainda que, por mera hipótese académica, se admitisse que o contrato celebrado, em 1993, tivesse tido uma originária natureza administrativa, a verdade é que, por efeito da privatização integral do capital social da parte inicialmente sujeita a influência pública dominante, ter-se-ia operado uma transfiguração da inicial natureza administrativa do referido contrato, agora assumindo natureza privada.
É que, no limite, se é certo que entidades integrantes da Administração Pública podem ser partes de contratos de Direito Privado, temos como insustentável que entidades privadas, sem qualquer influência pública dominante, possam, entre si, ser partes de contratos administrativos.
2.13. Ainda assim, apesar de, presentemente, ser uma empresa privada (por ser exclusivamente detida por outra empresa privada: a REN — Redes Energéticas, SGPS, S.A.), a REN — Rede Eléctrica Nacional, S.A., mantém o estatuto de concessionária" da Rede Nacional de Transporte de Energia Elétrica (RNT), exercendo poderes de autoridade administrativa (e estando sujeita às correspondente vinculações jurídico-públicas), na medida — e apenas nessa medida — em que os exerça.
De qualquer modo, a relação contratual subsistente entre aquela e a Tejo Energia, cujos direitos e demais estipulações contratuais foram expressamente salvaguardados pelo artigo 66° do Decreto-Lei n° 182/95, de 27 de julho, corresponde à que resulta de um negócio jurídico originariamente celebrado em 24 de novembro de 1993, que assume um cunho marcadamente privado (v. supra, § 2.11.). Tanto mais que o CAE (: PPA) apenas regula a relação de compra e venda de energia produzida pela Tejo Energia, não versando sobre qualquer dimensão relativa ao respetivo transporte até às entidades encarregues da sua distribuição e comercialização.
Por conseguinte, na sua relação interpessoal com a Tejo Energia, a REN — Rede Eléctrica Nacional, S.A., atua como se de um verdadeiro agente privado se tratasse.
2.14. Por outro lado, a REN — Trading, S.A. também surge como uma pessoa coletiva exclusivamente privada, desde a venda das participações públicas da sua sociedade-mãe (a REN — Redes Energéticas Nacionais, SGPS, S.A.), em 16 de junho de 2014.
Ora, desde o segundo aditamento ao CAE (: PPA), em 29 de janeiro de 2010, a REN — Trading, S.A., aderiu ao contrato, ainda que a REN — Rede Eléctrica Nacional, S.A. se tenha mantido, igualmente, corno contraente. No fundo a REN — Trading, S.A., assumiu uma posição solidária com a REN — Rede Eléctrica Nacional, S.A., mas passou a assegurar as funções de gestora do CAE (: PPA), tratando, designadamente dos contactos quotidianos com a Tejo Energia e supervisionando os aspetos financeiros do contrato em execução, entre os quais, a faturação, respetiva verificação e pagamento das contrapartidas decorrentes do mesmo.
Essas funções, de cunho marcadamente comercial, contribuem, ainda mais, para reforçar a qualificação da sua atuação enquanto mero sujeito privado, despido de quaisquer poderes ou prerrogativas públicas.
2.15. A finalizar, conforme já melhor demonstrado supra", reitera-se apenas que a Tejo Energia — Produção e Distribuição de Energia Eléctrica, S.A., apesar de ser uma sociedade comercial constituída de acordo com o Direito português e sedeada em Portugal é exclusivamente detida por capitais estrangeiros, através de uma "joint-venture" transnacional, entre a "joint-venture" TrustEnergie (que associa a Engie e a Marubeni) e a Endesa, aliando capitais essencialmente ingleses, franceses, japoneses e espanhóis.
Como tal, a Tejo Energia é uma empresa exclusivamente privada, não se encontrando sujeita ao controlo (ou sequer à participação), seja do Estado português, seja de qualquer outro Estado soberano ou respetiva pessoa coletiva pública que deles possa depender.
2.16. O verificar que, à presente data, o CAE (: PPA) corresponde a um negócio jurídico que apenas vincula pessoas coletivas privadas, exclusivamente detidas por capitais estrangeiros, reforça a convicção de que o diferendo jurídico cuja apreciação nos foi solicitada se circunscreve a um problema de puro conflito de interesses privados detidos e prosseguidos por grupos (antagónicos) de investidores estrangeiros.
Desse modo, ainda que, por hipótese, o contrato em causa pudesse ter tido uma origem administrativa, a verdade é que a privatização do capital da REN acarretou uma privatização dos interesses envolvidos em ambas as partes contratuais: há uma pura lógica privada a dominar as condutas de ambas as partes.
Independentemente das soluções de política-legislativa (em especial, fiscal) que os órgãos de soberania portugueses possam ter tomado (ou vir a tomar), certo é que o diferendo ora em apreço se situa e circunscreve à dinâmica interna e intersubjetiva de um contrato que apenas envolve sujeitos de Direito Privado, dominados por uma conduta assente em propósitos lucrativos e numa lógica inerentes a interesses privados".
Não se descortinam razões para dissentir desta linha de raciocínio.
Mais do que isso, admitindo, é certo, a integração do CAE num sector fortemente regulado, não se pode deixar de realçar que o que se regula nesse contrato é a relação de compra e venda de energia produzida pela Tejo Energia, não estando em causa os segmentos de mercado do transporte e distribuição, mantidos actualmente sob o regime de concessão, nem a REN Eléctrica intervém enquanto concessionária da rede de transporte, mas como garante do cumprimento das obrigações do contraente adquirente da energia eléctrica.
Por fim, não será totalmente despiciendo para a questão da aferição da competência atentar na circunstância de a presente arbitragem ter seguido os trâmites da LAV, a que obedecem também os tribunais arbitrais constituídos para conhecimento das questões enunciadas no art.º 180º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos[35], mas não deixando de se lhes aplicarem normas específicas que, ao que se constata, nenhuma das partes sequer ponderou no decurso da arbitragem que conduziu à decisão anulanda, o que relevará para efeitos de se considerar que não terá sido sequer configurada a sujeição da questão à competência da jurisdição administrativa – cf., entre outros, os art.ºs 181º, n.º 4, 185º-A e 185º-B do CPTA.
Assim, não se mostrando-se preenchida a fattispecie do citado art. 4º, n.º 1, alínea e), segunda parte do ETAF, há que concluir pela competência material deste Tribunal da Relação para o julgamento do presente litígio.
*
O Tribunal é competente em razão da hierarquia.
Não existem vícios que anulem todo o processo.
As partes, dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade.
Não se verificam outras excepções dilatórias ou nulidades de que cumpra conhecer.
*
Conforme se consignou já no despacho proferido em 13 de Abril de 2024, não existe prova a produzir, relevando para a apreciação da causa a factualidade que emerge dos próprios autos do processo arbitral.
*
QUESTÕES A DECIDIR
Nos presentes autos impõe-se saber se a decisão arbitral em apreciação enferma de vícios que conduzam à sua anulação, tal como peticionado pela requerente.
Para o efeito, cumpre apreciar se estão verificados e são relevantes os seguintes vícios que vêm suscitados pelas autoras:
a) Omissão de pronúncia:
i.Inconstitucionalidade do financiamento da Tarifa Social se considerado uma “forma de tributação”;
ii.A cláusula 20.ª do Contrato de Aquisição de Energia como cláusula de estabilidade
b) Processo arbitral desconforme com a convenção das partes e com a LAV:
i.O Tribunal arbitral não fundamentou a sua decisão no Direito constituído, tendo decidido por equidade;
ii.A não aplicação do Direito constituído teve influência decisiva na resolução do litígio:
(a) A aplicação das regras, princípios e actos administrativos de Direito público conduziria necessariamente à absolvição das autoras do pedido:
(1) O CAE está funcionalizado à prossecução do interesse público, o que condiciona a autonomia contratual das partes;
(2) O regime instituído pelo diploma da Tarifa Social modificou o CAE;
(3) As decisões da ERSE acerca da impossibilidade de repercussão dos custos incorridos com a Tarifa Social modificaram o CAE;
(4) A decisão de certificação da autora REN Eléctrica vincula a ré
(b) A aplicação das regras legais em matéria de interpretação do contrato conduziria necessariamente à absolvição das autoras do pedido
c) Ofensa dos princípios da ordem pública internacional do Estado Português:
i.A sentença arbitral ofende as regras e princípios fundamentais de Direito Público:
(a) Viola obrigações de serviço público impostas aos Estados-membros com vista à protecção dos consumidores vulneráveis e o princípio da separação de poderes;
(b) Viola o princípio da racionalidade e eficiência económica do sector eléctrico;
(c) Viola o dever de Unbundling;
(d) Viola o princípio da segurança no abastecimento;
ii.A sentença arbitral viola o princípio pacta sunt servanda;
iii.Viola o princípio constitucional da protecção dos consumidores;
iv.Viola o Direito da Concorrência da União Europeia;
v.Viola o princípio da censura do enriquecimento indevido.
          d) A litigância de má fé
*
II - FACTUALIDADE PROVADA
Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão da presente acção são os que já constam do relatório supra, relevando ainda os seguintes factos que os documentos juntos aos autos evidenciam (mencionados ou indicados em notas de rodapé) e, bem assim, por força da admissão das partes:
1. Com data de 24 de Novembro de 1993 foi celebrado entre a EDP – Electricidade de Portugal, S. A., como adquirente (as purchaser) e a Tejo Energia – Produção e Distribuição de Energia Eléctrica, S. A., como produtor (as generator), um Contrato de Aquisição de Energia (CAE) (Power Purchase Agreement), nos termos do qual a segunda se obrigou a explorar e manter as Unidades 1 e 2 e as partes comuns da Central Eléctrica de produção de energia a carvão em Abrantes, Portugal, sendo ali estabelecidas as condições para a venda de toda a electricidade produzida, até o termo do contrato, celebrado com uma duração de 28 anos, obrigando-se a compradora de energia a adquirir a capacidade total e a produção total dessa Central, pagando os dois elementos (capacidade e produção) através do encargo de potência instalada e do encargo de energia produzida (conforme Cláusulas 1.1. e definição de “expiry date[36]”, 2.1., 8ª e 9ª do CAE) [cf. documento n.º 3 junto com a petição inicial[37], que se dá por integralmente reproduzido, tendo em conta a tradução das cláusulas relevantes constantes dos autos e ainda que, de acordo com a Cláusula 23.[38], em caso de tradução para outras línguas, a versão em língua inglesa prevalece].
2. Em 27 de Junho de 1997, a REN – Rede Eléctrica Nacional, S. A. sucedeu à EDP – Electricidade de Portugal, S. A.[39], na posição de contraente no âmbito do contrato referido em 1., através de uma alteração ao CAE que estabeleceu o seguinte: ““1.2 A Cláusula 2.2 deve ser alterada renumerando a Cláusula 2.2 existente do CAE como Cláusula 2.2.1 e inserindo, como uma nova Cláusula 2.2.2, o seguinte: 2.2.2 Todos os direitos a exercer pela REN ao abrigo do presente Contrato relativos ao CAC ou à Locação e suscetíveis de ser exercidos pela EDP poderão ser exercidos pela EDP e, caso quaisquer obrigações a cumprir pela REN ou qualquer reconhecimento a prestar pela REN relativamente ao CAC ou à Locação só possa ser executado ou (conforme o caso) reconhecido pela EDP, a REN deverá assegurar o cumprimento dessas obrigações ou a entrega desses reconhecimentos pela EDP como se a obrigação relevante ao abrigo do presente Contrato fosse devida diretamente pela EDP ou como se o respectivo reconhecimento tivesse sido dado diretamente pela EDP nos termos das disposições relevantes do presente Contrato.” C-2,Cláusula 1.ª.
3. Em 29 de Janeiro de 2010, entre a REN Eléctrica, a REN Trading e a Tejo Energia foi celebrado o Aditamento ao CAE, constando do respectivo Considerando (b) que a REN Trading foi constituída como nova subsidiária integral da REN para efeitos de gestão dos interesses da REN (designadamente) no CAE, na sequência de acordo celebrado entre o Ministro da Economia e Inovação português e o Ministro da Indústria, Comércio e Turismo espanhol no dia 7 de Maio de 2007 e em cumprimento do Decreto-Lei n.º 172/2006, de 23 de Agosto[40] e que, consequentemente, a REN Trading se torna parte do CAE e passa a assumir, solidariamente com a REN, todos os direitos e obrigações nos termos do contrato [cf. documento 12 junto com a oposição[41]].
4. Ficou consignado, designadamente, nas Cláusula 2. “Alterações” e 6. “Permanência em Vigor” do Aditamento referido em 3. o seguinte:
“2.1 A partir da Data da Entrada em Vigor, a REN Trading torna-se parte do CAE, passando, para todos os efeitos, a ser considerada como se tivesse sido inicialmente designada como parte do mesmo e, solidariamente com a REN, assumirá e beneficiará de todos os direitos, poderes e privilégios e executará e dará cumprimento a todas as obrigações, responsabilidades e deveres tenham sido constituídos antes ou depois da Data de Entrada em Vigor (incluindo todos os direitos e obrigações resultantes de documentação complementar, cartas de acompanhamento e quaisquer outras comunicações entre a TE e a REN ao abrigo ou relativamente ao CAE).
2.2 A partir da Data de entrada em Vigor, as referências no CAE à REN devem ser tidas como referências à REN e à REN Trading, conjunta e solidariamente.
2.3 O presente Aditamento não implicará, em caso algum, em qualquer alteração ou modificação dos direitos e obrigações da TE ao abrigo do CAE, salvo que, a partir da Data de Entrada em Vigor; (i) a TE deverá cumprir as suas obrigações, responsabilidades e deveres relativos à execução do CAE perante a REN ou a REN Trading, e as suas obrigações, responsabilidades ou deveres cumpridos perante a REN ou a REN Trading, consideram-se como cumpridos perante ambas as entidades; e (ii) a REN e a REN Trading devem, solidariamente, cumprir as suas obrigações, responsabilidades e deveres relativos à execução do CAE perante a TE. […]
6. Permanência em Vigor
As disposições do CAE que não sejam alteradas pelo presente Aditamento mantêm-se plenamente em vigor e produzem todos os seus efeitos.”
5. No dia 28 de Dezembro de 2010, o Decreto-Lei n.º 138-A/2010 criou a Tarifa Social, dispondo o respectivo art.º 1º: “O presente decreto-lei tem como objecto a criação da tarifa social de fornecimento de energia eléctrica a aplicar a clientes finais economicamente vulneráveis.”
6. A tarifa social consiste num desconto a ser aplicado na factura de electricidade dos clientes finais economicamente vulneráveis, cujo financiamento foi imposto pelo art.º 4º do diploma referido em 5. a incidir “sobre todos os titulares de centros electroprodutores em regime ordinário, na proporção da potência instalada de cada centro electroprodutor”.
7. A Tejo Energia assegurou o financiamento da Tarifa Social na parte que lhe competia, mas apresentou os respectivos custos à REN Trading, solicitando o seu reembolso, invocando a Cláusula 20.ª do CAE, por considerar que tais custos configuram um “Imposto Relevante”, tal como definido no CAE.
8. De 2011 até Dezembro de 2014, a REN Trading reembolsou a Tejo Energia por todos os custos incorridos em relação ao financiamento da Tarifa Social, mediante um procedimento de (re)facturação mensal directa desses custos.
9. Desde Janeiro de 2015, após a ERSE ter tomado posição no sentido de que os custos com a Tarifa Social não podiam ser aceites para repercussão na Tarifa de Uso Global do Sistema[42], a REN Trading cessou o pagamento das facturas emitidas pela Tejo Energia referentes àqueles custos.
10. Perante a recusa da REN Trading em suportar tais custos, a ré notificou as autoras (a REN Eléctrica na qualidade de responsável solidária pelo cumprimento das obrigações assumidas pela REN Trading no âmbito do CAE) de que dava início ao procedimento de resolução de litígios previsto na Cláusula 26 e no Apêndice 9 do CAE, que se inicia com um painel, in casu, um painel financeiro composto por três membros.
11. A ré entendia que as autoras estavam obrigadas a proceder ao pagamento das facturas por ela emitidas com vista à repassagem/reembolso dos custos incorridos com o financiamento da Tarifa Social, ao passo que estas se haviam oposto ao pagamento, designadamente por considerarem inexistir a necessária base contratual ou legal e atenta a recusa da ERSE em reconhecer tais custos como custos passíveis de enquadramento/repercussão nos custos gerais do sistema eléctrico, ao contrário dos demais custos regulados, que são suportados pela REN Trading e posteriormente submetidos à ERSE para repercussão na TUGS, tarifa que integra o preço da electricidade pago por todos os consumidores.
12. A recusa, pela ERSE, de considerar os custos incorridos pela ré com o financiamento da Tarifa Social como custos gerais do sistema eléctrico baseou-se, também, no Parecer n.º 39/2012 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República[43] e homologado pelo Secretário de Estado da Energia que, sobre esta matéria refere: “[…] a tarifa social de fornecimento de energia elétrica está concebida como uma medida de política social, de proteção para os consumidores economicamente débeis, ou, na expressão que é usada no diploma, para os consumidores ou clientes finais «economicamente vulneráveis». Esta medida configura-se como uma obrigação de serviço público na linha das orientações europeias […]”, mais referindo que “[o] Decreto-Lei n.º 138-A/2010 é expresso e inequívoco quando determina, na disposição citada, que os custos com o financiamento da tarifa social recaem sobre «todos os titulares de centros electroprodutores em regime ordinário», e não apenas sobre alguns desses titulares e, muito menos, sobre os consumidores de eletricidade, «o que sucederia, como se afirma no pedido de consulta, em segmento que merece a nossa concordância, no caso de recálculo da remuneração devida aos titulares dos centros electroprodutores com CAE, com vista à sua compensação pelos custos suportados com o financiamento da tarifa social […]”
13. Após a nomeação dos membros do Painel Financeiro, ao abrigo do Apêndice 9 do CAE, e uma vez acordadas regras específicas que disciplinariam o procedimento, este seguiu uma tramitação completa, tendo a Tejo Energia formulado, na petição inicial apresentada, os seguintes pedidos:
“(i) DECLARE que a REN Trading violou o CAE e que as Requeridas são solidariamente responsáveis pelo reembolso dos custos incorridos pela Tejo Energia com a Tarifa Social desde a data efetiva a partir da qual esses montantes deveriam ter sido reembolsados pelas Requerida;
(ii) DECLARE que as Requeridas estão obrigadas, até ao termo de vigência do CAE, a reembolsar os custos suportados pela Tejo Energia com o financiamento da Tarifa Social;
(iiii) ATRIBUA à Tejo Energia o montante de 6.957.683,16 € (seis milhões, novecentos e cinquenta e sete mil, seiscentos e oitenta e três euros e dezasseis cêntimos) correspondente ao montante devido resultante da violação do CAE, atinente ao reembolso dos custos incorridos pela Tejo Energia com o financiamento da Tarifa Social desde janeiro de 2015 até dezembro de 2017 (inclusive) e de todos os montantes a incorrer com esse financiamento até ao momento em que for proferida decisão pelo Painel Financeiro;
(iv) ATRIBUA à Tejo Energia juros desde a data da notificação de cada fatura pendente emitida pela Tejo Energia à REN Trading relativamente ao financiamento da Tarifa Social até pagamento integral desses montantes, à taxa aplicável;
(vi) CONDENE as Requeridas no pagamento de todos os encargos do processo, nomeadamente os honorários e despesas do Painel Financeiro e todos os custos incorridos pela Tejo Energia, incluindo os honorários devidos aos seus advogados e honorários e despesas periciais; e
(vii) CONCEDA à Tejo Energia qualquer outra medida considerada adequada”.
14. No âmbito do CAE, a Cláusula 20.ª refere-se a “Alterações de Impostos”.
15. A Cláusula 20.1 refere-se a “Alterações Relevantes” estabelecendo:
Se, após a data do presente Contrato:
(a) o Produtor, Operador ou Empresa Fornecedora de Combustível (1) ficar obrigado a pagar ou a deduzir quaisquer Impostos Relevantes, que em 27 de novembro de 1992 não existiam ou não afetavam o Produtor ou (2) incorrer num aumento de custos, em ambos os casos motivados por:
(i) introdução, imposição, tributação ou cobrança de quaisquer Impostos Relevantes e/ou a um aumento na taxa pela qual quaisquer Impostos Relevantes são cobrados e/ou
(ii) qualquer alteração na legislação ou no procedimento publicitado de qualquer autoridade tributária de qualquer modo relacionado com Impostos Relevantes, e/ou
(iii) qualquer outra alteração que seja adversa aos interesses financeiros do Produtor, do Operador ou da Empresa de Fornecimento de Combustível, com base na qual quaisquer Impostos Relevantes são cobrados; ou
(b) [...]
e desde que (no caso das alíneas (a) ou (b) acima mencionadas) o efeito de tal alteração seja material (conforme definido para os fins da presente Cláusula no Apêndice 11) então, sujeito às disposições das Cláusulas 20.2.2. e 20.3, aplicar-se-ão as Cláusulas 20.2 a 20.5. Não obstante as disposições precedentes, as Cláusulas 20.2.2 e 20.3 são aplicáveis nas circunstâncias previstas nessas Cláusulas.”
16. As disposições das Cláusulas 20.2 a 20.5 versam sobre as eventuais consequências da entrada em vigor de uma Alteração de Impostos Relevante prevendo-se nas Cláusulas 20.3 e 20.4 o seguinte:
“20.3 Isenções e Repassagem de Custos
20.3.1 Para os efeitos da presente Cláusula 20, considera-se que:
(a) isenções ao abrigo do artigo 36 do Estatuto dos Benefícios Fiscais em relação à retenção na fonte sobre juros pagos terão sido obtidas na data ou anteriormente à data do presente Contrato. Se as isenções não tiverem sido obtidas, a retenção na fonte será incluída no cálculo do Encargo de Potência Instalada;
(b) o montante total de PTE 1.586.000.000 deverá ser pago pelo Produtor em relação a:
(i) i valores selados (imposto do selo que recaia pelo Decreto-Lei n.º 21 916, de 28 de novembro de 1932, ou em leis especiais, bem como quaisquer outros impostos, direitos, taxas, emolumentos e custos) sobre a Dívida Sénior;
(ii) valores selados devidamente pagos em qualquer documento no qual a Dívida Sénior esteja presente ou possa ser incorrida ou que garanta a referida Dívida Sénior;
iii) valores selados, direitos de importação, direitos e deveres aduaneiros, fatores percentuais (imposto de selo que recaia sobre quaisquer documentos, livros, papéis, atos ou produtos designados na tabela aprovada pelo Decreto n.º 21 916, de 28 de novembro de 1932, ou em leis especiais, bem como quaisquer outros impostos, direitos, taxas, emolumentos e custos), emolumentos notariais e registrais referentes a:
(aa) concessão da Locação (a constituição do direito de superfície) com exceção do imposto de selo, dos emolumentos registrais, notariais e outros, pagáveis sobre o montante de PTE 192.000.000 do valor de prémio referido no Apêndice às Condições estabelecidas pelo Contrato de Aquisição e Construção, o qual será pago pelo Produtor e que não será incluído no Encargo de Potência Instalada em virtude da presente Cláusula 20.3;
(bb) a entrega pela EDP ao Produtor de título ou de qualquer outro direito ou interesse na Central Termoelétrica, no Local, na Linha Ferroviária, na Planta e em todos os materiais mencionados no Contrato de Aquisição e Construção e no Contrato de Locação, e o referido montante foi incluído no cálculo do Encargo de Potência Instalada.
20.3.2 O Produtor deve empregar todos os esforços razoáveis para minimizar a quantidade de valores selados, direitos de importação, direitos e deveres aduaneiros, fatores percentuais e emolumentos referidos nas Cláusulas 20.3.1(b) (i) e (ii) e deve providenciar para que no prazo máximo de 30 dias após a data do presente Contrato:
(a) A Price Waterhouse entregue à EDP uma declaração contendo a confirmação do montante de todos os referidos valores selados, direitos de importação, direitos e deveres aduaneiros, fatores percentuais e emolumentos previstos nas Cláusulas 20.3.1 (b) (i) e (ii) pagos pelo Produtor; e
(b) A Price Waterhouse confirme por escrito que, em sua opinião, o Produtor empregou todas os esforços razoáveis para minimizar o montante de tais valores selados, direitos de importação, direitos e deveres aduaneiros e fatores percentuais previstos nas Cláusulas 20.3.1 (b) (i) e (ii) e se esta não considerar que o Produtor empregou todos os esforços razoáveis para minimizar os montantes, deve indicar os montantes que considera que o Produtor deveria ter pago.
20.3.3 Se o montante total dos valores selados, direitos de importação, direitos e deveres aduaneiros e fatores percentuais e emolumentos previstos na Cláusula 20.3.1 (b) pago pelo Produtor for:
(a) menor que a quantia especificada na referida Cláusula; ou
(b) no caso previsto pela Cláusula 20.3.1 (b) (i) e (ii), for maior do que teria sido se o Produtor tivesse empregue esforços razoáveis para minimizá-lo,
O Pagamento Base de Potência será reduzido, de acordo com as disposições da alínea 1.2 do Anexo 3 do Apêndice 1, para refletir o montante pelo qual tais valores selados, direitos de importação, direitos e deveres aduaneiros e fatores percentuais e emolumentos pagos ou que deveriam ter sido pagos pelo Produtor eram inferiores ao montante incluído no respetivo Encargo de Potência.
20.3.4 Se o montante total dos valores selados, direitos de importação, direitos e deveres aduaneiros e fatores percentuais e emolumentos previstos na Cláusula 20.3.1 (b) pago pelo Produtor for superior ao montante especificado na referida Cláusula, e, nos casos previstos na Cláusula 20.3.1 (b) (i) e (ii), o Produtor tenha empregado esforços razoáveis para minimizá-lo, o Pagamento Base de Potência será aumentado de acordo com as disposições do ponto 1.2 do Anexo 3 no Apêndice 1 para refletir o montante adicional que foi pago.
20.3.5 De acordo com o previsto na Cláusula 20.3.6, o Produtor tem direito a recuperar:
(a) quaisquer impostos ou valores selados sobre pagamentos de capital e de juros incluídos na Dívida Sénior e (se a Dívida Sénior tiver sido refinanciada) sobre os pagamentos de capital e de juros, conforme certificado nos termos do Apêndice 1 do Anexo 4 ou no pagamento de capital e juros referentes a empréstimos, com o objetivo de implementar o Apêndice 11;
(b) quaisquer impostos ou valores selados sobre operações de câmbio pagáveis em relação a:
(i) pagamentos de capital e de juros incluídos na Dívida Sénior e (se a Dívida Sénior tiver sido refinanciada) sobre pagamentos de capital e de juros conforme certificado nos termos do Apêndice 1 do Anexo 4 ou no pagamento de capital e juros referentes a empréstimos, com o objetivo de implementar o Apêndice 11;
(ii) a compra de combustível para a Central Termoelétrica;
(c) qualquer imposto municipal sobre imóveis (Contribuição Autárquica) a pagar com referência à Central Termoelétrica, ao Local, à Linha Ferroviária ou em relação à Locação; (d) quaisquer encargos, impostos, direitos de importação, direitos e deveres aduaneiros e fatores percentuais, emolumentos ou custos previstos e na medida determinada pela Cláusula 20.2.2.
20.3.6 No prazo máximo de 5 dias úteis depois do fim de cada trimestre de cada ano civil, o Produtor deve entregar à EDP uma declaração contendo:
(a) um certificado, confirmado como correto pela Price Waterhouse, estabelecendo o valor de quaisquer impostos ou valores selados pagos pelo Produtor durante o respetivo trimestre e que o Produtor tenha direito a recuperar, nos termos da Cláusula 20.3.5 (a);
(b) um certificado, confirmado como correto pela Price Waterhouse, estabelecendo o montante de quaisquer impostos, impostos de selo, encargos, tributações, emolumentos ou custos, que foram pagos pelo Produtor durante esse trimestre e que o Produtor tenha direito a recuperar, nos termos da Cláusula 20.3.5 (b), 20.3.5 (c) ou 20.3.5 (d);
(c) no prazo máximo de 7 dias após requerimento da EDP, o Produtor deverá fornecer todas as informações que a EDP possa razoavelmente exigir para verificar se tais valores ou montantes podem ser recuperados pelo Produtor, nos termos da Cláusula 20.3.5;
(d) um certificado de pagamento dos referidos montantes.
Sujeito às disposições da Cláusula 20.4.2, as disposições das Cláusulas 10.2, 10.3 e 10.5 a 10.9 aplicar-se-ão mutatis mutandis à referida declaração, e os montantes nela previstos serão pagos como se a declaração fosse entregue nos termos da Cláusula 10.1.
20.4 Alteração do Contrato
20.4.1 Se o Produtor (no caso previsto pela Cláusula 20.1 (a) ou pela Cláusula 20.3.1 (a)) ou a EDP (no caso previsto pela Cláusula 20.1 (b)) mediante notificação à contraparte assim escolher, o cálculo do Encargo de Potência Instalada e/ou do Encargo de Energia Produzida no presente Contrato será alterado de acordo com os procedimentos e princípios previstos no ponto 10 do Apêndice 11 na medida necessária para garantir, tanto quanto possível, que o Produtor esteja na mesma posição financeira sob o presente Contrato que estaria se a Alteração ao Imposto Relevante não tivesse ocorrido.
20.4.2 Não obstante o disposto na Cláusula 20.3.6, se a EDP assim o escolher, mediante notificação ao Produtor, pode exigir que o Produtor recupere o imposto municipal sobre imóveis previsto na Cláusula 20.3.5 (c) através de uma alteração ao cálculo do Encargo de Potência Instalada, e os impostos, encargos, direitos de importação, direitos e deveres aduaneiros e fatores percentuais emolumentos ou custos previstos na Cláusula 20.3.5 (d) através de uma alteração ao cálculo do Encargo da Potência Instalada e/ou do Encargo da Energia Produzida, de acordo com os procedimentos e princípios relevantes previstos no parágrafo 10 do Apêndice 11, como se (para os efeitos apenas da presente Cláusula) o pagamento de tais impostos, encargos, direitos de importação, direitos e deveres aduaneiros e fatores percentuais, emolumentos e custos previstos nas Cláusulas 20.3.5 (c) e (d) fosse uma Alteração ao Imposto Relevante, desde que o Montante Limiar Aplicável seja considerado zero”.
17. Na Cláusula 1.1. do CAE referente a “Definições” consta a seguinte definição de “Impostos Relevantes” (Relevant Taxes):
Todos os tipos de impostos, direitos de importação, direitos e deveres aduaneiros e fatores percentuais (“impostos”) imponíveis onde quer que seja e quando quer que seja, ao Produtor, ao Operador ou à Empresa Fornecedora de Combustível ou sobre os quais o Produtor, o Operador ou a Empresa Fornecedora de Combustível tenham de responder por uma Autoridade Competente em relação com a propriedade, manutenção ou operação da Central Elétrica, alguma das suas Unidades ou Partes Comuns ou em relação com a aquisição de combustível para a Central Elétrica ou relativamente a este Contrato, ao Contrato de Aquisição e Construção, e o Contrato de Locação incluindo, sem limitar, Impostos Ambientais Relevantes, valores selados e impostos sobre empréstimos em divisas estrangeiras e transações cambiais e qualquer retenção ou outros impostos sobre o pagamento de juros aos Mutuantes mas excluindo:
(i) Imposto sobre o rendimento empresarial (exceto na medida em que tais impostos ou qualquer aumento em tais impostos constitua um Imposto Ambiental Relevante);
(ii) Qualquer imposto sobre o rendimento ou lucros ou mais-valias do Produtor, do Operador ou da Empresa Fornecedora de Combustível (exceto na medida em que tais impostos ou qualquer aumento em tais impostos constitua um Tributo Ambiental Relevante);
(iii) Imposto sobre o valor acrescentado ou outro imposto ad valorem na medida em que o mesmo seja recuperável ou passível de contabilização como imposto a montante de acordo com a legislação portuguesa, salvo se diferentemente determinado pela Cláusula 20.2.2;
(iv) Quaisquer impostos considerados nas fórmulas ou preços referidos nos Apêndices 1, 2 ou 3 na medida em que os mesmos sejam tidos em conta;
(v) Sem prejuízo das disposições contidas na Cláusula 20.3, quaisquer impostos ou valores selados sobre capital e juros sobre empréstimos e refinanciamentos;
(vi) Quaisquer impostos ou valores selados sobre transações cambiais para além das que (na medida em que sejam recuperáveis ao abrigo da Cláusula 20.3.5(b)):-
(a) Devidas em relação a Dívida Sénior ou a pagamentos de capital e juros respeitantes a empréstimos feitos com o propósito de implementar o Apêndice 11; ou
(b) Devidas em relação a combustível para a Central Elétrica;
(vii) Retenções na fonte respeitantes a pagamento de dividendos ou empréstimos subordinados concedidos direta ou indiretamente por qualquer acionista do Produtor, do Operador ou da Empresa de Fornecimento de Combustível”.
18. A Cláusula 25. do CAE referente a “Lei Aplicável” estabelece:
Lei Portuguesa
Este Contrato será interpretado e executado de acordo com as leis de Portugal.”
19. A Cláusula 26. do CAE referente a “Litígios e Arbitragem” prevê:
“Resolução de litígios
Salvo disposição em contrário expressa no presente Contrato, todos os litígios serão resolvidos de acordo com as disposições previstas no Anexo 9.”
20. O Anexo 9, Parte I do CAE estabelece um “Procedimento de Resolução de Litígios” nos seguintes termos:
Geral
1. Submissão de Litígios ao Painel
Se um Litígio (expressão que, na aceção do presente Anexo 9, deve incluir um Litígio conforme definido pelo presente Contrato, o Contrato de Aquisição e de Construção, o Acordo Adicional de Unidades e o Contrato de Locação) surgir, seja antes ou depois da rejeição ou de outra forma de cessação do presente Contrato, do Contrato de Aquisição e de Construção, do Acordo Adicional de Unidades e do Contrato de Locação, ao abrigo dos quais o Litígio tenha surgido (no qual o contrato para os fins do presente Anexo 9 se refere como o “Contrato Relevante”) então qualquer uma das partes pode submeter o Litígio em primeiro lugar à decisão do Painel que atuará como peritos independentes e não como árbitros.
2. Decisões do Painel que são vinculativas
Qualquer decisão unânime do Painel será final e vinculativa para as partes mas por outro lado uma decisão do Painel será final e vinculativa para as partes se e até que o Litígio tenha sido objeto de transação ou submetido a arbitragem como disposto a seguir e tenha sido proferida uma decisão arbitral. Será uma condição suspensiva ao início de qualquer ação judicial que, em relação ao objeto da referida ação, tenha havido:
2.1 uma decisão unânime do Painel; ou
2.2 uma decisão do tribunal arbitral; ou
2.3 um acordo de transação entre as partes.
3. Representações sem prejuízo
A menos que ambas as partes decidam em contrário por escrito, quaisquer representações ou concessões feitas quer por uma das partes, no âmbito ou em conexão com o procedimento submetido perante o Painel ou quaisquer representações, concessões ou acordos (que não o acordo de transação) feitos por qualquer uma das partes no decurso das discussões nos termos do Anexo 9, parte 1, parágrafo 11 entre o diretor executivo do Produtor e o representante oficial nomeado para esses fins pela EDP, serão feitas sem prejuízo e não serão por isso questionadas por qualquer parte em qualquer arbitragem subsequente ou em quaisquer outros processos judiciais. […]
11. Procedimento para resolução amigável
No caso de qualquer uma das partes desejar contestar uma decisão não unânime do Painel ou no caso de o Painel não ter chegado a uma decisão de acordo com o Regra do Painel 6.1, o Litígio será submetido por notificação escrita para o diretor executivo do Produtor e para o representante oficial da EDP, nomeado para o referido fim pela EDP, os quais se reunirão e envidarão esforços para resolver as questões que existam entre as partes. A decisão conjunta e unânime dos referidos diretor executivo e representante oficial será vinculativa para as partes, mas caso não cheguem a acordo no prazo de 28 dias contados a partir da data em que o assunto lhes foi remetido, qualquer das partes pode submeter o Litígio a arbitragem.
12. Arbitragem
Sujeito sempre ao disposto no parágrafo 11, qualquer uma das partes pode requerer que um Litígio seja submetido a arbitragem no caso de o Painel não conseguir chegar a uma decisão unânime ou de acordo com o previsto na Regra do Painel 6.1.
13. Arbitragem de Litígios relacionados com Obras
No caso de Litígios que envolvam ou que estejam relacionados com Obras, a submissão a arbitragem pode prosseguir antes da Data da Exploração da Unidade 1 ou na data em que a mesma deveria ter sido emitida, desde que as obrigações da EDP e do Produtor não sejam alteradas pela arbitragem ser conduzida durante a realização das Obras. Salvo o acima exposto, nenhuma medida deve ser tomada na submissão de qualquer Litígio para a arbitragem até à emissão da Data da Exploração da Unidade 1, a menos que as partes acordem, por escrito, o contrário.
14. Regras de Arbitragem
Os Litígios que venham a ser objeto de arbitragem deverão ser submetidos a dois árbitros e um árbitro de desempate, de acordo com o Regulamento de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional ou qualquer alteração ou modificação vigente. O lugar da arbitragem será em Lisboa. Sem prejuízo do referido regulamento, cada requerimento de arbitragem deve ser enviado por escrito, especificando o assunto ou a questão em litígio, e deve afirmar que é apresentado nos termos da Cláusula, Apêndice ou Anexo do Contrato Relevante.
15. Poder dos Árbitros
Salvo disposição expressa em contrário, os árbitros terão plenos poderes para abrir e rever qualquer decisão, opinião, instrução, notificação, objeção, determinação ou certificado relacionado com o Litígio e qualquer decisão não unânime do Painel e de ordenar a retificação do Contrato Relevante e de qualquer acordo feito entre as partes ao abrigo do mesmo, sujeito a qualquer regra jurídica que possa restringir o referido poder.
16. Inelegibilidade dos membros do Painel para serem Árbitros
Um antigo ou atual membro do Painel não será elegível para nomeação como árbitro, exceto se as partes acordarem por escrito em contrário.
17. Exclusão de Direitos de recorrer a um Tribunal de Jurisdição Competente
As partes concordam em excluir os seus direitos de recorrer a qualquer tribunal de jurisdição competente: -
17.1 para interpor recurso numa questão de direito decorrente da decisão do Painel ou de quaisquer árbitros nomeados de acordo com o previsto no presente Apêndice 9;
17.2 para obter decisão exigindo que o Painel ou que os referidos árbitros exponham as razões para a sua decisão;
17.3 para obter decisão que cesse a produção de efeitos do Procedimento de Resolução de Litígios quando o Litígio envolver a questão de saber se uma parte foi considerada culpada por fraude;
17.4 para decidir sobre uma questão preliminar de direito decorrente de qualquer Procedimento de Resolução de Litígios.”
21. O Anexo 9, Parte II do CAE estabelece quanto às “Regras do Painel” o seguinte:
“1. Início
1.1 Qualquer uma das partes pode iniciar um processo ao abrigo das presentes regras através da notificação ao presidente do Painel Técnico ou ao presidente do Painel Financeiro, de acordo com as disposições da Regra do Painel 1.3.
1.2 Uma notificação entregue ao abrigo da Regra do Painel 1.1 deverá incluir: -
1.2.1 um resumo conciso sobre a natureza e o enquadramento do Litígio e as questões daí decorrentes; e
1.2.2 a indicação do pedido formulado;
1.2.3 em relação aos Litígios apresentados perante o Painel Técnico, uma referência a todos os relatórios mensais formais submetidos nos termos das disposições relevantes do Contrato Relevante nos os quais o objeto do Litígio tenha surgido;
1.2.4 uma declaração de quaisquer questões que as partes tenham já acordado em relação ao processo para decisão do Litígio;
1.2.5 cópias de todos os documentos que tenham importância e relação direta com as questões e nos quais a demandante se baseia (ou uma lista dos referidos documentos, se estes já estiverem na posse do destinatário da notificação).
1.3 A menos que as partes acordem por escrito em submeter um Litígio ao Painel Técnico ou se o presidente do Painel Financeiro decidir em contrário ao abrigo da Regra do Painel 1.6, o demandante deve submeter o Litígio ao Painel Financeiro se este surgir de ou em conexão com as disposições que lidem com: -
1.3.1 – Interpretação;
– Prestação de Garantias;
– Termos e Documentação Financeira;
– Legislação;
– Obrigações de Seguro;
– Propriedade Intelectual e Confidencialidade;
– Impostos;
– Força Maior;
– Rescisão por Incumprimento; e/ou
1.3.2 Apêndices 1 e 2 e Cláusulas com os mesmos relacionadas.
1.4 A menos que as partes acordem por escrito em submeter um Litígio ao Painel Financeiro ou se o presidente do Painel Financeiro decidir em contrário aos termos da Regra do Painel 1.6, a demandante deve submeter todos os Litígios que não se enquadrem nas Regras do Painel 1.3.1 e .1.3.2. ao Painel Técnico.”
22. O Anexo 11 do CAE contém disposições sobre “Alterações nas Circunstâncias” tais como, “Alterações nos Impostos Relevantes” estabelecendo o Parágrafo 1.:
“1. Definições
1.1 Para os efeitos do presente Apêndice, as seguintes expressões devem, salvo contexto em contrário, ter os seguintes significados:
“Montante Limiar Aplicável” significa, para o primeiro Ano de Exploração;
(a) para os efeitos do ponto 1.3, um sexto do montante médio estimado do Cꞔ1 , calculado de acordo com o previsto ao abrigo do parágrafo 2 do Apêndice 1 para os doze meses completos imediatamente precedentes à relevante Alteração nos Custos ou Alteração dos Impostos Relevantes, conforme o caso;
e
(b) para os efeitos do ponto 3.5, o montante médio estimado do Cꞔ2, calculado de acordo com o previsto ao abrigo da alínea 2 do Apêndice 1 para os doze meses completos imediatamente precedentes à relevante Alteração na Lei e para cada Ano de Exploração subsequente, deve ser o montante relevante aplicável referente ao Ano de Exploração precedente, ajustado pela alteração percentual no “Índice de Preços no Consumidor, total com exclusão da habitação no território continental” no Boletim Estatístico Mensal conforme publicado pelo Instituto Nacional de Estatística durante o período precedente de 12 meses terminando em setembro no referido Ano de Exploração precedente e o ano precedente ao referido Ano de Exploração;
“Alteração nos Custos” significa:
(a) qualquer aumento ou redução nos custos do Produtor (quer seja no capital ou na receita) incluindo a descontaminação do local necessária antes da Data de Vencimento da (i) exploração e manutenção de qualquer Unidade ou da Central Elétrica ou (ii) no cumprimento das obrigações do Produtor por força do presente Contrato; ou
(b) qualquer alteração na eficiência térmica de uma Unidade; ou
(c) qualquer aumento ou redução nas receitas da produção de eletricidade na Central Elétrica;
na medida em que, em qualquer caso, resulte de uma Alteração Relevante na Lei;
“Alteração na Lei” significa após 20 de novembro 1992:
(a) a promulgação de qualquer nova lei ou Diretiva de uma Autoridade Competente;
(b) a modificação de qualquer lei ou Diretiva de uma Autoridade Competente existente;
(c) o início de qualquer lei ou Diretiva de uma Autoridade Competente, que ainda não tenha entrado em vigor;
(d) a entrada em vigor de padrões de desempenho numa data futura fixada por lei ou por Diretivas em vigor a 20 de novembro 1992;
(e) uma alteração na interpretação da lei que vincule ambas as partes;
(f) qualquer alteração ou substituição do Apêndice 6;
(g) a aplicação de qualquer lei ou Diretiva de Autoridade Competente existente não aplicada antes de 20 de novembro 1992 ou qualquer alteração na forma ou na medida em que a referida lei ou Diretiva é aplicada; e
(h) o exercício pela EDP ou pela Autoridade de Planeamento do Sistema ou qualquer outra Autoridade Competente de qualquer direito estatutário em se retirar do serviço ou de restringir a produção da Unidade 1 ou 2 que não seja conforme o previsto nas Cláusulas 3.9 ou 3.10.
