IHRU – INSTITUTO DA HABITAÇÃO E DA REABILITAÇÃO URBANA
I.P.
MERCADO SOCIAL DE ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO
TRIBUNAL COMPETENTE
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Sumário

Compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais o julgamento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais (art.º 212º/3 da CRP, art.º 144º/1 da LOSJ e art.º 1º/1 do ETAF), designadamente questões relativas à tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais (art.º 4º/1 a) do ETAF); e à validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos (art.º 4º/1 e) do ETAF).

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
 IHRU - Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, I.P. intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra A e B, concluindo que “deve a presente acção ser julgada procedente e, em consequência:
- Ser declarada a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre o Autor e os Réus com fundamento na falta de pagamento das rendas devidas;
- Ser ordenada a entrega do imóvel livre e devoluto de pessoas e bens ao Autor;
- Ser os Réus condenados no pagamento das rendas vencidas no valor de €6.864,27 e vincendas, acrescida dos respectivos juros de mora calculados à taxa supletiva legal desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.”
Alegou, em síntese, que, na qualidade de proprietário do locado, em 20 de Novembro de 2018, celebrou contrato de arrendamento com os réus, após a candidatura destes no âmbito do denominado Mercado Social de Arrendamento e respectiva aprovação da mesma. Os réus não procederam ao pagamento das rendas que elenca.
Os réus, citados, contestaram, invocando a incompetência do Tribunal em razão do território e imputando a falta de pagamento a conduta do próprio autor.
Na sequência do despacho proferido em 4/5/2023, foram as partes notificadas para se pronunciarem acerca da eventual incompetência do Tribunal em razão da matéria, face à previsão do art.º 4º do ETAF.
Apenas o autor se pronunciou, sustentando a competência do Tribunal, uma vez que o contrato celebrado entre as partes teve início em 01.12.2018, foi atribuído no âmbito do Regime do Mercado Social de Arrendamento, e não no âmbito do Regime de Arrendamento Apoiado, pelo que à relação contratual entre autor e réus é aplicam-se única e exclusivamente normas de direito privado.
O tribunal de 1ª instância proferiu decisão, datada de 23/6/2023, com o seguinte dispositivo:
“Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo das referidas disposições legais, julgo verificada a excepção dilatória da incompetência absoluta do tribunal e, em consequência, declaro este tribunal incompetente em razão da matéria, absolvendo os réus da instância.
Custas pelo autor – art.º 527.º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.
Valor da acção: 15.301,59€ (quinze mil trezentos e um euros e cinquenta e nove cêntimos)
Registe e notifique.”
Inconformado com tal decisão, veio o autor IHRU – Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, I.P. dela interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
A. Entende o MM Juiz do Tribunal a quo que as partes celebraram contrato administrativo, que se encontra sujeito à apreciação dos Tribunais Administrativos.
B. O MSA foi criado em 2011 consiste numa bolsa de imóveis para arrendamento, com valores de renda mensais até 30% abaixo dos valores médios praticados no mercado, e compreende a utilização de casas devolutas para integração no mercado de arrendamento satisfazendo necessidades básicas de habitação.
C. Apresentando uma solução de arrendamento para as famílias com rendimentos médios, que têm um rendimento demasiado elevado para ser enquadrado no mercado de arrendamento social, mas tem dificuldade em aceder ao mercado livre de arrendamento, face aos valores praticados.
D. Assim, os contratos celebrados ao abrigo do MSA não são contratos de arrendamento apoiado, a denominada habitação social, são precisamente agregados familiares que estão excluídos dos programas de atribuição de habitação social.
E. O MSA não seguiu o Regulamento de Acesso e Atribuição de Habitações do Autor, em Regime de Arrendamento Apoiado, publicado no Diário da República n.º 24/2018, II Série, de 02/02/2018, pelo que aos contratos celebrados aplicam-se exclusivamente as normas de direito privado.