“Alteração na Prática Operacional” significa uma alteração nas políticas e nas práticas adotadas pelo Produtor em conexão com a produção de eletricidade na Central Elétrica (incluindo uma alteração na qualidade de qualquer combustível usado pelo Produtor) e que não envolva qualquer Modificação;
“Modificação do Produtor” significa uma Modificação Estatutária em relação à qual o Produtor faz propostas ao abrigo do parágrafo 3;
“Modificação” significa um aditamento ou modificação, alteração, ou substituição ou renovação das instalações fabris e equipamento que constituem uma Unidade ou qualquer outra instalação, equipamentos e instalações usadas pelo Produtor para os efeitos de, ou incidental à produção de eletricidade da Central elétrica;
“Modificação da EDP” significa a Modificação em relação à qual a EDP faz propostas ao abrigo do parágrafo 4; e
“Modificação Estatutária” significa a Modificação exigida por ou para atingir os padrões de desempenho estabelecidos por uma Alteração Relevante na Lei (que não seria necessária senão fosse tal Alteração Relevante na Lei);
1.2 Para os efeitos do presente Contrato “Alteração Relevante na Lei” significa uma Alteração na Lei que não seja:
(a) qualquer uma das seguintes Alterações na Lei:
(i) modificações nas condições de qualquer licença, consentimento ou autorização necessárias ao direito de propriedade ou exploração da Central Elétrica, a menos que tal modificação seja feita unicamente como resultado dos objetivos da implementação da Alteração na Lei;
(ii) uma Alteração na Lei que altera, modifica, complementa ou revoga qualquer lei ou Diretiva de uma Autoridade Competente ou qualquer uma das suas disposições, o objetivo ou qualquer um dos seus propósitos os quais seriam derrogados se tal Alteração na Lei fosse uma Alteração Relevante na Lei para os efeitos no presente Contrato; e
(iii) qualquer outra Alteração na Lei que determine (independentemente de estar ou não prevista nos termos do presente Contrato) que tal Alteração na Lei não possa ser uma Alteração Relevante na Lei para os fins do presente Contrato; e
(c) uma Alteração na Lei referente a Impostos Relevantes.
1.3 Para os fins do disposto na Cláusula 20.1 e do presente Apêndice, uma Alteração nos Custos ou Alteração nos Impostos Relevantes é “material” se, quer por si só quer em conjunto com outras Alterações nos Custos ou (conforme o caso) outras Alterações nos Impostos Relevantes, que não tenham sido tomadas em conta para os fins da Cláusula 20.3 ou do presente Apêndice, exceder o Montante Limiar Aplicável, líquido de qualquer poupança nos custos ou aumento de receita que o Produtor possa fazer ou realizar, sujeito às disposições do presente Contrato. As Alterações nos Custos ou Alterações nos Impostos Relevantes que sejam incorridas periodicamente ou durante um período de tempo indefinido devem ser avaliadas para se determinar se são materiais por referência a um terço do valor líquido atual da quantia estimada de tal alteração aplicada a uma taxa de desconto acordada pelas partes e, na ausência de acordo, conforme determinado nos termos do Procedimento de Resolução de Litígios. Se for requerido por escrito pela EDP, o Produtor informará do valor de qualquer Alteração nos Custos ou Alteração nos Impostos Relevantes especificados pela EDP logo que o referido valor possa ser razoavelmente determinado, desde que tal afirmação não prejudique os direitos de ambas as partes, previstos na Cláusula 20 ou no parágrafo 8.2
1.4 Para que não subsistam quaisquer dúvidas, os direitos do Produtor previstos no presente parágrafo não devem ser prejudicados ou afetados pelo facto de qualquer Alteração na Lei seja conhecida ou proposta na data do presente Contrato ainda que não seja eficaz, incluindo mas não se limitando à implementação da Diretiva Europeia referente a Grandes Instalações de Combustão (88/609/CEE) ou a aplicação contra o Produtor de qualquer obrigação (existente ou não à data do presente Contrato ou de outra forma) para instalar ou ajustar qualquer equipamento ou maquinaria destinada a limitar, reduzir ou impedir emissões.
1.5 Para que não subsistam quaisquer dúvidas, para os efeitos do presente Apêndice quer uma “Alteração na Lei” quer uma “Alteração Relevante na Lei” incluem qualquer obrigação vinculativa em ajustar o equipamento para reduzir, restringir ou eliminar a saída de emissões.”
23. O Anexo 11 do CAE contém ainda disposições sobre “Alterações nos Impostos Relevantes” estabelecendo o Parágrafo 10. sobre “Princípios e Procedimentos para Alterações nas Circunstâncias” nos seguintes termos:
“10.1 O presente parágrafo é aplicável relativamente à aplicação das disposições referentes a uma Alteração nos Impostos Relevantes, uma Alteração Relevante na Lei que dê lugar a uma Modificação do Produtor, a uma Modificação da EDP (ou Modificação do Produtor ao invés da mesma e conforme o previsto no parágrafo 4.6), Alteração nos Custos ou Alteração Relevante de Emissões (cada uma considerando-se “Alteração nas Circunstâncias”).
10.2 Se este parágrafo 10 for aplicável, cada Parte deverá (sujeito a quaisquer restrições de confidencialidade vinculativas para essa parte), assim que possível, e sem prejuízo de quaisquer requisitos específicos de notificação deste Contrato, providenciar à outra parte a informação escrita que esta possa razoavelmente solicitar de modo a aferir a natureza das circunstâncias em causa e o seu efeito na primeira parte.
10.3 Se as partes não conseguirem acordar nas alterações exigidas pela Alteração das Circunstâncias tendo trocado e comentado as suas respetivas propostas de alteração por escrito (se apropriado), no prazo de 3 meses a contar da data em que qualquer das partes notifique a outra por escrito sobre a necessidade de acordar alterações ao abrigo das disposições relevantes do presente Contrato, qualquer das partes, mediante o envio de notificação à outra pode requerer que o assunto seja remetido para o Procedimento de Resolução de Litígios para determinação ao abrigo do parágrafo 10.4.
10.4 Quando um assunto seja remetido para determinação ao abrigo do parágrafo 10.3 tal determinação será para estabelecer qual das propostas de ambas as partes reflete mais de perto a letra e a intenção deste Contrato tendo em conta este Contrato na presente data e a natureza das circunstâncias em causa e não caberá ao Painel ao abrigo do Procedimento de Resolução de Litígios propor ou selecionar qualquer proposta que não seja uma das propostas submetidas pelas partes. […]
10.6 Não obstante as disposições da Cláusula 26 e do Apêndice 9, qualquer referência neste Anexo 11 ao Procedimento de Resolução de Litígios será para o Painel Técnico ou para o Painel Financeiro, consoante o caso, cuja decisão (seja por unanimidade ou por maioria) será final e vinculativa para as partes. […]”
24. Perante o Painel Financeiro, as autoras suscitaram questões a respeito da validade e da exequibilidade (enforceability) da Cláusula 20.ª do CAE e, após apreciar as posições e os argumentos das partes, o Painel Financeiro, embora tendo considerado, por maioria, que tais custos deveriam ser considerados um Relevant Tax para efeitos da Cláusula 20.ª do CAE, entendeu que estes não se incluíam nas categorias de custos que permitiam o reembolso ao abrigo do CAE, referindo: “Uma leitura atenta das cláusulas supracitadas do CAE revela que a Tarifa Social – que, conforme as Partes referiram nas respetivas alegações, é um desconto sobre as tarifas de eletricidade reguladas que se destina a beneficiar determinados consumidores de energia economicamente vulneráveis – não se enquadra no âmbito da Cláusula 20.3 do CAE, mesmo que a Tejo Energia tivesse provado o seu efeito material, porque tem uma natureza diferente dos encargos especificados nessa cláusula. Por conseguinte, este Painel Financeiro concluiu que, ao abrigo do CAE, a Tejo Energia não pode solicitar à REN Trading o reembolso dos custos incorridos com o financiamento da Tarifa Social por parte da Tejo Energia”.
25. Em 27 de Setembro de 2018, o Painel Financeiro emitiu a sua Decisão nos seguintes termos[44]:
“Com base nas considerações acima expostas, este Painel Financeiro DECIDE unanimemente:
1. Rejeitar todos os pedidos da Tejo Energia.
2. Condenar a Tejo Energia a pagar o valor de €145.198,00 (cento e quarenta e cinco mil, cento e noventa e oito euros) à REN Trading, correspondentes ao montante pago à Tejo Energia relativamente aos custos incorridos com o financiamento da Tarifa Social desde janeiro de 2011 a dezembro de 2014 (inclusive).
3. Condenar a Tejo Energia a pagar à REN Trading os juros acrescidos sobre o valor de €145.198,00 (cento e quarenta e cinco mil, cento e noventa e oito euros) à taxa legal aplicável desde a data da sua Contestação até ao integral pagamento.
4. Condenar a Tejo Energia a suportar os seus próprios custos e despesas neste processo, que se cifram em € 631.503,47 (seiscentos e trinta e um mil, quinhentos e três euros e quarenta e sete cêntimos) e metade dos custos e despesas das Requeridas. Assim, a Tejo Energia deve pagar à REN Elétrica o valor de € 129.749,15 (cento e vinte e nove mil, setecentos e quarenta nove euros e dezasseis cêntimos) e à REN Trading o valor de € 119.080,77 (cento e dezanove mil, oitenta euros e setenta e sete cêntimos).
5. Condenar a REN Eléctrica e a REN Trading a suportarem metade dos seus próprios custos e despesas neste processo, isto é, € 129.749,15 (cento e vinte e nove mil, setecentos e quarenta nove euros e dezasseis cêntimos) e € 119.080,77 (cento e dezanove mil, oitenta euros e setenta e sete cêntimos), respetivamente”.
26. Na sequência da Decisão do Painel Financeiro, a ré procedeu aos pagamentos devidos, mas informou as autoras que entendia que tal decisão lhe permitia prosseguir o procedimento especial de resolução de litígios previsto na Cláusula 20. e no Apêndice 11 do CAE, pelo que as notificou de que pretendia proceder a uma alteração do CAE por via da alteração do cálculo do Encargo de Potência Instalada.
27. As autoras suscitaram diversas questões relacionadas com a legalidade dessa pretensão e a ré notificou-as de que entendia que estaria a contestar certas decisões não unânimes tomadas pelo Painel Financeiro, pelo que dava início ao procedimento de resolução amigável, ao abrigo do Apêndice 9 do CAE, pretendendo dar continuidade ao sistema de resolução de litígios iniciado com a submissão das suas pretensões ao Painel Financeiro.
28. O procedimento de resolução amigável não conduziu à obtenção de acordo por ser entendimento das autoras que todas as pretensões das partes submetidas ao Painel Financeiro haviam sido por ele decididas por unanimidade, pelo que não subsistia qualquer litígio – submetido ao Painel Financeiro – que pudesse ser submetido aos procedimentos subsequentes – resolução amigável e arbitragem – ao abrigo do Apêndice 9 do CAE.
29. Porém, a ré recorreu à arbitragem, nos termos do disposto na Parte I do Apêndice 9 do CAE, tendo dado início do processo CCI n.º 24371/JPA/AJP, tendo formulado, entre o mais, a pretensão de obter “o reembolso dos custos de financiamento da tarifa social desde a sua promulgação até à data de cessação do CAE ou outras medidas novas ou adicionais consideradas adequadas pelo Tribunal Arbitral.”
30. No processo arbitral, as autoras suscitaram a questão da falta de competência do Tribunal Arbitral para decidir a pretensão da ré.
31. Na Acta de Missão da arbitragem, a ré densificou a sua pretensão do seguinte modo:
“a. O reconhecimento da natureza vinculativa de quaisquer decisões unânimes tomadas pelo Painel Financeiro em 27 de setembro de 2018 e da existência de competência para definitivamente dirimir o presente litígio e decidir conceder os pedidos formulado pela Requerente;
b. O reconhecimento da Tarifa Social como uma Alteração ao Imposto Relevante nos termos do CAE;
c. A confirmação de que a Tarifa Social é uma Alteração ao Imposto Relevante que excede o Montante Limiar Aplicável, de acordo com os cálculos propostos pela Requerente ou em conformidade com quaisquer outros cálculos determinados pelo Tribunal nos termos e condições do CAE;
d. A confirmação do direito da Requerente ao reembolso pelas Requeridas dos custos incorridos com o financiamento da Tarifa Social desde a sua criação até à cessação do CAE ou à revogação da Tarifa Social (conforme a que ocorra primeiro);
e. A alteração ao cálculo do Encargo de Potência Instalada de acordo com a fórmula proposta pela Requerente ou por qualquer outra fórmula de cálculo que mantenha a Requerente, tanto quanto possível, na mesma situação financeira que se considere mais apropriada; e
f. O reembolso pelas Requeridas dos custos suportados com o financiamento da Tarifa Social desde a sua criação e até à cessação do CAE ou à revogação da Tarifa Social (conforme a que ocorra primeiro) nos termos e condições do CAE (incluindo os juros às taxas aplicáveis) e de acordo com as decisões do presente Tribunal
A requerente procura ainda obter o reembolso de todos os custos incorridos com o presente Litígio, nomeadamente, todos os custos do Tribunal Arbitral (honorários e despesas com os árbitros e as despesas administrativas), bem como honorários de advogados e peritos e outros custos e despesas incorridas pela Requerente”.[45]
32. Foi acordado entre as partes processuais que o processo arbitral seria bifurcado, passando a ter uma primeira fase na qual se iria discutir e decidir apenas a questão relativa à competência do Tribunal Arbitral e, caso este se considerasse competente, o processo arbitral seguiria para uma segunda fase onde seria apreciado e decidido o mérito do litígio.
33. Em 10 de Junho de 2020, o Tribunal Arbitral emitiu uma sentença parcial sobre competência, na qual decidiu do seguinte modo[46]:
A [maioria] do Tribunal declara que:
a) As matérias contidas na Secção VI (Decisão do Painel Financeiro), Parte 2 (O Mérito do Caso) da Decisão são “decisões” para os efeitos do Procedimento de Resolução de Litígios do CAE, na medida em que constituem determinações após a consideração dos factos e da lei;
b) O Painel Financeiro decidiu por unanimidade que a aplicação da Cláusula 20.ª não depende da capacidade da Segunda Demandada de repercutir o custo da tarifa social nas tarifas pagas pelos consumidores; em conformidade, esta decisão é final e vinculativa para as Partes;
c) O Painel Financeiro decidiu por unanimidade que a aplicação da Cláusula 20.ª do CAE não é vedada pela lei Portuguesa relevante; e em conformidade, esta decisão é final e vinculativa para as Partes;
d) O Painel Financeiro decidiu que a aplicação da Cláusula 20.ª do CAE não configura um Auxílio de Estado. Em conformidade, esta decisão é final e vinculativa para as Partes;
e) As questões decididas de forma não unânime pelo Painel Financeiro são definitivas e vinculativas para as Partes ao abrigo do CAE, salvo quando contestadas;
f) As Requeridas contestaram:
(i) a decisão não unânime do Painel Financeiro de que a Tarifa Social constituía uma Alteração Relevante; e
(ii) a decisão não unânime do Painel de que a Demandante tem direito a utilizar os mecanismos estabelecidos nas Cláusulas 20.2 a 20.5 do CAE, se for capaz de demonstrar o efeito material da imposição da Tarifa Social.
Consequentemente, a Demandante tem direito a remeter o litígio para arbitragem nos termos do Apêndice 9 do CAE;
g) O Tribunal tem competência para apreciar o litígio. Mas a sua competência é limitada a decisões não unânimes do Painel Financeiro que foram contestadas pelas Requeridas; e
h) O Tribunal tem poderes para condenar as Requeridas ao cumprimento do procedimento nos termos da Cláusula 20.ª e do Apêndice 11 do CAE, caso venha a decidir que a Tarifa Social é um Imposto Relevante nos termos do CAE.
O Tribunal rejeita todos os outros pedidos apresentados pelas Partes nesta fase do processo; e
O Tribunal reserva a sua decisão sobre as custas desta fase do processo, bem como sobre todos os outros pedidos, para uma data posterior, ou, o mais tardar, para a sentença final
(….) A maioria do Tribunal indefere outros os pedidos apresentados pelas Partes nesta fase do processo”.
34. As autoras impugnaram a sentença parcial perante o Tribunal da Relação de Lisboa, que deu origem ao processo n.º 1435/20.8YRLSB, 6.ª Secção, no qual foi proferido acórdão que anulou tal decisão.
35. A ré Tejo Energia interpôs recurso de Revista para o Supremo Tribunal de Justiça, que deu origem ao processo n.º 1435/20.8YRLSB.S1, 2.ª Secção, no qual foi proferido acórdão, em 30 de Novembro de 2021, que julgou improcedente a impugnação da sentença parcial e absolveu a requerida do pedido e onde se concluiu o seguinte[47]:
“I — A anulação da sentença arbitral pode ser pedida quando a mesma sentença não observar os limites subjectivo ou objectivo da convenção de arbitragem - art° 46.° n.°3 al.a)iii) LAV, nos termos dos arts.° 18.° n.° 9 LAV.
II — A interpretação dos actos de terceiros decisores, em direito português, sentenças de tribunais estaduais ou arbitrais, dispositivos de formações técnicas, v.g., contratualmente previstas, constituem actos jurídicos, aos quais se aplicam as regras regulamentadoras dos negócios jurídicos (arts.º 295.º e 236.º n.º 1 CCiv), pelo que cabem ser interpretados com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do seu contexto.
III — A decisão de um Painel Financeiro, integrado por técnicos e não por juristas, não tem por força que possuir a estrutura de uma decisão judicial no ordenamento português - mas é necessário que tal decisão exprima explícita, claramente, qual o seu sentido, qual o seu dispositivo, independentemente de o mesmo se revelar a final da decisão, ou integrando quaisquer fundamentos, de forma não contraditória.
IV — Concebe-se que o Painel pudesse conhecer de uma questão prejudicial, relativamente ao objecto directo de conhecimento, questão que, mesmo em processo civil, pode caber ao "tribunal competente para a acção" (art.ºs 91.° n.º1 e 92.º CPCiv).
V — Se a intervenção do tribunal arbitral se convencionou que apenas ocorreria na inexistência de unanimidade na decisão do Painel Técnico ou Financeiro, teria por força de considerar-se como abrangendo dois segmentos ou premissas dessa ausência de unanimidade do Painel, ainda por solucionar, e que tinham tido relevância directa na apreciação do pedido formulado ao Painel.”
36. Atenta a manutenção da sentença parcial sobre competência do Tribunal Arbitral, o procedimento arbitral prosseguiu os seus termos até à prolação da Sentença Final, em 7 de Março de 2023, notificada às Partes a 14 de Março de 2023, onde o Tribunal Arbitral decidiu o seguinte[48]:
“369. Face ao exposto:
a) Este Tribunal declara por maioria que a Tarifa Social corresponde a um Imposto Relevante nos termos do CAE;
b) O Tribunal declara por maioria que, desde que comprovado o efeito relevante da Tarifa Social perante o futuro painel financeiro (a ser constituído nos termos do Ponto 10.4 do Anexo 11 do CAE), a Requerente tem direito a uma alteração do Encargo de Potência, nos termos da Cláusula 20.4 e ponto 10, do Anexo 11 do CAE, “na medida do necessário para garantir, na medida do possível, que o Produtor esteja na mesma situação financeira ao abrigo deste Contrato em que estaria se a [Tarifa Social] não tivesse ocorrido;”
c) Este Tribunal condena por maioria as Requeridas a cumprir o procedimento para a alteração do Encargo de Potência estabelecido na Cláusula 20.4 e no ponto 10, Anexo 11 do CAE;
d) o Tribunal condena as Requeridas a reembolsar à Requerente 70% dos seus custos legais e outros custos, e 70% da taxa de sucesso do advogado da Requerente, no valor, respetivamente, de 277.642,25€ e 140.000,00€, acrescido de 32.200,00€ de IVA, ou seja, num total de 449.842,25€;
e) o Tribunal condena as Requeridas a pagar 70% das custas de arbitragem da CCI (honorários e despesas dos árbitros e custas administrativas da CCI), fixadas pelo Tribunal em 485.800,00 USD, em 17 de fevereiro de 2023, ou seja, 340.060,00 USD. As Requeridas são condenadas a reembolsar a Requerente pela sua provisão para custas de arbitragem da CCI no montante de 97.160,00 USD; e
f) o Tribunal condena as Requeridas ao pagamento de juros simples sobre os montantes indicados nos itens (d) e (e) acima, à taxa de juro legal prevista no Código Civil Português, desde a data em que forem notificadas desta Sentença Final até ao pagamento integra.
370. Todos os demais pedidos são indeferidos”.
37. Nas suas alegações finais no âmbito da Arbitragem n.º 24371/JPA a REN Eléctrica alegou, entre o mais, o seguinte[49]:
“3.1.2 Os custos incorridos com o financiamento da Tarifa Social não podem, de forma alguma, ser considerados abrangidos pela definição de Impostos Relevantes constante do CAE
42. A segunda razão (subsidiária) pela qual a posição da Requerente não pode prevalecer é, em suma, o facto de os custos incorridos com o financiamento da Tarifa Social não poderem, de forma alguma, ser considerados abrangidos pela definição de Impostos Relevantes constante do CAE.
43. Em primeiro lugar, para que qualquer custo seja considerado um Imposto Relevante, deve constituir uma forma de tributação nos termos da legislação portuguesa.
44. Apesar da argumentação errática da Requerente, é agora consensual que a redação do CAE se refere claramente a formas de tributação, conforme reconhecido pela Requerente. É precisamente por esse motivo que o Apêndice 11 do CAE prevê um regime diferente para outros tipos de Alterações de Custos que não as Alterações de Impostos Relevantes.
45. As únicas formas típicas de tributação previstas (atualmente) no ordenamento jurídico português, aplicáveis ao CAE, nomeadamente na Constituição, são as seguintes: impostos, taxas ou contribuições financeiras.
46. Nenhuma outra poderia obviamente ser imposta à Requerente pela sua contraparte inicial, o Estado, nomeadamente com base numa interpretação correta do CAE, uma interpretação que foi, de facto, confirmada por outro tribunal arbitral que se debruçou sobre a mesma questão.
47. Em segundo lugar, ainda que se admitissem as formas de tributação ditas atípicas como passíveis de enquadramento na definição de Impostos Relevantes (quod non), para que um determinado custo possa ser considerado como uma forma de tributação no direito português, seja ela típica ou atípica, é necessário que se verifiquem quatro requisitos obrigatórios: esses custos devem corresponder a “(i) uma imposição de natureza pecuniária, (ii) de caráter obrigatório, (iii) devida a uma entidade pública, (iv) que tenha como finalidade a arrecadação de receitas”.
48. Este é um ponto consensual entre as Partes (e os seus peritos jurídicos). É igualmente consensual que os dois primeiros requisitos estão preenchidos. A questão das formas atípicas de tributação suscitada pela Requerente é, como tal, totalmente irrelevante.
49. A missão do Tribunal não é outra senão a de apreciar se os custos suportados com o financiamento da Tarifa Social são devidos a uma entidade pública e visam a arrecadação de receitas, as duas únicas questões controvertidas que subsistem a este respeito. Como já anteriormente desenvolvido e abaixo resumido, o Tribunal não pode deixar de concluir de forma negativa.
[…]
62. Seja como for, e em síntese, mesmo que esses custos pudessem (quod non) ser qualificados como um imposto, como inicialmente defendido pela Requerente, a Cláusula 20.ª do CAE nunca poderia ser aplicada:
(i) Tal imposto seria inconstitucional, quer do ponto de vista orgânico (não foi criado pela Assembleia da República através de Lei ou de Decreto-Lei emitido pelo Governo mediante autorização da Assembleia da República), quer do ponto de vista material (não é calculado sobre o rendimento real do sujeito passivo - in casu, a Requerente - mas sim sobre a capacidade instalada dos centros eletroprodutores);
(ii) A Requerente não seria, como tal, obrigada a pagar tal imposto, nos termos do artigo 103.º, n.º 3 da Constituição: “Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição [...]’’;
(iii) Dado que a Cláusula 20.ª do CAE exige que o Produtor (Requerente) seja obrigado a pagar qualquer Imposto Relevante, a aplicação da referida disposição contratual seria, neste cenário hipotético, impedida.
63. Uma vez mais, os argumentos da Requerente em contrário - limitados a (iii) acima – não são válidos:
(i) A própria redação da Cláusula 20.ª é muito clara ao afirmar que uma Alteração Relevante apenas ocorre se e na medida em que o Produtor “seja obrigado a pagar” qualquer Imposto Relevante;
(ii) O artigo 103.º, n.º 3 da Constituição também é muito claro: os contribuintes não são obrigados a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição. Nestes casos, o contribuinte pode recorrer ao direito constitucional de resistência ou, se tal não for possível, o contribuinte - e apenas o contribuinte - tem de obter uma decisão sobre a questão junto dos tribunais estaduais. Enquanto essa decisão não for obtida, o contribuinte não pode ser considerado obrigado a pagar;
(iii) Na mesma linha, o dever de boa-fé que se aplica ao cumprimento de qualquer contrato, nos termos do artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil, impede que a Requerente, ao suspeitar que está perante um imposto inconstitucional, e sem esclarecimento prévio dos tribunais estaduais competentes, se limite a tentar repercutir esse custo na sua contraparte contratual;
(iv) Contrariamente ao que a Requerente sustenta, existe uma necessidade lógica de este Tribunal (neste cenário hipotético) avaliar a questão da constitucionalidade, porque este é um pré-requisito para a interpretação e aplicação da cláusula 20.ª do CAE. Este Tribunal tem necessariamente de apreciar se a Requerente está obrigada a pagar os custos suportados com o financiamento da Tarifa Social, debruçando-se, se necessário, sobre as disposições constitucionais aplicáveis.”
38. Por sua vez, a autora REN Trading, nas suas Alegações Finais apresentadas na arbitragem, alegou o seguinte[50]:
“a. A Tarifa Social enquanto imposto seria inconstitucional
82. Como a 2.ª Requerida demonstrou, da taxonomia fechada das formas de tributação previstas na lei portuguesa, a Tarifa Social jamais poderia ser considerada uma taxa ou uma contribuição financeira, uma vez que não existe qualquer reciprocidade subjacente à Tarifa Social, i.e. nenhum benefício ou serviço prestado aos sujeitos passivos da obrigação de financiamento, individual ou coletivamente considerados.
83. A Tarifa Social também não é um imposto na opinião da 2.ª Requerida, uma vez que não visa gerar receita, o cumprimento de deveres por entidades públicas, ou até por entidades privadas encarregadas de prosseguir o interesse público, implementando antes uma série de mecanismos de repassagem nos quais os agentes do mercado são reembolsados da perda de rendimento determinada pelas tarifas descontadas de acesso às redes.
84. Se o Tribunal Arbitral considerasse que a Tarifa Social é uma forma de tributação, teria de a considerar como um imposto em vista da sua natureza unilateral, apesar de lhe faltar a característica acima mencionada do objetivo de geração de receita que caracteriza os impostos, e contrariamente à tradição legislativa e jurisprudencial portuguesa.
85. É entendimento pacífico neste momento que o Decreto-Lei da Tarifa Social foi aprovado pelo Governo fora do âmbito de uma autorização, ou delegação de poderes legislativos, pelo Parlamento, em violação da norma constitucional segundo a qual a competência legislativa relativa ao estabelecimento de impostos é apenas do Parlamento, a não ser que este autorize o Governo a fazê-lo.
86. Em aditamento ao aspeto formal da aprovação da Tarifa Social por ato legislativo do Governo sem autorização parlamentar, a Tarifa Social, se considerada como um imposto, violaria disposições substantivas da Constituição sobre o Sistema fiscal português, nomeadamente no que respeita à determinação dos montantes devidos ao abrigo do Decreto-Lei da Tarifa Social baseados na capacidade instalada em vez de no rendimento real do produtor.
87. A 2.ª Requerida demonstrou que o Tribunal Arbitral deve conhecer da (in)constitucionalidade da Tarifa Social, se vista como um imposto, pois por um lado, o Tribunal Arbitral, funcionando como um tribunal jurisdicional, não pode aplicar uma norma inconstitucional, e, por outro, determinar se a Tarifa Social é inconstitucional é instrumental na determinação acerca da qualificação como um Imposto Relevante ao abrigo do CAE.
88. Se a Tarifa Social fosse considerada como um imposto, e necessariamente um imposto inconstitucional, então (i) o Tribunal Arbitral não pode aplicar as normas inconstitucionais e (ii) a Requerente não poderia “ser obrigada a pagar” por qualquer Autoridade Competente em vista da proibição constitucional de aplicação de impostos inconstitucionais,
89. Uma vez que um Imposto Relevante apenas pode consistir em “de impostos, direitos de importação, direitos e deveres aduaneiros e fatores percentuais (…) que o Produtor (…) fique obrigado a pagar por uma Autoridade Competente”, então mesmo que a Tarifa Social seja considerada um imposto, não pode constituir um Imposto Relevante ao abrigo do CAE por ser inconstitucional e inaplicável.”
39. No procedimento perante o Painel Financeiro a autora REN Eléctrica alegou que a Cláusula 20 do CAE é uma “cláusula de estabilidade” (fiscal), inserida num contrato celebrado entre um privado e uma entidade pública, motivo pelo qual não podia ser oposta a duas entidades privadas como as autoras, tendo exposto o seguinte, conforme consta da Decisão do Painel Financeiro[51]:
“A REN Eléctrica afirma que a interpretação do contrato deve ter em consideração a evolução do setor da eletricidade em Portugal desde a data de celebração do CAE. Considera que a Cláusula 20 é uma cláusula de estabilidade que, como tal, apenas pode ser validamente concedida pelo Estado e aplicada contra o mesmo – e não contra partes privadas, que não controlam o risco de soberania (§ 81 da Contestação, § 88 da Tréplica e § 22 das Alegações Finais). Afirma que a cláusula de estabilidade em apreço não foi concedida pelas Requeridas, mas sim pelo Estado – por meio da EDP, uma empresa detida a 100% pelo Estado – e foi acordada partindo do princípio de que a EDP e, subsequentemente, as Requeridas estariam numa posição de controlar o risco de soberania (o que já não é o caso). Por conseguinte, sustenta que qualquer tentativa de interpretar o CAE no sentido de que a Cláusula 20 pode ser aplicada contra as Requeridas se traduz numa violação da intenção das partes que negociaram e celebraram o CAE, assim como do princípio da boa-fé contratual, e conduziria a uma situação de total desequilíbrio da posição das Requeridas (§ 9-11 e § 89-90 da Contestação, § 94 da Tréplica e § 24-29, 33 das Alegações Finais). Por conseguinte, a REN Eléctrica argumenta que, devido à natureza da Cláusula 20, quaisquer responsabilidades relativas à mesma apenas podem ser reclamadas junto do Estado (§ 96 da Contestação).
(…)
Nas suas Alegações Finais, a REN Eléctrica sublinha que a inaplicabilidade da Cláusula 20 decorre diretamente de disposições jurídicas imperativas – designadamente as disposições relativas à interpretação de contratos previstas no Código Civil – e da doutrina jurídica sobre interpretação de contratos (§ 35)”.
40. Na arbitragem, a autora REN Eléctrica, em resposta, apresentou alegação no sentido de a referida Cláusula 20. constituir uma “cláusula de estabilidade” (fiscal) que, pela sua natureza, não podia ser oposta às autoras, nos seguintes termos sumariados pelo Tribunal Arbitral na Sentença Final:
“241. A 1.ª Requerida alega que a posição da Requerente simplifica em demasia o mandato do Tribunal. Exorta o Tribunal a considerar os contextos histórico e jurídico em que o CAE foi celebrado, e as mudanças ocorridas em tais contextos desde então. Neste contexto, a 1.ª Requerida alega ainda que (i) a Cláusula 20.ª é uma cláusula de estabilidade que só pode ser oponível ao Estado Português, e não às Requeridas, que são entidades privadas; (ii) ainda que a Cláusula 20.ª do CAE fosse oponível às Requeridas, não permitiria o reembolso dos custos suportados como resultado da Tarifa Social; e (iii) o CAE não pode ser alterado sem autorização prévia das entidades competentes, nomeadamente da ERSE e da DGEG.
242. A título preliminar, a 1.ª Requerida pede ao Tribunal que considere tanto o contexto histórico em torno da celebração do CAE quanto as mudanças que se seguiram no quadro legal relevante, que resume da seguinte forma:
• O setor da eletricidade português foi totalmente nacionalizado na década de 1970, quando foi criada a EDP, a parte original do CAE. Isso começou a mudar no final da década de 1980, quando, no contexto da integração de Portugal na Comunidade Económica Europeia (a “CEE”), a nova legislação permitiu que entidades privadas entrassem no mercado produzindo, distribuindo e transmitindo energia elétrica;
• Em 1991, a EDP, então sociedade anónima (ainda totalmente detida pelo Estado), começou a procurar investimento privado para financiar a expansão da rede de distribuição portuguesa. O CAE e outros contratos de aquisição de energia semelhantes foram celebrados neste contexto específico. As partes privadas destes contratos eram consideradas produtores vinculados, “tendo o direito de vender toda a eletricidade produzida [através de] um mecanismo de remuneração garantida;”
• Em 1994, uma sociedade denominada REN - Rede Elétrica Nacional, S.A. (“REN”, não confundir com a 1.ª Requerida) - foi criada como uma subsidiária da EDP para substituir esta última em todos os contratos de aquisição de energia existentes (incluindo o CAE). As mudanças no setor energético português continuaram, tendo a EDP passado por um processo de privatização entre 1997 e 2011, enquanto que a REN foi separada do grupo EDP e manteve o capital público;
• A partir de 2003, em linha com as diretivas da União Europeia, Portugal procedeu à liberalização total do mercado energético. As condições estabelecidas no CAE e outros acordos semelhantes, como a garantia contratual de aquisição de toda a energia produzida, não se coadunam com a criação de um mercado livre. Assim, o Decreto-Lei n.º 185/2003 e o Decreto-Lei n.º 240/2004 previram a cessação antecipada dos contratos de aquisição de energia. Foi implementado um regime de custos ociosos para compensar a cessação antecipada, e 16 dos 18 titulares de centros eletroprodutores aceitaram a proposta de cessação. Foi criada uma solução temporária para permitir que os outros dois contratos de aquisição de energia - entre os quais o CAE - se mantenham em vigor no novo enquadramento. A REN tornou-se uma sociedade de gestão de participações sociais e a 1.ª Requerida assumiu a sua posição no CAE. A 2.ª Requerida foi criada para administrar os outros dois contratos e aderiu ao CAE, tornando-se solidariamente responsável por todas as obrigações daí decorrentes. O cumprimento destes dois contratos passou a ser acompanhado e regulado pela ERS; e
• O Grupo REN foi posteriormente sujeito a um processo de privatização, sendo as duas Requeridas atualmente entidades privadas nas quais o Estado não detém qualquer participação. Portanto, a 1.ª Requerida alega que o CAE é presentemente executado num cenário regulamentar completamente diferente e afirma que:
o atual enquadramento legal e regulamentar - estabelecido em benefício exclusivo da Requerente - operou uma modificação dos termos do CAE que condiciona a interpretação das suas disposições, nomeadamente aquelas relevantes para o presente Litígio [...]
243. Considerando este contexto, a 1.ª Requerida alega o seguinte:
244. Em primeiro lugar, a 1.ª Requerida alega que a Cláusula 20.ª do CAE é uma cláusula de estabilidade. Foi celebrada entre o produtor e o Estado, através da empresa pública EDP, no contexto acima descrito. Uma disposição como a Cláusula 20.ª só pode ser executada quando uma das partes puder comprometer unilateralmente o equilíbrio contratual através do exercício de poderes legislativos e regulamentares. A cláusula, nesse contexto, permite o restabelecimento do equilíbrio contratual. Este entendimento é confirmado pelo parecer jurídico apresentado pela Requerente perante o Painel Financeiro (da autoria dos Professores Doutores Paulo Otero e Miguel Prata Roque) e pelos pareceres jurídicos apresentados pela 1.ª Requerida na presente arbitragem.
245. Segundo a 1.ª Requerida, a doutrina define as cláusulas de estabilidade como “disposições pelas quais o Estado aceita que o exercício dos seus poderes legislativos e administrativos não terá por efeito modificar as condições contratuais acordadas com o investidor em detrimento deste”. Assim, as cláusulas de estabilidade só podem ser encontradas em contratos de investimento em que o Estado (ou entidade pública) seja parte para proteger os privados do chamado risco de soberania.
246. A 1.ª Requerida afirma ainda que só o Estado está em condições de garantir que o investidor não será afetado pelas consequências dos atos legislativos. Embora haja algum debate doutrinário sobre se essas cláusulas podem ser incluídas em contratos envolvendo entidades estatais ou empresas da esfera pública, a 1.ª Requerida afirma que “as cláusulas de estabilidade não podem ser validamente concedidas por e executadas contra privados, uma vez que estes não têm controlo algum sobre o risco de soberania [que está] muito além da repartição de risco contratual”. Como tal, a Cláusula 20.ª não poderia ser oponível às Requeridas.
(…)
248. A 1.ª Requerida realça ainda que o Painel Financeiro não considerou se a Cláusula 20.ª era uma cláusula de estabilidade, nem considerou a exigência de autorização da ERSE e da DGEG. Sublinha que a Requerente não pode apontar para uma secção ou parágrafo específico da Decisão, pois o Painel Financeiro nunca decidiu sobre tais matérias”.
41. Para além do decidido pelo Tribunal Arbitral referido no ponto 36., consta o seguinte da sentença arbitral sobre as questões apreciadas[52]:
“128. Resulta dos pedidos formulados pelas Partes que as questões a decidir na presente Sentença Final são:
• Se a Tarifa Social é um Imposto Relevante nos termos do CAE; (Secção 5.3);
• Sendo a Tarifa Social considerada Imposto Relevante, se a Requerente tem direito ao seu reembolso através da alteração do Encargo de Potência Instalada (desde que comprovado o efeito relevante da Tarifa Social perante o futuro painel financeiro)
(Secção 5.4);
• Se as Requeridas devem ser condenadas no (i) cumprimento do procedimento previsto na Cláusula 20.ª e ponto 10 do Anexo 11 do CAE, e (ii) na apresentação de uma contraproposta à alteração do Encargo de Potência Instalada no prazo de 15 dias após a notificação da decisão do Tribunal; e, caso não o façam, se a alteração do Encargo de Potência Instalada deve ser conforme proposto pela Requerente (Secção 5.5); e
• Dos encargos da arbitragem (Secção 5.6).
129. As Partes apresentaram diversos argumentos para sustentar as suas posições. O Tribunal apreciou e analisou todos os argumentos. No entanto, a fim de explicar as suas conclusões, o Tribunal concentrar-se-á nos argumentos que fundamentam o seu raciocínio ou que exigem uma resposta para que tal raciocínio seja válido.
5.3. A Tarifa Social e os Impostos Relevantes no âmbito do CAE
[…]
5.3.2. Apreciação do Tribunal
197. A Requerente requereu ao Tribunal a declaração de que a Tarifa Social é um Imposto Relevante nos termos do CAE. As Requeridas opõem-se a este pedido, alegando que a Tarifa Social não é um Imposto Relevante nos termos contratualmente definidos.
Analisados os argumentos apresentados por todas as Partes, o Tribunal chegou à conclusão de que a Tarifa Social é um Imposto Relevante nos termos do CAE.
198. A questão de saber se a Tarifa Social é um Imposto Relevante é o cerne do litígio entre as Partes. O Painel Financeiro examinou o assunto, mas não conseguiu chegar a uma decisão unânime. A maioria do Painel Financeiro decidiu que a Tarifa Social se enquadra na definição contratual de Imposto Relevante, conforme se segue: a Tarifa Social [...] enquadra-se na definição de Imposto Relevante prevista na Cláusula 1.1 do CAE, [...] independentemente de se enquadrar no conceito em sentido restrito de ‘imposto’ da legislação portuguesa. Deve concluir-se que a promulgação do Decreto-Lei n.º 138-A/2010 [.] se enquadra no âmbito da alínea (a) da Cláusula 20.1 do CAE e que, nos termos da Cláusula 20.1 do CAE, a Relevantes para efeitos do CAE.
199. Este Tribunal já decidiu que as Requeridas contestaram esta decisão não unânime e, portanto, a questão de saber se a Tarifa Social é um Imposto Relevante nos termos do CAE, é da competência do Tribunal.
200. A Requerente alega que o termo Imposto Relevante é definido de forma ampla no CAE, sem qualquer referência às categorias de tributação previstas na legislação portuguesa. Assim, é irrelevante se a Tarifa Social pode ou não ser qualificada como imposto, taxa ou contribuição - as três categorias de tributação previstas na Constituição da República Portuguesa. Por outro lado, as Requeridas afirmam que o conceito contratual de Imposto Relevante se refere às formas de tributação existentes e, não correspondendo a Tarifa Social a nenhuma das categorias de tributação, não é um Imposto Relevante nos termos do CAE.
201. A Requerente sustenta, subsidiariamente, que a Tarifa Social é uma forma de tributação à luz do direito português, definindo-a quer como forma de tributação atípica, quer como imposto ou contribuição. As Requeridas rejeitam essas propostas e argumentam que a Tarifa Social é uma obrigação de serviço público e, portanto, não pode ser qualificada como uma forma de tributação. Por sua vez, a Requerente concorda que parte da Tarifa Social é uma obrigação de serviço público, nomeadamente o desconto que beneficia os consumidores economicamente vulneráveis, mas defende que o mecanismo de financiamento desse desconto é uma forma de tributação. As Requeridas discordam e afirmam que a obrigação de serviço público não pode ser dissociada do seu mecanismo de financiamento.
202. Subsidiariamente, as Requeridas afirmam que se a Tarifa Social fosse qualificada como imposto, seria um imposto inconstitucional, pois foi instituída por diploma do Governo (Decreto-Lei) e não por lei da Assembleia da República (conforme exigido pela Constituição).
203. A avaliação se a Tarifa Social é um Imposto Relevante nos termos do CAE requer uma análise (i) da linguagem do CAE e da amplitude da definição de Impostos Relevantes; e (ii) se a Tarifa Social se enquadra nessa definição.
204. Em primeiro lugar, o Tribunal deve analisar a linguagem adotada pelas Partes no CAE. O termo “Impostos Relevantes” é definido na Cláusula 1.1 da seguinte forma:
Todos os tipos de impostos, direitos de importação, direitos e deveres aduaneiros e fatores percentuais (“impostos”) imponíveis onde quer que seja e quando quer que seja, ao Produtor, ao Operador ou à Empresa Fornecedora de Combustível ou sobre os quais o Produtor, o Operador ou a Empresa Fornecedora de Combustível tenham de responder por uma Autoridade Competente em relação com a propriedade, manutenção ou operação da Central Elétrica, alguma das suas Unidades ou Partes Comuns ou em relação com a aquisição de combustível para a Central Elétrica ou relativamente a este Contrato, ao Contrato de Aquisição e Construção, e o Contrato de Locação incluindo, sem limitar, Impostos Ambientais Relevantes, valores selados e impostos sobre empréstimos em divisas estrangeiras e transações cambiais e qualquer retenção ou outros impostos sobre o pagamento de juros aos Mutuantes mas excluindo:
i. imposto sobre o rendimento empresarial (exceto na medida em que tais impostos ou qualquer aumento desse imposto constitua um Imposto
Ambiental Relevante);
ii. qualquer imposto sobre o rendimento ou lucros ou mais-valias do Produtor, do Operador ou da Empresa de Fornecimento de Combustível
(exceto na medida em que tais impostos ou qualquer aumento desse imposto constitua um Imposto Ambiental Relevante);
iii. imposto sobre o valor acrescentado ou outro imposto ad valorem na medida em que o mesmo seja recuperável ou passível de contabilização
como imposto a montante de acordo com a legislação portuguesa, salvo disposição em contrário na Cláusula 20.2.2;
iv. quaisquer impostos considerados nas fórmulas ou preços referidos nos Anexos 1, 2 e 3 na medida em que os mesmos sejam tidos em conta;
v. sem prejuízo do disposto na Cláusula 20.3, quaisquer impostos ou valores selados sobre capital e juros sobre empréstimos e refinanciamentos;
vi. quaisquer impostos ou valores selados sobre transações cambiais para além das que (na medida em que sejam recuperáveis ao abrigo da Cláusula 20.3.5, alínea b)):
(a) devidos em relação a Dívida Sénior ou a pagamentos de capital e juros respeitantes a empréstimos feitos com o propósito de implementar o Anexo 11; ou
(b) devidos em relação a combustível para a Central Elétrica;
vii. retenções na fonte respeitantes a pagamento de dividendos ou empréstimos subordinados concedidos direta ou indiretamente por qualquer acionista do Produtor, do Operador ou da Empresa de Fornecimento de Combustível[.]
205. As Requeridas alegam que o termo “Impostos Relevantes” se refere às três formas de tributação ao abrigo da legislação portuguesa: impostos, taxas ou contribuições, conforme definido pela Constituição da República Portuguesa. A 1.ª Requerida afirma que os termos incluídos na definição (impostos, direitos de importação, direitos e deveres aduaneiros e fatores percentuais) indicam “realidades de natureza fiscal” e que seriam essas as realidades de natureza fiscal existentes no ordenamento jurídico português. A 2.ª Requerida afirma que a definição é vaga e deve ser interpretada de acordo com a lei fiscal portuguesa, a lei aplicável ao contrato. A 2.ª Requerida afirma ainda que, se as Partes tivessem pretendido afastar-se das três categorias estabelecidas na Constituição, teriam redigido a Cláusula 1.1 nesse sentido, referindo-se a “quaisquer custos impostos por ato legislativo ou outras fórmulas semelhantes”. De acordo com a 2.ª Requerida, o termo “Impostos Relevantes”, conforme redigido, “restringe a sua aplicabilidade aos fenómenos de tributação previstos na Constituição da República Portuguesa.”
206. A maioria deste Tribunal considera que a linguagem da definição da Cláusula 1.1, no entanto, não sustenta a posição das Requeridas. “Impostos Relevantes” são amplamente definidos como “todos os tipos de impostos, direitos de importação, direitos e deveres aduaneiros e fatores percentuais (“impostos”) imponíveis onde quer que seja e quando quer que seja.” Os termos literais utilizados pelas Partes denotam a intenção de deixar claro que todas as formas de tributação, ou seja, “todas as imposições governamentais,” devem ser englobadas nesta definição e, como tal, consideradas Impostos Relevantes para fins do CAE. As exceções - ou seja, as formas de tributação que não devem ser consideradas Impostos Relevantes - encontram-se precisamente enumeradas na definição. Nada consta dessa definição que indicie que possam existir outras exceções.
207. Se as Partes pretendessem limitar as formas de tributação às taxas, impostos e contribuições - ou às categorias previstas na Constituição da República Portuguesa, que eram, à data da assinatura do CAE, apenas taxas e impostos -, a definição assim o teria declarado expressamente. Ao invés, o termo “Impostos Relevantes” foi definido de forma muito ampla (“de qualquer tipo, onde e quando quer que seja imposto”), sem referência a categorias legal ou doutrinariamente estabelecidas e/ou definidas. A definição também não se refere às três categorias da lei portuguesa mencionadas pelas Requeridas, uma vez que o CAE se refere a “todos os tipos de impostos, direitos de importação, direitos e deveres aduaneiros e fatores percentuais.”
208. Em segundo lugar, agora que a maioria deste Tribunal determinou que a cláusula 1.1 se destinava a abranger todas as formas de tributação, o Tribunal deve determinar se a Tarifa Social se enquadra na definição de Imposto Relevante nos termos do CAE.
209. Ambas as Requeridas sustentam que a Tarifa Social não é um imposto, nem uma taxa ou uma contribuição, pelo que não pode ser considerada um Imposto Relevante. A Requerente, por sua vez, alega que a definição ampla de Imposto Relevante no CAE abrange a Tarifa Social e, mais especificamente, o mecanismo de financiamento da Tarifa Social.
210. O Tribunal observa que as Partes concordam, em última análise, com uma das muitas possíveis qualificações legais da Tarifa Social. Com efeito, é pacífico entre as Partes que a Tarifa Social é uma obrigação de serviço público que contém ou está associada a um mecanismo de financiamento correspondente. As Partes discordam, no entanto, sobre a natureza do referido mecanismo de financiamento.
211. As Requeridas defendem que o mecanismo de financiamento não pode ser dissociado da principal obrigação de serviço público, que é o desconto aplicado nas tarifas pagas pelos consumidores economicamente vulneráveis. Segundo as Requeridas, o mecanismo de financiamento também pode ser qualificado como obrigação de serviço público, não podendo, portanto, ser uma forma de tributação. A Requerente discorda, e afirma que o mecanismo de financiamento é uma forma de tributação e um Imposto Relevante nos termos do CAE, independentemente de não poder ser dissociado do elemento de desconto da Tarifa Social.
212. O Acórdão do TJUE junto aos autos pela Requerente oferece alguns esclarecimentos sobre a dupla vertente da Tarifa Social, não obstante o facto de que tal Acórdão diz respeito a uma outra obrigação de serviço público ao abrigo da lei espanhola, o bono social. Nesse Acórdão, embora tenha constatado que “o sistema de financiamento é um elemento indissociavelmente ligado à medida de intervenção sobre os preços”, o TJUE considerou que os dois elementos devem ser apreciados separadamente e atribuiu-lhes tratamentos diferenciados. O TJUE entendeu que o mecanismo de financiamento previsto na legislação espanhola – considerado separadamente do elemento de desconto que afeta os preços – violou o princípio da não discriminação previsto no artigo 3.º, n.º 2, da Diretiva 2009/72.221 O TJUE também decidiu que o princípio da proporcionalidade estabelecido no mesmo artigo deveria ser aplicado exclusivamente ao elemento desconto, e não ao mecanismo de financiamento do bono social espanhol.
213. Seguindo esse mesmo raciocínio, a maioria deste Tribunal entende que, embora o mecanismo de financiamento esteja ligado à Tarifa Social, os dois elementos podem ser considerados separadamente. A maioria deste Tribunal entende, portanto, que a caracterização da Tarifa Social como obrigação de serviço público não impede que o seu mecanismo de financiamento seja considerado Imposto Relevante nos termos do CAE.
214. Conforme estabelecido acima, as Partes definiram o termo “Impostos Relevantes” de forma ampla, de modo a abranger todas as formas de imposições do Estado, ou seja, “todos os tipos de impostos [...] imponíveis onde quer que seja e quando quer que seja”, a menos que expressamente excluídas. As Partes não fizeram qualquer referência à legislação portuguesa ou a quaisquer categorias legais de tributação, evidenciando assim a intenção de contornar quaisquer categorias de tributação legal ou doutrinariamente definidas e de incluir uma definição autónoma no CAE. Como o mecanismo de financiamento da Tarifa Social não se enquadra em nenhuma das exceções elencadas, enquadra-se na definição de Imposto Relevante.
215. A maioria deste Tribunal concorda com a maioria do Painel Financeiro, que considerou que a linguagem adotada na definição de Impostos Relevantes “evidencia uma clara intenção das Partes de se afastarem da definição legal de ‘impostos’ a fim de criar um conceito mais amplo que incluiria qualquer imposição cobrada em relação às pessoas e aos eventos referidos na referida definição.” Assim, a Tarifa Social enquadra-se na definição de Imposto Relevante “na medida em que incide sobre a Tejo Energia ‘relativamente à sua titularidade [...] ou exploração da Central’, independentemente de se enquadrar no conceito em sentido restrito de “tributo” ao abrigo da legislação portuguesa.
216. Nesta base, a discussão sobre se a Tarifa Social é uma forma de tributação atípica no direito português ou se se enquadra num dos conceitos tipológicos referidos na Constituição da República Portuguesa, reveste-se de pouca relevância. Da mesma forma, não é necessário iniciar um debate sobre se a Tarifa Social cumpre os quatro requisitos (uma imposição de natureza pecuniária; de aplicação obrigatória; devida a uma entidade pública; e com o fim de arrecadar receita) de um tributo nos termos da lei portuguesa.
217. Os outros elementos invocados pelas Requeridas não conduzem a maioria deste Tribunal a uma conclusão diferente:
218. Em primeiro lugar, as Requeridas referem-se ao parecer jurídico do CCPGR relativo à Tarifa Social, que foi homologado pela ERSE e pela Secretária de Estado da Energia, como autoridade que confirma a sua interpretação do CAE. Este Tribunal considera por maioria que a relevância deste parecer jurídico é limitada para o presente debate. Com efeito, o CCPGR conclui que os custos do financiamento da Tarifa Social devem ser suportados pelos produtores de energia, conforme determinado pelo Decreto-Lei n.º 138-A/2010, não devendo conduzir a quaisquer ajustes dos regimes contratuais desses produtores. O CCPGR está preocupado principalmente com as considerações de interesse público que justificam tal posição, que não foram arguidas pelas Partes, não foram examinadas pelo Painel Financeiro e extravasam a competência deste Tribunal pois vão além dos limites da sua competência nos termos determinados na Sentença Parcial.
219. Em segundo lugar, as Requeridas invocam o parecer jurídico da própria ERSE sobre a Tarifa Social, que remete para o referido parecer do CCPGR, e concluem que não deve haver ajuste do equilíbrio contratual do CAE, salientando que a Tarifa Social não é um imposto à luz da legislação portuguesa. Na medida em que este parecer confirma o parecer do CCPGR e sublinha que a Tarifa Social não se enquadra na categoria de imposto à luz da legislação portuguesa, é também irrelevante para a qualificação da Tarifa Social como Imposto Relevante nos termos do CAE.
220. Em terceiro lugar, os consultores jurídicos indicados pelas Requeridas (Sr. Machete, Sr. Ferreira e Sra. Palma) interpretam a definição de Impostos Relevantes como referindo-se exclusivamente às três categorias de tributação estabelecidas na Constituição da República Portuguesa. Como a maioria deste Tribunal não adotou essa interpretação da definição, os seus pareceres não afetam a sua conclusão.
221. Em quarto lugar, as Requeridas referem-se à sentença proferida no Processo CCI n.º 25128/JPA, que apreciou um litígio semelhante ao litígio aqui em causa. A maioria daquele tribunal concluiu que a Tarifa Social não era um “imposto relevante” no âmbito de um contrato de aquisição de energia similar porque considerou que a definição de “imposto relevante” naquele contrato remetia para as formas de tributação previstas na lei portuguesa. Essa sentença, no entanto, refere-se a um contrato separado e não vincula este Tribunal. A maioria deste Tribunal acrescenta que examinou o raciocínio maioritário nesse caso e chegou a uma conclusão diferente pelas razões expostas na presente Sentença.
222. Este Tribunal declara por maioria que a Tarifa Social corresponde a um Imposto Relevante nos termos do CAE.
5.4. Direito da Requerente ao Reembolso da Tarifa Social através da Alteração do Encargo de Potência Instalada nos termos da Cláusula 20.ª e ponto 10 do Anexo 11 do CAE
[….]
5.4.2. Apreciação do Tribunal
267. A Requerente pretende obter uma declaração de que tem direito ao reembolso dos custos incorridos relativos à Tarifa Social - desde que comprovado o efeito relevante de tais custos - através da alteração do Encargo de Potência Instalada, “ajustado à inflação e incluindo juros permitidos à Taxa de Juro de Referência.”
268. As Requeridas opõem-se a este pedido afirmando que (i) a Cláusula 20.ª é uma cláusula de estabilidade que só pode ser oponível ao Estado Português, e não às Requeridas, que são entidades privadas; (ii) ainda que a Cláusula 20.ª do CAE fosse oponível às Requeridas, não permitiria o reembolso dos custos suportados em relação à Tarifa Social; e (iii) o CAE não pode ser alterado sem autorização prévia das entidades competentes, nomeadamente da ERSE e da DGEG. As Requeridas também pedem ao Tribunal que considere o contexto em que o CAE foi celebrado, as mudanças ocorridas desde então e o quadro legal e regulamentar atual. Os argumentos das Requeridas, se aceites, excluem totalmente a aplicação da Cláusula 20.ª.
269. O Tribunal irá (i) examinar se a Cláusula 20.ª do CAE dá direito à Requerente ao reembolso das despesas incorridas com o financiamento da Tarifa Social, antes (ii) de analisar as objeções suscitadas pelas Requeridas e (iii) de apreciar os pedidos da Requerente de correções monetárias e juros.
270. Conforme indicado na Sentença Parcial, o Tribunal tem poderes para (i) rever a decisão não unânime do Painel Financeiro segundo a qual a imposição da Tarifa Social foi considerada Alteração Relevante e (ii) condenar as Requeridas no cumprimento do procedimento nos termos da Cláusula 20.4 e Anexo 11. O “Painel Financeiro assim constituído teria competência para avaliar se o efeito da imposição das Tarifas Sociais foi de facto relevante e, em caso afirmativo, teria competência para optar entre as propostas de alteração sugeridas pelas Partes.”
271. Em primeiro lugar, a Cláusula 20.ª do CAE, intitulada “Alterações dos Impostos”, prevê as consequências da imposição de um Imposto Relevante, conforme definido na Cláusula 5.3.2 acima.
272. Especificamente, a Cláusula 20.1 (“Alterações Relevantes”) estabelece as circunstâncias em que a imposição de um Imposto Relevante desencadeará a aplicação das Cláusulas 20.2 a 20.5. Essas circunstâncias são amplamente definidas, da forma seguinte:
20.1 Alterações Relevantes
Se, após a data do presente Contrato, a. o Produtor, o Operador ou a Empresa de Fornecimento de Combustível (1) ficar obrigado a pagar ou a deduzir quaisquer Impostos Relevantes, que em 27 de novembro de 1992 não existiam ou não afetavam o Produtor ou (2) incorrer num aumento de custos, em ambos os casos motivado por:
(i) introdução, imposição, tributação ou cobrança de quaisquer Impostos Relevantes e/ou um aumento na taxa pela qual quaisquer Impostos Relevantes são cobrados e/ou
(ii) qualquer alteração na legislação ou no procedimento publicitado de qualquer autoridade tributária de qualquer modo relacionada com Impostos Relevantes, e/ou
(iii) qualquer outra alteração que seja adversa aos interesses financeiros do Produtor, do Operador ou da Empresa de Fornecimento de Combustível, com base na qual quaisquer Impostos Relevantes são cobrados; ou [...]
e desde que (no caso das alíneas a) ou b) acima mencionadas) o efeito de tal alteração seja material (conforme definido para os fins da presente Cláusula no Anexo 11) então, sujeito às disposições das Cláusulas 20.2.2. e 20.3, aplicar-se-ão as Cláusulas 20.2 a 20.5. Não obstante as disposições precedentes, as Cláusulas 20.2.2 e 20.3 são aplicáveis nas circunstâncias previstas nessas Cláusulas.
Para os fins da presente Cláusula e do Anexo 11, qualquer circunstância prevista nas alíneas a) ou b) precedentes considera-se uma “Alteração aos Impostos Relevantes” (expressão que deve incluir o impacto financeiro de tal alteração no Produtor, Operador ou Empresa de Fornecimento de Combustível).
273. Daqui decorre que, de acordo com a Cláusula 20.1(a), se um Produtor incorrer num aumento dos custos devido à imposição de um Imposto Relevante, “As Cláusulas 20.2 a 20.5 terão efeito”, desde que o efeito de tal alteração seja “relevante.” Portanto, a cláusula 20.1, estabelece dois requisitos para a aplicação dos mecanismos previstos nas cláusulas seguintes: (i) a existência de Imposto Relevante que cause aumento (ou diminuição nos termos da Cláusula 20.1(b)) dos custos; e (ii) que o efeito desses custos seja relevante.
274. A maioria deste Tribunal já decidiu que a Tarifa Social é um Imposto Relevante nos termos do CAE (vide supra, Secção 5.3.2). É ainda incontestável que esta Tarifa Social (i) não existia à data da assinatura do CAE e (ii) provocou um aumento dos custos da Requerente.
275. Quanto ao requisito relativo ao efeito relevante dos custos incorridos em relação à Tarifa Social, embora o Painel Financeiro tenha decidido por unanimidade que “a Tejo Energia não demonstrou que tal alteração do Imposto Relevante foi relevante”, também entendeu que a sua decisão “não impede a Tejo Energia de posteriormente provar a relevância dos custos incorridos com o financiamento da Tarifa Social entre 2015 e 2017 de forma a desencadear o procedimento previsto na Cláusula 20.4 para cada um daqueles anos” ou “de provar a relevância para 2011 a 2014 e invocando o procedimento previsto na Cláusula 20.4 do CAE também para cada um desses anos.”
276. O termo “relevante” é definido no ponto 1.3 do Anexo 11 como “que excede o Valor Limite Aplicável líquido de qualquer economia de custos ou aumento das receitas que o Produtor seja capaz de obter ou atingir.” O “Valor Limite Aplicável” é, por sua vez, definido como “um sexto do valor médio estimado do [Encargo de Potência Instalada]”, no ponto 1.1(a) do Anexo 11.324
277. O Tribunal observa que a Requerente apresentou à 1.ª Requerida cálculos e um relatório evidenciando tal efeito relevante para os anos de 2013-2018, conforme exigido pela Cláusula 20.ª do CAE325, que as Requeridas não contestaram no curso da presente arbitragem. A maioria do Tribunal considera que, nestas circunstâncias, as Cláusulas 20.2 a 20.5 “produzirão efeitos”, sujeito a uma futura conclusão do painel financeiro de que o efeito da imposição das Tarifas Sociais foi de facto relevante (conforme determinado no ponto 178 da Sentença Parcial).
278. As cláusulas 20.2 a 20.5 são, na parte relevante, resumidas abaixo:
279. Em primeiro lugar, a Cláusula 20.2 (“Notificação de Alterações”) define os requisitos para a devida notificação de tal alteração, que é condição para a aplicação das Cláusulas 20.3 a 20.5.326 Não se contesta na presente arbitragem que a Requerente notificou as Requeridas da promulgação do Imposto Relevante.
280. Em segundo lugar, a Cláusula 20.3 (“Isenções e Repassagem de Custos”) diz respeito aos casos em que o Produtor pode solicitar o reembolso de custos incorridos em relação a um Imposto Relevante (“repassagem de custos”, na Cláusula 20.3.5) e casos em que leva a um ajuste automático do Pagamento Base de Potência Instalada e, consequentemente, do Encargo Base de Potência Instalada (Cláusula 20.3.3).
281. O Painel Financeiro decidiu, por unanimidade, que a Requerente não tinha direito ao reembolso dos custos incorridos em relação à Tarifa Social nos termos da Cláusula 20.3, uma vez que a Tarifa Social “é de natureza diversa dos encargos aí elencados” e, como tal, não se enquadra no âmbito de aplicação. As Requeridas sustentam que a Requerente não tem direito ao reembolso dos custos incorridos com a Tarifa Social como resultado desta decisão.
282. A decisão do Painel Financeiro, no entanto, refere-se especificamente ao reembolso em conformidade com a Cláusula 20.3 do CAE. O Painel Financeiro também decidiu expressamente que a Requerente poderá recorrer à Cláusula 20.4 do CAE, caso consiga demonstrar os efeitos relevantes dos custos incorridos em relação à Tarifa Social:
caso a Tejo Energia consiga provar o efeito relevante da Tarifa Social no futuro, a Tejo Energia terá direito a recorrer à Cláusula 20.4 do CAE, ou seja, a pedir a alteração do cálculo do Encargo de Potência Instalada e/ou o Encargo de Energia Produzida de acordo com os procedimentos e princípios relevantes estabelecidos no ponto 10 do Anexo 11[.]
283. Conforme a maioria deste Tribunal já decidiu na Sentença Parcial, esta decisão foi tomada em parte por unanimidade e em parte pela maioria do Painel Financeiro. Um dos membros do painel não concordou que a Tarifa Social seja um Imposto Relevante nos termos do CAE, mas todos os membros entenderam que, se ambas as condições da Cláusula 20.1 estivessem preenchidas, o mecanismo disponível para a Requerente seria o da Cláusula 20.4. Conforme explicado, a maioria deste Tribunal considerou a Tarifa Social um Imposto Relevante. Sem prejuízo da demonstração do efeito relevante dos custos incorridos, a Requerente poderá aplicar o mecanismo previsto na Cláusula 20.4 para obter o reembolso dos referidos custos através de uma alteração do Encargo de Potência Instalada.
284. Em terceiro lugar, a Cláusula 20.4 do CAE tem a seguinte redação:
20.4 Alteração do Contrato
20.4.1 Se o Produtor (no caso previsto pela Cláusula 20.1(a) ou pela Cláusula 20.3.1 a)) ou a EDP (no caso previsto pela Cláusula 20.1 b)) mediante notificação à contraparte assim escolher, o cálculo do Encargo de Potência Instalada e/ou do Encargo de Energia Produzida no presente Contrato será alterado de acordo com os procedimentos e princípios relevantes previstos no ponto 10 do Anexo 11 na medida necessária para garantir, tanto quanto possível, que o Produtor esteja na mesma posição financeira sob o presente Contrato que estaria se a Alteração ao Imposto Relevante não tivesse ocorrido.
285. Portanto, a Requerente pode aplicar o procedimento previsto na Cláusula 20.4 e ponto 10 do Anexo 11 do CAE.
286. A Requerente procura obter uma declaração de que tem direito ao reembolso dos custos incorridos com o financiamento da Tarifa Social através da alteração do Encargo de Potência Instalada. A Cláusula 20.4, no entanto, determina apenas que o Encargo de Potência Instalada deve ser alterado “na medida necessária para garantir, tanto quanto possível, que o Produtor esteja na mesma posição financeira sob o presente Contrato que estaria se a Alteração ao Imposto Relevante não tivesse ocorrido.” O Tribunal considera que a extensão desta alteração - que não é uma decisão não unânime do Painel Financeiro contestada pelas Requeridas e sobre a qual este Tribunal, portanto, não tem competência - deve ser determinada pelo futuro painel financeiro, que presidirá ao procedimento conforme descrito no ponto 10 do Anexo 11.
287. Em quarto lugar, a Cláusula 20.5 prevê, inter alia, como as Partes devem trocar informações “necessárias para implementar ou verificar a devida aplicação da presente Cláusula 20.ª” e que as Partes devem procurar minimizar os efeitos de uma alteração dos impostos.
288. Em segundo lugar, tendo determinado, com base na Cláusula 20.4 do CAE, que a Requerente pode, em princípio, ter direito ao reembolso dos custos incorridos com o financiamento da Tarifa Social, desde que demonstre o efeito relevante desses custos, o Tribunal deve agora examinar se algum dos argumentos das Requeridas conduz a uma conclusão diferente.
289. As Requeridas opõem-se à aplicação da Cláusula 20.ª do CAE com base no facto de que (i) a Cláusula 20.ª é uma cláusula de estabilidade que não é oponível a entidades privadas como as Requeridas; e (ii) não pode haver alteração do CAE sem autorização prévia da ERSE e da DGEG. Quanto à terceira objeção baseada no facto de que a Cláusula 20.ª não permite o reembolso dos custos relativos à Tarifa Social, o Tribunal já esclareceu acima que, embora o reembolso da “repassagem de custos” referido na cláusula 20.3 não seja aplicável à Tarifa Social, a Requerente poderá ser reembolsada através de alteração do Encargo de Potência Instalada nos termos da Cláusula 20.4.
290. Em primeiro lugar, quanto à possibilidade de a Cláusula 20.ª ser lida como uma cláusula de estabilidade, o Tribunal considera que a questão da aplicabilidade da Cláusula 20.ª ao presente litígio já foi decidida por unanimidade pelo Painel Financeiro, que decidiu que “a Cláusula 20.ª do CAE será considerada válida e aplicável”. As duas objecções apresentadas pelas Requeridas já foram apresentadas ao Painel Financeiro, ou deveriam ter sido discutidas perante o Painel e não foram. Este Tribunal não está autorizado a reabrir assuntos que foram decididos por unanimidade pelo Painel Financeiro. A maioria deste Tribunal já considerou que esta decisão é unânime e, como tal, final e vinculativa.
291. Embora a 1.ª Requerida declare que a objeção relativa à aplicabilidade de uma cláusula de estabilidade não foi considerada na Decisão do Painel Financeiro, o Tribunal considera que o Painel Financeiro descreveu a objeção da 1.ª Requerida e os argumentos correspondentes em detalhe e, no entanto, decidiu que a Cláusula 20.ª era plenamente aplicável. A objeção da 1.ª Requerida foi, portanto, rejeitada. Além disso, o Painel Financeiro considerou o seguinte:
convém recordar que a finalidade da Cláusula 20.ª do CAE não é alterar a entidade à qual incumbe a responsabilidade de proceder ao pagamento da tarifa perante o organismo competente, mas antes prever os mecanismos contratuais entre as duas entidades privadas de forma a preservar o encargo fiscal para o Produtor no momento da celebração do CAE e, assim, minimizar o impacto de reformas fiscais sobre a Tejo Energia.
292. O Painel Financeiro considerou, portanto, que a verdadeira finalidade da Cláusula 20.ª é estabelecer mecanismos contratuais entre duas entidades privadas para preservar o encargo fiscal do Produtor como era à época da assinatura do CAE.
293. A esse respeito, as Requeridas estavam plenamente cientes dos termos do CAE quando se tornaram partes do mesmo. Embora algumas cláusulas do CAE tenham sido alteradas aquando da sua integração no contrato, a Cláusula 20.ª permaneceu inalterada. As Requeridas, portanto, aderiram à Cláusula 20.ª por vontade própria.
294. O Tribunal indefere, portanto, a objeção das Requeridas e entende que a Cláusula 20.ª é oponível às Requeridas.
295. Em segundo lugar, quanto à necessidade de autorizações prévias da ERSE e da DGEG para a alteração do CAE, a posição da 1.ª Requerida é que esta objeção nunca foi apresentada ao Tribunal Financeiro porque a Requerente apenas solicitou a alteração do CAE através de uma alteração do Encargo de Potência Instalada na presente arbitragem. O argumento segundo o qual todas as alterações ao CAE devem ser precedidas de autorizações da ERSE e da DGEG só pode ter surgido depois de a Requerente ter requerido tal alteração contratual.
296. Embora seja verdade que a Requerente não requereu a alteração do CAE através de uma alteração do Encargo de Potência Instalada perante o Painel Financeiro, a aplicação da Cláusula 20.ª do CAE - incluindo as Cláusulas 20.3 e 20.4 que prevêem alterações ao Encargo de Potência Instalada ou ao Encargo de Energia Produzida - foi discutida perante o Painel Financeiro. As Requeridas poderiam e deveriam ter apresentado o argumento de que as autorizações eram um pré-requisito para a aplicabilidade da Cláusula 20.ª, impedindo a aplicação do procedimento previsto no Anexo 11. A 1.ª Requerida apresentou alegações relativas à aplicação da Cláusula 20.4 perante o Painel Financeiro, mas não apresentou essa alegação específica. O Painel Financeiro decidiu por unanimidade sobre a validade e aplicabilidade da Cláusula 20.ª, não podendo, portanto, a matéria ser reaberta por este Tribunal.
297. A 1.ª Requerida alega que o Tribunal tem poderes conferidos pela Cláusula 15.ª do Anexo 9, Parte I do CAE para apreciar objeções suscitadas pelas Requeridas não tratadas pelo Painel Financeiro. Essa cláusula, no entanto, limita expressamente esse poder à apreciação de decisões não unânimes. As decisões unânimes do Painel Financeiro são finais e vinculativas para as Partes de acordo com o CAE.
298. Em todo o caso, e por uma questão de minúcia, a interpretação das Requeridas do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 183/95, que alegadamente exige a autorização da ERSE e da DGEG para todas as alterações do CAE, não encontra suporte no texto da disposição, que tem a seguinte redação:
Artigo 10.º Alteração do contrato vinculado
1 - Sem prejuízo das cláusulas específicas previstas nos contratos de vinculação, a modificação do contrato de vinculação ocorre por alteração relevante das características do centro electroprodutor em causa.
2 - A alteração relevante das características do centro electroprodutor prevista no número anterior pode ocorrer por iniciativa do titular da respectiva licença de produção vinculada, por iniciativa da entidade concessionária da RNT ou por iniciativa da Entidade de Planeamento.
3 - A alteração relevante das características do centro electroprodutor pode ainda ocorrer por determinação das entidades competentes, resultante de imperativo legal.
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, o processo conducente à modificação só pode ser iniciado após parecer favorável da Entidade de Planeamento, no qual esta estabeleça o conjunto de condições mínimas que o contrato de vinculação modificado deve respeitar, nos termos do plano de expansão aprovado.
5 - A modificação do contrato de vinculação deve ser negociada entre a entidade concessionária da RNT e o titular da respectiva licença vinculada.
6 - O contrato de vinculação modificado carece de parecer favorável da Entidade Reguladora para entrar em vigor.
7 - Para o parecer previsto no número anterior, são vinculativas as condições estabelecidas pela Entidade de Planeamento, nos termos previstos no n.º 4.
299. O Tribunal está ciente de que a tradução do artigo 10.º, n.º 1 foi contestada pela Requerente, mas considera que as traduções de ambas as Partes levam à mesma interpretação. O presente artigo trata principalmente das alterações das características dos centros eletroprodutores e não regula todas as alterações aos contratos de aquisição de energia. Concretamente, o artigo 10.º, n.º 1 prevê que a alteração dos contratos de aquisição de energia pode ocorrer caso se verifiquem alterações relevantes nas características dos centros eletroprodutores, sem prejuízo de quaisquer outras cláusulas específicas desses contratos que também regulem a alteração do contrato. Os artigos 10.º, n.º 2, e 10.º, n.º 3, determinam quais as partes que podem tomar a iniciativa de alterar as características das centrais. O artigo 10.º, n.º 4 prevê que, “nos casos previstos nos números anteriores”, ou seja, casos de alterações relevantes das características das centrais, o processo conducente à modificação só pode ser iniciado após parecer favorável da DGEG (Entidade de Planeamento), no qual esta estabeleça o conjunto de condições mínimas a respeitar, nos termos do plano de expansão aprovado. O referido plano de expansão refere-se às alterações das características das centrais. O artigo 10.º, n.º 6, por sua vez, exige o parecer favorável da ERSE (Entidade Reguladora) para a entrada em vigor do contrato alterado.
300. A 1.ª Requerida remete ainda para o ponto 3.4.2.4 do Manual de Procedimentos do Agente Comercial, onde se refere que, “nos termos da legislação em vigor, a DGEG e a ERSE devem pronunciar-se sobre a proposta de alterações”. O Tribunal considera que este Manual, no entanto, é de ajuda limitada para a posição das Requeridas. De facto, mesmo que a interpretação das Requeridas do ponto 3.4.2.4 (ou seja, que se refere a todas as alterações do CAE) fosse aceite, um manual não pode anular as cláusulas do CAE. Em todo o caso, a referência nesse número à “legislação em vigor “ diz respeito ao artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 183/95, que, conforme se analisou, abrange apenas alterações relevantes das características dos centros electroprodutores.
301. Essa interpretação é ainda confirmada pelo facto de um número anterior daquele manual (ponto 3.4.2.1) indicar os critérios para novos investimentos, todos relacionados com alterações das características das centrais:
os novos investimentos serão objeto de proposta específica a apresentar pelo Produtor ao Agente Comercial e deverão refletir um ou mais dos seguintes critérios:
• reabilitação, ampliação, modificação ou reconversão relevantes dos Grupos ou de outras instalações do centro eletroprodutor;
• redução ou controlo do impacto ambiental do centro eletroprodutor;
• introdução de novas tecnologias;
• alteração de combustível ou do sistema de abastecimento.
O Agente Comercial também pode solicitar ao Produtor a apresentação de propostas de alterações permanentes das características da energia produzida ou mesmo do próprio centro eletroprodutor, definidas nos parâmetros dinâmicos dos CAE, que afetem a operação técnica ou comercial do centro eletroprodutor.
302. Da mesma forma, enquanto a 2.ª Requerida se refere ao ponto 3.4.4 do mesmo manual, este número refere-se à informação que deve ser produzida nos casos definidos nos números anteriores, ou seja, alterações das características das centrais.
303. A proposta da Requerente não envolve qualquer alteração das características da central. Uma alteração do Encargo de Potência Instalada de forma a colocar o produtor na mesma situação financeira (na medida do possível) daquela em que estaria na ausência de qualquer obrigação de financiamento da tarifa social deixaria inalteradas as características do centro eletroprodutor.
304. Como consequência, a maioria rejeita a objeção das Requeridas à aplicação da Cláusula 20.ª do CAE com base na alegada necessidade de autorizações da ERSE e da DGEG.
305. Em terceiro lugar, a Requerente também procura obter uma declaração de que o reembolso por meio da alteração do Encargo de Potência Instalada será “ajustado pela inflação e incluindo juros permitidos à Taxa de Juro de Referência.”
306. Conforme explicado, a Cláusula 20.4 determina apenas que o Encargo de Potência Instalada deve ser alterado “na medida do necessário para garantir, na medida do possível, que o Produtor esteja na mesma posição financeira sob o presente Contrato que estaria se a Alteração dos Impostos Relevantes não tivesse ocorrido.” As questões relativas aos ajustamentos à inflação e aos juros devidos, caso a Requerente consiga determinar o efeito relevante dos custos relativos à Tarifa Social, são da competência do futuro painel financeiro, que presidirá ao procedimento previsto no ponto 10 do Anexo 11 (ver infra), para determinar. Essas questões serão resolvidas quando este painel decidir sobre a alteração do Encargo de Potência Instalada que deve ser adotada pelas Partes.
307. A maioria do Tribunal declara que, desde que comprovado o efeito relevante da Tarifa Social perante o painel financeiro, a Requerente tem direito à alteração do Encargo de Potência Instalada, nos termos da Cláusula 20.4 e ponto 10, Anexo 11 do CAE, “na medida do necessário para garantir, na medida do possível, que o Produtor esteja na mesma situação financeira ao abrigo do presente Contrato em que estaria se a [Tarifa Social] não tivesse ocorrido”.
5.5. A aplicação do procedimento previsto na Cláusula 20.ª e ponto 10 do Anexo 11 do CAE
[…]
5.5.2. Apreciação do Tribunal
326. A Requerente pede ao Tribunal que condene as Requeridas no cumprimento do procedimento previsto na Cláusula 20.ª e ponto 10 do Anexo 11 do CAE, e apresenta uma série de pedidos relacionados: (i) um pedido de condenação das Requeridas na apresentação de uma contraproposta para a alteração do Encargo de Potência Instalada no prazo de 15 dias a contar da notificação da decisão do Tribunal (ou seja, a presente Sentença Final); (ii) uma declaração de que, na ausência de tal contraproposta, e desde que comprovado o efeito relevante da Tarifa Social, a alteração do Encargo de Potência Instalada será conforme proposta pela Requerente; e (iii) um pedido de condenação das Requeridas no cumprimento da decisão do futuro painel financeiro quanto à alteração do Encargo de Potência Instalada.
327. As Requeridas opõem-se a esses pedidos porque extravasam a competência do Tribunal, pois cabem ao futuro painel financeiro que presidirá ao procedimento estabelecido na Cláusula 20.ª e ponto 10 do Anexo 11 do CAE. As Requeridas também afirmam que os pedidos da Requerente carecem de base contratual e que os pedidos de condenação e declarações solicitadas não decorrem do procedimento do Anexo 11.
328. Considerando que o Tribunal decidiu que a Requerente tem direito a uma alteração do Encargo de Potência Instalada nos termos da Cláusula 20.4 e ponto 10 do Anexo 11 do CAE (desde que demonstrado o efeito relevante dos custos incorridos com a Tarifa Social), o Tribunal condena as Requeridas no cumprimento de tal procedimento.
329. Os pedidos subsequentes serão analisados de acordo com o procedimento estabelecido no ponto 10, Anexo 11, que tem a seguinte redação:
10. Princípios e Procedimentos para Alterações nas Circunstâncias
10.1 O presente parágrafo é aplicável relativamente à aplicação das disposições referentes a uma Alteração nos Impostos Relevantes, uma Alteração Relevante na Lei que dê lugar a uma Modificação do Produtor, a uma Modificação da EDP (ou Modificação do Produtor em seu lugar e conforme o previsto no parágrafo 4.6), Alteração nos Custos ou Alteração Relevante de Emissões (cada uma considerando-se “Alteração nas Circunstâncias”).
10.2 Se este parágrafo 10 for aplicável, cada Parte deverá (sujeito a quaisquer restrições de confidencialidade vinculativas para essa parte), assim que possível, e sem prejuízo de quaisquer requisitos específicos de notificação deste Contrato, providenciar à outra parte a informação escrita que esta possa razoavelmente solicitar de modo a aferir a natureza das circunstâncias em causa e o seu efeito na primeira parte.
10.3 Se as partes não conseguirem acordar nas alterações exigidas pela Alteração nas Circunstâncias tendo trocado e comentado as respetivas propostas de alteração por escrito (se apropriado), no prazo de 3 meses a contar da data em que qualquer das partes notifique a outra por escrito sobre a necessidade de acordar alterações ao abrigo das disposições relevantes do presente Contrato, qualquer das partes, mediante o envio de notificação à outra, pode requerer que o assunto seja remetido para o Procedimento de Resolução de Litígios para determinação ao abrigo do ponto 10.4.
10.4 Quando um assunto seja remetido para determinação ao abrigo do ponto 10.3, tal determinação será para estabelecer qual das propostas de ambas as partes reflete mais de perto a letra e a intenção deste Contrato tendo em conta este Contrato na presente data e a natureza das circunstâncias em causa e não caberá ao Painel ao abrigo do Procedimento de Resolução de Litígios propor ou selecionar qualquer proposta que não seja uma das propostas submetidas pelas partes.
[…]
10.6 Não obstante as disposições da Cláusula 26.ª e do Anexo 9, qualquer referência neste Anexo 11 ao Procedimento de Resolução de Litígios será para o Painel Técnico ou para o Painel Financeiro, consoante o caso, cuja decisão (seja por unanimidade ou por maioria) será final e vinculativa para as partes.
330. O pedido formulado pela Requerente de condenação das Requeridas na apresentação de uma contraproposta para a alteração do Encargo de Potência Instalada no prazo de 15 dias a partir da notificação da decisão deste Tribunal, não está, conforme alegado pelas Requeridas, previsto no procedimento estabelecido no CAE. Assim, o Tribunal indefere este pedido.
331. A Requerente requer ainda uma declaração de que, na ausência da apresentação de tal contraproposta pelas Requeridas, e desde que comprovado o efeito relevante da Tarifa Social, a alteração do Encargo de Potência Instalada será conforme proposta pela Requerente. Essa consequência da não apresentação de propostas pelas Requeridas não foi determinada pelo CAE. Considerando que um futuro painel financeiro presidirá a esse procedimento, o Tribunal entende que cabe a esse painel determinar as consequências do eventual incumprimento do procedimento estabelecido no CAE.
332. Quanto ao pedido formulado pela Requerente de condenação das Requeridas no cumprimento da decisão do futuro painel financeiro quanto à alteração do Encargo de Potência Instalada, a competência deste Tribunal é limitada às decisões não unânimes do Painel Financeiro. Como tal, o pedido da Requerente é indeferido por extravasar a competência do Tribunal. Qualquer pedido de condenação relativo ao cumprimento das decisões proferidas pelo futuro painel financeiro será por este deferido. […]”
**
III – Fundamentação de Direito
Questão prévia - Da inadmissibilidade da pretensão anulatória
Como decorre do relatório supra e da identificação das questões a apreciar, são diversos os fundamentos de anulação invocados pelas demandantes, sendo que antes de refutar cada um deles, a demandada suscitou, por excepção, a sua inadmissibilidade enquanto base para a apreciação de um eventual direito a obter a anulação da decisão arbitral, por uma série de ordem de razões que se passam a analisar.