F. Veja-se o disposto na Cláusula Décima Primeira do contrato de arrendamento celebrado, quanto à legislação aplicável: “o presente contrato rege-se, em tudo o que for omisso, pela lei portuguesa, nomeadamente por todas as disposições do Código Civil e demais legislação aplicável ao arrendamento urbano para habitação”.
G. O contrato de arrendamento celebrado entre as partes não se encontra submetido à Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro, mas sim ao NRAU e ao Código Civil.
H. O MSA não conta apenas com imóveis disponibilizados por entidades públicas, mas também por inúmeras entidades bancárias como o Banco Espírito Santo, o Banif, o Banco Popular, o Santander Totta, o Montepio Geral, o Millennium BCP ou a Caixa Geral de Depósitos.
I. Pelo que aceitar o entendimento do MM Juiz de Direito a quo implica considerar os contratos de arrendamento celebrados pelas referidas entidades bancárias privadas como contratos administrativos.
J. O facto de o Autor ser uma pessoa colectiva de direito público não pode ser utilizado como critério “cego” para a qualificação do contrato como administrativo, pois são inúmeras as situações, além da que nos ocupa nos presentes autos, em que o Autor actua desprovido dessa qualidade.
K. O contrato celebrado não confere ao Autor poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os Réus, nem atribui direitos ou impõe deveres públicos aos Réus.
L. Na verdade, o contrato prevê expressamente a aplicação do Código Civil e demais legislação aplicável ao arrendamento urbano, por outras palavras aplicam-se as normas de direito privado, não as normas de direito administrativo.
M. O Autor enquanto senhorio pretende a cessação do contrato de arrendamento celebrado, por resolução, ordenando-se a entrega imediata do imóvel livre e devoluto de pessoas e bens e bem assim a condenação
dos Réus no pagamento das rendas vencidas e rendas vincendas, acrescida dos respectivos juros de mora até efectivo e integral pagamento e entrega efectiva do bem imóvel.
N. A competência do Tribunal determina-se pelo pedido formulado pelo autor e pelos fundamentos que invoca. Por sua vez, a competência material é fixada em função dos termos em que a acção é proposta, concretamente, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como configurada na petição inicial, relevando, nomeadamente, a identidade das partes, a pretensão e os seus fundamentos.
O. Dispõe o artigo 64.º, do Código de Processo Civil, no âmbito da competência em razão da matéria, que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (cfr. art.º 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto).
P. Assim, importa aferir a identidade das partes, as suas pretensões e fundamentos a fim de verificar a competência do presente Tribunal em razão da matéria.
Q. No caso concreto, os autos fundam-se no incumprimento de contrato de arrendamento celebrado ao abrigo das normas de direito privado (leia-se Código Civil e demais legislação aplicável ao arrendamento urbano para habitação), e não de direito público/ administrativo.
R. Pelo que, por maioria de razão, não poderia discutir-se uma eventual relação jurídica em termos administrativos, sendo que a competência material se encontra assim atribuída aos Tribunais Judiciais.
S. O caso dos autos não consubstancia um contrato administrativo, ou seja, um acordo de vontades bilateral ou plurilateral, envolvendo sempre, pelo menos, um contraente público, sujeito a um regime substantivo de direito administrativo, como tal qualificado pela lei reguladora da contratação pública ou lei especial.
T. O seu conteúdo não é regulado por normas de Direito Administrativo, de que tipicamente resulta a prevalência do interesse público face aos interesses privados, manifestada em poderes exorbitantes do contraente público.
U. Pese embora o contrato de arrendamento tenha sido celebrado no âmbito do MSA, que correspondem a instrumento criado pelo Estado, a vertente pública extingue-se na regulamentação do programa, definindo os critérios para a inscrição dos senhorios e arrendatários, já que a formação e execução dos contratos ocorre na esfera privada das partes, sem qualquer intervenção ou ingerência pública, tratando-se de um contrato de arrendamento típico celebrado no âmbito do mercado de arrendamento.