1. A discordância das autoras não diz respeito à sentença arbitral
1.1. Omissão de pronúncia sobre a natureza da Cláusula 20. do CAE
Sustenta a demandada que, face aos argumentos das demandantes, estas não discordam da sentença arbitral, mas sim das decisões do Painel Financeiro que a antecedeu e que decidiu, por maioria, que o Mecanismo de Financiamento é um Relevant Tax para efeitos do CAE e, por unanimidade, que a aplicação da cláusula 20. do CAE não depende da capacidade da autora REN Trading repercutir os custos suportados a esse título nas tarifas cobradas aos consumidores; que a aplicação da cláusula 20. do CAE não é vedada pela legislação relevante e não constitui um auxílio de Estado e, por maioria, que a ré tem direito reaver os custos suportados com o Mecanismo de Financiamento se recorrer aos mecanismos previstos nas cláusulas 20.2 a 20.5 do CAE e contanto demonstre o efeito material da imposição do referido mecanismo; mais refere que as decisões do Painel Financeiro tomadas por unanimidade são finais e vinculativas para as partes e o Tribunal Arbitral afirmou que não podia revisitar matérias que estivessem cobertas por decisões unânimes do Painel Financeiro.
No que concerne à questão de a cláusula 20. do CAE ser uma cláusula de estabilidade, refere, trata-se de matéria não apreciada pela decisão arbitral, mas abrangida pela decisão unânime do Painel Financeiro relativa à validade e eficácia da cláusula 20. do CAE (§ 165 da decisão), pelo que as autoras, ao suscitarem essa questão, estão a dirigir tal fundamento contra a decisão do Painel e não contra a decisão arbitral.
As demandantes responderam dizendo que a leitura do § 165 da decisão do Painel Financeiro permite verificar que ali não é feita qualquer referência à apreciação de tal cláusula como “cláusula de estabilidade”, reportando-se antes à matéria de saber se as disposições do DL Tarifa Social impedem a aplicação da Cláusula 20. do CAE, o que nada tem que ver com a alegação da REN Eléctrica quanto à natureza dessa cláusula como “cláusula de estabilidade” e a consequente insusceptibilidade de ser oposta às autoras, pelo que sobre essa matéria o Painel não proferiu qualquer decisão, pelo que a apreciação desta questão tem necessária influência quanto às decisões constantes das alíneas b) e c) do § 369 da sentença final, de modo que tendo esta questão sido suscitada no âmbito do procedimento arbitral o Tribunal Arbitral deveria tê-lo apreciado.
Decidindo
Como decorre do relatório supra, um dos fundamentos de anulação da decisão arbitral suscitados pelas demandantes consiste na omissão de pronúncia que estas imputam à sentença decorrente do facto de o tribunal arbitral não ter apreciado a questão atinente a saber se a cláusula 20. do CAE constitui uma “cláusula de estabilidade” (fiscal) que, pela sua natureza, não lhes poderia ser oposta, considerando que tal questão teria sido apreciada de forma unânime pelo Painel Financeiro, argumentando as demandantes que assim não sucedeu e que, tendo o Tribunal arbitral reconhecido que foi uma questão suscitada pela REN Eléctrica no procedimento arbitral, não a tendo apreciado, incorreu em omissão de pronúncia.
Independentemente da procedência ou improcedência deste concreto fundamento invocado pelas demandantes para obter a anulação da decisão arbitral, seguro é que o vício – omissão de pronúncia – é dirigido à sentença final arbitral e não, como pretende a ré, à decisão do Painel Financeiro.
Com efeito, não é a circunstância de o Painel Financeiro ter ou não apreciado esta concreta questão perante si colocada pelas demandantes (então requeridas) que importa aqui aferir, mas, tão-somente, se, como propugnam as demandantes, a natureza da cláusula 20. do CAE como “cláusula de estabilidade” foi suscitada no procedimento arbitral, enquanto fundamento da inviabilidade de oposição àquelas do que nela se encontra vertido, e se o tribunal arbitral se absteve ou não de conhecer tal questão e, em caso positivo, se a deveria ou não ter conhecido.
Assim, apesar da argumentação circular da ré, parece seguro que o vício em questão é concretamente dirigido à decisão arbitral, que não à decisão do Painel Financeiro, pelo que, tendo presente o disposto no art.º 46º, n.º 3, a), v) da LAV, constitui, em abstracto, fundamento/causa de pedir nesta acção de anulação e deverá, enquanto tal, ser apreciado, o que se fará infra, improcedendo, nesta parte, a excepção de inadmissibilidade suscitada.
1.2. A decisão arbitral baseou-se na equidade e não no Direito constituído
Em matéria de excepção, suscitou também a ré que a alegação das autoras quanto à não aplicação do Direito constituído e recurso à equidade incide sobre matéria que foi objecto de uma decisão do Painel Financeiro, pois que estas afirmam que o Tribunal Arbitral não aplicou as “regras e princípios de Direito público”, desconsiderando que o “CAE está funcionalizado à prossecução do interesse público, estando submetido a regras que condicionam a autonomia contratual das partes”, que o “regime instituído pelo DL da Tarifa Social modificou o CAE”, que as “decisões da ERSE acerca da impossibilidade de repercussão dos custos incorridos com a Tarifa Social modificaram igualmente o CAE” e que a “decisão de certificação da Autora REN Eléctrica vincula a igualmente a Ré”, pontos que foram considerados pelo Painel Financeiro que, depois de afirmar a validade e eficácia da referida cláusula, concluiu que não existia qualquer impedimento legal para a REN Trading internalizar os custos incorridos com o reembolso da Tarifa Social, conforme §§ 155 a 161 da respectiva decisão, que o Tribunal Arbitral não apreciou por se tratar de decisão unânime.
Por sua vez, as autoras responderam que na petição inicial alegaram, entre o mais, que sobre o âmbito do conceito contratual “Imposto Relevante” e, em concreto, saber se este inclui os custos com o financiamento da Tarifa Social, o Tribunal Arbitral se limitou a tecer opiniões sobre o texto do CAE, escusando-se a aplicar os critérios de interpretação das declarações negociais de acordo com o Direito português, pelo que decidiu com recurso à equidade, em vez de aplicar o Direito designado pelas Partes para governar o CAE, o que consubstancia fundamento de anulação materializado na desconformidade do processo arbitral com a convenção das Partes, pois, a terem sido aplicadas tais regras, tal conduziria necessariamente à sua absolvição.
Mais aduzem que as decisões do Painel Financeiro que a ré identificou como unânimes e que são indicadas no § 86 da sua oposição - “o CAE está funcionalizado à prossecução do interesse público, estando submetido a regras que condicionam a autonomia contratual das partes”; o “regime instituído pelo DL da Tarifa Social modificou o CAE”; as “decisões da ERSE acerca da impossibilidade de repercussão dos custos incorridos com a Tarifa Social modificaram igualmente o CAE”; a “decisão de certificação da Autora REN Eléctrica vincula a igualmente a Ré” – que, segundo as autoras, constituem regras, princípios e actos administrativos que, se aplicados pelo Tribunal Arbitral, conduziriam necessariamente à sua absolvição, teriam sido abordadas, segundo entendimento da ré, nos §§ 155 a 161 e 165 a 188 da decisão do Painel Financeiro, o que não sucedeu, mas, ainda que o tivessem sido, isso não impedia que o Tribunal Arbitral apreciasse a sua conformidade, assim como não impedia a sindicância da decisão arbitral no âmbito desta acção, tanto mais que, conforme parecer dos professores Lima Pinheiro e Paes Marques junto com a petição inicial, a validade das decisões do painel financeiro depende dos mesmos requisitos que a validade dos acordos das partes e, designadamente, da conformidade com a lei e com a ordem pública, pelo que tais decisões estão sujeitas a controlo jurisdicional, sob pena de violação do direito à tutela jurisdicional efectiva, através da fiscalização da sua validade.
Assim, mesmo relativamente às decisões unânimes e finais do Painel Financeiro, ainda que não susceptíveis de reapreciação quanto ao seu mérito, o Tribunal tinha que apreciar a sua validade (conformidade com a lei e a ordem pública) e não podia deixar de aplicar as regras legais e de respeitar os actos administrativos que limitavam a validade dos acordos das partes.
Além disso, acrescentam, ao decidir impor a manutenção das decisões unânimes do Painel Financeiro e desconsiderar os fundamentos de natureza legal suscitados pelas autoras, o Tribunal Arbitral consolidou tais decisões no ordenamento jurídico através da Sentença Final, atribuindo-lhes natureza jurisdicional, pelo que são susceptíveis de apreciação em sede de acção de anulação.
E ainda, ao concluir que, se comprovado o efeito relevante da Tarifa Social, a requerente tem direito a uma alteração do Encargo de Potência, o Tribunal Arbitral outorgou à ré um direito a ser compensada, que é contrário às “regras, princípios e actos administrativos” de Direito público aplicáveis à relação contratual controvertida e, por essa razão, o processo arbitral não foi conforme com o acordo das partes, designadamente, com a lei que estas convencionaram aplicar-se ao CAE e à resolução dos litígios com ele relacionados, o que constitui fundamento de anulação.
Decidindo
Analisado o conteúdo da alegação das demandantes vertido nos artigos 153º a 198º da sua petição inicial constata-se, efectivamente, que ali se discorre sobre a prossecução do interesse público subjacente ao CAE, a intervenção e o papel do Estado e da estrutura organizatória do sector energético, enquanto sector regulado a nível nacional e europeu, impedindo que tal contrato seja escrutinado apenas enquanto contrato entre privados, porque as suas interacções estão conexionadas com a protecção da concorrência e do direito público, com o surgimento de obrigações de serviço público e inerente compressão da autonomia privada, devendo ser afectado ou modificado por força de influências legislativas, regulamentares ou decisões administrativas, pois que são essenciais para a segurança do abastecimento eléctrico do país, convocando toda a legislação pertinente e referente à regulação do sector de actividade de produção de energia eléctrica, para sustentar que o Tribunal Arbitral, na sua decisão final, ignorou todos esses aspectos na interpretação que fez do CAE, designadamente, a necessidade, face à liberalização do mercado de energia ocorrida e à manutenção transitória deste CAE, de repercussão tarifária de modo a assegurar a devolução ao SEN de todos os custos e proveitos decorrentes da compra e venda de electricidade ao abrigo do CAE, que não são internalizados pela REN Trading, que assume funções meramente instrumentais, sendo que, quanto à tarifa social, se trata do cumprimento de uma obrigação de serviço público de financiamento do desconto de que os consumidores vulneráveis são beneficiários, de modo que a cláusula 20. do CAE só pode actuar dentro dos limites resultantes do sistema eléctrico, o que conduz à conclusão que a REN Trading tem de manter uma posição de neutralidade económica, não podendo assumir encargos que não sejam repassados para as tarifas, pois que não gera lucro para além do necessário para suportar os seus próprios custos de funcionamento.
Embora a ré sustente que esta argumentação não está dirigida à decisão arbitral, porque esta não cuidou de tais matérias, certo é que a alegação das autoras - essencialmente sustentada no parecer que juntou aos autos como documento n.º 6, emitido pelos senhores Professores Luís de Lima Pinheiro e Francisco Paes Marques, com data de 12 de Maio de 2023, e que analisou a anulabilidade da decisão arbitral sob a perspectiva da ofensa a princípios da ordem pública internacional do Estado português[53] -, venha ou não a merecer provimento, está endereçada à decisão arbitral que, de acordo com o entendimento daquelas, não cuidou de aplicar as normas do Direito português para o qual as partes remeteram a solução do litígio, e que se impunham atender para a solução do caso, pelo que os senhores árbitros não teriam actuado em conformidade com a convenção das partes, o que teve influência decisiva na resolução do litígio (cf. art.º 46º, n.º 3, a), iv) da LAV).
Independentemente da valia – ou falta dela – de tal argumentação não pode deixar de ser tomada como colocando em causa a decisão arbitral e não a decisão do painel financeiro, pelo que, também aqui, cumprirá apreciar os argumentos aduzidos.
1.3. A violação do dever de Unbundling e do Direito de Concorrência da União Europeia
Refere ainda a ré que a argumentação das autoras quanto a uma alegada violação dos deveres de Unbundling também não respeita à sentença arbitral, porque se trata de questão expressamente considerada pelo Painel Financeiro, no § 172 da sua decisão, integrando a decisão unânime sobre a aplicação da cláusula 20. do CAE não ser vedada pela legislação relevante e o mesmo sucede com a alegada violação do Direito da Concorrência da União, que também não respeita à sentença arbitral e que foi apreciada pelo Painel Financeiro (no § 191 da sua decisão), quanto a saber se, obtendo a ré a alteração do cálculo do encargo de potência, estaria em causa um auxílio de Estado, o que foi decidido de forma unânime, pelo que são matérias não abordadas pelo Tribunal Arbitral, nem suscitadas pelas autoras no processo arbitral.
Mais considera a ré que, ainda que as autoras pudessem questionar a validade das decisões do Painel Financeiro, tal nunca poderia ocorrer através dos presentes autos, para além de que renunciaram a essa faculdade, nos termos do parágrafo 17 da Parte I do Anexo 9 do CAE.
Também nesta matéria as autoras sustentam que o Tribunal Arbitral, ao decidir impor a manutenção da decisão do Painel Financeiro e desconsiderar os fundamentos de natureza legal por elas suscitados, consolidou aquela decisão no ordenamento jurídico através da Sentença Final, atribuindo-lhe natureza jurisdicional, pelo que é susceptível de apreciação em sede de acção de anulação da Sentença Final; além disso, estas questões foram apresentadas como constituindo ofensa aos princípios da ordem pública internacional do Estado português decorrente do conteúdo da Sentença Final, reportando-as a quaisquer considerações (relevantes para as decisões) constantes da Sentença Final, que produzam um resultado ofensivo dos princípios da ordem pública internacional do Estado português, o que decorre da determinação dos árbitros de que, comprovado o efeito material da Tarifa Social, “a Requerente tem direito a uma alteração do Encargo de Potência, nos termos da Cláusula 20.4 e ponto 10, do Anexo 11 do CAE”, isto é, tem direito a ser compensada pelas autoras, na medida em que, conforme alegado na Petição Inicial, a imposição à autora REN Eléctrica (operador de rede) do “financiamento de uma operação enquadrável na atividade de produção, na medida em que [a obrigará] a suportar um custo que deveria ser suportado por um produtor, (…) é manifestamente vedad[a] pelo ordenamento jurídico comunitário”.
Mais sustentam que, de todo o modo, o que está em causa é, independentemente da decisão sobre se a aplicação da Cláusula 20. constitui ou não um auxílio de Estado, a decisão final que determinou que, comprovado o efeito material da Tarifa Social, “a Requerente tem direito a uma alteração do Encargo de Potência, nos termos da Cláusula 20.4 e ponto 10, do Anexo 11 do CAE”, o que implica que a ré tenha direito a ser compensada pelos custos incorridos com o financiamento da Tarifa Social, traduzindo-se, assim, na concessão de um apoio de Estado, vedado designadamente pelo artigo 107.º, n.º 1 do TFUE e que ofende os princípios da ordem pública internacional do Estado português.
Decidindo
Ainda que a ré argumente que toda esta argumentação não está dirigida à decisão arbitral e que apenas podem ser sindicadas as decisões tomadas pelo tribunal arbitral quanto a saber se o mecanismo de financiamento é um Relevant Tax ao abrigo do CAE, se a ré tem direito a obter a alteração da fórmula da Capacity Charge, para ficar colocada na mesma posição financeira em que estaria caso esse mecanismo não lhe fosse imposto e se as autoras estão obrigadas a cumprir o procedimento para alteração daquela fórmula[54], não se pode deixar de entender que as questões suscitadas pelas autoras atinentes à violação do Direito da Concorrência, na vertente de ofensa à ordem pública internacional do Estado português, estão necessariamente dirigidas ao resultado do conteúdo da decisão arbitral.
Como é sabido, os princípios da ordem pública internacional do Estado Português são princípios enformadores e orientadores, fundantes da própria ordem jurídica portuguesa, que atenta a sua natureza intrínseca e decisiva dessa ordem jamais podem ceder. Por outro lado, do que se trata quando se alega a violação da ordem pública internacional, sobremaneira quando se está perante a aplicação de Direito estrangeiro ou revisão de sentença estrangeira (que não é, porém, aqui o caso), mas é também aqui convocável[55], é de saber se o resultado concreto da decisão, e não os seus fundamentos, coloca em crise essa ordem pública internacional – cf. art.º 22º do Código Civil; cf. Maria Helena Brito, Código Civil Anotado, Volume I, 2ª Edição Revista e Actualizada, Ana Prata (Coord.), pág. 50.
Consabido é também que, para aferir se o resultado ou o efeito da decisão ofende a ordem pública internacional, poderá não bastar a análise do seu dispositivo, que, por regra, será neutro, se desligado da análise do raciocínio percorrido pelo Tribunal até o alcançar. Assim, porque essa contrariedade tem natureza substancial, a sua constatação implica ainda o exame do raciocínio percorrido até à decisão (sem que, obviamente, tal corresponda a um novo julgamento do litígio, ou um reexame dos respectivos fundamentos de facto e de direito) – cf. neste sentido, acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 25-03-2019, processo n.º 1667/18.9YRLSB-B-2 e de 23-04-2023, processo n.º 2093/21.8YRLSB-2[56].
O que se pretende, pois, com a análise dos fundamentos convocados a esse título é evitar que se produza na ordem jurídica um efeito que esteja com ela numa contradição insuportável e é sob esse ponto de vista que os argumentos aduzidos pelas autoras têm de ser analisados e perspectivados em correlação com o resultado que a estabilização da decisão arbitral irá produzir. Consequentemente, é ainda e sempre a decisão arbitral que é aqui visada e contra a qual são dirigidos os vícios invocados, independentemente de se determinar se o Painel Financeiro ou o Tribunal Arbitral abordou ou não a matéria e decidiu ou não em violação das regras do Direito da União Europeia, qua tale.
Improcedem, assim, os argumentos atinentes a uma alegada inadmissibilidade dos concretos fundamentos atrás identificados, enquanto causa atendível para a peticionada anulação da decisão arbitral.
2. Autoridade do Caso julgado e efeito vinculativo das decisões do Painel Financeiro
Alega também a ré que as autoras apresentam fundamentos precludidos e já abrangidos pelo efeito de caso julgado ou pelo efeito vinculativo de decisões do Painel Financeiro proferidas a respeito de outras entidades referindo:
= o Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se sobre a sentença parcial proferida no procedimento arbitral sobre a competência, sendo que as demandantes sustentaram na impugnação dessa decisão que o Tribunal arbitral havia ultrapassado o âmbito da convenção de arbitragem, pois que o Painel Financeiro teria tomado apenas uma decisão unânime de indeferimento das pretensões da ré e aquele Tribunal estabeleceu quais as decisões que haviam sido tomadas pelo Painel Financeiro e o respectivo sentido, pelo que daí decorre a consolidação no ordenamento jurídico das decisões do Painel Financeiro, tomadas por unanimidade, como finais e vinculativas, sem que as autoras tenham suscitado então que tais decisões são incompatíveis com a ordem pública internacional do Estado Português, não podendo fazê-lo agora, pelo que os fundamentos que respeitam a decisões do Painel Financeiro não são atendíveis;
= a existir uma eventual ofensa à ordem pública internacional decorrente dessas decisões, o Supremo Tribunal de Justiça tinha de a ter conhecido oficiosamente, o que não fez, pelo que existe caso julgado quanto à inexistência de incompatibilidade entre o resultado da sentença parcial - e, por extensão, das decisões do Painel Financeiro, que as autoras atribuem à decisão arbitral, na medida em que enformaram a competência do tribunal arbitral - e a ordem pública internacional do Estado Português, decorrente de decisão implícita de afirmação da validade da sentença parcial;
= ainda que assim não fosse, a pretensão anulatória das autoras seria manifestamente abusiva, por se terem conformado com o teor das decisões do painel financeiro.
Em resposta, as autoras referem:
= toda a sua impugnação se dirige à sentença arbitral, que não às decisões do Painel Financeiro e ainda que a estas dissesse respeito, tais decisões apenas poderiam ser sindicadas no âmbito da presente acção de anulação e não na acção de anulação da sentença parcial sobre competência, uma vez que tais decisões apenas se consolidaram no ordenamento jurídico com a prolação da sentença final;
= na sentença parcial, o Tribunal Arbitral não procedeu a qualquer apreciação da validade das decisões do Painel Financeiro, limitando-se a determinar o que entendia serem decisões do Painel Financeiro, tomadas por maioria ou unanimidade, para determinar o âmbito da sua competência para reapreciar o mérito das questões previamente àquele submetidas;
= no âmbito da apreciação efectuada, primeiro pelo Tribunal da Relação de Lisboa e, depois, pelo Supremo Tribunal de Justiça, no contexto da impugnação da decisão do Tribunal Arbitral sobre a sua competência, não cabia ao tribunal estadual ajuizar sobre o resultado da manutenção da Sentença Parcial no ordenamento jurídico, por referência às decisões unânimes do Painel Financeiro, uma vez que tais decisões apenas passaram a ser susceptíveis de provocar um efeito juridicamente relevante a partir do momento em que a sua validade foi confirmada pelo Tribunal Arbitral e lhes foi atribuído efeito jurisdicional, isto é, com a prolação da sentença final;
= a decisão do Tribunal Arbitral sobre competência não é susceptível de atribuir às referidas decisões do Painel Financeiro mais efeitos do que os obrigacionais de que elas intrinsecamente gozam;
= em sede de impugnação de decisão interlocutória sobre a competência do tribunal arbitral, o tribunal estadual competente apenas pode, de acordo com o artigo 18.º, n.º 9 da LAV, aferir da sua conformidade ao abrigo das subalíneas i) e iii) da alínea a) do n.º 3 do artigo 46.º da LAV, ou seja, o objecto da acção anulatória que se seguiu à prolação da Sentença Parcial limitou-se a avaliar se o Tribunal Arbitral tinha analisado de forma correta, ou não, os limites da sua competência, face aos termos da convenção de arbitragem, designadamente se estava, ou não, diante de decisões unânimes do Painel Financeiro, mas sem entrar, naturalmente, na análise da conformidade destas com a ordem pública internacional, o que extravasaria os seus poderes de análise nesta fase processual.
Decidindo
Em primeiro lugar, já decorre do atrás expendido que os fundamentos de impugnação suscitados pelas autoras, ainda que atinentes a questões que a ré considera terem sido unanimemente decididas pelo Painel Financeiro são, em última instância, vocacionados para alcançar a anulação da decisão arbitral, pelo que não colhe a argumentação desta no sentido de que estariam precludidos por se dirigirem à decisão do Painel Financeiro, que não foi impugnada.
De todo o modo, tal como sustentam as autoras, sempre se teria de admitir que as decisões finais e vinculativas do Painel Financeiro devem ser susceptíveis de sindicância pelo Tribunal estadual.
É sabido que os tribunais arbitrais são verdadeiros e próprios tribunais, estando expressa e constitucionalmente previstos como tais no artigo 209.º, n.º 2 da CRP.
De igual modo, os tribunais arbitrais exercem a função jurisdicional, julgando litígios, sendo a sentença arbitral equiparada à sentença de um tribunal estadual – cf. art.º 46º, n.º 7 da LAV.
A decisão arbitral tem, assim, a natureza de uma decisão do tribunal do Estado e constitui caso julgado para as partes, que não podem voltar a debater o mesmo tema – cf. António Menezes Cordeiro, Tratado da Arbitragem – Comentário à Lei 63/2011, de 14 de Dezembro, 2016, pág. 407.
Sucede que, conforme é abundantemente referido nos autos, de acordo com o CAE e convenção de arbitragem, previamente a estas, as partes estavam obrigadas a submeter o litígio a um painel, técnico ou financeiro, cujas decisões unânimes seriam finais e vinculativas.
Com efeito, a condução do processo arbitral beneficia de uma ampla liberdade das partes, que modelam, ainda que com limites, a tramitação arbitral a seguir e dos próprios árbitros, a quem são conferidos, supletivamente, poderes de conformação procedimental.
No contexto desta regulação procedimental é usual a estipulação de «cláusulas escalonadas, de escalagem ou de escalada”, ou seja, “as partes podem prever um esquema processual em fases distintas – no mínimo: duas – com regras procedimentais diferenciadas. Por exemplo: em caso de divergência, observa-se o seguinte: (a) reúnem os técnicos das duas entidades, procurando, no prazo de 30 dias, uma solução consensual; (b) não havendo acordo, reúnem as administrações respectivas; (c) não havendo acordo, recorre-se à mediação do bastonário da Ordem dos Advogados; (d) não havendo acordo, segue-se arbitragem” – cf. António Menezes Cordeiro, op. cit., pág. 281.
A tutela arbitral, que funciona em substituição da judicial, é sempre irrenunciável, ainda que através de escalagem.
A convenção estipulada na Cláusula 26. do CAE, em conjugação com o Apêndice 9 (§§ 2, 11. e 12.) integra-se precisamente nesse tipo de procedimento.
Serve isto para dizer que as decisões unânimes do Painel Financeiro, tal como explanam os Professores Luís de Lima Pinheiro e Francisco Paes Marques no seu parecer[57], não têm natureza jurisdicional[58].
As partes estipularam expressamente que os membros do painel financeiro não seriam considerados árbitros (cf. Apêndice 9, parte I, § 1), mas, simultaneamente, acordaram que as suas decisões unânimes seriam vinculativas e definitivas. Não tendo o painel financeiro a natureza de tribunal arbitral, a atribuição de poderes aos técnicos para a resolução do litígio deve ser configurada como uma situação em que “o terceiro desempenha uma função contratual de decisão de um litígio”.
Não obstante as partes não tenham considerado ou consagrado a possibilidade de interpor acção de anulação relativamente às decisões do painel financeiro, não se pode, contudo, aceitar que pretenderam atribuir àquelas decisões força equivalente a uma decisão arbitral, sem possibilidade de impugnação, porque a acção de anulação de decisão arbitral é irrenunciável – cf. art.º 46º, n.º 5 da LAV.
As decisões unânimes do painel financeiro sempre teriam de ser entendidas como tendo a mesma eficácia obrigacional que os acordos das partes, dependendo dos mesmos requisitos de que depende a validade desses acordos, designadamente, a sua conformidade com a lei e com a ordem pública (cf. art.º 280º do Código Civil), daí que não possam deixar de ser sindicáveis no contexto da acção de anulação da decisão arbitral.
Aliás, em analogia com aquilo que sucede com a transacção prevista no art.º 41º, n.º 1 da LAV, que não pode infringir algum princípio de ordem pública, também as decisões do painel financeiro que beneficiem da eficácia obrigacional que as partes lhe conferiram podem ser analisadas sob essa perspectiva.
A propósito da norma do art.º 39º, n.º 4 da LAV onde se consignou a solução supletiva de não-recorribilidade das decisões que se pronunciam sobre o fundo da causa, António Menezes Cordeiro, afirmando que o erro no julgamento é sempre possível e que ao decidir sem apelo os árbitros passam a dispor de um poder que supera o dos juízes do Estado, não deixa de reconhecer que, ainda que os recursos ordinários exijam cláusula expressa para serem admitidos, será sempre admissível o recurso extraordinário de revisão, enquanto válvula última de segurança, quando se verifique algum dos seus pressupostos (cf. art.º 696º do CPC) - cf. op. cit., pág. 380; no mesmo sentido, José Rodin de Andrade, Lei da Arbitragem Voluntária Anotada, 6ª Edição, revista e actualizada 2023, pág. 165.
Ora, devendo o tribunal arbitral aplicar as regras e princípios relevantes para a decisão do caso convocadas pelas partes ou, mesmo oficiosamente, analisá-las enquanto normas fundamentais ou princípios fundamentais sob a perspectiva de uma possível ofensa da ordem pública internacional do Estado português, não se pode deixar de reconhecer que as questões suscitadas pelas autoras, independentemente do seu mérito ou demérito, podem e devem ser analisadas, sob a perspectiva da ofensa à ordem pública internacional do resultado ou efeito da decisão arbitral – cf. no sentido de que compete também aos tribunais arbitrais apreciar questões que impliquem com a aplicação de normas de ordem pública e de natureza imperativa, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 3-04-2014, processo n.º 672/11.0YRLSB-6.
Também não se reconhece razão à ré quando refere que, pretendendo as autoras impugnar as decisões do painel financeiro, teriam de tê-lo feito aquando da impugnação da sentença parcial sobre competência, onde se determinaram quais as que haviam sido tomadas pelo painel financeiro e o respectivo sentido, pelo que essa sentença consolidou tais decisões.
Parece claro, sobretudo perante a leitura do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no processo n.º 1435/20.8YRLSB.S1 atinente à acção de anulação da sentença parcial do tribunal arbitral, que aquele apenas se pronunciou sobre a matéria da competência deste tribunal, em consonância, aliás, com a natureza da acção como impugnação de decisão interlocutória, nos termos do disposto no art.º 18º, n.º 9 da LAV.
Como decorre do n.º 1 do art.º 18º da LAV, o tribunal arbitral tem competência para decidir “sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção”.
Trata-se do denominado princípio “competência-competência” no seu efeito positivo, isto é, que confere aos árbitros a faculdade de se pronunciarem sobre a sua (própria) competência, não suspendendo a decisão sobre o fundo da causa, quando uma das partes questione que tenham competência para esse efeito, o que se justifica por razões pragmáticas, face à necessidade, reconhecida pelo legislador, de se impedir actuações das partes tendentes a suster o desenrolar do processo arbitral, que, a ter lugar, afectariam a eficácia da arbitragem como forma de jurisdição – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14-11-2022, processo n.º 164/22.2YRPRT.
A decisão proferida sobre a matéria da competência, transitada em julgado, produz efeito de caso julgado dentro do processo arbitral.
A decisão – despacho, sentença ou acórdão – forma caso julgado quando o decidido se torna imodificável ou imutável por força do seu trânsito em julgado. A imodificabilidade da sentença constitui o núcleo essencial do caso julgado.
Como refere Miguel Teixeira de Sousa, “o caso julgado traduz-se na inadmissibilidade da substituição ou modificação por qualquer tribunal (incluindo aquele que a proferiu) em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso ordinário. O caso julgado torna indiscutível o resultado da aplicação do direito ao caso concreto que é realizada pelo tribunal, ou seja, o conteúdo da decisão deste órgão” – cf. Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa 1997, pág. 567.
A decisão considera-se transitada em julgado, nos termos do art. 628º do CPC, logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação.
Transitam em julgado tanto as sentenças ou despachos recorríveis, relativos a questões de carácter processual, como a decisão referente ao mérito da causa, ou seja, aquela que aprecia a concreta relação material controvertida. No primeiro caso, forma-se o caso julgado formal (processual, externo ou de simples preclusão); no segundo caso, forma-se o caso julgado material (substancial ou interno).
O caso julgado formal, por oposição ao caso julgado material (que se constitui sobre uma sentença ou despacho saneador que aprecie o mérito da causa), restringe-se às decisões que apreciem unicamente matéria de direito adjectivo ou processual (como aquelas que se pronunciam sobre excepções dilatórias), não dispondo sobre os bens ou direitos litigados – cf. art.º 620º, n.º 1 do CPC.
Considera-se despacho que recai sobre a relação processual todo aquele que, em qualquer momento do processo, aprecia e decide uma questão que não seja de mérito – cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3º Edição, pág. 753.
A única questão concretamente apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça foi, precisamente, a atinente à fixação da competência do tribunal arbitral, ainda que, para tanto, tenha abordado a decisão do painel financeiro, interpretando-a, para nela identificar quais as questões apreciadas e decididas, por maioria e por unanimidade, para efeitos de delimitação da competência do tribunal arbitral, em conformidade com a cláusula compromissória incluída no CAE.
Como se afigura de meridiana clareza, o Supremo Tribunal de Justiça apenas tinha que apreciar a competência do tribunal arbitral tal como este a fixara e em face da impugnação suscitada pelas partes, sem que para tanto tivesse que se pronunciar sobre a conformidade com a ordem pública internacional das decisões unânimes do painel financeiro, ainda que tenha reconhecido a unanimidade de algumas dessas decisões.
E como se referiu atrás, a circunstância de as partes terem atribuído força vinculativa e definitiva a tais decisões do painel financeiro, não pode obstar a que o respectivo efeito seja impugnado em sede de acção de anulação da decisão arbitral que incidiu sobre as decisões não unânimes do painel financeiro, porque, por um lado, as decisões unânimes podem constituir pressuposto da decisão final e/ou o efeito produzido pode contrariar a ordem pública internacional e, por outro, não estando estipulada pelas partes a possibilidade de impugnação das decisões do painel financeiro, mas não tendo estas natureza jurisdicional, tendo apenas eficácia obrigacional, nada parece obstar a que a sua desconformidade possa ser suscitada no contexto desta acção, sem que tal represente qualquer comportamento abusivo por parte das demandantes, ainda que não tenham remetido para arbitragem decisões não unânimes do painel financeiro.
Aliás, poderia identificar-se uma analogia desta situação com aquela outra que decorre do art.º 48º da LAV quanto aos fundamentos da oposição à execução de sentença arbitral.
Com efeito, o decurso do prazo legalmente fixado para a acção de anulação, sem que esta tenha sido proposta, preclude a possibilidade de, na oposição à execução da sentença arbitral, se invocar algum dos fundamentos de impugnação que dependem de alegação e prova pela parte interessada (cf. alínea a) do n.º 3 do art.º 46º da LAV). Contudo, esta preclusão não abrange os fundamentos de anulação da sentença arbitral que são de conhecimento oficioso pelo juiz (cf. alínea b) do n.º 3 do art.º 46º), que podem ser invocados pelo executado, ainda que os não haja invocado em acção de anulação ou tenha deixado expirar o prazo para a propor – cf. art.º 48º, n.º 3 da LAV; António Sampaio Caramelo, A Impugnação da Sentença Arbitral, 4ª edição revista e aumentada, pág. 21.
Assim, também aqui, não tendo as partes remetido para arbitragem decisões não unânimes do painel financeiro, ainda que estas se tenham tornado definitivas, tal não pode significar que não sejam susceptíveis de serem impugnadas com base em fundamentos que são de conhecimento oficioso por parte do tribunal estadual.
3. A disputa relativa ao Imposto sobre os Produtos Petrolíferos
Invoca ainda a ré outras decisões proferidas no âmbito da disputa que a opôs às autoras a respeito do Imposto sobre os Produtos Petrolíferos[59] que implicou a análise, nos vários passos do Procedimento de Resolução de Disputas, das mesmas posições das partes, tendo sido submetida à apreciação do Painel Financeiro que, por maioria, decidiu: (i) que a alteração dos pagamentos feitos ao abrigo do CAE não carece de qualquer autorização ou parecer prévio da ERSE ou da Direcção-Geral de Energia e Geologia[60], (ii) que a aplicação da cláusula 20. do CAE não depende da repercussão, pela autora REN Trading, dos custos nas tarifas e (iii) que a cláusula 20. do CAE é válida e eficaz. O litígio foi remetido pela aqui ré para arbitragem, tendo o Tribunal arbitral afirmado a sua competência para decidir apenas se o ISP se subsume ao conceito de Relevant Tax e se o requisito de notificação das autoras havia sido cumprido. Sustenta a ré que, como as decisões do Painel Financeiro são vinculativas, a menos que o Tribunal Arbitral profira decisão substitutiva, aquelas, apesar de maioritárias, tornaram-se igualmente finais e vinculativas para as partes, porque a decisão do tribunal arbitral, que as consolidou, não foi questionada, pelo que as autoras não as podem contrariar nestes autos, para além de a sua existência e de a conformação das demandantes com elas reforçar a natureza abusiva da sua pretensão.
Referem as autoras que no contexto do Litígio ISP o tribunal arbitral proferiu decisão na qual considerou ter competência, apenas, para apreciar a questão relativa à natureza do ISP e que os demais pedidos formulados pela ré não tinham sido sequer submetidos ao painel Financeiro ou não contavam com decisão não unânime deste, pelo que as tais decisões constantes da decisão do painel financeiro do litígio ISP não foram apreciadas nem decididas por qualquer tribunal arbitral, pelo que este não as confirmou ou infirmou; além disso, tais decisões, porque proferidas por maioria, seriam susceptíveis de impugnação nos termos do Anexo 9 do CAE, mas naquela data não era seguro que se tratasse de verdadeiras decisões, sendo que apenas com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Novembro de 2021 se tomou conhecimento que no “corpo” da decisão do painel financeiro existiriam decisões para efeitos do Anexo 9 do CAE, data em que o procedimento arbitral da Disputa ISP se encontrava praticamente concluído, aguardando a prolação da sentença arbitral, pelo que, se as autoras não se insurgiram contra as tais decisões do painel financeiro ora invocadas pela ré, foi porque, à data (Outubro de 2019), nenhum indício havia de que se estava perante verdadeiras decisões para efeitos do procedimento de resolução de litígios do Anexo 9 do CAE, para além do que a decisão arbitral no Litígio ISP não apreciou essas questões; ainda que assim não fosse e se devesse considerar que tais decisões se tivessem consolidado, delas não se extrai qualquer dos efeitos invocados pela ré na oposição, pois que elas não se relacionam com as situações de omissão de pronúncia imputadas pelas autoras à Sentença Final, para além de terem efeitos meramente obrigacionais e, como tal, não limitam o direito que lhes assiste de apresentarem as suas pretensões à luz do Direito constituído e da ordem pública.
Decidindo
Da argumentação expendida pelas partes retira-se que a ré pretende fazer valer um alegado «caso julgado» decorrente das decisões proferidas por maioria pelo painel financeiro que precedeu a arbitragem relativa ao Litígio ISP - em que foram partes as aqui demandantes e demandada – e que não foram remetidas para arbitragem pelas autoras, o que, no entender da ré, implicaria que se tivessem consolidado e, como tal, devessem prevalecer para efeitos da decisão a proferir nestes autos.
Valem aqui as considerações acima expendidas a propósito da natureza das decisões não unânimes do painel financeiro, que, ainda que definitivas, por não impugnadas, não possuem natureza jurisdicional, nada obstando a que a sua conformidade possa ser suscitada em sede de acção de anulação de decisão arbitral.
Ademais, importa ter presente que em sede de acção de anulação de decisão arbitral não está em causa apreciar o mérito desta decisão e a boa ou má aplicação das normas ou corrigir um eventual erro de julgamento, mas apenas apreciar se se verifica algum dos fundamentos invocados pelas autoras passíveis de constituírem motivo de anulação, designadamente, por via de o resultado decorrente daquela decisão violar a ordem pública internacional do Estado português, não estando em causa modificar o sentido do decidido, nomeadamente, a propósito de se apurar se é ou não necessária a autorização da ERSE ou da DGEG para eventual assunção dos custos da tarifa social pela REN Trading ou sobre a possibilidade desta repercuti-los nas tarifas ou sobre a validade da cláusula 20. do CAE, mas sim aferir dos seus efeitos na ordem jurídica.
Improcede, também, aqui, a apontada inadmissibilidade da pretensão das autoras, tal como a configurou a ré.
**
Dos Fundamentos da Anulação da Decisão Arbitral
A CRP consagra, no seu art.º 209º, n.º 2[61], a existência e a admissibilidade da constituição de tribunais arbitrais.
A arbitragem voluntária tem o seu quadro legal previsto na Lei 63/2011, de 14 de Dezembro, já mencionada.
E nos termos do art.º 42º, n.º 7 da LAV, a sentença proferida pelo tribunal arbitral da qual não caiba recurso tem o mesmo carácter obrigatório entre as partes que a sentença de um tribunal estadual transitada em julgado e a mesma força executiva que a sentença de um tribunal estadual.
Como refere António Menezes Cordeiro, as decisões arbitrais são decisões jurídicas; correspondem a formas científicas de resolver casos concretos. O Estado, garante da manutenção da ordem social e económica e salvaguarda da paz pública, não pode desinteressar-se das arbitragens. Assim, os tribunais arbitrais devem observar regras básicas, estabelecidas pela lei ou pelas partes e alguma autoridade – além dos próprios tribunais arbitrais – deve assegurar que tais regras sejam cumpridas, e não pode deixar de ser a ordem jurisdicional do Estado – cf. op. cit., pág. 426.
A actual LAV, ao contrário da anterior, apenas admite, como regime-regra, a reacção contra a sentença arbitral pela via do “pedido de anulação” dirigido ao tribunal estadual competente, excepto se as partes tiverem acordado na recorribilidade da sentença arbitral para os tribunais estaduais – cf. art.º 46º, n.º 1 e 39º, n.º 4 da LAV.
A acção de anulação de decisão arbitral é um meio processual que não visa obter a decisão de um litígio – como sucede na arbitragem que a precede -, tendo antes por objectivo controlar a integridade do tribunal arbitral, a integridade do processo adoptado e a integridade da decisão proferida, verificando a sua compatibilidade com os princípios, regras e valores fundamentais do ordenamento jurídico – cf. António Sampaio Caramelo, op. cit., pág. 37.
Com a regra do n.º 2 do art.º 46º da LAV estabelece-se na ordem jurídica portuguesa uma clara autonomia das decisões arbitrais em relação à justiça estadual, no que diz respeito ao mérito substancial da decisão – cf. José Robin de Andrade, op. cit., pág. 193.
O art.º 46º da LAV estabelece uma enumeração taxativa ou fechada de fundamentos de anulação da sentença arbitral, como decorre de modo expresso da letra do respectivo n.º 3: “A sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se […]” – cf. António Menezes Cordeiro, op. cit., pág. 439, dando conta do acordo da doutrina e jurisprudência nacionais quanto a tal ponto, realça, contudo, a formulação ampla dos diversos fundamentos de anulação, por um lado e, por outro, a natureza processual da sindicância do Estado sobre os juízos arbitrais, estando em causa a legalidade e não o mérito da decisão, salvo o resultado do art.º 46, n.º 3, b), ii) da LAV.
Sobre a concepção e tramitação do processo de arbitragem voluntária, Manuel Pereira Barrocas, in A Razão por que não são aplicáveis à Arbitragem nem os Princípios nem o regime legal do Processo Civil, pág. 625-630[62] refere:
“O processo arbitral assenta em princípios fundamentais próprios contidos, no caso da lei portuguesa, no art.º 30º, nº 1 da LAV, que não se confundem, embora possam parcialmente coincidir, com os que são próprios do processo civil. A sua aplicação prática, porém, obedece às características da arbitragem, designadamente ao seu menor formalismo e à desejada eficácia em vista do seu desígnio final que é a resolução do litígio.” […]
O processo arbitral obedece, pois, a princípios e a práticas distintas do processo nos tribunais estaduais. […]
Apenas a analogia com o regime legal do processo civil pode, eventual e muito parcimoniosamente, ser útil ao processo arbitral como repositório de conceitos técnico-científicos e, eventualmente, como exercício analógico, não obrigatório para o árbitro do preenchimento de uma lacuna legal verificada num processo arbitral.
Não é, assim, admissível a invocação de uma norma legal do processo civil para fundamentar uma invalidade do processo ou do próprio laudo arbitral. E o mesmo é relevante para a exclusão do seio da arbitragem de princípios processuais que não sejam os que são próprios do processo arbitral (sobre os princípios fundamentais do processo arbitral, ver o artº 30º nº 1 da LAV).”
Atente-se que o carácter restritivo dos fundamentos legais que habilitam a pedir ao tribunal estadual que anule a decisão proferida pelo tribunal arbitral constitui precisamente a afirmação da própria independência e autonomia da jurisdição arbitral. E, além disso, há que ter presente que a interpretação ou aplicação erradas ou a não observância de uma norma legal, imperativa ou supletiva, não constitui, só por si, fundamento de anulação de uma sentença arbitral. Este efeito anulatório só pode ser obtido desde que seja pertinente e provado qualquer dos fundamentos previstos no artigo 46º número 3, e apenas este, de modo que a acção especial de anulação visa identificar vícios graves de natureza processual susceptíveis de revestir influência decisiva na resolução do litígio submetido ao tribunal arbitral – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-09-2022, processo n.º 1130/22.3YRLSB-7.
*
A - Omissão de pronúncia - Artigo 46.º, n.º 3, alínea a), subalínea v) da LAV
No contexto da arbitragem, o tribunal, para além de limitado pela convenção de arbitragem, está delimitado na sua intervenção por aquilo que lhe seja pedido, ou seja, funciona também aqui o princípio do dispositivo, princípio basilar do direito processual civil, que foi assimilado pelo direito da arbitragem.
Conforme estatui o art.º 46º, n.º 3, a), v) da LAV, a sentença arbitral pode ser anulada se “o tribunal arbitral […] conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento ou deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar”.
O tribunal arbitral não pode condenar em algo diverso ou superior ao pedido (ultra petium) ou conhecer de questões de que não podia conhecer, tal como não pode abster-se de considerar questões que lhe cabia resolver (omissão de pronúncia). Com efeito, “o Tribunal arbitral está vinculado ao princípio do dispositivo. Isto é, deve conhecer apenas dos pedidos que lhe foram formulados e dentro dos limites respectivos, quer quanto à quantidade, quer quanto ao seu objeto” – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7-05-2020, processo n.º 1079/16.9YRLSB.S2.S1[63].
Do que se trata é do respeito pela conformação da instância pelas partes (disponibilidade do objecto e das partes), sendo que o que se sanciona na norma referida é o facto de a sentença proferida pelos árbitros ser desconforme com o objecto tal como as partes o definiram, através dos respectivos pedidos e causa de pedir.
Na análise da verificação deste vício importará ter presente, pela sua similitude, tudo quanto se refere a tal vício reportado às decisões judiciais, sendo que as considerações doutrinárias e jurisprudenciais a propósito do regime do art.º 615º do CPC colhem aqui aplicação – cf. neste sentido, Paula Costa e Silva, Os meios de impugnação de decisões proferidas em arbitragem voluntária no direito interno português, pp. 184-185[64].
As decisões judiciais podem estar feridas na sua eficácia ou validade por duas ordens de razões: por erro de julgamento dos factos e do direito; por violação das regras próprias da sua elaboração e estruturação ou das que delimitam o respectivo conteúdo e limites, que determinam a sua nulidade, nos termos do art. 615.º do CPC.
Para a correcta interpretação deste preceito importa distinguir entre nulidades de processo e nulidades de julgamento, sendo que apenas a estas últimas se aplica o normativo em referência.
É usual verificar-se alguma confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou até entre a omissão de pronúncia (quanto a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento de entre os que são convocados pelas partes – cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 737.
Quanto à omissão de pronúncia sobre questões colocadas ou sobre pretensão deduzida, tem-se entendido que o dever de decidir tem por referência as questões suscitadas e bem assim as de conhecimento oficioso, mas tal não exige que se apreciem todos os argumentos (que são coisa diversa de “questões”).
O juiz deve conhecer de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, nos termos do art. 608º, n.º 2 do CPC, o que não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias soluções plausíveis de direito para a solução do litígio, tenham sido deduzidos pelas partes ou possam ter sido inicialmente admitidos pelo juiz – cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pp. 713 e 737.
Assim, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-11-2005, processo n.º 05S2137, esclarece-se:
“[…] a nulidade da sentença por omissão ou por excesso de pronúncia, resulta da violação do disposto no n.º 2 do art. 660.º do CPC, nos termos do qual "[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras" e "[n]ão pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras". É a violação daquele dever que torna nula a sentença e tal consequência justifica-se plenamente, uma vez que a omissão de pronúncia se traduz, ao fim e ao cabo, em denegação de justiça e o excesso de pronúncia na violação do princípio dispositivo que contende com a liberdade e autonomia das partes.”
Todavia importa não confundir questões suscitadas pelas partes com motivos ou argumentos por elas invocados para fazerem valer as suas pretensões. Uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questão que devia apreciar, outra invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção.
Com efeito, como referia José Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Volume V (Reimpressão), Coimbra – 1984, pág. 143:
“São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.”
Logo, o julgador não tem que analisar e apreciar todos os argumentos, todos os raciocínios, todas as razões jurídicas invocadas pelas partes para suporte das suas posições. Apenas tem que resolver as questões que por aquelas lhe tenham sido postas. Como tal, não ocorre omissão de pronúncia quando o tribunal, ao apreciar a questão que lhe foi colocada, não toma em consideração um qualquer argumento alegado pelas partes no sentido de procedência ou improcedência da acção. O que importa é que o julgador conheça de todas as questões que lhe foram colocadas, excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras.
As questões a apreciar serão apenas as questões de fundo, isto é, as que integram matéria decisória, tendo em conta a pretensão que se visa obter; não o serão os argumentos, as motivações produzidas pelas partes, mas sim os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções.
A doutrina e a jurisprudência têm assim entendido que a omissão ou excesso de pronúncia enquanto causas de nulidade da sentença têm por objecto questões a decidir na sentença, e não propriamente factos ou argumentos jurídicos, conforme acima já se deixou explanado – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-04-2015, processo n.º 185/14.9TBRGR.L1-2 – “A questão a decidir não é a argumentação utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim as concretas controvérsias centrais a dirimir e não os factos que para elas concorrem.”
i) Inconstitucionalidade do financiamento da Tarifa Social se considerado uma “forma de tributação”
As demandantes sustentam que o tribunal arbitral omitiu pronúncia sobre a questão da inconstitucionalidade que suscitaram quanto ao financiamento da tarifa social, se considerado uma “forma de tributação”, alegando que as pretensões da ré, seja de reembolso de custos, seja de alteração do CAE quanto ao cálculo do encargo de potência, se baseiam na Cláusula 20. do CAE, que prevê a sujeição daquela ao pagamento de um “Imposto Relevante” que não existisse à data da celebração do contrato, sendo que as partes divergem quanto à definição de “Imposto Relevante”, dizendo a ré que seria qualquer forma de tributação à luz do direito português e defendendo as autoras que tal conceito tem de ser interpretado por referência às categorias de tributos previstas na lei portuguesa e que a obrigação de financiamento da Tarifa Social constitui uma obrigação de serviço público, pelo que não pode ser considerada uma forma de tributação e, como tal, não se enquadra no conceito de “Imposto Relevante”.
Mais alegaram as autoras que, caso a obrigação de financiamento da Tarifa Social fosse considerada, dentre essas categorias de tributos, como um imposto, conforme defendido pela ré, seria inconstitucional, tanto do ponto de vista orgânico, como do ponto de vista material, porque nos termos da CRP a criação de impostos é, por um lado, matéria da competência reservada da Assembleia da República, tendo a Tarifa Social (e a obrigação do seu financiamento) sido estabelecidas por acto do Governo sem autorização legislativa por parte da Assembleia da República e, por outro lado, a tributação das empresas deve incidir sobre o seu rendimento real, mas no caso da Tarifa Social, esta é calculada sobre a potência instalada dos centros electroprodutores em regime ordinário.
Concluíram as autoras que, a entender-se que a obrigação de financiamento dos custos da Tarifa Social constitui um tributo, nomeadamente reconduzível à figura do imposto, este seria, no caso concreto, inconstitucional, pelo que a ré não estaria obrigada a cumpri-la, conforme dispõe o artigo 103.º da CRP, tendo a possibilidade de exercer um fundado direito de resistência contra comando inconstitucional; não estando a ré obrigada, em virtude da inconstitucionalidade do (pretenso) imposto, a pagá-lo, não estaria verificado um dos requisitos essenciais de aplicabilidade do mecanismo de alteração do CAE previsto na Cláusula 20.4, razão pela qual o Tribunal Arbitral não poderia condenar as autoras no seu cumprimento.
Mais alegam que, na sua decisão, o Tribunal Arbitral reconheceu estar-se perante uma forma de tributação, mas optou por não efectuar a necessária qualificação da obrigação de financiamento da Tarifa Social, designadamente se é ou não um tributo (em particular um imposto), considerando que o facto de a Tarifa Social, em si, constituir uma obrigação de serviço público não impede que o mecanismo do seu financiamento seja um “Imposto Relevante”, não estando esta definição dependente da definição de tributo ou imposto constante da lei portuguesa, sendo abrangente o suficiente de modo a incluir imposições feitas à ré, independentemente de serem ou não um imposto ou tributo nos termos da lei portuguesa, pelo que o financiamento da Tarifa Social está abrangido pelo “Imposto Relevante” para efeitos do CAE.
O tribunal arbitral absteve-se, sustentam, de determinar a natureza da obrigação de financiamento da Tarifa Social e de retirar as consequências dessa qualificação, o que, ao contrário do defendido, não é irrelevante para a discussão, pois um dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade da obrigação de financiamento da Tarifa Social é que esta deixaria de vincular a ré, pelo que a apreciação e decisão sobre a sua inconstitucionalidade não se encontra prejudicada por qualquer outra decisão do Tribunal Arbitral e é essencial à decisão do mérito do litígio submetido ao Tribunal Arbitral, de modo que a omissão dessa apreciação constitui fundamento para anulação da sentença arbitral.
A ré pugna pela não verificação da omissão apontada referindo que o Tribunal Arbitral identificou as questões a decidir, com observância dos pedidos deduzidos pelas partes e resolveu todas as questões identificadas, como decorre dos §§ 369 e 370 da sentença arbitral; a questão da inconstitucionalidade do mecanismo de financiamento não é uma “questão” fáctico-jurídica estruturante da posição das partes, mas apenas um argumento que as autoras aduziram para tentar sustentar o indeferimento de um dos pedidos da ré, sendo que o tribunal apreciou as posições das partes e interpretou o CAE, concluindo que, sendo a Tarifa Social uma obrigação de serviço público, separável do Mecanismo de Financiamento, nada impede a qualificação contratual deste como um Relevant Tax, o que dispensa a qualificação prévia tributária e legal da imposição, discussão que resultou prejudicada e, por consequência, ficou igualmente prejudicada a apreciação da conformidade constitucional do referido Mecanismo.
Decidindo
Para além dos factos atrás elencados, importa atentar ainda nos seguintes dados que emergem do conteúdo da sentença arbitral:
ð No dia 7 de Novembro de 2018, a Tejo Energia notificou as REN Eléctrica e REN Trading de que: “A Cláusula 20.4.1 do CAE (que o Painel Financeiro considera válida e aplicável conforme o ponto 204 da Decisão), [dispõe] que a Tejo Energia pode alterar o cálculo do Encargo de Potência Instalada de modo a refletir o custo suportado pela Tejo Energia com o financiamento da Tarifa Social, que, conforme estabelecido pelo Painel Financeiro no ponto 111 da Decisão, deverá ser vista com uma Alteração dos Impostos Relevantes para os efeitos da Cláusula 20.ª e do Anexo 11 do CAE. Em conformidade, juntamos ao presente como Anexo 3 os relatórios elaborados pela Mazars com os cálculos que evidenciam a materialidade da Tarifa Social enquanto Alteração dos Impostos Relevantes nos termos do CAE.” (cf. § 39 da sentença arbitral);
- As requeridas, ora demandantes, manifestaram a sua discordância, sendo que, inviabilizada a resolução seja por decisão unânime do painel financeiro, seja por resolução amigável, a disputa foi remetida para arbitragem;
- Em 10 de Junho de 2020, o tribunal arbitral emitiu sentença parcial sobre competência e identificou as questões decididas de forma não unânime pelo Painel Financeiro que foram contestadas pelas aqui autoras, que conferiram à Tejo Energia o direito de remeter o litígio para arbitragem, nos termos do Apêndice 9 do CAE, tal como descrito no ponto 33. dos factos provados;
- Nos §§ 112 e 113 da decisão arbitral o Tribunal identificou os pedidos formulados pela Tejo Energia na sua petição inicial e na réplica:
(i) DECLARE que a Tarifa Social é um Imposto Relevante nos termos do CAE;
(ii) DECLARE que desde que comprovado o efeito relevante da Tarifa Social, a Requerente tem direito ao reembolso dos custos incorridos com o financiamento da Tarifa Social através da alteração do encargo de Potência Instalada até à data de caducidade do CAE, ajustado à inflação e incluindo juros permitidos à Taxa de Juro de Referência;
(iii) Em conformidade, CONDENE as Requeridas no cumprimento do procedimento previsto na Cláusula 20.ª e ponto 10 do Anexo 11 do CAE;
(iv) CONDENE as Requeridas na apresentação de contraproposta de alteração do Encargo de Potência Instalada no prazo de 15 (quinze) dias úteis a contar da notificação da decisão do Tribunal;
(v) DECLARE que, na ausência de tal contraproposta das Requeridas, e caso se comprove o efeito relevante da Tarifa Social, a determinação da alteração do Encargo de Potência Instalada deverá ocorrer na forma proposta pela Requerente;
(vi) CONDENE a Requerente e as Requeridas no cumprimento da decisão tomada pelo Painel Financeiro quanto à alteração do Encargo de Potência Instalada;
(vii) CONCEDA à Requerente todos os custos incorridos no âmbito do processo, incluindo todos os honorários e despesas do Tribunal e despesas administrativas, bem como os honorários e despesas com advogados e consultores jurídicos; e
(viii) DECRETE em relação à Requerente quaisquer outras medidas adicionais consideradas adequadas.
113. Na sua Réplica, a Requerente afirmou que procura obter “uma Sentença por meio da qual o Tribunal Arbitral:
(i) DECLARE que a Tarifa Social é um Imposto Relevante nos termos do CAE;
(ii) DECLARE que desde que comprovado o efeito relevante da Tarifa Social perante o Painel Financeiro, a Requerente tem direito ao reembolso dos custos incorridos com o financiamento da Tarifa Social através da alteração do Encargo de Potência Instalada até à data de caducidade do CAE, ajustado à inflação e incluindo juros permitidos à Taxa de Juro de Referência;
(iii) Em conformidade, CONDENE as Requeridas no cumprimento do procedimento previsto na Cláusula 20.ª e ponto 10 do Anexo 11 do CAE;
(iv) CONDENE as Requeridas na apresentação de contraproposta de alteração do Encargo de Potência Instalada no prazo de 15 (quinze) dias úteis a contar da notificação da decisão do Tribunal;
(v) DECLARE que, na ausência de tal contraproposta das Requeridas, e caso se comprove o efeito relevante da Tarifa Social, a determinação da alteração do Encargo de Potência Instalada deverá ocorrer na forma proposta pela Requerente;
(vi) CONDENE a Requerente e as Requeridas no cumprimento da decisão tomada pelo Painel Financeiro quanto à alteração do Encargo de Potência Instalada;
Subsidiariamente a (i) a (vi), e para responder à possibilidade de o Tribunal declarar a inconstitucionalidade do mecanismo de financiamento da Tarifa Social contido no artigo 4.º do Decreto-Lei da Tarifa Social e impedir a aplicação da Cláusula 20.º do CAE, a Requerente procura obter uma Sentença por meio da qual o Tribunal Arbitral:
(vii) CONDENE a 1.ª Requerida a abster-se de cobrar a Tarifa Social à Requerente nos termos de tal disposição legal;
(viii) CONDENE a 1.ª Requerida a devolver à Requerente os valores cobrados da Tarifa Social desde o ano de 2011 e até a data em que deixar de cobrar os demais valores nos termos da alínea (vii) acima; e
(ix) CONDENE as Requeridas no pagamento de juros de mora à Requerente à taxa legalmente aplicável acrescidos de juros obrigatórios à taxa de 5% nos termos do artigo 829.º-A do Código Civil, devidos desde o trânsito em julgado da Sentença e até ao pagamento definitivo das quantias que a 1.ª Requerida é obrigada a devolver nos termos da alínea (viii) acima.
Cumulativamente com os pedidos acima, a Requerente procura obter uma Sentença por meio da qual o Tribunal Arbitral:
(x) CONCEDA à Requerente todos os custos incorridos no âmbito do processo, incluindo todos os honorários e despesas do Tribunal e despesas administrativas, bem como os honorários e despesas com advogados e consultores jurídicos; e
(xi) DECRETE em relação à Requerente quaisquer outras medidas adicionais consideradas adequadas.
114. A Requerente “reserva-se ainda o direito de alterar ou complementar o presente petitório quanto ao mérito da causa.”
- As requeridas, aqui autoras, opuseram-se à pretensão da Tejo Energia e pediram que as medidas por ela requeridas não fossem acolhidas;
- No § 128 da sentença arbitral o tribunal consignou o seguinte:
“Resulta dos pedidos formulados pelas Partes que as questões a decidir na presente Sentença Final são:
• Se a Tarifa Social é um Imposto Relevante nos termos do CAE; (Secção 5.3);
• Sendo a Tarifa Social considerada Imposto Relevante, se a Requerente tem direito ao seu reembolso através da alteração do Encargo de Potência Instalada (desde que comprovado o efeito relevante da Tarifa Social perante o futuro painel financeiro) (Secção 5.4);
• Se as Requeridas devem ser condenadas no (i) cumprimento do procedimento previsto na Cláusula 20.ª e ponto 10 do Anexo 11 do CAE, e (ii) na apresentação de uma contraproposta à alteração do Encargo de Potência Instalada no prazo de 15 dias após a notificação da decisão do Tribunal; e, caso não o façam, se a alteração do Encargo de Potência Instalada deve ser conforme proposto pela Requerente (Secção 5.5); e
• Dos encargos da arbitragem (Secção 5.6).”
Tal como a leitura da decisão arbitral permite aferir e disso deu conta o tribunal arbitral no respectivo § 129, o Tribunal ponderou todos os argumentos apresentados pelas partes, que, designadamente, sumariou, mas para justificar as suas conclusões incidiu a sua análise sobre os argumentos em que fundou o seu raciocínio ou sobre aqueles que exigiam uma resposta para validar tal raciocínio.
A primeira questão a solucionar identificada pelo tribunal arbitral – saber se a Tarifa Social é um Imposto Relevante nos termos do CAE – foi por ele apreciada nos §§ 197 a 222 da sentença, em que concluiu constituir aquela «um imposto relevante para os efeitos do CAE».
Decorre do atrás expendido e do próprio conteúdo da decisão arbitral e identificação das questões a apreciar efectuada em consonância com as pretensões formuladas pelas partes, que a questão primacial a decidir era a de saber se a tarifa social introduzida pelo DL Tarifa Social deve ser tida como “Imposto Relevante” para efeitos do CAE, para o que o tribunal arbitral analisou o texto das cláusulas deste contrato.
Com efeito, a arbitragem foi iniciada ao abrigo da convenção de arbitragem contida no CAE referido no ponto 1., do qual as autoras e a ré eram partes à data do surgimento do litígio.
O litígio que opôs as partes relacionava-se com a denominada tarifa social de fornecimento de energia eléctrica - “Tarifa Social” -, criada pelo DL da Tarifa Social, a qual consiste num desconto a ser aplicado na factura de electricidade dos clientes finais economicamente vulneráveis, cujo financiamento o aludido diploma atribuiu aos centros electroprodutores, entre os quais se inclui a Tejo Energia, que, por via da apontada Cláusula 20., pretendia obter a alteração do CAE quanto ao cálculo do encargo de potência instalada.
Em sede de análise das questões identificadas como integrando o dissídio das partes, o Tribunal arbitral apreciou se a Tarifa Social devia ser considerada um imposto relevante nos termos do CAE, tendo escrutinado a definição que consta do contrato e exposto nos mencionados §§ 197 a 222 as razões pelas quais reconheceu a respectiva amplitude, abarcando todas as formas de tributação, ou melhor, “todas as imposições governamentais”, para além de ter notado que as partes aceitam que a tarifa social é uma obrigação de serviço público que contém ou está associada a um mecanismo de financiamento correspondente, discordando, porém, quanto à natureza deste mecanismo, mas concluindo que, atenta a extensão do conceito «imposto relevante», que integra qualquer imposição cobrada às partes, se tornava pouco relevante apreciar se a tarifa social constitui uma forma de tributação atípica no direito português ou se enquadra num dos conceitos tipológicos mencionados na CRP. Para o efeito, o tribunal arbitral não deixou de ponderar os argumentos das partes atinentes ao conteúdo dos pareceres jurídicos do Conselho Consultivo da PGR e da ERSE e, bem assim, dos pareceres jurídicos apresentados pelas requeridas, dando nota ainda que a decisão proferida num outro processo arbitral não o vinculava, concluindo nos termos supra referidos.
O Tribunal prosseguiu a sua análise e apreciou as demais questões identificadas como questões a decidir, ou seja, se a Tejo Energia tem direito ao reembolso através da alteração do Encargo de Potência Instalada (desde que comprovado o efeito relevante da Tarifa Social perante o futuro painel financeiro), o que fez nos §§ 267 a 307, concluindo a maioria do tribunal que, desde que comprovado o efeito relevante da tarifa social perante o painel financeiro, “a Tejo Energia tem direito à alteração do encargo de potência instalada, nos termos da cláusula 20.4 e ponto 10 do Anexo 11 do CAE, na medida do necessário para garantir, na medida do possível, que o produtor esteja na mesma situação financeira ao abrigo do contrato em que estaria se o encargo com a tarifa social não tivesse ocorrido”.
E o tribunal arbitral apreciou também a terceira questão identificada, isto é, se as REN Eléctrica e REN Trading devem ser condenadas no cumprimento do procedimento previsto na Cláusula 20. e ponto 10 do Anexo 11 do CAE e na apresentação de uma contraproposta à alteração do Encargo de Potência Instalada no prazo de 15 dias após a notificação da decisão do Tribunal e, caso não o façam, se a alteração do Encargo de Potência Instalada deve ser conforme proposto pela Tejo Energia, apreciação a que procedeu nos §§ 326 a 332, condenando as requeridas no cumprimento desse procedimento, mas indeferindo o pedido de condenação destas na apresentação de uma contraproposta e na alteração do encargo conforme proposto pela Tejo Energia, por entender que essa apreciação caberá ao futuro painel financeiro que presida a esse procedimento.
Foram, assim, apreciadas as questões identificadas e sobre elas o Tribunal arbitral emitiu uma pronúncia.
Seguro é que, tal como decorre das alegações finais da REN Eléctrica e da REN Trading (cf. pontos 37. e 38.), estas sustentaram que os custos incorridos com o financiamento da Tarifa Social apenas poderiam ser considerados «imposto relevante» para efeitos do CAE se constituíssem uma forma de tributação, nos termos da legislação portuguesa. Porém, o tribunal arbitral afastou essa interpretação e considerou que a definição de «imposto relevante» era mais abrangente, nela integrando qualquer forma de imposição governamental, concluindo que era suficientemente ampla para nela se integrarem os custos em referência.
Perante essa solução, o tribunal arbitral desconsiderou o argumento subsidiário suscitado pelas demandantes/requeridas, ou seja, que, caso se considerasse que os custos pudessem ser qualificados como um imposto, a cláusula 20. do CAE não poderia ser aplicada porque o imposto seria inconstitucional, quer do ponto de vista orgânico, quer do ponto de vista material, conduzindo a que a Tejo Energia não fosse obrigada a pagar tal imposto, nos termos do art.º 103º, n.º 3 da CRP, pelo que teria de ter reagido nos meios jurisdicionais próprios, não podendo agora repercutir os custos nas autoras, assim como o tribunal arbitral não poderia aplicar uma norma inconstitucional.
No que diz respeito a este último argumento, importa afastá-lo, porquanto, tal como decorre do supra expendido, o tribunal arbitral não aplicou na sua decisão qualquer norma do DL Tarifa Social, designadamente, o vertido no seu art.º 4º, porquanto se limitou a apreciar se os custos que daí decorrem para a Tejo Energia, enquanto produtor de energia, podiam, à luz do estipulado no CAE, autorizar o pedido de alteração do encargo de potência instalada.
Com efeito, independentemente da natureza da obrigação de pagar um determinado valor para cobrir o custo da tarifa social – que consiste numa redução regulamentada da factura de consumo de electricidade que as empresas de comercialização são obrigadas a aplicar a determinados consumidores qualificados como “vulneráveis”[65] [66] – e ainda que se tenha presente que, de acordo com a jurisprudência do TJUE, tal como emerge da decisão que incidiu sobre a apreciação do pedido de decisão prejudicial apresentado Supremo Tribunal de Espanha[67], a obrigação que recai sobre as empresas de comercialização, de fornecer electricidade a tarifa reduzida a determinados consumidores vulneráveis, corresponde a uma obrigação de serviço público[68], na acepção do artigo 3º, n.º 2, da Directiva 2009/72, sendo composta por dois elementos que estão indissociavelmente ligados - a saber, por um lado, a redução do preço da energia eléctrica fornecida a determinados consumidores vulneráveis e, por outro, a contribuição financeira destinada a cobrir o custo dessa redução de preço -, na verdade, aquilo que o tribunal arbitral apreciou foi a pretensão da Tejo Energia de, cumprida a obrigação que para si resulta da aplicação do DL Tarifa Social, obter, à luz do CAE, a alteração do encargo de potência instalada, ou seja, a verificação dos pressupostos, tal como foram contratualmente fixados pelas partes, para aquela alcançar ou ter o direito a obter essa visada alteração.
Para esse efeito, o tribunal arbitral não tinha que aplicar, nem aplicou, uma norma potencialmente inconstitucional, tal como a configuram as requeridas, tendo antes avaliado a situação fáctica decorrente da aplicação do DL Tarifa Social e a sua repercussão na relação contratual estabelecida entre as partes e aplicabilidade da estipulação contratual convocada pela Tejo Energia para fundamentar a sua pretensão.
Sendo pacífico que a omissão de pronúncia sobre “questões” se refere aos pedidos deduzidos, causas de pedir e excepções, e que nessas “questões” a decidir se incluem os casos em que as partes durante o processo tenham suscitado a inconstitucionalidade de uma norma – cf. art.º 280º, n.º 1, b) da CRP -, desde que esta tenha sido arguida de forma adequada, certo é que o juízo incide apenas sob a norma aplicada ou não-aplicada no processo, o que é uma decorrência da prejudicialidade da questão (o objecto do processo não é esse, a inconstitucionalidade é instrumental), sendo que neste caso o tribunal arbitral apenas considerou a obrigação da Tejo Energia decorrente do DL Tarifa Social para avaliar a reunião dos pressupostos para a obtenção da modificação do contrato por aquela visada, sendo seguro que, independentemente da inconstitucionalidade ou não do DL Tarifa Social, a Tejo Energia vem suportando os custos com o financiamento da tarifa social e, por outro lado, ao tribunal arbitral não foi pedida por nenhuma das partes a anulação da aplicação desse custo com base na inconstitucionalidade da sua imposição, mas sim a aplicação de uma cláusula contratual que é discutida pelas partes.
Assim, não estava em causa a aplicação pelo tribunal arbitral de uma qualquer norma do DL Tarifa Social que fosse potencialmente inconstitucional, mas sim avaliar uma estipulação contratual que se reportava à situação fáctica decorrente da aplicação desse diploma[69].
Acresce que o regime de financiamento desta medida de intervenção sobre os preços - a tarifa social -, constituindo um elemento que lhe está indissociavelmente ligado, não se confunde, porém, com tal medida, podendo os dois elementos ser considerados separadamente, pelo que a questão da eventual inconstitucionalidade da medida não se impunha como questão subjacente à aplicação da cláusula contratual em litígio, tanto mais que o Tribunal arbitral concluiu que o mecanismo de financiamento da tarifa social podia ser considerado um imposto relevante para efeitos da Cláusula 1.1. do CAE, para o que era irrelevante determinar se a tarifa social é uma forma de tributação atípica no direito português ou se se enquadra num dos conceitos tipológicos referidos na CRP, pelo que, face à solução alcançada, sempre a questão da inconstitucionalidade da tarifa social se teria de ter por prejudicada, nos termos do art.º 608º, n.º 2 do CPC.
Não ocorre, assim, a apontada omissão de pronúncia por não conhecimento da invocada inconstitucionalidade do financiamento da tarifa social.
*
ii. A Cláusula 20. do CAE constitui uma ‘cláusula de estabilidade’ que impede os efeitos pretendidos pela Ré
Em sede do vício de omissão de pronúncia as demandantes reportam ainda o seguinte:
- O tribunal arbitral não apreciou a questão de saber se a Cláusula 20. do CAE é uma “cláusula de estabilidade” (fiscal), concedida pelo Estado, por meio da EDP, empresa então detida a 100% pelo Estado, e que estaria numa posição de controlar o risco de soberania, o que já não sucede, o que implicaria que essa cláusula não poderia ser aplicada contra as autoras, pois conduziria a uma situação de total desequilíbrio da sua posição contratual, questão que foi suscitada perante o Painel Financeiro e que por este não foi apreciada, tendo sido novamente suscitada pelas autoras perante o tribunal arbitral, referindo que as eventuais garantias outorgadas à ré ao abrigo da Cláusula 20. do CAE, pela sua natureza, apenas podem ser validamente outorgadas por ente público e apenas a este podem ser exigidas, não lhe podendo ser opostas, única interpretação possível da referida cláusula, de acordo com as regras de interpretação previstas no Direito português;
- O tribunal arbitral escusou-se a apreciar e decidir a questão por entender que tinha sido apreciada de forma unânime pelo Painel Financeiro, mas não indicou em que parte da decisão tal ocorreu e apenas referiu que “o Painel Financeiro descreveu a objeção da 1.ª Requerida e os argumentos correspondentes em detalhe e, no entanto, decidiu que a Cláusula 20.ª era plenamente aplicável”;
- Os dois trechos da Decisão do Painel Financeiro, transcritos pelo Tribunal Arbitral na Sentença Final para justificar uma alegada decisão unânime do Painel sobre a questão da Cláusula 20. ser uma ‘cláusula de estabilidade’, reportam-se a uma questão totalmente distinta, que é a atinente a saber se as disposições do DL da Tarifa Social impedem a aplicação da Cláusula 20. do CAE, pois que as autoras alegaram perante o Painel que a alocação de custos com a Tarifa Social prevista no artigo 4.º, n.º 1 do DL Tarifa Social tem carácter obrigatório, pelo que se a Cláusula 20. do CAE fosse entendida como alterando aquela alocação, designadamente repassando-a para as autoras, seria nula ou não lhes seria oponível:
- O Painel apreciou esta questão dizendo que a finalidade da Cláusula 20. do CAE “não é alterar a entidade à qual incumbe a responsabilidade de proceder ao pagamento da tarifa perante o organismo competente, mas antes prever os mecanismos contratuais entre as duas entidades privadas de forma a preservar o encargo fiscal para o Produtor no momento da celebração do CAE” e dessa consideração não resulta qualquer apreciação sobre a eventual natureza da Cláusula 20. do CAE como ‘cláusula de estabilidade’.
Concluem que, tendo o Tribunal Arbitral reconhecido que a questão da Cláusula 20. do CAE como “cláusula de estabilidade” foi suscitada no procedimento arbitral e não a tendo apreciado, entendendo, erradamente, que o Painel Financeiro a teria decidido de forma unânime, verifica-se uma omissão de pronúncia de questão que devia apreciar, o que constitui fundamento para anulação da Sentença Arbitral, por ser essencial à decisão do mérito do litígio, pois a ser uma cláusula de estabilidade, a cláusula 20. não é oponível às autoras; e ainda que se entendesse que o tribunal arbitral tinha apreciado essa questão nos §§ 165 a 188 da decisão, então esta padece de um vício de falta de fundamentação, estando o tribunal obrigado a controlar a conformidade dessa “decisão unânime” com a lei e a ordem pública, o que claramente não fez, incorrendo, por isso, também aqui, num vício de omissão de pronúncia sobre questão essencial à decisão da causa.
A ré alega que, pretendendo as autoras que as decisões do Painel Financeiro fossem “inválidas”, deveriam tê-lo suscitado perante o tribunal arbitral ou quando impugnaram a sentença arbitral parcial, o que não fizeram, não o podendo fazer agora, além do que não tem sentido invocar omissão de pronúncia relativamente a uma matéria que o tribunal arbitral decidiu não ser competente para apreciar; mais refere que, ainda assim, o Painel Financeiro considerou o argumento em torno da natureza da cláusula 20. do CAE e fê-lo dizendo que a sua finalidade não é alterar a entidade a quem incumbe a responsabilidade de proceder ao pagamento da tarifa perante o organismo competente, mas prever mecanismos contratuais entre as suas entidades privadas para minimizar o impacto de reformas ficais, não tendo concluído que a natureza privada das partes determinava a invalidade ou a insusceptibilidade de aplicação da cláusula.
Decidindo
A este propósito, o Tribunal arbitral discorreu nos §§ 289 a 294 da sentença final do seguinte modo (cf. reprodução constante do ponto 41.):
“289. As Requeridas opõem-se à aplicação da Cláusula 20.ª do CAE com base no facto de que (i) a Cláusula 20.ª é uma cláusula de estabilidade que não é oponível a entidades privadas como as Requeridas; e (ii) não pode haver alteração do CAE sem autorização prévia da ERSE e da DGEG. Quanto à terceira objeção baseada no facto de que a Cláusula 20.ª não permite o reembolso dos custos relativos à Tarifa Social, o Tribunal já esclareceu acima que, embora o reembolso da “repassagem de custos” referido na cláusula 20.3 não seja aplicável à Tarifa Social, a Requerente poderá ser reembolsada através de alteração do Encargo de Potência Instalada nos termos da Cláusula 20.4.
290. Em primeiro lugar, quanto à possibilidade de a Cláusula 20.ª ser lida como uma cláusula de estabilidade, o Tribunal considera que a questão da aplicabilidade da Cláusula 20.ª ao presente litígio já foi decidida por unanimidade pelo Painel Financeiro, que decidiu que “a Cláusula 20.ª do CAE será considerada válida e aplicável”. As duas objecções apresentadas pelas Requeridas já foram apresentadas ao Painel Financeiro, ou deveriam ter sido discutidas perante o Painel e não foram. Este Tribunal não está autorizado a reabrir assuntos que foram decididos por unanimidade pelo Painel Financeiro. A maioria deste Tribunal já considerou que esta decisão é unânime e, como tal, final e vinculativa.
291. Embora a 1.ª Requerida declare que a objeção relativa à aplicabilidade de uma cláusula de estabilidade não foi considerada na Decisão do Painel Financeiro, o Tribunal considera que o Painel Financeiro descreveu a objeção da 1.ª Requerida e os argumentos correspondentes em detalhe e, no entanto, decidiu que a Cláusula 20.ª era plenamente aplicável. A objeção da 1.ª Requerida foi, portanto, rejeitada. Além disso, o Painel Financeiro considerou o seguinte:
convém recordar que a finalidade da Cláusula 20.ª do CAE não é alterar a entidade à qual incumbe a responsabilidade de proceder ao pagamento da tarifa perante o organismo competente, mas antes prever os mecanismos contratuais entre as duas entidades privadas de forma a preservar o encargo fiscal para o Produtor no momento da celebração do CAE e, assim, minimizar o impacto de reformas fiscais sobre a Tejo Energia.
292. O Painel Financeiro considerou, portanto, que a verdadeira finalidade da Cláusula 20.ª é estabelecer mecanismos contratuais entre duas entidades privadas para preservar o encargo fiscal do Produtor como era à época da assinatura do CAE.
293. A esse respeito, as Requeridas estavam plenamente cientes dos termos do CAE quando se tornaram partes do mesmo. Embora algumas cláusulas do CAE tenham sido alteradas aquando da sua integração no contrato, a Cláusula 20.ª permaneceu inalterada. As Requeridas, portanto, aderiram à Cláusula 20.ª por vontade própria.
294. O Tribunal indefere, portanto, a objeção das Requeridas e entende que a Cláusula 20.ª é oponível às Requeridas.”
Portanto, lida a decisão arbitral verifica-se o seguinte:
- O tribunal arbitral ponderou a argumentação aduzida pelas requeridas no sentido de a Cláusula 20. dever ser entendida como uma cláusula de estabilidade fiscal[70], argumentação a que fez expressa referência no texto da sua decisão;
- E nesse segmento considerou que, visando com essa argumentação impedir a aplicabilidade da Cláusula 20. ao presente litígio, entendeu que essa questão – ou seja, a da aplicabilidade da Cláusula 20. do CAE - já fora decidida por unanimidade pelo Painel Financeiro, que decidiu que “a Cláusula 20.ª do CAE será considerada válida e aplicável”;
- Considerou também que a mencionada objecção tinha sido apresentada ao Painel Financeiro, que a descreveu, mas concluiu que a Cláusula 20. era aplicável, o que implica que rejeitou esse argumento;
- Mais decidiu o Painel Financeiro que a finalidade da Cláusula 20. era prever os mecanismos contratuais entre as duas entidades privadas, de modo a preservar o encargo fiscal para o produtor no momento da celebração do CAE;
- Concluiu que o Tribunal não estava autorizado a reabrir assuntos que foram decididos por unanimidade pelo Painel Financeiro. A maioria deste Tribunal já considerou que esta decisão é unânime e, como tal, final e vinculativa.
Retira-se desta argumentação que o Tribunal arbitral considerou que, tendo o Painel Financeiro descrito todas as objecções suscitadas pelas requeridas quanto à aplicabilidade da Cláusula 20., designadamente a sua natureza de cláusula de estabilidade, tal não impediu a sua conclusão de que tal Cláusula era válida e aplicável às partes, para além de que identificou a sua finalidade como sendo a de prever os mecanismos contratuais para preservar o encargo fiscal que recaía sobre o produtor à data da celebração do CAE, o que significa que a questão foi considerada e tratada no âmbito da aplicabilidade da Cláusula, e foi respondida, de forma unânime, no sentido positivo. Assim, o tribunal concluiu que não tinha competência para se pronunciar sobre uma questão que já fora decidida de forma unânime pelo Painel Financeiro.
Em consonância, parece seguro que, diversamente do sustentado pelas demandantes, o tribunal arbitral teve presente a questão que lhe foi apresentada, mas concluiu que dela não podia tomar conhecimento por já ter sido decidida de modo unânime pelo Painel Financeiro. Independentemente da correcção ou incorrecção do entendimento assumido pelo tribunal arbitral, seguro é que não se está perante uma omissão de pronúncia, por estar em causa um assunto que o tribunal considerou que não podia abordar.
Não se trata, pois, de uma omissão de pronúncia mas, pelo contrário, de uma discordância das autoras relativamente àquilo que foi decidido pelo tribunal arbitral, sendo certo que nesta acção de anulação de decisão arbitral não compete a esta Relação reapreciar o mérito da causa, tanto mais que a sentença arbitral se caracteriza pela sua definitividade, o que significa que não pode ser revogada ou alterada através de recurso ordinário para os tribunais estaduais ou para outra instância arbitral, sem prejuízo da possibilidade de controlo numa acção tendente à sua anulação – cf. António Sampaio Caramelo, op. cit., pág. 8, nota 3.
Assim, as partes podem discordar do entendimento do tribunal arbitral quanto à abordagem da questão da natureza da Cláusula 20. do CAE como cláusula de estabilidade e do seu efectivo conhecimento ou não pelo Painel Financeiro, mas isso não significa que tenha existido uma omissão de pronúncia.
Por outro lado, também não colhe o argumento de que, a existir um vício de falta de fundamentação quanto a essa matéria por parte do Painel Financeiro, estava o tribunal arbitral obrigado a conhecer a sua conformidade com a lei e a ordem pública, pois que os padrões de fundamentação de decisões arbitrais e, por maioria de razão, de decisões proferidas por técnicos a quem as partes não conferiram a qualidade de árbitros (como sucede no caso quanto aos elementos do Painel Financeiro), não são idênticos àqueles a que estão sujeitos os juízes, não estando os árbitros obrigados a seguir ou a responder a todos os argumentos das partes, “sendo suficiente a existência de uma relação lógica entre os fundamentos e a decisão” – cf. António Caramelo Sampaio, op. cit., pág. 93.
Como tal, tendo presente os argumentos aduzidos pelo tribunal arbitral para considerar questão decidida a atinente à natureza da Cláusula 20. como cláusula de estabilidade fiscal e as passagens da decisão do Painel Financeiro a que se reportou, não se constata a apontada ausência de fundamentação e, por isso, não é de admitir que o tribunal arbitral estivesse obrigado a detectar e sancionar essa alegada falta, pois que a questão não deixou de ser mencionada e, ainda que incluída na ponderação de outros argumentos (como o da obrigatoriedade do regime de alocação de custos previsto no DL Tarifa Social), não conduziu ao afastamento da aplicabilidade da Cláusula 20. do CAE.
Improcede, assim, também este fundamento de anulação da decisão arbitral, não se detectando qualquer um dos vícios de omissão de pronúncia identificados pelas autoras.
*
B - O processo arbitral não foi conforme com a convenção das partes e com a LAV – artigo 46.º, n.º 3, alínea a), subalínea iv), da LAV
i. O Tribunal Arbitral não fundamentou a sua decisão no Direito constituído e decidiu por equidade
ii. A não aplicação do Direito constituído teve influência decisiva na resolução do litígio
a) A aplicação das regras, princípios e actos administrativos de Direito público conduziria necessariamente à absolvição das autoras do pedido
Alegam as autoras que, de acordo com a Cláusula 25. do CAE, as partes escolheram o Direito português como o Direito aplicável ao mérito da causa, impondo o art.º 39º, n.º 1 da LAV que os árbitros decidam segundo o Direito constituído, salvo se as partes, por acordo, determinarem o julgamento por equidade, sendo que o tribunal arbitral não fundamentou a sua decisão em regras e princípios vigentes na ordem jurídica portuguesa, quer no que diz respeito à incidência da conformação jurídico-administrativa da relação contratual sobre a resolução do litígio, quer quanto à interpretação do contrato, decidindo sobre a definição de “Imposto Relevante” com base apenas na letra do CAE e, quanto à necessidade de autorização prévia da ERSE e da DGEG para alteração deste, afirmando que eram questões já tratadas pelo Painel Financeiro, cuja decisão não tem natureza jurisdicional, pelo que se tratou de uma decisão à margem do Direito constituído, com base nas circunstâncias do caso concreto, ou seja, uma decisão de equidade, sem ter efectuado qualquer controlo sobre o conteúdo das decisões do Painel, corporizando uma violação do direito fundamental de acesso à justiça e uma não aplicação do Direito constituído, o que teve influência decisiva na resolução do litígio, pois que a decisão é incompatível com os princípios e actos administrativos de Direito público aplicáveis e com as normas sobre interpretação dos negócios jurídicos.
Sustentam ainda que a aplicação das regras, princípios e actos administrativos de Direito público conduziria à sua absolvição, referindo, em primeiro lugar, que o CAE está funcionalizado à prossecução do interesse público, estando submetido a vinculações regulatórias que condicionam a autonomia contratual das partes, pela seguinte ordem de razões:
- Os direitos e obrigações das partes não podem ser analisados sem se atender à conexão dessa relação jurídica com os poderes públicos, porquanto o CAE, ainda que contrato privado, integra a estrutura organizatória do sector energético no ordenamento jurídico nacional e europeu, sofrendo a influência do Estado regulador e estando a conduta das partes modelada pelos instrumentos regulatórios que emanam das entidades incumbidas de supervisionar o mercado;
- Neste contexto, surgem as obrigações de serviço público, com vista a salvaguardar os interesses públicos, cuja satisfação não pode ficar sujeita ao funcionamento livre das forças do mercado;
- Assim, o conteúdo do CAE pode ser afectado, comprimido, ou modificado devido a influências legislativas, regulamentares ou decisões administrativas externas, sendo que a remissão para o Direito constituído não pode deixar de abranger todas as normas legais e regulamentares, mas também os actos administrativos vinculativos aplicáveis;
- Os CAE são essenciais para a segurança do abastecimento de electricidade ao país, conforme decorre do DL 182/95, de 27 de Julho e sofrem as alterações resultantes de opções políticas, como decorre do preâmbulo do DL 185/2003, de 20 de Agosto, do DL 29/2006, de 15 de Fevereiro, que estabeleceu as novas bases gerais da organização e funcionamento do SEN e do DL 172/2006, de 23 de Agosto e intervenção do regulador;
- A ERSE, criada pelo DL 187/95, de 27 de Julho, enquanto regulador do SEP, tem visto os seus poderes sobre o sector eléctrico sucessivamente reforçados, tal como também resulta da Directiva (UE) 2019/944117, dedicada às entidades reguladoras do sector da electricidade, que, com vista à harmonização das regras comuns para o mercado interno da electricidade, impõe aos Estados-membros obrigações de dotar as entidades reguladoras de meios que garantam a sua autonomia e intervenção nos mercados;
- Sendo este o ambiente legislativo e regulatório em que o CAE devia ser executado, nem a ré, nem o Tribunal arbitral poderiam ignorar que os intervenientes do SEN estão sujeitos a obrigações de serviço público, entre elas a segurança, a regularidade e a qualidade do abastecimento, tal como resulta também do DL 15/2022, de 14 de Janeiro, que introduziu a última alteração à organização e funcionamento do SEN.
Daí que:
- A intervenção pública revelou-se com a cessação dos contratos de aquisição de energia em vigor, uma vez que a concretização do mercado interno europeu da energia impunha que a actividade de produção de electricidade fosse exercida em regime de mercado e livre concorrência, com o estabelecimento de medidas compensatórias, sendo que dois dos centros electroprodutores afectados – as centrais do Pego (em causa no presente processo) e a da Tapada do Outeiro -, se recusaram a fazê-lo e negociaram um regime transitório de excepção, que foi acertado com o Estado, devendo o CAE obedecer ao regime do DL 185/2003, de 20 de Agosto;
- Foi criado um mecanismo de repercussão tarifária que assegura a devolução ao SEN de todos os custos e proveitos decorrentes da compra e venda de electricidade ao abrigo do CAE, garantindo que esses custos/proveitos não são internalizados pela autora REN Trading, entidade encarregue da compra e venda da electricidade à ré, que ficou numa posição sui generis, assumindo funções meramente instrumentais, comprando (aos produtores titulares de contratos de aquisição de energia não cessados) e vendendo (em mercado organizado ou mediante contratos bilaterais previamente aprovados pela ERSE) electricidade, sem ter a possibilidade de exercer esta actividade visando o lucro, pois que a margem de remuneração que pode manter para si é a fixada pela ERSE e limitada exclusivamente ao valor necessário a fazer face aos custos da sua actividade;
- Assim, o regime introduzido modificou o CAE, impondo “a internalização das remunerações garantidas ao abrigo dos CAEs no regime tarifário do setor elétrico”;
- A aprovação do DL Tarifa Social também o modificou, porque os consumidores economicamente vulneráveis passaram a beneficiar de um desconto na sua factura de electricidade, cujo valor é calculado pela ERSE, que deve ser financiado pelos titulares de centros electroprodutores em regime ordinário, como é o caso da ré, na proporção da potência instalada de cada centro electroprodutor, conforme Regulamento Tarifário aprovado pela ERSE, recaindo assim sobre a ré o cumprimento dessa obrigação de serviço público de financiamento do desconto de que os consumidores vulneráveis são beneficiários;
- Trata-se de uma técnica regulatória de protecção, no contexto do regime geral de livre concorrência, para assegurar um serviço universal, em que se teve em conta que os CAE beneficiam de remunerações garantidas, designadamente através da remuneração pela garantia de potência, que visa compensar os produtores em regime ordinário pelos chamados ‘custos ociosos’, que são financiados por todos os consumidores através da TUGS, e por isso o art.º 4º, n.º 1 do DL Tarifa Social, “modifica imperativamente o equilíbrio das relações contratuais entre as partes, implicando, designadamente, que a cláusula 20.ª do contrato só possa atuar dentro dos limites resultantes deste regime legal”, impossibilitando a repassagem desses custos para qualquer outro sujeito do sistema eléctrico, como é o caso das autoras, por “indisponibilidade do exercício dos direitos das partes na relação contratual”, para além do que as actividades desenvolvidas pelas autoras são reguladas, sendo obrigatório que a REN Trading tenha uma posição de neutralidade económica, não podendo assumir quaisquer encargos que não sejam repassados para as tarifas, até porque não tem capacidade para o fazer, porque não gera lucro;
- O CAE sofre a influência da regulação pública e quando a ERSE exerce as suas competências, modifica reflexamente o seu conteúdo, tendo esta entendido, no caso da tarifa social, em conformidade com o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, homologado pelo Secretário de Estado da Energia, que os custos correspondentes ao financiamento da Tarifa Social não podem ser transferidos para as tarifas do sector eléctrico, pelo que a homologação do parecer e o acto da ERSE, enquanto actos administrativos, afectam a posição jurídica da ré, que os não impugnou oportunamente e constituem caso decidido, e que o Tribunal arbitral estava obrigado a ter em conta, aplicando o Direito constituído;
- O Tribunal Arbitral ignorou também regras e decisões de Direito da União Europeia, a que estava vinculado, pois que a autora REN Eléctrica, enquanto ORT, tem de ser certificada para tal e no processo de certificação foi determinado que a REN Trading não poderia operar em condições normais de mercado, sendo a sua actividade objecto de regulação directa pela ERSE, nomeadamente quanto à questão da repercussão dos custos de gestão do CAE nas tarifas, de modo a garantir a separação de actividades de transporte e comercialização de electricidade, não podendo admitir-se que a REN Trading suporte os custos com o financiamento da Tarifa Social, por via de uma alteração ao CAE, o que violaria a decisão da Comissão Europeia;
- Se a REN Trading reconhecer a sua incapacidade financeira para fazer face ao custo da tarifa social, será forçada a recorrer ao regime da insolvência e não poderá desempenhar o papel para que foi criada, sendo então a REN Eléctrica, como responsável solidária, a assegurar o pagamento, o que conduziria à infracção do princípio do Direito da Energia da União Europeia de separação de actividades, pois que o ORT suportaria um encargo originado por uma actividade de comercialização;
- Por tudo isto, concluem as autoras, as regras, princípios e actos administrativos que conformam a relação contratual controvertida são incompatíveis com o reembolso da tarifa social e, por conseguinte, a sua aplicação conduziria necessariamente à absolvição da REN Eléctrica e da REN Trading dos pedidos formulados pela Tejo Energia e a não aplicação do Direito europeu e interno vigente na ordem jurídica portuguesa pelo tribunal arbitral teve influência decisiva na resolução do litígio.
Por sua vez, a ré vem reiterar que o Tribunal Arbitral não podia proceder ao controlo da legalidade das decisões do Painel Financeiro e não deixou de aplicar o Direito constituído ao observar as normas legais e as emergentes do CAE, não podendo deixar de respeitar as decisões do Painel Financeiro nem reabrir as questões da funcionalização do CAE ao interesse público, a sua modificação pelo DL Tarifa Social e pelas decisões da ERSE relativas à impossibilidade de repercussão dos custos incorridos com a Tarifa Social e a necessidade de autorização prévia da ERSE e da DGEG para alteração do CAE, já decididas por aquele Painel.
Refere ainda a ré que as autoras, com esta argumentação relativa às regras aplicáveis, não pretendem sindicar a validade da decisão, mas sim uma revisão de mérito, revelando a sua discordância com a decisão de que o CAE não se alterou ou cessou apesar da evolução legislativa e com a interpretação que o tribunal arbitral fez do contrato e do enquadramento legislativo, alegação que remete para um erro de julgamento e não para um qualquer incumprimento da convenção das partes quanto ao Direito aplicável, não sendo aquele passível de apreciação nesta sede.
De todo o modo, acrescenta, a CRP impõe ao legislador um dever de respeito pelos contratos administrativos anteriormente celebrados (cf. art.º 105º) e se o Estado não pode alterar unilateralmente, por via de lei, os contratos celebrados entre ele próprio e os particulares, por maioria de razão, também não poderá alterar unilateralmente os contratos vigentes entre entes privados, como é o caso do CAE, sendo que o respeito, no plano externo, pela lei vigente, não impede que se extraiam consequências no âmbito da execução do contrato, circunscritas ao domínio das suas relações internas, tendo sucedido, aliás, até ao presente litígio, que a ré pagava os custos do mecanismo de financiamento facturados pela REN Eléctrica e a REN Trading os reembolsava, pelo que o dever de respeito pela lei não pode equivaler a desconsiderar as obrigações contratuais perante a contraparte privada, de onde resulta que o DL Tarifa Social não implicou qualquer alteração ou modificação do CAE, nem impede a sua aplicação nos termos afirmados na sentença arbitral, que, ao contrário do sustentado pelas autoras, aplicou o Direito constituído.
Quanto aos pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República[71] menciona a ré que são restritos a matéria de legalidade, podendo ser utilizados como meios acessórios de interpretação da lei, mas apenas são vinculativos para os serviços ministeriais, não estando os tribunais vinculados ao seu sentido interpretativo, nem os particulares obrigados a aderir ao seu conteúdo, pelo que, para além de procederem a uma interpretação oficial para o Secretário de Estado da Energia decorrente da sua homologação, estando em causa a interpretação, a validade ou a execução de contratos, não reveste carácter obrigatório, tal como se retira, para os contratos administrativos, do disposto no art.º 307º, n.º 1 do CCP, não podendo interferir na esfera intersubjectiva do CAE, tal como, aliás, entendeu o tribunal arbitral, o que significa que este não ignorou a existência dessas manifestações de ius imperii, apenas tendo concluído que, em concreto, não se repercutiam na questão a apreciar.
Diz ainda a ré que as autoras concluem que a REN Trading não dispõe de fundos suficientes para cumprir o CAE e que se a REN Eléctrica viesse a suportar tais custos, violaria a decisão da sua certificação como ORT, violando o princípio de separação de actividades, sem explicar por que razão a decisão de certificação como ORT vincularia a ré, ou porque é que essa certificação poderia implicar a modificação de um regime contratual acordado entre as partes, tanto mais que nela se reconheceu a manutenção do CAE, sendo tal decisão irrelevante para o caso.
Decidindo
De acordo com o disposto no art.º 39º, n.º 1 da LAV, “os árbitros julgam segundo o direito constituído, a menos que as partes determinem, por acordo, que julguem segundo a equidade”, norma que visa o Direito aplicável ao fundo da causa, pois que quanto às regras processuais já estão na disponibilidade das partes, por força do disposto no art.º 30º, n.º 2 da LAV - cf. neste sentido, António Menezes Cordeiro, Tratado…, pág. 360[72].
Julgar segundo o Direito constituído, significa decidir de acordo com “parâmetros jurídico-científicos, por oposição a decisões aleatórias, sentimentais, distributivas ou improvisadas”, ou seja, decidir de acordo com a Ciência do Direito. E o Direito constituído é o Direito estrito, por oposição à equidade; o Direito substantivo (civil, comercial ou administrativo), por oposição a Direito processual; o Direito vigente, ex lege ou ex contractu, por oposição a Direito a constituir ou a direito constituído pelos árbitros; Direito competente por, para ele, haver uma remissão válida, abrangendo a lei, diplomas privados, o costume, os usos, a jurisprudência e a doutrina - cf. neste sentido, António Menezes Cordeiro, Tratado…, pág. 361.
A equidade, pelo contrário, tem que ver com a vertente individualizadora da justiça, em que o julgador, ao decidir, terá presente o problema do caso concreto que lhe é apresentado, sem cuidar de ponderar a necessidade de, no futuro, ter de decidir outras questões do mesmo modo, podendo partir da lei positiva para corrigir injustiças ocasionadas pela natureza rígida das normas abstractas, aquando da aplicação concreta (equidade fraca) ou prescindir do Direito estrito e procurar soluções baseadas na justiça do caso concreto (equidade forte).
As alíneas a) e b) do n.º 3 do art.º 46º da LAV enunciam os fundamentos de anulação da decisão arbitral, que são taxativos, sendo os da alínea a) aqueles que carecem de ser invocados e provados pelas partes e os da alínea b), os que o tribunal estadual pode conhecer oficiosamente, sem alegação ou prova pelas partes.
Na subalínea iv) da alínea a) do n.º 3 do art.º 46º da LAV, prevê-se como fundamento de anulação da sentença arbitral o processo arbitral não ter sido conforme com a convenção das partes[73] e que essa desconformidade tenha tido influência decisiva na resolução do litígio.
A escolha da lei aplicável ao mérito da causa integra o acordo das partes relativo ao processo arbitral, devendo aceitar-se que, tal como sucede no âmbito do reconhecimento de decisão arbitral estrangeira, em que a inobservância de preceitos processuais constitui fundamento de recusa de reconhecimento (cf. art.º 56º, n.º 1, a), iv) da LAV), também essa consequência se verifique relativamente à violação da convenção sobre o direito aplicável ao fundo da causa, que se apresenta como mais grave, daí que a violação desse acordo releve também em sede de anulação da decisão arbitral.
Assim, tal como sucede com a desaplicação da lei escolhida pelas partes para reger o fundo da causa, a decisão segundo a equidade proferida pelos árbitros que não tenham recebido das partes poderes para tanto, constitui fundamento de anulação da decisão arbitral, nos termos do art.º 46º, n.º 3, a), iv) da LAV – cf. António Sampaio Caramelo, op. cit., pág. 70.
Impõe-se, contudo, para tanto, que a parte que formula o pedido demonstre que essa desconformidade teve influência decisiva na resolução do litígio.
Considerando que a existência de um “nexo causal” entre a desconformidade invocada e a solução dada ao litígio pela sentença impugnada faz recair sobre a parte impugnante um ónus de prova de difícil concretização, António Sampaio Caramelo, defende que essa restrição deve ser interpretada no sentido de se reportar a uma desconformidade que “presumivelmente” tenha afectado a resolução do litígio – cf. op. cit., pág. 73.
Em sentido contrário, António Menezes Cordeiro sustenta que para tanto não basta “uma influência potencial”, pois que a se entender desse modo, qualquer violação geraria a anulação da decisão arbitral, o que parece transcender a letra da lei, havendo, pois, que averiguar se, suprimindo a falta, a decisão teria sido diversa - cf. Tratado…, pág. 441.
As autoras visam, assim, alcançar a anulação da decisão arbitral com o fundamento de que, tendo as partes seleccionado o Direito português como o Direito aplicável ao mérito do litígio, o Tribunal arbitral estava obrigado a decidir com base no Direito constituído, não o tendo feito, pois que se limitou a atender à letra do contrato e, por outro lado, se absteve de apreciar argumentos atinentes à necessidade de autorização prévia das entidades reguladoras para se alcançar uma modificação do CAE, o que equivale a uma decisão com base na equidade, cingida às circunstâncias do caso concreto, impondo-se, na sua visão e pelo contrário, a aplicação de regras e princípios de Direito público, designadamente, a aplicação do DL Tarifa Social que impôs à ré a obrigação de financiamento dos custos com a tarifa social e, simultaneamente, a sujeição ao parecer do CCPGR e à decisão da ERSE, que, a terem sido atendidos, conduziriam a uma decisão no sentido de a REN Trading não poder suportar os custos desse financiamento e, consequentemente, não poder haver lugar à alteração do encargo de potência instalada, pois que a cláusula 20. do CAE só poderia actuar de acordo com os limites resultantes do regime legal decorrente da regulação do sector energético, impossibilitando a repassagem daqueles custos para qualquer outro sujeito do sistema eléctrico, como é o caso das autoras.
Importa reter que o Código Civil não define equidade, identificando no seu art.º 4 as situações em que os tribunais a ela podem recorrer e tem-na em conta em diversas situações – seja em casos de obrigações que apresentam dificuldades na sua quantificação abstracta ou em situações indemnizatórias e compensatórias -, em que o recurso à equidade permite a ponderação, em concreto, do circunstancialismo presente para a definição da situação. No entanto, o julgador não tem a liberdade de fixar o que entender, pois que nesses diversos casos, a lei determina as margens dentro das quais funcionará a equidade (cf., por exemplo, art.ºs 339º, n.º 2 e 494º do Código Civil).
Significa isto que, a equidade não confere uma margem de discricionariedade ilimitada, permanecendo posições jurídicas atribuídas por lei que devem ser respeitadas, sendo em função da finalidade prosseguida que se aferirá da possibilidade de desvios ad equitatem. Assim, “o Código Civil, quando remeta para a equidade, tem em vista situações dominadas pela vaguidade ou por certa indeterminação, numa situação que apenas in concreto pode ser superada”. De igual modo, no âmbito do Direito da arbitragem, quando, por remissão das partes, haja que julgar segundo a equidade, não se pretendeu uma solução casual ou arbitrária; as partes pretendem uma solução justa e para isso acabará sempre por se ter presente o Direito – cf. António Menezes Cordeiro, Tratado…, pág. 372.
“A decisão segundo a equidade é tomada à luz do Direito e de acordo com normas positivas estritas. Apenas será dispensada a aplicação de regras formais, somente necessárias em serviços públicos ou em tribunais do Estado.” – cf. António Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado, I – Parte Geral, CIDP, 2020, pág. 87.
É evidente, no caso em apreço, que as partes não autorizaram os árbitros a decidir segundo a equidade, tendo, pelo contrário, definido a lei portuguesa como a aplicável à solução do mérito do litígio – cf. cláusula 25. do CAE; ponto 18. dos factos provados.
Todavia, transcorrida a decisão arbitral impugnada não se descortina em que aspectos tenham os árbitros, de algum modo, invocado a justiça do caso concreto ou invocado poderes de equidade para, afastando-se das normas do Direito português, decidirem as questões que lhes foram colocadas pelas partes.
Pelo contrário, logo no § 127. da decisão deixaram claro que a lei aplicável à arbitragem é a lei portuguesa (ainda que com menção, por manifesto lapso, à Cláusula 26. do CAE).
Retome-se que uma das questões a decidir identificadas pelos árbitros foi a de saber se, sendo a Tarifa Social considerada Imposto Relevante, a requerente teria direito ao seu reembolso através da alteração do encargo de potência instalada, desde que comprovado o efeito relevante da Tarifa perante o futuro painel financeiro, tendo a decisão considerado e referenciado os diversos argumentos das partes, designadamente das requeridas, aqui autoras, com menção dos normativos legais que estas convocaram para considerar a natureza da Tarifa Social e a sua integração ou não na definição de Imposto Relevante – cf. §§ 130 a 196 da decisão arbitral.
Para o conhecimento dessas questões, o Tribunal arbitral baseou-se, é certo, no texto do contrato, aplicando as cláusulas que as partes nele consignaram e delas retirando as consequências que entendeu adequadas, face à obrigação que recaiu sobre a aqui ré quanto ao financiamento dos custos da Tarifa Social imposta pelo DL Tarifa Social e o seu enquadramento nas estatuições contratuais e mecanismos nelas previstos para reposição do equilíbrio contratual.
Ora, isso não significa que o Tribunal arbitral se tenha abstraído do Direito constituído aplicável, sendo certo que mesmo o eventual desprezo, segundo a tese das autoras, pelas normas de direito público e pela vinculação do CAE a decisões e actos administrativos, não equivaleria a uma não aplicação do Direito constituído, denotando tão-somente que o tribunal arbitral se terá cingido à análise do CAE, enquanto contrato celebrado entre entidades privadas, sujeito a regras de Direito privado, ainda que integrado num sector regulado.
Mas, mais do que isso, se se atentar na fundamentação aduzida pelo tribunal arbitral para justificar as conclusões a que chegou, torna-se claro que não deixou de ponderar os argumentos aduzidos pelas partes e de convocar os normativos legais por ela referenciados, como se pode constatar dos seguintes parágrafos da decisão, transcritos no ponto 41. dos factos provados:
- §§ 197, 198 e 203, onde se faz, neste último, alusão à necessidade de análise da “linguagem do CAE” para efeitos de enquadramento da definição de Imposto Relevante;
- §§ 204, 206 e 207, efectuando a análise da mencionada definição no confronto com as formas de tributação consagradas na CRP;
- §§ 210, 214, 218 e 219, onde se alude à obrigação de serviço público, tendo por referência o DL Tarifa Social e, bem assim, se afasta a relevância dos pareceres jurídicos do CCPGR e da ERSE, por terem tido em consideração interesses públicos;
- §§ 298 e 299, onde se aprecia a repercussão do DL 183/95, de 27 de Julho, designadamente do seu art.º 10º, que estatui sobre a modificação do contrato de vinculação por alteração relevante das características do centro electroprodutor, para concluir pelo afastamento da invocada necessidade de autorização prévia da ERSE e da DGEG para a introdução da alteração visada pela aqui ré.
Não se vê, pois, como possa merecer acolhimento a alegação das autoras de que a decisão proferida foi uma decisão com base na equidade, quando o tribunal arbitral percorreu todos os argumentos invocados pelas demandadas, incluindo aqueles que assentavam na sujeição do CAE aos actos e decisões da entidade reguladora e, bem assim, ponderou a imposição de obrigações de serviço público e a prossecução de interesses públicos, ainda que afastando a sua relevância no caso.
Relativamente às questões não apreciadas pelo tribunal arbitral, por ter entendido que se tratava de questões já definitivamente decididas pelo Painel Financeiro, também não se configura qualquer desaplicação do Direito constituído, mas apenas a extracção das consequências previstas nas cláusulas do próprio CAE, quanto à matéria sujeita a arbitragem e em função do já decidido em sede de determinação do âmbito da competência do tribunal arbitral.
Assim, ao considerar que algumas questões – designadamente a aplicabilidade da Cláusula 20. do CAE – já tinham sido decididas por unanimidade pelo Painel Financeiro e que as objecções expostas pelas requeridas já tinham sido apresentadas ao Painel ou deveriam tê-lo sido, e que, por isso, não estava autorizado a reabrir esses assuntos, o Tribunal cingiu-se à matéria da sua competência, sem entrar na aplicação da lei substantiva, pelo que não se trata de uma situação de não aplicação do Direito constituído ou de uma decisão que abstrai deste e se orienta por critérios e circunstancialismos do caso concreto, não se inferindo daí que a decisão, tendo partido do direito estrito, tenha sido conformada para corresponder a um equilíbrio entre as partes e represente um resultado adaptado à especificidade concreta do caso ou que decorra de um maior empirismo e intuição.
Ademais, como refere o Professor Dario Moura Vicente no seu Parecer[74], o contrato vale como lei em relação aos contraentes e é essa lógica vinculativa que conduz a que apenas em situações excepcionais se admita a extinção ou modificação da relação contratual por vontade exclusiva de uma das partes. “Afirmando que o contrato deve ser pontualmente cumprido, a lei quer dizer que todas as cláusulas contratuais devem ser observados, que o contrato deve ser cumprido ponto por ponto, e não apenas que ele deve ser executado no prazo fixado” – cf. art.º 406º, n.º 1 do Código Civil; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4ª Edição Revista e Actualizada, pág. 373.
Ao decidir a questão que lhe foi colocada com referência ao clausulado do CAE, tal como foi estabelecido pelas partes, o tribunal arbitral observou o princípio da força vinculativa dos contratos e, por via disso, conformou-se com aquilo que resulta da lei positiva.
Aliás, tenha-se em conta que, como decorre do acima explanado a propósito da aferição da competência desta Relação para a apreciação deste litígio, as contrapartes actuais do CAE não são pessoas colectivas de direito público e apesar de a REN Eléctrica ser a concessionária do serviço público de operação da rede de transporte de electricidade, intervém no contrato como garante das obrigações da REN Trading, entidade que gere o negócio da aquisição e venda da energia, não actuando enquanto entidade dotada de poderes de autoridade ou como contraente público.
E se parece claro que não se pode obnubilar o facto de o CAE estar integrado no sector energético, que esteve durante muito tempo sujeito à intervenção do Estado, também não há que ignorar que surgiu, precisamente, no contexto inicial da liberalização do mercado energético, com a permissão da intervenção de entidades privadas em actividades não sujeitas a monopólio, o que originou o estabelecimento de relações jurídico-privadas reguladas em função da autonomia privada das partes, mas sujeitas a uma regulação de direito público.
Não obstante essas interferências, o CAE mantém-se enquanto contrato celebrado entre entidades privadas e, ainda que de contrato administrativo se tratasse (que já se viu não ser), sempre se teria de ter presente que o contrato emerge de um acordo de vontades reciprocamente aceite e tomado como juridicamente vinculativo para as partes, daí que nunca poderia o tribunal arbitral desatender ao clausulado nele vertido.
Com efeito, como refere Jorge André de Carvalho Barreira Alves Correia, a propósito dos contratos sobre o exercício de poderes públicos, a “obrigatoriedade jurídica é um elemento constitutivo do conceito de contrato, que representa, portanto, um ato negocial com força obrigatória para cada um dos contraentes – é a lex contractus. Significa isto que o contrato goza de efeitos jurídicos obrigatórios, engendrando, para uma ou mais das pessoas que nele tomam parte, obrigações de dar, de fazer ou não fazer. O não cumprimento dos vínculos jurídicos que provenham do mesmo confere, em certos termos, legitimidade a qualquer dos contraentes para deduzir pedidos que visem obter a efetivação da responsabilidade contratual e das indemnizações a que haja lugar por danos imputáveis ao incumprimento contratual” – cf. Contrato e Poder Público Administrativo - Sobre a Compatibilidade entre Contrato e Autoridade no Direito Administrativo – Em especial, O Problema do Contrato sobre o Exercício de Poderes Públicos, Volume I, pág. 635[75].
Assim, decidir com base na força vinculativa do contrato é ainda decidir de acordo com o Direito constituído.
Não se verifica, pois, que a decisão arbitral tenha sido proferida segundo a equidade.
Tendo-se concluído que não houve desconformidade do processo arbitral com a convenção das partes e com a LAV, porque o fundamento invocado pelas autoras era o da não fundamentação da decisão no Direito constituído, resulta prejudicada a necessidade de aferir se essa eventual desconformidade – não comprovada – teve influência decisiva na resolução do litígio.
De todo o modo, sempre se dirá que toda a argumentação expendida pelas autoras a propósito da funcionalização do CAE à prossecução do interesse público, com a sua submissão a vinculações regulatórias que afectam ou restringem a autonomia contratual das partes, estando estas sujeitas a obrigações de interesse público, sofrendo a imposição decorrente do DL Tarifa Social e consequente modificação reflexa no contrato e, bem assim, das decisões da ERSE, corporiza, como alerta a ré, não a demonstração de um desvio à aplicação do Direito constituído, com influência na decisão, mas antes uma discordância das autoras perante a decisão arbitral e os fundamentos invocados pelo tribunal para a esta chegar.
A sindicância do Estado sobre os juízos arbitrais é, como se referiu acima, de legalidade, não de mérito (com excepção do resultado – cf. art.º 46º, n.º 3, b), ii) da LAV), em que há que verificar a sua compatibilidade com os princípios, regras e valores fundamentais do ordenamento jurídico, conhecendo dos fundamentos de anulação da sentença arbitral invocados pelo autor.
Assim, esta Relação, ao decidir o pedido de anulação, julga uma questão nova que perante si é colocada e que é totalmente distinta da que foi julgada pelo tribunal arbitral, ou seja, a questão de saber se se verificam ou não fundamentos de nulidade da decisão arbitral. Ora, o julgamento desta nova questão não envolve o reexame do mérito.
Apreciar se o conteúdo do CAE foi afectado pelo DL Tarifa Social, pela circunstância de integrar o sector energético, cujos intervenientes estão sujeitos a obrigações de serviço público, devendo o produtor financiar o desconto a aplicar na tarifa dos consumidores vulneráveis, na proporção da potência instalada de cada centro electroprodutor, de modo que a imposição decorrente daquele diploma legal teria afectado o equilíbrio das relações contratuais entre as partes, implicando, designadamente, que a cláusula 20.ª do contrato só possa actuar dentro dos limites resultantes desse regime legal, ficando impedida a repassagem desses custos para qualquer outro sujeito do sistema eléctrico, como é o caso das autoras e, bem assim, ponderar se os pareceres do CCPGR e da ERSE são vinculativos para as partes corresponde, materialmente, a sindicar a decisão recorrida, sob a perspectiva da solução que esta deu ao litígio que lhe foi apresentado, porquanto o tribunal arbitral apreciou, precisamente, a possibilidade de aplicação da cláusula 20. do CAE e, em concreto, se a Tejo Energia poderia ou não obter a alteração do encargo de potência instalada, para garantir a manutenção da posição que tinha à data em que o CAE foi celebrado, para o que o tribunal não deixou de analisar, conforme se verificou, os argumentos expendidos pelas partes, sucedendo apenas que não subscreveu a posição das autoras, ali requeridas.
Improcede, assim, este concreto fundamento de anulação da decisão arbitral por desconformidade do processo arbitral com a convenção das partes.
*
b) A aplicação das regras legais em matéria de interpretação do contrato conduziria necessariamente à absolvição das Autoras do pedido
Argumentam também as autoras que o Tribunal não aplicou as regras vigentes no Direito português atinentes à interpretação contratual, previstas nos art.ºs 236.º a 238.º do Código Civil e a que estava obrigado e que se o tivesse feito tal teria conduzido à sua absolvição do pedido, pois que para saber se os custos incorridos com o financiamento da Tarifa Social poderiam ser considerados como um “Imposto Relevante” para efeitos da Cláusula 20. do CAE, de modo a permitir a alteração deste, teria o tribunal de ter partido da letra do contrato e da definição de “Imposto Relevante” que dele consta, de onde decorre que são apenas abrangidos os tributos, tal como entendidos na legislação e doutrina portuguesas à data da celebração do contrato, aí não se integrando os custos com o financiamento da Tarifa Social, que constituem uma obrigação de serviço público, pois se as partes quisessem divergir da noção legal de tributo teriam redigido uma cláusula que se reportasse a “quaisquer custos impostos por acto legislativo” ou fórmula similar, o que se afere pelo contexto da cláusula 1ª do contrato, onde se distingue “Change in the relevant taxes” de “Change in costs” resultantes de “Change in Law” (Cl. 1.ª e Apêndice 11 n.ºs 1.1 e 1.2), sendo claro que o primeiro não inclui o aumento de custos resultantes de alterações legislativas que não digam respeito ao sistema fiscal; concluem que o sentido literal e o contexto do CAE só admitem esta interpretação como possível, pelo que só esse significado poderia ser atribuído à expressão “relevant tax” utilizada no contrato e que permite maior equilíbrio das prestações, dado o financiamento ser assegurado aos produtores de energia por outras vias (remuneração pelo encargo de potência).
Referem ainda que a interpretação acolhida não tem o mínimo de correspondência verbal no texto do contrato, em violação do disposto no art.º 238º do Código Civil.
A demandada afasta essa conclusão referindo que se o Tribunal Arbitral não mencionou expressamente que estava a analisar o conceito contratual de Relevant Tax por referência ao Mecanismo de Financiamento com base nas regras da interpretação, seguro é que, em substância, o seu excurso interpretativo é precisamente o imposto pela lei portuguesa, aludindo à necessidade de analisar a linguagem do CAE, partindo do texto vertido na definição contratual e afastando a interpretação que dela foi efectuada pelas autoras por não encontrar suporte nos elementos relevantes, e por a expressão «Tributos Relevantes» corresponder a «todos os tipos de tributos, direitos de importação, direitos e deveres aduaneiros e fatores percentuais (“impostos”) imponíveis onde quer que seja, e quando quer que seja», por os termos literais utilizados pelas partes denotarem a intenção de deixar claro que todas as formas de tributação, ou seja, «todas as imposições governamentais» devem ser englobadas nessa definição e, como tal, consideradas Impostos Relevantes para fins do CAE, sendo que as excepções estão enumeradas na definição e se as partes pretendessem limitar as formas de tributação a taxas, impostos e contribuições assim o teriam feito expressamente, pelo que o tribunal, ao contrário do que sustentam as autoras, procurou encontrar o sentido que o declaratário comum (e as próprias partes à data da celebração do CAE) atribuiria ao clausulado em causa, socorrendo-se dos elementos literal, histórico e sistemático, como impõe a lei, o que não é afastado pelo facto de não ser feita menção expressa aos artigos do Código Civil, sendo que a questão ficou resolvida com base no critério normativo principal, não havendo que recorrer aos art.ºs 237º e 238º do Código Civil.
Refere também que as autoras apenas manifestam desacordo quanto ao modo como o Tribunal Arbitral interpretou o conceito de Relevant Taxes por referência à definição contratual da Cláusula 1.1 do CAE, o que não constitui um vício da decisão.
Decidindo
Nos termos do art.º 236º, n.º 2 do Código Civil a declaração negocial valerá de acordo com a vontade real do declarante, se esta for conhecida do declaratário; assim não sucedendo, a declaração valerá com o sentido que possa ser deduzido por um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele – cf. art. 236º, n.º 1 do Código Civil.
Nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto – cf. art. 238º, n.º 1 do Código Civil. Porém, esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade – cf. art. 238º, n.º 2.
“A interpretação nos negócios jurídicos é a actividade dirigida a fixar o sentido e alcance decisivo dos negócios, segundo as respectivas declarações integradoras. Trata-se de determinar o conteúdo das declarações de vontade e, consequentemente, os efeitos que o negócio visa produzir, em conformidade com tais declarações” – cf. Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição actualizada, pág. 444 e 445.
Deste modo e em face dos normativos acima referidos, o sentido das declarações negociais das partes será aquele que possa ser deduzido por um declaratário normal colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele, sem prejuízo de, conhecendo o declaratário a vontade real do declarante, ser de acordo com ela que vale a declaração emitida (trata-se da teoria da impressão do destinatário). Para esse efeito atender-se-á “ao real declaratário nas condições concretas em que se encontra e tomam-se em conta os elementos que ele conheceu efectivamente mais os que uma pessoa razoável, quer dizer, normalmente esclarecida, zelosa e sagaz, teria conhecido e figura-se que ele raciocinou sobre essas circunstâncias como o teria feito um declaratário razoável” – cf. Carlos Mota Pinto, op. cit., pág. 447.
No caso dos negócios formais a declaração valerá desde que tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso, salvo se sentido diverso corresponder à vontade real das partes.
Para efeitos de interpretação e fixação do sentido da declaração haverá que atender à letra do negócio, às circunstâncias de tempo, lugar e outras que precederam a sua celebração ou dela são contemporâneas, às negociações prévias, à finalidade prática visada pelas partes, ao próprio tipo negocial, à lei e aos usos e costumes por ela recebidos e ainda às precedentes relações negociais entre as partes.
Quando a interpretação conduza a um resultado duvidoso há que lançar mão do estatuído no art. 237º do Código Civil, de tal modo que nos negócios gratuitos prevalece o sentido menos gravoso para o disponente e, nos negócios onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.
De relevar que a interpretação não pode, também, deixar de atender à boa-fé e, neste contexto, existe a necessidade de “atender à globalidade do contrato, à totalidade do comportamento das partes – anterior ou posterior ao contrato -, à particularização das expressões verbais, ao princípio da conservação dos actos – o favor negotii – e, à primazia do fim do contrato. O declaratário normal, figura normativamente fixada, atenderá a todos estes vectores.” – cf. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 2000, pág. 553.
Tendo presentes estas regras da interpretação dos negócios não se pode deixar de divergir da argumentação aduzida pelas autoras para sustentar que o Tribunal arbitral não as aplicou naquela que foi a interpretação por si efectuada quanto aos termos do CAE e, em concreto, quanto ao alcance da definição de “Impostos Relevantes” para efeitos de aplicação da respectiva Cláusula 20ª.
Com efeito, se se atentar nos §§ 206 a 215 da decisão arbitral, reproduzidos no ponto 41. dos factos supra enunciados, verifica-se que o tribunal se dedicou, precisamente, a tentar fixar o sentido das cláusulas do contrato que relevavam para efeitos de apreciação da questão que importava decidir.
Para isso, atentou no respectivo texto, partindo da linguagem utilizada pelas partes, efectuando o enquadramento do negócio por avaliação do seu conjunto e dos termos literais nele utilizados, para chegar à conclusão que chegou, fixando o alcance da definição de “Impostos Relevantes”, que conduziu à inclusão nesse conceito dos custos reportados ao financiamento da tarifa social.
A circunstância de o tribunal não ter feito expressa alusão à aplicação dos normativos dos art.ºs 236º a 238º do Código Civil é despicienda face ao percurso efectuado, sendo evidente que foram os critérios interpretativos tal como fixados na lei portuguesa que foram seguidos e observados na decisão impugnada.
Evidente é também que a posição sustentada pelas demandantes nada tem que ver com uma eventual não aplicação do direito português na resolução do litígio submetido aos árbitros, mas sim com a discordância daquelas com a decisão proferida, o que é manifesto quando se atenta no conteúdo da argumentação, no segmento em que estas concluem que o sentido literal e o contexto do CAE não autorizam outra interpretação que não aquela que as próprias lhe conferem, por ser esse o que confere maior equilíbrio das prestações, ou seja, o que as autoras sustentam não é o desrespeito pelas regras da interpretação dos negócios, mas sim que a interpretação efectuada pelo tribunal arbitral está incorrecta e teria de ser outra, para além de afirmarem que não encontra um mínimo de correspondência verbal no texto do contrato.
Significa isto que as autoras não imputam exactamente à decisão uma vício, uma desconformidade com a convenção das partes quanto à lei aplicável, mas sim um eventual erro de julgamento, sendo que este, como decorre do anteriormente expendido, não constitui fundamento da acção de anulação de decisão arbitral – cf. realçando este ponto, Manuel Pereira Barrocas, Lei da Arbitragem Comentada, Almedina, 2013, pág. 169 apud acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-01-2018, processo n.º 927/17.0YRLSB-8 – “É muito importante observar, face aos fundamentos tipificados da acção de anulação e ao facto de não existir recurso da sentença arbitral para os tribunais estaduais, salvo quando as partes nisso tenham acordado expressamente (artigo 39º nº 4), que a interpretação ou aplicação erradas ou a não observância de uma norma legal, imperativa ou supletiva, não constitui, só por si, fundamento de anulação de uma sentença arbitral. Este efeito anulatório só pode ser obtido desde que seja pertinente e provado qualquer dos fundamentos previstos no artigo 46º número 3, e apenas este”.
Não se identifica, assim, qualquer motivo para considerar que a decisão impugnada se afastou daquela que foi a convenção das partes, nem deixou de aplicar as regras de interpretação vertidas nos normativos legais supra mencionados, pelo que não ocorre o apontado fundamento susceptível de determinar a anulação da decisão.
Improcede, também neste ponto, este concreto fundamento de anulação da decisão.
*
C - Ofensa dos princípios da ordem pública internacional do Estado Português – art.º 46º, n.º 3, alínea b), subalínea ii)
i. A sentença arbitral ofende as regras e princípios fundamentais de Direito Público
Sustentam as demandantes que a sentença arbitral é nula por o seu conteúdo ofender a ordem pública internacional do Estado português, princípio aplicável às decisões arbitrais, sejam internacionais ou internas, havendo que considerar no conceito de ordem pública internacional, para além do núcleo de regras e princípios imperativos do Direito português, as normas e princípios fundamentais de Direito Internacional, designadamente o Direito da UE, devendo o juiz verificar se a sentença, pelo resultado a que conduz, ofende algum princípio considerado como essencial pela ordem jurídica do foro, para o que poderá não bastar a análise do dispositivo da sentença desligado do raciocínio até ele percorrido pelo tribunal arbitral, devendo o tribunal examinar os factos relevantes do caso, a fundamentação da decisão, incluindo a interpretação do contrato feita pelos árbitros, o processo e as regras e princípios fundamentais vigentes na ordem jurídica do foro que possam ser relevantes para a ordem pública internacional e, enquanto causa de anulação da decisão, a actuação da ordem pública internacional dependerá “da intensidade dos laços que a situação apresenta com o Estado do foro”, o que implica que a ligação do resultado da sentença com este pode assumir maior ou menor relevância, sendo que, no caso, é intensa, pois que o litígio apenas tem contacto com o Estado português, sendo necessário um controlo mais rigoroso do que nos casos de arbitragem internacional sem elementos (ou com poucos elementos) de conexão com a nossa ordem jurídica.
A ré contrapõe que o conjunto de princípios e regras que integram a ordem pública tem um âmbito muito mais restrito do que o universo das normas imperativas dessa ordem jurídica, importando saber em que termos pode um Tribunal estadual proceder à análise da sentença e ao controlo da tolerabilidade, pelo ordenamento jurídico, do seu resultado, pois que a LAV não permite que, em sede anulatória, se proceda a uma revisão do mérito das sentenças arbitrais, no sentido de um novo julgamento das questões de facto e de Direito nelas apreciadas, mas permite em sede de apreciação do fundamento de anulação por violação da ordem pública internacional do Estado Português, um controlo efectivo, sob o ângulo da sua conformidade com os princípios fundamentais do Direito português; mais refere que no parecer do Prof. Luís Lima Pinheiro, junto pelas autoras, se subsume – erradamente – à ordem pública internacional um conjunto de normas que não têm dignidade constitucional, nem dimanam de tratados ou convenções internacionais ou qualquer outra fonte de direito internacional, para além do que o controlo que o juiz tem de fazer para aquilatar da ofensa da ordem pública internacional do Estado não se confunde com revisão, ou seja, o juiz não julga novamente o litígio para verificar se chegaria ao mesmo resultado, tendo apenas de verificar se a sentença, pelo resultado a que conduz, ofende algum princípio considerado como essencial pela ordem jurídica do foro, ainda que possa ser necessário atender ao raciocínio percorrido pelo tribunal; além disso, só releva “uma manifesta incompatibilidade com proposições fundamentais da ordem jurídica do Estado”.
Nos termos do disposto no art.º 46º, n.º 3, b), ii) da LAV, a sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se o tribunal verificar que o seu conteúdo ofende os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, composta por princípios mas também por “regras jurídicas” – cf. António Sampaio Caramelo, op. cit., pág. 120.
Dado que a norma não o distingue, a ofensa aos princípios da ordem pública internacional do Estado Português constitui fundamento de anulação tanto de sentenças proferidas em arbitragens internacionais como em arbitragens internas, como o é o caso da presente – cf. António Sampaio Caramelo, op. cit., pág. 116.
Há, contudo, que concretizar o conceito de ordem pública tendo em atenção o seu carácter indeterminado, abrangendo diversas realidades, nela se distinguindo, entre outras dimensões, a ordem pública interna, que reúne as regras injuntivas do ordenamento e abrange a ordem pública lata – normas de tipo público, subtraídas à livre disposição das partes; estrita – normas mais sensíveis, que os tribunais não podem deixar de aplicar; processual – regras de processo que não podem deixar de ser aplicadas; internacional – conjunto de princípios nacionais que vedam a aceitação interna de decisões estrangeiras, por contrariedade a valores muito significativos; europeia – princípios básicos da União Europeia.
A ordem pública interna constitui factor de restrição da autonomia privada, assente em normas jurídicas imperativas e princípios, ainda que não expressamente legislados, designadamente, em sede de bens de personalidade e que impedem, por exemplo, negócios que restrinjam a liberdade pessoal ou económica, sendo a ela que se refere a norma do art.º 280º, n.º 1 do Código Civil.
A ordem pública internacional reporta-se a determinadas leis que, pela sua natureza estritamente imperativa ou por razões éticas, funcionam como excepções ao princípio da aplicabilidade do Direito estrangeiro, que é afastada sempre que dele resulte ofensa para o núcleo indisponível nacional, estando prevista no art.º 22º do Código Civil – cf. António Menezes Cordeiro, Tratado da Arbitragem…, pp. 446-447.
A ordem pública internacional manifesta-se em concreto, ou seja, em face das consequências a que conduza a aplicação do Direito ou de sentenças estrangeiras, relevando o resultado e não os fundamentos da decisão, no momento em que o problema se coloca.
Os valores incluídos na ordem pública internacional remetem para duas áreas: a dos direitos fundamentais, que integram a ordem pública internacional quando constitucionalmente garantidos e as posições patrimoniais que sejam atingidas em termos de insuportabilidade.
António Menezes Cordeiro refere que a ordem pública internacional mencionada no art.º 46º, n.º 3, b), ii) da LAV, por referência a arbitragens internas, tem um conteúdo próprio e não equivalente à referida no art.º 22º CC e no art.º 980º, f) do CPC ou no 56º, n.º 1, b), ii) da referida LAV, identificando aquilo que designa de ordem pública internacional-interna, que, inserida na lei para sindicar o conteúdo de decisões internas, não equivale à usada para ponderar o resultado de decisões internacionais, para as quais se exige um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional - cf. art.ºs 54º e 56º, n. 1, b), ii) da LAV.
Conclui, assim, o referido autor que a ordem pública internacional referida no art.º 46º, n.º 3, b), ii) da LAV é menos exigente, ou seja, perante decisões internas basta que o conteúdo contrarie a ordem pública. – cf. Tratado da Arbitragem..., pág. 454.
Acrescenta ainda António Menezes Cordeiro, in Tratado da Arbitragem..., pág. 454:
“A o. p. internacional proprio sensu visa prevenir que, no espaço jurídico nacional, surjam elementos legitimados por ordenamentos estrangeiros, mas que contundam com dados estruturantes do sistema: respeito pela pessoa humana, pela igualdade, pela dignidade da mulher, pela segurança e bem-estar dos filhos e por dados básicos do património da pessoa. A o. p. “internacional-interna” pretende constatar se a decisão arbitral, assente no Direito e no ordenamento português, é reconhecida como axiologicamente jurídica. Além de todos os elementos que encontramos na internacional, a “internacional-interna” joga, ainda, com os princípios totalmente injuntivos, isto é: aqueles que se impõem e que não poderiam ser postergados pelo recurso a árbitros. O Estado não pode oferecer os seus Tribunais e as suas estruturas coercivas para fazer impor decisões contrárias a dados básicos do sistema. Digamos que a ordem pública internacional-interna fica próxima da ordem pública interna: dela só se distingue por ter, implícita, uma mensagem legislativa de só se recorrer a ela em casos substancialmente sérios.”
Integram a ordem pública “internacional-interna”: princípios processuais – todos os resultantes das subalíneas da alínea a) do n.º 3 do art.º 46º da LAV, desde que possam afectar a solução final e princípios substanciais, como os princípios humanos que defendem a igualdade, a dignidade da mulher, a segurança e o bem-estar dos filhos e, em geral, da família, diversos direitos fundamentais de personalidade; princípios patrimoniais, que vedam condenações expropriativas ou desproporcionadas e enriquecimentos arbitrários e princípios europeus acolhidos na ordem interna, com relevo para a defesa da concorrência, do consumidor, do estabelecimento e outros, desde que seja posto em crise o núcleo intangível desses princípios.
António Sampaio Caramelo, dando conta que, no seu entender, o conceito para que remete o art.º 46º, n.º 3, b), ii) da LAV é o de ordem pública internacional de direito material, entendida como um conceito integrado no de ordem pública de direito material, com um conteúdo mais restrito do que a “ordem pública interna”[76], porque as necessidades do comércio internacional impõem que, quando o litígio tem ligações com outras ordens jurídicas, o sistema jurídico do Estado da sede da arbitragem seja menos exigente na verificação da não contrariedade da sentença arbitral aos seus princípios basilares, determinando a anulação apenas quando sejam afrontados princípios estabelecidos para protecção de interesses e valores considerados absolutamente fundamentais e inderrogáveis e que distingue da excepção de ordem pública internacional[77], daí que não possa ser este o conceito a que se reporta aquela norma, pois que a maioria das sentenças arbitrais proferidas em Portugal abrangidas pela disposição terão aplicado Direito português, faltando a remissão para lei estrangeira, sustenta que a “ordem pública” a que alude a norma tanto pode ser a “ordem pública interna” como a “ordem pública internacional”, dependendo da natureza da relação litigiosa e do direito material seleccionado para a reger e refuta que estejam em causa unicamente princípios de ordem pública internacional[78], apontando, assim, a incorrecção da lei ao se referir a ordem pública internacional, incorrecção que associa ao intuito do legislador de dificultar a anulação baseada em ofensa à ordem pública, daí que tenha convocado para efeitos de aferição da validade da sentença o reduto normativo mais restrito da “ordem pública internacional” – cf. op. cit., pp. 147-170.
A decisão arbitral só deverá ser anulada por via da ofensa à ordem pública internacional quando conduza a um resultado intolerável e inassimilável pela nossa comunidade, por constituir uma grosseira violação do sentimento ético-jurídico dominante e dos interesses de primeira grandeza ou de princípios estruturantes da nossa ordem jurídica.
E ainda que o controlo incida sobre o resultado da decisão, seguro é que o tribunal não se pode abstrair totalmente da respectiva fundamentação, pois que se a lei de arbitragem determina o escrutínio das sentenças arbitrais no confronto com a ordem pública haverá que efectuar um controlo efectivo, não podendo o juiz limitar-se a um exame da parte dispositiva, desapegada da sua fundamentação, dado que será em face dos motivos da decisão e dos elementos do caso que se poderá concluir se a decisão constante do seu dispositivo ofende ou não a ordem pública.
Há, pois, que proceder ao exame do raciocínio seguido pelo árbitro, quer em sede de direito, quer no âmbito da matéria de facto, para apurar a sua influência sobre a aplicabilidade de um princípio ou regra de ordem pública, escrutinando o modo como o árbitro aplicou tais regras e princípios, confrontando a solução por ele acolhida com aquela que o juiz teria adoptado, examinando os efeitos decorrentes da aplicação das regras ou princípios da ordem pública no caso em apreço, sendo que a anulação da sentença arbitral apenas se justificará se a aplicação criada pela sentença arbitral colidir com os fins prosseguidos por aquelas regras ou princípios – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-04-2023, processo n.º 2093/21.8YRLSB-2 - “quando o juiz verifique o erro do árbitro deve, comparando a situação criada pela sentença arbitral com a que resultaria da correcta aplicação da regra ou princípio da ordem pública desaplicada pelo árbitro verificar se é grave a divergência detectada entre essas duas situações, à luz dos objectivos prosseguidos por tal norma ou princípios, pois só uma ofensa grave aos fins que aqueles prosseguem deve ser sancionada”.
Cumpre, porém, ter presente, como já acima referido, que “face aos fundamentos tipificados da acção de anulação e ao facto de não existir recurso da sentença arbitral para os tribunais estaduais, salvo quando as partes nisso tenham acordado expressamente (artigo 39º nº 4), […] a interpretação ou aplicação erradas ou a não observância de uma norma legal, imperativa ou supletiva, não constitui, só por si, fundamento de anulação de uma sentença arbitral. Este efeito anulatório só pode ser obtido desde que seja pertinente e provado qualquer dos fundamentos previstos no artigo 46º número 3, e apenas este” – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-01-2018, processo n.º 927/17.0YRLSB-8.
i. A sentença arbitral ofende as regras e princípios fundamentais de Direito Público
a) Viola obrigações de serviço público impostas aos Estados Membros com vista à protecção dos consumidores vulneráveis e o princípio da separação de poderes
Sustentam as autoras que os princípios regulatórios do sector energético integram o conceito de ordem pública internacional do Estado português, enquanto abrangidos pelos princípios fundamentais gerais decorrentes da Constituição e do Direito da UE, designadamente a obrigatoriedade de os Estados-membros assumirem obrigações de serviço público, entre as quais a protecção dos consumidores economicamente vulneráveis e o combate à pobreza energética, que emergem do Considerando 58 e do art.º 9º da Directiva 2019/944 (EU), do Parlamento Europeu e do Conselho de 5 de Junho de 2019, que alterou a Directiva 2012/27/UE, onde figura, precisamente, a introdução de uma tarifa social com o objectivo de proteger tais consumidores, de modo a que estes possam beneficiar de preços razoáveis de fornecimento de electricidade, tendo em conta o direito de acesso ao serviço essencial de fornecimento de energia eléctrica, iniciativa que se insere nas opções legislativas nacionais para a “construção do mercado interno de energia e à concretização do Mercado Ibérico da Electricidade (MIBEL), tendo em vista impulsionar a liberalização do sector energético nacional, num quadro de protecção dos consumidores”, radicando no enquadramento dado pela Directiva 2003/54/CE (cf. art.º 3º, n.º 5); mais referem que Portugal adoptou a tarifa social e definiu que o seu financiamento é assegurado pelos titulares de centros electroprodutores em regime ordinário, nomeadamente os beneficiários de incentivos relacionados com a garantia de potência, nos termos da Portaria n.º 765/2010, de 20 de Agosto, o que constitui uma concretização de um princípio constitucional com assento na ordem jurídica da UE e uma manifestação da ordem pública internacional do Estado português, que é posto em causa pelo resultado da sentença final, pois que, sendo a ré um centro electroprodutor em regime ordinário, apesar de ter recebido o referido benefício de garantia de potência, tem a possibilidade de transferir, por via contratual, os custos que lhe foram impostos por lei para uma outra entidade – a autora REN Trading – que não tem, e legalmente não pode ter, capacidade para suportar o encargo, pondo em causa, por sua vez, e por via da responsabilidade solidária existente com a REN Eléctrica, a certificação de que esta carece para exercer a actividade de ORT, afectando o funcionamento e organização do SEN, com violação do princípio da separação do poder legislativo do poder judicial, conforme consagrada na Constituição.
Mais referem que o resultado da decisão arbitral, levando a que o responsável pelo pagamento não o possa fazer e não podendo os encargos com a tarifa social ser suportados pelas autoras, conduzirá a que não haja quem os suporte, pelo que o consumidores vulneráveis dela não poderão beneficiar, o que é inadmissível à luz da lei nacional e do Direito europeu.
Acrescentam que a imputação dos custos com a Tarifa Social à autora REN Trading – e, em última instância, à autora REN Eléctrica - desrespeita os critérios definidos pelo TJUE, por não ser proporcional nem equilibrado impor tais custos à REN Trading, que não os pode repercutir nas tarifas e colocando em causa a certificação da REN Eléctrica como ORT, pelo que a medida de protecção torna-se desadequada por força da decisão arbitral, o que contraria também o disposto no art.º 28.º, n.º 1, da Directiva (UE) 2019/944, colocando em crise os princípios fundamentais do Direito da Energia, que integram a ordem pública internacional do Estado.
A ré, pelo contrário, defende que tais princípios não são violados, por um lado, porque não recebeu qualquer benefício de garantia de potência e não estaria a ser beneficiada duas vezes, por outro, porque não se pode afirmar que a REN Trading não tem ou não pode ter capacidade para suportar os custos com o mecanismo de financiamento ou que a assunção desse encargo coloque em causa a certificação da REN Eléctrica como ORT ou a separação de poderes, pois que a determinação do ente responsável pelo financiamento da Tarifa Social através do DL Tarifa Social é apenas relevante para a dimensão externa do CAE e não para as relações entre as partes, sendo que a decisão arbitral apenas cuidou desta dimensão interna, para além do que, entender de modo diverso da sentença impugnada, seria, então sim, alterar o contrato à revelia da vontade das partes e violaria o princípio da separação de poderes (legislativo e administrativo).
Mais aduz que os custos com o mecanismo de financiamento já tiveram lugar e o desconto já foi concedido aos consumidores, pelo que que não existe qualquer risco de perda desse benefício por parte destes, pois aquilo de que se trata não é sequer da repercussão do custo, mas sim do cumprimento do CAE pelas autoras, internalizando esse custo.
E adianta ainda que o mecanismo de financiamento não é uma obrigação de serviço público, ao contrário da Tarifa Social, pois as prestações pecuniárias em que se consubstancia o financiamento de obrigações de serviço público não são, elas próprias, obrigações de serviço público e o cumprimento pontual do CAE não coloca em causa a certificação da REN Eléctrica como ORT, para além do que, como refere o Professor Paulo Otero no seu parecer, determinar se os custos da tarifa social são suportados por x ou por y, sendo x e y partes de um contrato, não revela qualquer violação da separação de poderes e traduz-se ainda no exercício do poder judicial.
Decidindo
Retomando o conceito de ordem pública internacional a que se reporta a subalínea ii) da alínea b) do n.º 3 do art.º 46º da LAV, há que notar, tal como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1-10-2019, processo n.º 1254/17.9YRLSB.S1, que “em relação às arbitragens internas, em que, por regra, é aplicado o direito português, o sentido da norma parece claro: restringir a intervenção do conceito de ordem pública como fundamento de anulação das sentenças arbitrais”.
De igual modo, recorde-se que não é permitida a revisão de mérito das decisões arbitrais, pois, de contrário, seria colocada em crise a eficácia da arbitragem como meio de resolução extrajudicial de litígios – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-03-2023, processo n.º 2863/21.7YRLSB.S1 – “[…] quando o tribunal judicial tem de decidir se anula ou não a sentença arbitral impugnada, com fundamento na alegada ofensa da ordem pública internacional, está-lhe vedado proceder à revisão do mérito do litígio decidido pela sentença arbitral: cabe-lhe apenas verificar se o resultado material (ou seja, os efeitos jurídicos criados pela decisão arbitral nas esferas jurídicas das partes) da decisão proferida pelo tribunal arbitral é contrário às regras e princípios jurídicos que constituem a ordem pública internacional do Estado português. É o conteúdo da sentença arbitral que é controlado, mas é em função do seu resultado que ela deverá ser sancionada. Embora todo o raciocínio do árbitro deva poder ser examinado pelo juiz, o controlo deste deve incidir, não sobre esse raciocínio, mas sobre a solução dada ao litígio. O controlo do juiz sobre a sentença do árbitro deve ser efectuado com o preciso fim de apurar se a situação criada pela sentença arbitral ofendeu, concreta e gravemente, os objectivos prosseguidos pelas regras e princípios de ordem pública aplicáveis ao caso.”
A matéria do Direito da Energia está, naturalmente, sujeita a regulação do Estado, o que, porém, não significa que os princípios e regras que o conformam devam ser tidos como integrantes da ordem pública internacional do Estado português, enquanto não apenas conformadores da essência da organização social e económica vigente, mas como integrantes do sentido ético-jurídico da comunidade, ou seja, como princípio que todos os cidadãos tomam por essenciais à manutenção da ordem vigente na comunidade em que estão inseridos.
Num Estado de Direito como Estado de direitos fundamentais, guiado pelo primado da pessoa humana, a produção, distribuição e consumo de bens e serviços são suportados por uma economia livre ou de mercado, assente numa ideia de liberdade, económica e social, cabendo a cada um de per si, ou integrado em grupos primários, angariar os meios de subsistência e de realização pessoal, dando-se uma separação essencial entre a esfera da sociedade, suporte da existência e funcionamento de uma economia livre, decorrente da actuação livre de cada um e, de outro lado, a esfera de actuação do Estado, enquanto suporte da organização e funcionamento políticos da comunidade, que corresponda àquela esfera económica de mercado, de modo a intervir económica e socialmente para a necessária orientação dos sujeitos que actuam nessa sede.
Neste contexto, ao Estado[79] caberá o papel de regulação de modo a que a economia seja uma efectiva economia livre ou de mercado, procedendo à orientação do comportamento dos agentes económicos para a prossecução dos valores relevantes que o funcionamento livre do mercado não permitiria, por si só, atingir – cf. José Casalta Nabais e Natália Moreno, Estado fiscal e Estado regulador – uma relação fundacional do Estado de Direito[80], pp. 385-389.
O Estado regulador surge, precisamente, no contexto da retracção da intervenção directa do Estado na economia a partir dos processos de liberalização e privatização que tiveram lugar a partir dos anos oitenta do século passado, com a devolução ao mercado de diversas actividades anteriormente sujeitas a titularidade pública, remetendo-as ao mercado e à iniciativa privada. Como tal, o Estado regulador não é o proprietário dos bens e factores de produção, nem planifica, gere ou dirige a economia, revelando-se através de entidades reguladoras, dotadas de independência orgânica, funcional e técnica, com vista a assegurar a sua neutralidade relativamente aos poderes político e económico. Cabendo ao mercado a produção dos bens e serviços, bem como a distribuição primária dos rendimentos e activos correspondentes, o Estado regulador manifesta-se num quadro de economia capitalista de mercado livre e concorrencial.
O Estado regulador não é um Estado prestador e, em termos positivos, actua como protector do contexto de mercado em concorrência, e, para além de intervir como terceiro para suprir falhas de mercado, a regulação não se atém a critérios e fins económicos, mas com o objectivo de tutela do próprio mercado. “Constitui, pois, um imperativo jurídico, e não meramente político-ideológico, dever ser o mercado orientado para a consecução de valores e fins que transcendem os simples resultados economicamente considerados óptimos”, de tal modo que se a função reguladora pelo Estado se justifica em face da existência de falhas de mercado, para salvaguardar o seu funcionamento, “assenta também em razões e fins respeitantes à tutela de direitos fundamentais e à manutenção da solidariedade social” – cf. José Casalta Nabais e Natália Moreno, op. cit., pp. 392-394.
Mas se assim é, importa verificar de que modo a decisão arbitral e o resultado da sua execução interferirão com a manutenção do sistema regulador da energia e com o funcionamento do mercado a esse nível e, sobremaneira, se de algum modo os consumidores poderão ser negativamente afectados pelo que dela resulta.
Não há dúvida que a energia é hoje um domínio europeizado. A criação do mercado eléctrico europeu via cumprir três objectivos da política energética europeia: o abastecimento seguro e a preços competitivos; o cumprimento das metas ambientais e da política do clima e o aumento da eficiência energética – cf. Suzana Tavares da Silva, O Princípio da Sustentabilidade Económico e Financeira do Sistema Eléctrico Liberalizado sob Regulação Especial, pág. 93[81].
Ao nível europeu as regras comuns para o mercado interno da electricidade prosseguem, desde a Directiva 96/92/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Dezembro de 1996, a criação do mercado interno da electricidade, operacional e concorrencial, para o que constituíam obstáculos questões de acesso à rede, tarifação e diversidade de graus de abertura do mercado existentes nos Estados-Membros, reconhecendo-se que uma concorrência eficaz implica um acesso à rede não discriminatório, transparente e a preços justos[82], tendo a Directiva 2003/54/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de Junho de 2003 (que revogou a Directiva 96/92/CE) admitido que, para assegurar um acesso eficiente e não discriminatório às redes, é conveniente que as redes de distribuição e de transporte sejam exploradas por entidades juridicamente separadas nos casos em que existam empresas verticalmente integradas.
Além disso, previa-se no art.º 3º, n.º 5 da Directiva 2003/54/CE a adopção pelos Estados-Membros de medidas adequadas a proteger os clientes finais e, em especial, os clientes vulneráveis, incluindo medidas que os ajudem a evitar o corte da ligação.
A Directiva 2009/72/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Julho de 2009, revogou a Directiva 2003/54/CE, mas prosseguiu no aprofundamento do mercado interno de electricidade, enquanto elemento vital para o desenvolvimento da sociedade europeia, com a necessidade de os reguladores da energia tomarem as medidas adequadas para assegurar benefícios ao consumidor através da promoção de uma concorrência efectiva necessária ao correcto funcionamento do mercado interno da electricidade, e sempre com a protecção dos clientes vulneráveis, mediante a imposição às empresas do sector da electricidade, no interesse económico geral, de obrigações de serviço público (cf. art.º 3º, n.º 2).
A imposição de obrigações de serviço público às empresas do sector da electricidade, nomeadamente em matéria de regularidade e preço do fornecimento, manteve-se na legislação subsequente, designadamente no art.º 9º, n.º 2 da Directiva (UE) 2019/944 do Parlamento Europeu e do Conselho de 5 de Junho de 2019, relativa a regras comuns para o mercado interno da electricidade e que altera a Directiva 2012/27/UE (reformulação).
Foi neste contexto que surgiu o DL Tarifa Social, que veio criar a tarifa social de fornecimento de energia eléctrica a aplicar a clientes finais economicamente vulneráveis[83].
Nos termos do art.º 3º do DL Tarifa Social, esta é calculada mediante a aplicação de um desconto na tarifa de acesso às redes em baixa tensão normal, nos termos a definir no regulamento tarifário aplicável ao sector eléctrico, sendo o valor do desconto determinado pela entidade reguladora dos serviços energéticos (ERSE).
De acordo com o disposto no art.º 4º do referido diploma legal, o financiamento dos custos com a aplicação da tarifa social é suportado pelos titulares de centros electroprodutores em regime ordinário, na proporção da potência instalada de cada centro electroprodutor.
Trata-se da obrigação de pagar uma contribuição financeira que permite cobrir o custo da tarifa social, que consiste numa redução regulamentada da factura de consumo de electricidade que as empresas de comercialização são obrigadas a aplicar a determinados consumidores qualificados de «vulneráveis». O montante dessa redução corresponde à diferença entre o valor do preço voluntário da electricidade destinado aos pequenos consumidores e uma tarifa reduzida, denominada «tarifa de último recurso», fixada por uma autoridade pública.
O produto dessas contribuições será destinado exclusivamente ao financiamento da tarifa social, cujo custo determinará o montante total que terá de ser cobrado às empresas de electricidade que a devem assumir.
Sucede que esse mecanismo de financiamento, ainda que abrangido pela obrigação de serviço público consistente na tarifa social aplicada aos consumidores vulneráveis, pode ser distinguido desta última, como decorre do acórdão do TJUE mencionado pelas demandantes, onde se explica, precisamente, que “a obrigação de serviço público imposta pela tarifa social é composta por dois elementos que estão indissociavelmente ligados, a saber, por um lado, a redução do preço da energia elétrica fornecida a determinados consumidores vulneráveis e, por outro, a contribuição financeira destinada a cobrir o custo dessa redução de preço”.
Além disso, ali também se dá conta que, embora o regime de financiamento constitua um elemento indissociavelmente ligado à medida de intervenção sobre os preços, não afecta de forma autónoma os preços da electricidade. Mais do que isso, afirma-se, é a medida de intervenção sobre os preços, e não o referido regime de financiamento, que visa alcançar o objectivo de interesse económico geral à luz do qual importa verificar o respeito pelo princípio da proporcionalidade em função da evolução do sector da energia eléctrica – cf. parágrafo 57 do acórdão do Tribunal de Justiça (Quinta Secção), de 14 de Outubro de 2021, no Processo C‑683/19[84].
Assim, do que se trata no presente caso é de apurar, como bem realça a ré, quem deve internalizar, na economia do CAE celebrado entre as partes, os custos em que a Tejo Energia incorreu para financiamento da tarifa social, sem que daí decorra qualquer repercussão para a efectiva aplicação desta, nem qualquer afectação do desconto, que já foi, aliás, aplicado aos consumidores economicamente vulneráveis, tendo a ré cumprido a sua obrigação de contribuição para o custo da tarifa social.
Não se apura, assim, de que modo a aplicação da Cláusula 20. e a alteração do cálculo do encargo de potência instalada, de modo a contemplar os custos incorridos pela Tejo Energia com o financiamento da tarifa social, possam colocar em crise tal obrigação de serviço público, pois do que se trata é de, à luz do CAE e no âmbito das relações internas das partes, aferir a repercussão contratual do custo em que aquela incorreu com o mecanismo de financiamento do desconto aplicado na tarifa da electricidade dos consumidores vulneráveis, sendo certo que tal desconto já teve lugar.
Por outro lado, recordando que nem todas as violações de princípios de Direito público integram ofensas a princípios da ordem pública internacional do Estado português e que nesta se integram apenas princípios jurídicos fundamentais emergentes da consciência jurídica geral e princípios de Direito Internacional dotados de natureza de ius cogens, princípios constitucionais do Direito da União Europeia e princípios resultantes da Constituição portuguesa, com consagração expressa ou implícita no seu texto, não se vislumbra que, ainda que a decisão arbitral implicasse uma qualquer violação de obrigação de serviço público, tal violação corporizasse ou afectasse um princípio de ordem pública internacional do Estado português.
Na verdade, como refere o Professor Paulo Otero, no seu parecer de 27 de Setembro de 2023[85], ainda que esteja em causa um comando imperativo, emanado de norma da União Europeia e concretizado pelo legislador nacional, não tem assento constitucional, o que, por si só, indicia que tal imperativo não integra a ordem jurídica internacional do Estado português. Uma eventual violação da obrigação de serviço público – que, como se referiu, aqui não se detecta – conduziria, eventualmente, a que a decisão arbitral fosse contra legem, mas não autoriza a respectiva anulação por violação de um princípio de ordem pública internacional do Estado Português.
Já acima se mencionou o facto de o sector energético estar imbuído dos poderes regulatórios, concretamente atribuídos à ERSE, que visam assegurar a eficiência e a racionalidade das actividades de modo objectivo, transparente, não discriminatório e concorrencial, em linha com as Directivas supra mencionadas, com vista à criação e manutenção de um mercado interno da electricidade.
Uma das características essenciais do sistema eléctrico europeu é o dever de separação das actividades concorrenciais (produção e comercialização) e das actividades de rede (transporte e distribuição), impondo a EU - através, actualmente, da Directiva (UE) 2019/944 do Parlamento Europeu e do Conselho de 5 de Junho de 2019 relativa a regras comuns para o mercado interno da electricidade e que altera a Directiva 2012/27/UE (reformulação) - que os Estados-membros garantam a separação efectiva entre as redes e as actividades de produção e comercialização, não sendo os mesmos sujeitos a exercer controlo sobre uma empresa de produção ou de comercialização e simultaneamente sobre operadores de redes. Para assegurar que as actividades da rede e as actividades de comercialização e de produção na União se mantêm independentes umas das outras, as entidades reguladoras estão habilitadas a recusar a certificação aos operadores de redes de transporte que não cumprem as regras de separação – cf. Considerando (78) da referida Directiva e art.ºs 35º e seguintes e 43º e seguintes.
As autoras invocam, precisamente, como fundamento da anulação da decisão arbitral, a violação desse dever de separação, porquanto sendo o custo do financiamento da tarifa social suportado pela REN Trading e não podendo nem tendo esta capacidade para o suportar, teria de ser a REN Eléctrica, ORT certificado, a absorver tal custo, o que implicaria a perda dessa certificação, colocando em crise o funcionamento e organização do SEN e, além disso, não havendo quem suporte tais custos, por a REN Trading não os poder satisfazer, seriam atingidos os direitos dos clientes economicamente vulneráveis.
Ora, se é certo que o sector energético tem uma importância vital para os todos os consumidores, constituindo o fornecimento de energia uma necessidade de primeira ordem para as famílias e, para as empresas, as mais das vezes, uma componente do processo produtivo e, como tal, um factor de competitividade, revestindo, assim, enorme relevância na dinamização de múltiplos outros sectores da sociedade, para além do facto de o Direito da Energia, assumindo natureza estratégica no contexto dos serviços de interesse económico geral e implicando obrigações específicas de serviço público[86], levando a que a sua abertura à concorrência, designadamente da produção e da comercialização, conduza à regulação pública, com o contraponto da necessidade de reforço da protecção dos consumidores, certo é também que, não obstante a essencialidade do princípio da segurança do abastecimento do mercado eléctrico, não se vê que, em concreto, os princípios regulatórios convocados pelas autoras assumam relevância para a ordem pública internacional do Estado português, ou seja, que em face da consciência jurídica da comunidade integrem a essência dos princípios estruturantes do nosso Estado ou que assumam dignidade constitucional, ainda que estejam em causa interesses públicos tutelados através dessas disposições legais, enquanto normas internacionalmente imperativas ou de aplicação imediata.
Na verdade, a organização do mercado da energia poderia efectuar-se de outro modo ou em obediência a princípios distintos, sem que daí decorresse uma modificação daquela que é a consciência jurídica nacional ou a identificação dos valores que o Estado português reconhece como sendo absolutamente não postergáveis, seja em termos de direitos de personalidade, seja em termos patrimoniais.
Acresce que, ainda que assim se não entendesse, sempre se teria de acompanhar o Professor Dario Moura Vicente, no seu parecer de Setembro de 2023[87], quando refere que a aferição sobre a ocorrência da violação dos princípios e regras convocados pelas demandantes implicaria uma revisão de mérito da sentença, porquanto nenhum dos factos apurados permite constatar a afirmação de que a REN Trading não tem capacidade para suportar o encargo resultante da transferência para si do acréscimo de custos em que a Tejo Energia incorreu, o que conduziria a que os consumidores vulneráveis não poderiam beneficiar da tarifa social (tanto mais que, como se referiu, esse desconto já foi concedido, tratando-se apenas de aplicar, inter partes, as cláusulas contratuais), assim como nada se apurou quanto a uma eventual afectação da racionalidade e eficiência do sector eléctrico.
Ademais, na própria decisão da ERSE, de Setembro de 2014, sobre a certificação do operador da rede nacional de transporte de electricidade, a realidade emergente dos CAE foi salvaguardada, dando-se ali nota de que a REN Trading gere os dois CAE que não foram objecto de cessação antecipada ao abrigo do DL 240/2004, de 27 de Dezembro, cabendo-lhe revender no mercado grossita a energia eléctrica produzida pelas centrais enquadradas nesses CAE e pagar essa energia aos proprietários, com base nos custos definidos nos respectivos contratos (estabelecidos, é certo, num momento histórico anterior ao Unbundling da actividade de transporte face à actividade de produção), tendo aquela sido constituída precisamente para assegurar a satisfação das obrigações contratuais estabelecidas nos CAE, compatibilizando-o com o mercado eléctrico, devendo a sua actividade cessar com o final dos contratos (o CAE celebrado com a Tejo Energia terminou em 2021).
Além disso, como nessa decisão se explana, a relevância no mercado energético das centrais com CAE geridas pela REN Trading é residual[88] e ainda que os resultados líquidos da operação sejam incluídos nas tarifas reguladas, sendo o mecanismo tendencialmente neutro para esta, a ERSE concluiu que a independência efectiva do ORT não é posta em causa com a actividade daquela, não obstante tal actividade deva cessar com o fim dos CAE.
Significa isto que a actividade da REN Trading foi ponderada logo em sede de certificação inicial da REN Eléctrica como ORT, não deixando de se ter em atenção que caberia àquela assumir as obrigações decorrentes do CAE, pelo que, enquanto este não cessar, será ainda e sempre no contexto das cláusulas nele vertidas que deverá ser analisada a repercussão do custo do mecanismo de financiamento da tarifa social, pelo que a sua actividade e o cumprimento do contrato, já analisado em sede de atribuição da certificação, não pode, por si só e na ausência de quaisquer outros elementos factuais não apurados na decisão arbitral, viabilizar a afirmação de que o conteúdo desta coloca em crise seja a segurança do fornecimento de energia, seja a protecção dos consumidores finais e, em última instância, o funcionamento do SEN, pelo que não há razão para concluir que o resultado da decisão arbitral e a sua execução violem quaisquer princípios fundamentais do Direito da Energia, ainda que estes houvessem de ser tidos como integrando a ordem pública internacional do Estado português, o que já se concluiu não suceder.
Acresce que, determinar se os custos da tarifa social deverão ser suportados pela REN Trading ou pela Tejo Energia, à luz do estipulado no CAE e com base nas cláusulas contratuais nele estabelecidas, não envolve qualquer promiscuidade entre o poder legislativo, administrativo ou judicial, reconduzindo-se antes a uma pura actividade jurisdicional de solução de um litígio entre entidades privadas e com base num contrato entre elas celebrado, tendo o Tribunal arbitral apreciado a questão que lhe foi colocada à luz do Direito aplicável e do clausulado vertido no CAE.
Mais do que isso, ainda que a interpretação que foi efectuada pelos árbitros quanto ao estipulado no CAE seja contrária à lei ou conduza a uma solução oposta à vontade do legislador, sempre se estará perante uma decisão, que poderá ser errada, mas que não é susceptível de anulação por eventual violação do princípio da separação de poderes.
Improcede, assim, este outro fundamento para a anulação da decisão arbitral.
*
b) A sentença arbitral viola princípio da racionalidade e eficiência económica do sector eléctrico
Convocam ainda as autoras o princípio vertido no art.º 4º, n.º 1, do DL n.º 15/2022, de acordo com o qual o abastecimento energético deve fazer-se ao menor custo possível, tipicamente através da livre concorrência e da liberdade de empresa, sendo que no caso das actividades de transporte e distribuição, estão em causa monopólios naturais, pelo que a retribuição destes operadores tem necessariamente de ser feita através de tarifas fixadas pelo regulador, as quais são pagas por todos os consumidores, obedecendo o sistema tarifário a um critério de suficiência na recuperação dos custos regulados, de modo que a imputação dos custos da tarifa social à REN Eléctrica, prejudicaria a eficiência e a racionalidade do sistema, cuja violação é intolerável.
A ré refere que as autoras não efectuaram qualquer exercício de demonstração de que tais princípios integram a ordem pública internacional do Estado português, para além do que as razões invocadas são meramente especulativas, não estando demonstrado que a REN Trading não possa suportar os seus compromissos ou que os custos suportados com o mecanismo de financiamento afectariam as operações de manutenção e funcionamento da rede de transporte de energia pela REN Eléctrica.
Decidindo
Fazendo apelo ao anteriormente expendido a propósito da eficiência e racionalidade do sistema eléctrico, à não integração dos princípios do Direito da energia no conceito de ordem pública internacional e, mais do que isso, face à manifesta natureza meramente teórica e conclusiva da invocada incapacidade da REN Trading internalizar os custos com o mecanismo de financiamento ou quanto à afectação do funcionamento do SEN se, em tese, a REN Eléctrica houvesse que suportar, solidariamente, tais custos, há que rejeitar a argumentação das autoras de que a alteração do cálculo do encargo de potência, mediante a aplicação da Cláusula 20.ª do CAE, tal como resulta do conteúdo da decisão arbitral, implica uma violação daqueles princípios, por colocar em crise, em última instância, o fornecimento da energia eléctrica e o direito dos consumidores, sobremaneira dos consumidores considerados vulneráveis, que, como acima se referiu, já beneficiaram do mencionado desconto.
Note-se, aliás, que desde a criação da tarifa social, em 2010, até 2014, a REN Trading aceitou internalizar os custos do mecanismo de financiamento (ainda que, alegadamente, sob condição da aceitação pela ERSE da sua repercussão nas tarifas), tendo procedido ao reembolso desses valores à Tejo Energia, não havendo notícia, nem tendo sido trazidos aos autos elementos que revelem que o mercado de energia ou o funcionamento do SEN tenha sido afectado, nesse período, por via dessa circunstância.
Improcede, pois, também este fundamento de anulação da decisão arbitral.
*
c) e d) A decisão arbitral viola o dever de Unbundling e o princípio da segurança no abastecimento
Argumentam ainda as autoras que, conforme decorre da Directiva (UE) n.º 2019/944, os Estados-membros estão obrigados a assegurar uma separação efectiva entre as actividades concorrenciais (de produção e comercialização de energia) e as actividades de rede (transporte e distribuição), pelo que a Comissão Europeia condicionou a certificação da REN Eléctrica como ORT, a que a autora REN Trading não operasse em condições normais de mercado e que os seus rendimentos e custos de gestão com os contratos de aquisição de energia em vigor fossem integralmente repercutidos nas tarifas, i. e., que a sua actividade obedecesse a um princípio de neutralidade económico-financeira, sendo a sua actividade objecto de regulação directa pela ERSE, pelo que, se for imposto à REN Eléctrica, por incapacidade financeira da REN Trading (que não gera lucros), suportar os encargos com a tarifa social, isso equivale a permitir a um operador de rede o financiamento de uma operação enquadrável na actividade de produção, o que é vedado pelo ordenamento jurídico comunitário e, estando em causa um serviço público essencial, este princípio da separação das actividades é naturalmente relevante para a ordem pública internacional do Estado português, sendo a sua violação, nessa medida, intolerável.
Além disso, a oneração do ORT com sobrecustos não previstos na sua actividade terá impacto nas operações de manutenção e investimento na rede, sobretudo porque esse sobrecusto não pode ser repercutido nos consumidores, em regime de mercado livre.
A ré sustenta que a argumentação das autoras desconsidera o processo de certificação da REN Eléctrica como ORT, de onde resulta que o próprio regulador, a ERSE, considera que a REN Trading não pode ser tida como produtor ou vendedor de electricidade, pelo que, a assumir os custos, a REN Eléctrica nunca estaria a financiar qualquer actividade de produção e que o Unbundling se concretiza com a separação patrimonial, governativa e operacional entre as autoras, resultando da própria lei – art.º 70º, n.º 1 do DL 172/2006 e art.º 300º, n.º 1 do DL 15/2022 – que, até à extinção dos CAE, os centros electroprodutores continuam a operar conforme o estabelecido no contrato e com o disposto no DL 183/95, ou seja, a lei impõe o cumprimento pontual do CAE; em resultado da decisão arbitral, as autoras continuarão a operar do mesmo modo, estando apenas em causa saber quem suporta os custos no âmbito interno do CAE; acrescenta ainda que o Unbundling é apenas uma política de organização sectorial e não integra a ordem pública internacional do Estado português.
Decidindo
Já acima se deu nota do âmbito regulatório do sector energético e das regras do Unbundling de actividades no sector[89], que, salvo derrogação legalmente prevista e aprovação do regulador, implica que os operadores das redes de transporte não podem deter a propriedade, desenvolver, gerir ou explorar instalações de armazenamento de energia eléctrica, e os operadores das redes de distribuição não o podem fazer quando estão em causa instalações de armazenamento de energia eléctrica ou pontos de carregamento para veículos eléctricos, permitindo a criação de condições para a concorrência (com a entrada de novos agentes, produtores e comercializadores) e impede a ocorrência de conflitos de interesses entre os operadores das redes e aqueles que exercem actividades concorrenciais.
Nesse contexto, as tarifas de acesso regulado à rede são pagas por todos os utilizadores, com vista à remuneração dos operadores em monopólio e depois reflectidas no preço final pago por todos os consumidores, pelo que a sua fixação está sujeita a regulação, que passa pela definição dos proveitos, sendo as tarifas calculadas para cada uma das actividades reguladas, de modo a permitir a recuperação dos proveitos que individualmente lhe cabem. As tarifas de acesso, fixadas anualmente pela ERSE, correspondem a uma das três grandes componentes da factura energética paga pelos consumidores.
A liberalização dos sectores implicou a desintegração (splitting up) e, mais recentemente, a separação (unbundling) dos antigos monopólios verticalmente integrados, por forma a permitir a entrada de novos agentes, com a instituição de mercados concorrenciais nas actividade de produção ou aprovisionamento e de comercialização de energia, que gozam do direito de livre acesso (open-acess), transparente e não discriminatório às redes de transporte e de distribuição (non-discriminatory third-party access to networks), que permaneceram, dada a sua natureza, como monopólios (naturais) regulados. A abertura à concorrência implicou a necessidade de reforço da protecção dos consumidores de energia, com a existência de obrigações específicas de serviço público, visando a prossecução do interesse público, em derrogação do livre jogo da procura e da oferta, com especial protecção dos consumidores economicamente vulneráveis. A liberalização do sector, deixando o Estado de ser o prestador das necessidades básicas, fez surgir o Estado regulador, que cuida das tarefas necessárias à satisfação de necessidades colectivas que foram deslocadas do Estado para o mercado.
“O Regulador tem, pois, de exercer controlo de mercado, por forma a garantir, entre o mais, a nivelação da qualidade dos serviços prestados nas atividades monopolistas (na maioria exercidas por empresas dos grupos EDP, REN e GALP), procurando, concomitantemente, que os custos associados sejam eficientes (para que o preço pago pelo uso das redes seja tolerável pelos consumidores), bem como o cumprimento das obrigações de serviço público, em especial a comercialização de último recurso. É neste âmbito (centrado predominantemente numa regulação ex ante) que a ERSE, para além da disciplina regulamentar inerente, fixa padrões e métricas de qualidade do serviço (bem como compensações pagas pelos operadores pelo seu não cumprimento), tem um papel na monitorização e definição dos planos de desenvolvimento e investimento das redes, ou reconhece os proveitos permitidos às empresas reguladas (garantindo a inexistência de subsidiações cruzadas), fixando também as tarifas e os preços a pagar pelos consumidores.” – cf. Filipe Matias Santos, op. cit., pág. 68.
Nas alíneas a) e b) supra já se deixaram consignadas as razões para não considerar os princípios do Direito da energia, designadamente as normas europeias sobre o mercado energético, ainda que imperativas, como não integrantes da ordem pública internacional do Estado português, não encontrando acolhimento naquele núcleo restrito de princípios estruturantes do Estado, o que aqui se convoca de novo.
Acresce que dos factos considerados na decisão arbitral, nem do seu conteúdo nada decorre no sentido de que a sua execução possa colocar em causa a separação das actividades de produção e comercialização de energia das actividades de rede, pois que, por um lado, a actividade da REN Trading foi analisada em sede de certificação da REN Eléctrica como ORT e não foi tida como obstáculo a essa certificação, ou seja, não relevou enquanto elemento perturbador da mencionada separação de actividades e, por outro, essa separação foi tida por assegurada através da separação patrimonial, governativa e operacional entre as duas entidades.
Além disso, a situação descrita como violadora de tal princípio é, como repetidamente mencionado nos autos, uma situação transitória, que se manterá apenas enquanto vigorarem os CAE e, como se referiu, tendo esses custos sido suportados pela autora até 2014, não foi de modo algum demonstrado que tenha ocorrido qualquer prejuízo para o funcionamento do SEN, pelo que se tornam desnecessárias ulteriores considerações, remetendo-se para o que acima se discorreu, improcedendo, igualmente, este outro argumento.
*
ii. A sentença arbitral viola o princípio pacta sunt servanda
Sustentam ainda as autoras que o princípio pacta sunt servanda tem sido considerado como um dos princípios que integram o conceito de ordem pública internacional do Estado português, que se relaciona, designadamente, com o princípio da confiança, daí que, admitindo a sentença a transferência de um custo de uma obrigação de serviço público de natureza social que, por lei, é imputado a uma das partes no CAE, que o invoca para determinar o seu direito ao reembolso (por via de alteração do modo de cálculo da remuneração), sem que tal direito resulte do ali estipulado, e fazendo-o contra decisões vinculativas da ERSE, ocorre violação da essência do princípio pacta sunt servanda.
A ré argumenta, ao contrário, que a decisão arbitral aplica precisamente o clausulado no CAE, sem atender a supostas modificações do seu conteúdo, que decorreriam de alterações pelo legislador ou de decisões administrativas e mesmo que a sua interpretação fosse errada é ainda o contrato que é aplicado.
Decidindo
O princípio pacta sunt servanda integra os princípios de ordem pública internacional do Estado português, sendo um princípio geral comum aos Estados, quer em Direito privado, quer em Direito público, tendo valor consuetudinário universal (pode, com facilidade, aceitar-se que qualquer cidadão tem por certo que os contratos devem ser cumpridos, sendo que a ordem jurídica e económica seria afectada se assim não fosse).
No entanto, a decisão arbitral efectuando uma interpretação do conceito de imposto relevante para efeitos do CAE e, por via disso, decidindo sobre a aplicabilidade da Cláusula 20. e determinando quem, de entre os contraentes, deve suportar os custos da tarifa social, lançou mão, como acima se expendeu, dos critérios legais de interpretação dos contratos e ateve-se a tais parâmetros interpretativos do vínculo contratual existente, de tal modo que a conclusão a que chegou deve ainda considerar-se como uma interpretação razoável e aceitável daquilo que foi estipulado pelas partes e, como tal, traduz-se ainda numa solução que resulta do acordo firmado entre as partes.
Ainda que, em tese, o decidido pelo tribunal arbitral possa configurar uma interpretação errada do contrato, tal não consubstancia uma violação do princípio pacta sunt servanda, pois que se trata ainda da aplicação do contrato em causa, sendo que a anulação de uma decisão arbitral por violação da ordem pública internacional não passa pela concessão ao juiz da possibilidade de uma apreciação do mérito da causa, o que seria necessário para que se entendesse que a imposição à REN Trading de internalização dos custos não encontra acolhimento nas estipulações contratuais das partes, nem na lei, contrariamente àquele que foi o juízo arbitral.
Como aduz o Professor Dario Moura Vicente no seu parecer: “a solução a que o tribunal arbitral chegou a respeito daquela questão corresponde inequivocamente a uma das interpretações possíveis da cláusula 20ª do CAE. A sentença dá, com efeito, execução ao acordo das partes quanto à imputação dos encargos resultantes da aplicação de «impostos relevantes», na interpretação que o tribunal arbitral dele fez. Poderá certamente discordar-se dessa interpretação; mas não parece que possa legitimamente invalidar-se por esse motivo a sentença arbitral sem assim comprimir de modo intolerável a liberdade de apreciação que necessariamente compete a um colégio de árbitros de cujas decisões não existe, por efeito da vontade das próprias pares, recurso para os tribunais superiores.”
Este fundamento de anulação da decisão arbitral não obtém, pois, provimento.
*
iii. A decisão arbitral viola o princípio constitucional da protecção dos consumidores
Alegam as autoras que a decisão arbitral ignorou a ponderação efectuada pelo legislador no que diz respeito ao direito fundamental dos consumidores à protecção dos seus interesses económicos, tal como decorre do art.º 60º, n.º 1 da CRP, no âmbito da fixação da tarifa social, pois que a decisão coloca em causa a continuidade, qualidade, objectividade, não discriminação e a um preço razoável do serviço universal de energia, por a REN Trading não ter como fazer face ao custo com o financiamento da Tarifa Social, o que accionará a responsabilidade solidária da Autora REN Eléctrica, que pode perder a sua certificação como ORT.
Sendo a protecção dos consumidores constitucionalmente garantida relevante para a ordem pública internacional do Estado português, a respectiva violação é intolerável.
A ré contrapõe que esta fundamentação é essencialmente a mesma que as autoras invocaram para fundamentar a violação de outros princípios que fariam parte da ordem pública internacional, já abordados, repetindo que a decisão arbitral apenas decide a quem compete a internalização dos custos resultantes da tarifa social, não a colocando em causa.
Decidindo
A protecção dos consumidores enquanto direito fundamental encontra consagração constitucional no art.º 60º, n.º 1 da CRP, sendo que os direitos fundamentais são, essencialmente, direitos perante o Estado ou outras formas de poder político, embora os direitos dos consumidores apareçam numa economia de mercado, sobretudo, como direitos perante privados ou, em caso de serviços públicos concessionados, investidos de prerrogativas de autoridade.
No entanto, o Estado deve agir, por lei ou pelas funções administrativas e jurisdicionais, de modo a que os consumidores usufruam dos direitos à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação, à protecção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos. São deveres de protecção do Estado, a que corresponde um direito geral de protecção dos cidadãos – cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Volume I, 2ª edição revista, pág. 846.
A dignidade constitucional da tutela e garantia dos direitos dos consumidores e o Direito da União Europeia[90] apontam para a sua natureza de princípios da ordem pública internacional do Estado português.
Não obstante isso, tal como aponta a ré, a argumentação esgrimida pelas autoras radica nos mesmos pressupostos já anteriormente dissecados a propósito das invocadas violações de princípios integradores da ordem pública internacional do Estado português, ou seja, a circunstância de não ter a REN Trading capacidade para suportar os custos com o mecanismo de financiamento da tarifa social, implicando que seja a REN Eléctrica a assumi-los, levando a que esta perdesse a sua certificação como ORT, por passar a intervir na actividade de produção e comercialização de energia e colocando em causa a continuidade do fornecimento de energia eléctrica, designadamente, aos clientes vulneráveis.
Já acima se deixou consignado que tal argumentação não procede, desde logo, porque nada se apurou, nem a decisão arbitral enuncia factos que tal revelem, no sentido de a REN Trading não dispor, em concreto, de meios para fazer face a tais custos, donde, afirmar que a REN Eléctrica terá de, ao abrigo da sua responsabilidade solidária decorrente do CAE, suportar tais custos, passando, com isso, a intervir no mercado da produção e comercialização, assenta em conjecturas, não demonstradas nem evidenciadas pelos factos.
Por outro lado, já se disse, aquando da certificação da REN Eléctrica como ORT a situação emergente da subsistência dos CAE foi expressamente ponderada e ressalvada, posto que termine ao momento da cessação do CAE, pelo que o cumprimento das cláusulas contratuais que se mantiveram em vigor, não obstante a profusão de legislação posterior no contexto da criação do mercado interno de energia, não pode implicar, por si só, a identificação de um prejuízo ou impedimento de continuidade do funcionamento do SEN, tanto mais que, como também já se referiu, até 2014 a REN Trading aceitou suportar tais custos, sem que tal tivesse tido qualquer repercussão no fornecimento universal da energia eléctrica.
Cumpre também recordar que ainda que o DL Tarifa Social tenha imputado aos centros produtores de energia eléctrica o financiamento dos custos com a tarifa social, tal não impede que as partes num CAE acordem numa distribuição diferenciada desses sobrecustos, a valer apenas entre si e com efeitos internos ao contrato, nem as cláusulas neste vertidas se podem ter por invalidadas face às alterações legislativas, tanto mais que a subsistência dos CAE foi sendo sucessivamente assegurada pelos diversos diplomas legais – cf. art.º 14º do DL 185/2003, de 20 de Agosto; art.º 70º do DL 172/2006, de 23 de Agosto; art.º 300º do DL 15/2022, de 14 de Janeiro.
E a tanto não obsta, do que também já se deu nota, a circunstância de se entender, como sucede no Parecer n.º 39/2012, de 21 de Março de 2013, da Procuradora Geral de República[91], que o financiamento dos custos com a aplicação da tarifa social constitui um encargo para os titulares de centros electroprodutores com contratos de aquisição de energia ainda subsistentes, não podendo recair sobre os consumidores de electricidade, o que sucederia no caso de recálculo da remuneração devida aos titulares dos centros electroprodutores com CAE, que posteriormente seria repercutida na TUGS[92], pois que nada obsta a que a REN Trading internalize esses custos, ou seja, nada impede, à luz do estabelecido no CAE e para efeitos de manutenção do equilíbrio contratual, que tais custos não sejam repercutidos na TUGS.
Uma hipotética afectação da continuidade da prestação do fornecimento de electricidade e a colocação em crise dos direitos dos consumidores não se coloca em face do conteúdo da decisão, que apenas cuidou de determinar quem, de entre as partes contratantes e na economia do CAE, deve suportar os custos da tarifa social.
A decisão arbitral e o seu resultado não conduzem, pois, à violação de direitos fundamentais dos consumidores, pois apenas resolveu um litígio entre privados, sem colocar em causa seja a tarifa social, seja a protecção dos clientes economicamente vulneráveis, que dela continuam a beneficiar.
Improcede também este fundamento de anulação da sentença arbitral.
*
iv. A decisão arbitral viola o Direito da Concorrência da UE
Alegam as autoras que a norma do art.º 101º do TFUE (anterior art.º 81º do Tratado da Comunidade Europeia) é uma disposição de ordem pública internacional, por ser fundamental e indispensável ao funcionamento do mercado interno, estando os tribunais arbitrais obrigados a aplicar o Direito da Concorrência da UE quando sejam confrontados com negócios jurídicos que têm efeitos restritivos da concorrência, o que não sucedeu, porque a decisão arbitral viola o art.º 107º do TFUE, que proíbe os apoios de Estado, como é o reembolso pretendido pela ré, enquanto intervenção de um Estado-membro ou através de recursos públicos, seja sob que forma for, que distorce a concorrência ao favorecer determinado operador; concluem que se a sentença não for anulada, qualquer compensação ao abrigo do CAE que elimine os riscos competitivos da ré envolverá uma medida de Estado e, directa ou indirectamente, usará recursos públicos, na medida em que, por força do regime de repercussão tarifária obrigatória, levará ao aumento dos valores cobrados através das tarifas pagas pelos consumidores, ficando a ré em posição de vantagem face aos seus concorrentes; além disso, a compensação da obrigação de serviço público ocorre já por via do encargo de potência.
A ré refuta este argumento referindo que, ainda que a proibição de auxílio de Estado pelo Direito da UE integre um princípio de ordem pública internacional, nada se apurou no sentido de, logrando a ré demonstrar o efeito material do mecanismo de financiamento e sendo determinada a alteração da fórmula de cálculo, os fundos que venham a ser utilizados para a colocar na posição em que estaria caso o mecanismo de financiamento não a afectasse não têm origem pública, pois que as autoras são duas operadoras privadas, com um conjunto de receitas e de património afecto à sua actividade e, além disso, o cumprimento do CAE não depende da possibilidade de a REN Trading repercutir os custos nas tarifas cobradas aos consumidores, não estando verificados os requisitos de que depende o auxílio de Estado.
Decidindo
Conforme supra expendido, a jurisprudência tem reconhecido como princípio estruturante da ordem jurídica nacional os princípios fundamentais do Direito da UE e princípios fundamentais como os princípios e regras basilares do direito da concorrência, tanto de fonte comunitária quanto de fonte nacional[93]. No entanto, nem todas as normas de Direito da Concorrência são princípios constitucionais da própria União Europeia e, como também já se mencionou, nem todas as normas imperativas se reconduzem a princípios da ordem pública internacional do Estado português.
O eventual reembolso dos custos com o financiamento da tarifa social – demonstrado que seja o efeito material desse mecanismo e autorizada que seja a alteração da fórmula do cálculo pelo futuro painel financeiro, em conformidade com o decidido pelo tribunal arbitral – não integrará um auxílio de Estado, desde logo porque as autoras são empresas privadas e porque o efeito visado corresponderá apenas ao cumprimento de uma estipulação contratual emergente do CAE e a que se vincularam no âmbito da sua autonomia negocial.
No parecer da Comissão Europeia, de 22.IX.2004 C (2004) 3468fin[94] elaborado a propósito do projecto de cessação antecipada de contratos de longo prazo no sector da electricidade e de atribuição de compensações relativamente a essa cessação, consignou-se: “para que uma medida constitua um auxílio estatal nessa acepção, tem de ser selectiva, afectar ou ameaçar afectar as trocas comerciais entre Estados-Membros, conceder uma vantagem aos seus beneficiários e ser concedida com base em recursos estatais”. Por outro lado, refere-se: “constituem recursos estatais as receitas de tarifas aplicadas pelo Estado, transferidas para fundos designados pelo Estado e utilizadas para efeitos de concessão de vantagens a certas empresas”.
Assim, a eventual internalização dos custos com o mecanismo de financiamento pela REN Trading não envolve qualquer financiamento estatal ou proveniente de recursos estatais[95], nem afectará as trocas comerciais entre os Estados-membros, ou favorecerá a Tejo Energia que, por essa via, apenas verá cumprida uma estipulação contratualmente acordada com vista à reposição do equilíbrio negocial vigente à data da celebração do CAE.
Ademais, não se vislumbra, nem as autoras esclarecem, de que modo a eventual internalização dos custos pela REN Trading representará um qualquer acordo ou comportamento com efeitos significativos no comércio entre os Estados-membros, pelo que o caso sempre se teria de ter por subtraído ao fim visado pelo Direito da UE em sede de concorrência.
Com efeito, o funcionamento da União Europeia visa um ambiente de paz, harmonia e equilíbrio na Europa, incentivando a iniciativa privada e a economia de mercado, com uma concorrência leal e equilibrada, estabelecendo um regime que garanta que a concorrência não seja falseada no mercado interno e que procura disciplinar as práticas das empresas que sejam susceptíveis de afectar o comércio entre os Estados-Membros (cf. art.ºs 101º e 102º do TFUE). Não havendo, no caso, projecção de efeitos para além das fronteiras nacionais e não estando em causa actos de comércio entre agentes de dois ou mais Estados-Membros ou qualquer elemento de conexão objectiva de carácter transfronteiriço relativo à relação jurídica em discussão, a afectação do direito da concorrência europeu não se coloca.
Não se constata, assim, que o resultado decorrente da decisão arbitral implique a violação dos princípios do Direito da Concorrência da UE, pelo que improcede tal fundamento de anulação.
*
v. A sentença arbitral viola o princípio da censura do enriquecimento ilícito
Por fim, suscitam as autoras a violação pela decisão arbitral do princípio da censura do enriquecimento ilícito, o que fazem com o fundamento de o DL Tarifa Social ter imposto aos produtores de electricidade em regime ordinário a obrigação de financiar os respectivos custos, enquanto beneficiários de incentivos relacionados com a garantia de potência, nos termos da Portaria n.º 765/2010, de 20 de Agosto, sendo que o legislador, consciente do encargo que impunha aos produtores titulares de contratos de aquisição de energia, tomou medidas para os compensar desse sacrifício no âmbito do SEN, dando-lhes um benefício como contrapartida, que só existiu devido à anterior imposição sacrificial, daí que se esta imposição for transferida para as autoras ou para os custos gerais do sistema, então aquele sacrífico desaparece e a ré mantém o benefício atribuído, pelo que a solução do tribunal arbitral choca a sensibilidade jurídica em termos idênticos àqueles em que o faz o instituto do enriquecimento indevido.
A ré contrapõe que não beneficia nem nunca beneficiou da garantia de potência, o que resulta claramente da Portaria n.º 765/2010, de 20 de Agosto e se manteve nas Portarias subsequentes, para além do que, ainda que existisse um qualquer enriquecimento teria como causa o CAE.
Decidindo
Ainda que a proibição do enriquecimento sem causa assuma dimensão constitucional e constitua princípio da ordem pública internacional do Estado português, aquilo que resulta da decisão arbitral é a concessão à ré da possibilidade de lançar mão da alteração da fórmula de cálculo do encargo de potência prevista na Cláusula 20ª do CAE, ou seja, não está em causa a concessão à Tejo Energia de um benefício surgido sem qualquer fundamento, decorrendo, pelo contrário, das cláusulas contratuais firmadas entre as partes, pelo que esse eventual «enriquecimento» não seria injustificado, indevido ou ilícito, por ter como causa o contrato.
Ademais, como aponta a ré, o art.º 16º, n.º 1[96] da Portaria n.º 765/2010, de 20 de Agosto[97] estipulou expressamente que os centros electroprodutores que estejam abrangidos por contrato de aquisição de energia ficam excluídos do âmbito de aplicação da presente portaria, o que significa que a tese argumentativa construída pelas autoras não pode merecer acolhimento, desde logo porque a alegada «contrapartida» de que aquela teria beneficiado em vista da assunção dos custos com o mecanismo de financiamento da tarifa social não se verifica.
Não obstante a norma aluda a contratos celebrados ao abrigo do DL 182/95, de 27 de Julho, não se pode deixar de entender que o CAE aqui em discussão, ainda que anterior a esse diploma legal (do que acima já se deu nota), não pode deixar de estar abrangido pelo espírito da norma, até porque no art.º 14º, n.º 1 do DL 185/2003, de 20 de Agosto, no contexto da extinção dos contratos de aquisição de energia eléctrica celebrados entre a entidade concessionária da rede nacional de transporte de energia eléctrica (RNT) e as entidades titulares de produção vinculada de energia eléctrica, com vista ao funcionamento do mercado ibérico de electricidade, foi ressalvado o regime transitório (até que o processo de extinção dos CAE esteja concluído), dos centros electroprodutores relativamente aos quais os contratos vinculados ainda se mantenham a produzir efeitos, que continuariam a operar de acordo com o respectivo contrato e com o disposto no DL 183/95, de 27 de Julho, sem que tenha sido efectuada distinção quanto à data da celebração dos contratos vinculados (como o caso do presente CAE, celebrado na vigência do DL 99/91, de 2 de Março).
Nesse sentido releva ainda o facto de, com o DL 182/95, de 27 de Julho, que estabeleceu as bases da organização do sistema eléctrico nacional e revogou o DL 99/91, os centros electroprodutores terem sido integrados no Sistema Eléctrico de Abastecimento Público, mantendo os seus direitos em conformidade com o título de que dispunham (cf. art.ºs 65º e 66º).
Assim, quer porque a eventual internalização dos custos com a tarifa social pela REN Trading, a ter lugar, sempre será uma decorrência do cumprimento do CAE e das cláusulas acordadas entre as partes, quer porque a ré não beneficiou de qualquer incentivo ao abrigo do diploma convocado pelas autoras, o resultado da decisão impugnada não conduziria ao enriquecimento indevido por elas invocado, pelo que improcede também o último fundamento de anulação deduzido pelas autoras.
Em síntese, não se verifica no presente caso qualquer um dos fundamentos de anulação da decisão arbitral convocados pelas demandantes, o que determina a necessária improcedência da acção.
*
D - Da Litigância de Má Fé
A ré conclui a sua oposição pedindo a condenação das autoras, como litigantes de má fé, no pagamento de uma multa e indemnização destinada a compensar todos os custos em que incorreu com os presentes autos, o que fundamenta referindo que o comportamento processual destas é manifestamente censurável, por terem baseado a sua pretensão em fundamentos cuja falta de mérito ou falsidade não desconheciam nem podiam ignorar, nomeadamente, o caso julgado formado pela decisão parcial e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que a confirmou, assim como pedem a anulação da sentença arbitral com fundamento em decisões unânimes do painel financeiro e, como tal, finais e vinculativas e se insurgem contra decisões com as quais se conformaram no âmbito de outra disputa e invocam argumentos inviáveis, como o da incompatibilidade entre o cumprimento pontual do CAE e o regime do Unbundling do sector, que a própria decisão de certificação da REN Eléctrica não reconheceu e as alegações referentes ao benefício de garantia de potência, de que a ré nunca beneficiou.
Na sua resposta, as autoras pugnam pela improcedência de tal pedido, apontado que este não contém alegação mínima de factos ou circunstâncias que o fundamentem, para além de, relativamente aos primeiros três argumentos, ser claro que as partes apenas têm entendimentos diferentes ou contrários relativamente aos efeitos da sentença parcial e da decisão do painel financeiro do litígio ISP, não se verificando inobservância de deveres de probidade, cooperação e boa-fé, o que nem sequer é alegado pela ré, resultando claro que todas as pretensões anulatórias das autoras se reportam à sentença final e, quanto aos últimos argumentos, a certificação da autora REN Eléctrica implica a manutenção dos pressupostos da separação jurídica e patrimonial, que as autoras entendem que serão violados se a decisão arbitral se mantiver, assim como os pagamentos efectuados pela ré REN Trading ocorreram sob condição de a ERSE os aceitar e serem transferidos para as tarifas.
O art. 542º, n.º 1 do CPC prevê a possibilidade de a parte ser condenada em multa quando tenha litigado de má-fé.
Litigante de má-fé será aquele que, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão – cf. n.º 2 do art. 542º do CPC.
De referir que, a litigância de má-fé exige que se verifique por parte do litigante dolo ou negligência grave, isto é, pressupõe a consciência de que se não tem razão; é necessário que a parte tenha agido com intenção maliciosa, e não apenas com leviandade ou imprudência.
Tal não significa que a parte deva assumir um comportamento processual contrário ao seu interesse, ou seja, que não possa deduzir oposição a pretensão alheia quando entenda que lhe assiste razão.
A tutela jurisdicional está à disposição de todos os titulares de direitos mas o exercício dos meios processuais deve decorrer de forma sincera, actuando a parte de modo coerente e convencida da sua pretensão.
A norma do art. 542º, n.º 2 do CPC permite distinguir a má fé substancial, inerente a uma actuação que se revele pelas condutas descritas nas alíneas a) e b) e a má fé instrumental, vertida nas alíneas c) e d) do mesmo artigo.
Contudo, em qualquer dessas situações há que estar presente uma intenção maliciosa ou uma negligência de tal modo grave ou grosseira que, sendo próxima de uma actuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação e idêntica reacção punitiva
Como se explana no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-11-2020, processo n.º 279/17.9T8MNC-A.G1.S1:
“A conduta do agente deve apresentar-se como contrária a um padrão de conformidade da ação pessoal do sujeito processual com o dever de agir de acordo com a juridicidade e a lei. "A má fé processual (...) é toda a atividade desonesta, cavilosa, proteladora (para cansar o adversário) unilateral ou bilateral, verificada no exercício do direito de ação, quando desenvolvida com a intenção de prejudicar outrem, quer ela respeite ao mérito da causa (lide caluniosa, fraudulenta, etc.) quer às medidas instrumentais, desde que seja ilícita, isto é violadora das normais gerais e específicas da conduta processual, tendentes a criar as condições favoráveis a uma boa e justa decisão do pleito."
A condenação como litigante de má fé assenta, pois, num juízo de censura sobre um comportamento que se revela desconforme com um processo justo e leal, que constitui uma emanação do princípio do Estado de direito.”
É sabido que a matéria atinente à litigância de má fé assume natureza delicada e de difícil discernimento perante o facto de que a contenda processual acarreta sempre a instauração de um conflito de interesses em que, por norma, cada uma das partes está convicta da sua verdade.
Assim, a censura tem de se basear na ofensa de valores éticos que decorra de uma actuação com dolo ou negligência grave aquando da dedução de pretensão cuja falta de fundamento a parte não devia ignorar ou tiver feito do processo um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal.
A condenação por litigância de má fé exige prudência por parte do Tribunal e cuidada ponderação dos factos patenteados nos autos.
Seguro é que para se concluir por uma actuação processual censurável de uma parte não basta que ela tenha, objectivamente, “preenchido” uma qualquer das condutas previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do art.º 542º do CPC, sendo ainda necessário que, ao fazê-lo, tenha actuado com dolo ou negligência grave, ou seja, com negligência grosseira, absolutamente censurável e de todo indesculpável.
Por outro lado, negligência grave não equivale a lide meramente temerária ou ousada, ou a dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da respectiva prova, ou ainda cujo insucesso tenha resultado da dificuldade em apurar os factos e de os interpretar, ou ainda da discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos.
Na situação sub judice, afigura-se-nos não assistir razão à ré, pois que não se detectam condutas por parte das demandantes que possam ser integradas na previsão das alíneas a) e b) do n.º 2 do art.º 542º do CPC.
Como é facilmente perceptível da exposição supra, os argumentos aduzidos pelas autoras para sustentar a anulação da decisão arbitral foram apreciados e julgados improcedentes, mas daí não decorre que a sua falta de fundamento fosse evidente. Pelo contrário, é cristalino que o insucesso da sua pretensão radica numa interpretação distinta dos factos por parte deste tribunal, pelo que é insustentável afirmar que as autoras teriam de ter conhecimento da falta de fundamento da sua pretensão.
De igual modo, não se aderiu à posição da ré no sentido de que a conformação com decisões proferidas em sede de outras disputas pudesse tornar inviável a argumentação aqui deduzida pelas autoras, assim como o entendimento seguido quanto à alegada violação do princípio do Unbundling e ao benefício de garantia de potência, ainda que culminando numa decisão de improcedência de tais fundamentos, não deixa de consistir apenas e tão-só numa apreciação jurídica distinta da seguida pelas autoras.
Não se tem, assim, por verificada, qualquer conduta processual censurável imputável às autoras ou à ré, pelo que improcede o pedido de condenação das primeiras como litigantes de má-fé.
*
Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
A acção improcede totalmente, pelo que as respectivas custas ficam a cargo das autoras.
*
IV - DECISÃO
Tudo visto e ponderado, acordam os juízes desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar improcedente a acção e, em consequência, absolver a ré do pedido.
Custas a cargo das autoras.
Valor da acção: o indicado na petição inicial (30.000,01€).
Tendo em conta a especial complexidade da presente acção face à natureza das múltiplas questões suscitadas, que importaram a análise de matérias complexas e de âmbito muito diverso, determina-se, ao abrigo do disposto no art.º 530º, n.º 7, b) do CPC e art.º 6º, n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais, a aplicação do valor de taxa de justiça constante da Tabela IC anexa ao Regulamento (9 UC).
*
Lisboa, 23 de Abril de 2024
Micaela Marisa da Silva Sousa
Luís Filipe Pires de Sousa
Edgar Taborda Lopes
_______________________________________________________
[1] Adiante designada por REN Eléctrica.
[2] Adiante designada por REN Trading.
[3] Adiante designada por Tejo Energia.
[4] Adiante designada pela sigla LAV.
[5] Adiante designado pela sigla CAE.
[6] Adiante designado por DL Tarifa Social. O DL 138-A/2010, de 28 de Dezembro foi, entretanto, revogado pela Lei n.º 15/2022, de 14 de Janeiro, que estabelece a Organização e o Funcionamento do Sistema Eléctrico Nacional, incorporando também o conteúdo do mencionado DL (cf. art.ºs 196º e seguintes).
[7] Adiante designada pelo acrónimo ERSE.
[8] Adiante designado pela sigla CPC.
[9] Adiante designada pela sigla CRP.
[10] Adiante designado pela sigla SEN.
[11] Adiante designada por UE.
[12] Adiante designado pela sigla ORT.
[13] Cf. Requerimento de 16 de Junho de 2023 com a Ref. Elect. 639869 e despacho de 16 de Junho de 2023, com a Ref. Elect. 20185256.
[14] Adiante designado pela sigla TFUE.
[15] Conforme despacho proferido em 6 de Outubro de 2023, com a Ref. Elect. 20571103.
[16]A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.”
[17] Lei da Organização do Sistema Judiciário, adiante designada pela sigla LOSJ.
[18] Posteriormente revogado pelo DL 182/95, de 27 de Julho.
[19] Cf. Art.ºs 178º e seguintes.
[20] Adiante designado pela sigla CCP.
[21] Adiante designado pela sigla ETAF.
[22] Na redacção da Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, com entrada em vigor em 11 de Novembro de 2019, vigente à data da interposição da presente acção.
[23] In Acórdão do Tribunal de Conflitos de 27-11-2008, Processo n.º 19/08 apud Maria Helena Barbosa Canelas, A amplitude da Competência Material dos Tribunais Administrativos em sede de Acções Relativas a Responsabilidade Civil Contratual, Revista Julgar, n.º 15, pág. 107.
[24] Acessível na Base de Dados do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem.
[25] Revista Julgar, n.º 15, pp. 110-111.
[26] Publicado no DR 1ª Série, de 21 de Junho de 2022.
[27] Actualmente art.º 280º do CCP.
[28] Veja-a a qualificação dos CAE celebrados ao abrigo deste diploma legal como contrato administrativo, designadamente, no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, n.º 4/2016, de 29 de Junho de 2017, pág. 49, acessível em https://www.ministeriopublico.pt/.
[29] Estrutura accionista disponível em https://www.ren.pt/pt-pt/investidores/governo-da-sociedade.
[30] Informação disponível em http://www.trustenergy.pt/pt/thegroup.
[31] “any local, national or supra-national agency, authority, department, inspectorate, minister, ministry, official, court, tribunal or public, statutory person (whether autonomous or not) of the Government, or of the European Communities (but not of any other Member State of the European Communities) which has jurisdiction over either one or both of the parties to and the subject matter of this Agreement, including, for the avoidance of doubt, any licencing authority but (for the avoidance of doubt) not including EDP or of its sucessors in relation to the operation of the EDP System».
[32] Temas da Energia – Reflexões de Direito da Energia, acessível em https://www.erse.pt/media/fdkdsj2o/temas-de-energia-reflex%C3%B5es-de-direito-de-energia.pdf.
[33] Documento n.º 6 junto com a petição inicial – cf. Ref. Elect. 635458 de 17 de Maio de 2023.
[34] Documento n.º 3 junto com o requerimento de 14 de Fevereiro de 2024, com a Ref. Elect. 676413.
[35] Aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro e adiante designado por CPTA.
[36] Termo ou data de validade.
[37] Cf. Ref. Elect. 635456 de 17 de Maio de 2023.
[38]In the event that this Agreement is translated into other languages the English language version (being the language of negotiation of the Agreement) will prevail
[39] Empresa de capitais exclusivamente públicos, que resultou da transformação da empresa Electricidade de Portugal (EDP), E. P. em sociedade anónima, conforme DL 7/91, de 8 de Janeiro e DL 131/94, de 19 de Maio, por meio de cisão simples, deliberada em Assembleia Geral de 18 de Agosto de 1994, posteriormente objecto de reprivatização, com alienação de acções representativas do capital social, que decorreu por diversas fases, conforme DL 78-A/97, de 7/04; 315/97, de 19/01; 94-C/98, de 17/04; 141/2000, de 15/97; 218-A/2004, de 25/10; 209-A/2005, de 2/12; 105/2010, de 11/10; 106-A/2011, de 26/10. Da cisão do grupo EDP resultou a REN – Rede Eléctrica Nacional, S. A., transformada, em 2007, em holding do grupo e redenominada REN – Redes Energéticas Nacionais, SGPS, que detém a REN – Rede Eléctrica Nacional, S. A. (aqui autora).
[40] Que aprovou o Regime Jurídico Aplicável às Actividades de Produção, Transporte, Distribuição e Comercialização de Electricidade, entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.º 15/2022, de 14 de Janeiro, a partir 15 de Janeiro de 2022.
[41] Cf. Ref. Elect. 651759, com tradução apresentada em 3 de Outubro de 2023, com a Ref. Elect. 652647.
[42] Adiante designada pela sigla TUGS.
[43] Publicado no Diário da República, n.º 87, de 7 de Maio de 2013.
[44] Cf. Documento n.º 4, junto com a petição inicial – Ref. Elect. 635457.
[45] Cf. Decisão Arbitral que constitui o documento n.º 1, junto com a petição inicial, § 111.
[46] Cf. Sentença Parcial sobre competência que constitui o documento n.º 1, junto com a oposição, com tradução apresentada em 28 de Setembro de 2023 - Ref. Elect. 651757 e 651957.
[47] Cf. Documento n.º 2 junto com a oposição Ref. Elect. 651757.
[48] Cf. Decisão Arbitral que constitui o documento n.º 1, junto com a petição inicial.
[49] Cf. Documento n.º 5 junto com a petição inicial, com tradução apresentada em 2 de Junho de 2023, Ref. Elect. 638179 (não se transcreveram as notas de rodapé).
[50] Cf. Documento n.º 7, junto com a petição inicial, com tradução apresentada em 2 de Junho de 2023, Ref. Elect. 638179 (não se transcreveram as notas de rodapé).
[51] Cf. Documento n.º 4, junto com a petição inicial, com tradução apresentada em 17 de Maio de 2023, Ref. Elect. 635457 (não se transcreveram as notas de rodapé).
[52] Sem inclusão das notas de rodapé.
[53] Junto em 17 de Maio de 2023, Ref. Elect. 635458.
[54] Cf. Artigo 106º da oposição.
[55] Matéria que infra melhor se explanará.
[56] O segundo dos arestos mencionados foi prolatado no âmbito de acção de anulação de decisão arbitral similar à dos autos mas referente ao outro centro electroprodutor relativamente ao qual se mantém em vigor um CAE.
[57] Documento n.º 6 junto com a petição inicial.
[58] O que é realçado também no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça na acção de impugnação da sentença parcial – cf. documento n.º 2, junto com a oposição (respectiva página 143, parte final).
[59] Adiante designada como Disputa ISP.
[60] Adiante designada pela sigla DGEG.
[61]Podem existir tribunais marítimos, tribunais arbitrais e julgados de paz.”
[62] In ROA, Ano 75, Lisboa, Jul/Dez 2015, pág. 625/30, acessível em https://barrocas.pt/publ/A_Razao2.pdf, consultado em 25 de Janeiro de 2024.
[63] Acessível em ECLI European Case Law Identifier - https://jurisprudencia.csm.org.pt/.
[64] In ROA, ano 56º I, acessível em https://portal.oa.pt/upl/%7B1f567a2e-a58b-4f22-a01a-7d0a31f200b3%7D.pdf, consultado em 25 de Janeiro de 2024.
[65] Cf. Art.ºs 3º e 7º do DL Tarifa Social, este último estatuindo: “1 — A aplicação da tarifa social aos clientes finais economicamente vulneráveis é da responsabilidade dos comercializadores que com eles tenham celebrado contrato de fornecimento de energia eléctrica. 2 — O desconto inerente à tarifa social deve ser identificado de forma clara e visível nas facturas enviadas pelos comercializadores aos clientes que beneficiem do respectivo regime.”
[66] O DL Tarifa Social foi revogado pelo art.º 305º, h) do DL 15/2022, de 14 de Janeiro, que estabelece a organização e o funcionamento do Sistema Eléctrico Nacional (SEN), encontrando-se a matéria da tarifa social de electricidade e seu financiamento prevista nos art.ºs 196º e seguintes deste diploma legal.
[67] Acórdão do Tribunal de Justiça (Quinta Secção), de 14 de Outubro de 2021, no Processo n.º C-683/19, pedido de decisão prejudicial formulado no âmbito de uma acção em que era pedida a anulação do Real Decreto 968/2014, relativo ao desenvolvimento da metodologia para a fixação das percentagens de repartição das quantias a financiar relativas à tarifa social, acessível em https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf;jsessionid=2060B0107B5C7DEEB7939102752A0014?text=&docid=247604&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=5948491.
[68] Entendida como medidas de intervenção pública no funcionamento do mercado da electricidade, que impõem às empresas do sector da energia eléctrica, para efeitos da prossecução de um interesse económico geral, que actuem nesse mercado com base em critérios impostos pelas autoridades públicas.
[69] Cf. Neste sentido, que se acompanha, o Parecer do Professor Dário Moura Vicente de Setembro de 2023, junto pela ré com o seu requerimento de 28 de Setembro de 2023, com a Ref. Elect. 651957.
[70] Entendida no seu conceito inicial, trata-se de uma “disposição que, de forma ostensiva, proíbe ou refere a consequência da revisão de uma legislação existente, decretos, despachos ou outras revisões de cariz unilateral do Estado Hospedeiro referente ao Contrato outorgado com este Estado ou nova legislação, Regulamentos, Decretos e/ou despachos que irão determinar uma revisão na relação jurídica inicialmente estipulada entre o Estado Hospedeiro e o investidor internacional. Ou, se quisermos, elas essencialmente ditam que as mudanças legislativas que de forma desfavorável afectem um projecto, não se aplicam ao mesmo.”; “No fundo, esta cláusula procura assegurar o acordo contra futuras investidas governamentais ou legislativas, seja a título de legislação stricto sensu ou a nível regulamentar. Na prática traduz-se num compromisso dado por um Estado estrangeiro em não alterar os termos do pacto mediante nova legislação ou qualquer outro meio, sem o assentimento das outras partes contratuais.” – cf. Nélia Daniel Dias, in A Estabilidade nos Contratos Petrolíferos Internacionais e alguns dos Princípios Gerais de Direito Conexos: Do Mito à Realidade, pág. 5 e nota (21), acessível em https://portal.oa.pt/upl/%7B4e312b4e-0819-4321-bbbf-fed917df512c%7D.pdf, consultado em 3 de Março de 2024.
[71] Adiante designado pela sigla CCPGR.
[72] Em sentido contrário, sustentando que, não fazendo a lei qualquer distinção, as decisões sobre questões processuais poderão também ser tomadas segundo a equidade, cf. José Robin de Andrade, Lei da Arbitragem…, pág. 157.
[73] Tendo em conta que o acordo das partes nunca poderá prevalecer sobre uma disposição imperativa da lei de arbitragem aplicável.
[74] Com data de Setembro de 2023, junto pela ré com a sua contestação, em 28 de Setembro de 2023, Ref. Elect. 651957.
[75] Tese de Doutoramento em Direito, na área de especialização de Direito Público, Faculdade de Direito Universidade de Coimbra 2015, acessível em https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/28930/1/Contrato%20e%20Poder%20P%C3%BAblico%20Administrativo.pdf, consultada em 11 de Março de 2024.
[76] Conjunto de princípios e regras jurídicas mais ou menos precisas, de natureza fundamental e subjacentes ao sistema jurídico, de natureza imperativa, que formam os quadros fundamentais do sistema, em que se alicerça a ordem económica e social.
[77] Que permite recusar a aplicação de uma norma de direito estrangeiro ou o reconhecimento de uma decisão jurisdicional estrangeira, quando dessa aplicação ou reconhecimento resulte uma intolerável ofensa da harmonia jurídico-material interna ou uma contradição flagrante com os princípios fundamentais que enformam a sua ordem jurídica, mas cujo conteúdo normativo não difere significativamente da ordem pública internacional de direito material.
[78] Como defendeu José Robin de Andrade, in Lei de Arbitragem…, 2012, pág. 81.
[79] Para os Estados Membros da União Europeia, esse papel caberá a esta última.
[80] In Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 152º, N.º 4041, 2023.
[81] In Actas del XI Colóquio Hispano-Português de Derecho Administrativo, 2018, acessível em https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/29918/1/actas.pdf, consultado em 1 de Abril de 2024.
[82] Cf. Considerando (6) da Directiva 2003/54/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de Junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno da electricidade e que revoga a Directiva 96/92/CE.
[83] Consideradas como tais “as pessoas singulares que se encontrem em situação de carência sócio-económica e que, tendo o direito de acesso ao serviço essencial de fornecimento de energia eléctrica, devem ser protegidas, nomeadamente no que respeita a preços” – cf. art.º 2º, n.º 1 do DL Tarifa Social.
[84] Acessível em https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=247604&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=4145401.
[85] Cf. Requerimento de 27 de Setembro de 2023, com a Ref. Elect. 651759.
[86] Note-se que o funcionamento do sector energético exige avultados investimentos, de capital intensivo, para o exercício de actividades económicas consideradas essenciais e de interesse público.
[87] Cf. Documento junto com a oposição, em 28 de Setembro de 2023, com a Ref. Elect. 651957.
[88] Representaram, em conjunto, 7,9% da capacidade instalada do sistema eléctrico nacional e 13,6% da energia produzida em 2011 e o peso da sua participação no mercado ibérico de electricidade (MIBEL), foi, nesse ano, inferior a 1%, quando analisado em termos de potência instalada, e inferior a 2% no que diz respeito à energia negociada – cf. documento n.º 10 junto com a contestação, pp. 5-7, Ref. Elect. 651759.
[89] Cf. Filipe Matias Santos, transcrição supra em sede de apreciação da competência material deste tribunal para apreciação da causa.
[90] Actualmente, cerca de 80% das regras de direito do consumo aplicáveis em Portugal têm origem em directivas da União Europeia – cf. Manual de Direito do Consumo, Jorge Morais Carvalho, 5ª edição, pág. 21, nota 11.
[91] Publicado no DR 2ª Série, n.º 87, de 7 de Maio de 2013.
[92] Dado que os encargos com o pagamento da referida remuneração, na parte que não esteja coberta pelas receitas provenientes da venda da energia eléctrica adquirida ao abrigo dos CAE, são repercutidos na tarifa UGS, que é cobrada a todos os consumidores na sua factura de electricidade, nos termos do n.º 3 do artigo 70.º do Decreto -Lei n.º 172/2006, de 26 de Agosto.
[93] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-09-2017, processo n.º 1008/14.4YRLSB.L1.S1.
[94] Acessível em https://ec.europa.eu/competition/state_aid/cases/133626/133626_497675_48_2.pdf, consultado em 2 de Abril de 2024.
[95] Cf. Art.º 107º do TFUE.
[96] “Os centros electroprodutores que estejam abrangidos por contrato de aquisição de energia celebrado ao abrigo do Decreto-Lei n.º 182/95, de 27 de Julho, ficam excluídos do âmbito de aplicação da presente portaria.”
[97] Norma que se manteve nas subsequentes portarias que previram mecanismo de subsidiação: art.º 2º, n.º 3, b) da Portaria n.º 139/2012, de 14 de Maio; art.º 3º, c) da Portaria n.º 251/2012, de 20 de Agosto; art.º 4º, n.º 1, c) da Portaria n.º 41/2017, de 27 de Janeiro.