V. O presente litígio não emerge de nenhuma relação jurídica administrativa entre Autor e Réus, o Autor não actua no uso dos poderes de contraente público, pois cabe ao ora Autor, no âmbito das competências que lhe foram atribuídas pelo Decreto-Lei 175/2012, de 02/08, dar de arrendamento imóveis da sua propriedade a pessoas carenciadas, bem como alienar habitações e ou outros edifícios destinados à habitação social ou instalações de interesse público (cfr. artigo 3º do supra citado diploma legal) e como se vê, não se incluem nas competências do Autor a celebração de contratos de arrendamento como o dos presentes, ao qual expressamente se aplicam as normas de direito privado.
W. Atento o que atrás se deixou referido, salvo o devido respeito por entendimento distinto, a causa de pedir dos presentes autos não pode ser submetida à competência material dos Tribunais Administrativos, sendo competente o douto Tribunal para julgar os presentes autos.
X. A douta sentença violou assim o disposto nos artigos 211º, nº 1, 212º, nº 3 ambos da Constituição da República Portuguesa, o artigo 1083.º do CC e o artigo 14.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, devendo ser revogada e substituída por outra que julgue o Tribunal Judicial competente para dirimir este litígio.”
Pugna pela revogação da decisão recorrida e sua alteração e substituição por outra que ordene o prosseguimento dos autos, declarando competente para conhecer o presente litígio o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte.
Os réus apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e concluindo da seguinte forma:
“1ª – Em 29.11.2023 (ref. Citius 146927472), o tribunal a quo proferiu sentença a declarar-se incompetente em razão da matéria, por verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta, entendimento que os recorridos subscrevem.
2ª – A relação jurídica entre recorrente e foi celebrada ao abrigo de um programa de iniciativa pública, cujos objetivos visam cumprir políticas públicas, não sendo a própria relação entre os contratantes de total paridade, já que o recorrente possui determinadas prerrogativas de direito público.
3ª – As exigências, os pressupostos de atribuição específica e as características de direito público que ressaltam da relação jurídica em apreço indiciam a existência de uma relação de direito público, nos termos descritos e previstos na alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.
4ª – O contrato de arrendamento objeto do litígio foi celebrado no âmbito do “Mercado Social de Arrendamento” (doravante “MSA”), uma iniciativa da Administração Central do Estado que teve e tem como objetivo principal dar resposta, na área da habitação, às pessoas cujos rendimentos são reduzidos ao ponto de não conseguirem aceder ao mercado livre.
5ª – As rendas pagas pelos inquilinos ao abrigo deste programa são reduzidas em até 30%, por comparação à oferta no mercado livre e são acordadas diretamente com os Municípios, a nível nacional.
6ª – O MSA é uma iniciativa pública, que visa a promoção de igualdade – direito constitucionalmente consagrado –, através da mitigação do aumento de preços no mercado de arrendamento, de forma a exponenciar o acesso à habitação no país.
7ª – O facto de o programa não visar a cedência de imóveis – dita habitação social – não significa que deixa de ser uma iniciativa pública ou uma situação de arrendamento apoiado (lato sensu), pois largo é o leque de incumbências do Estado no que concerne a habitação, para além do quadro dos mais necessitados.
8ª – Os intervenientes públicos, dos quais o réu faz parte, não podem ignorar o regime que define a forma como atuam, as suas prerrogativas, os seus deveres e os objetivos que prosseguem, ao contrário das entidades provadas.
9ª – Os próprios critérios de seleção para o acesso a este mercado são definidos por políticas públicas afastando-se da autonomia privada.
10ª – As candidaturas são apresentadas junto de serviços públicos.
11ª – No n.º 2 da cláusula sétima do contrato celebrado, o réu fez constar uma prerrogativa sua de direito público: “(…) DOIS – No caso de incumprimento do contrato por falta de pagamento de rendas ou de outros encargos devidos nos termos legais e contratuais, ao IHRU reserva-se o direito de recorrer à cobrança Coerciva da correspondente dívida através do processo de execução fiscal, nos termos do artigo 21º do Decreto-Lei nº 175/2012, de 02 de Agosto.(…)”, tal como dispõe o artigo 21.º do Decreto-Lei nº 175/2012, de 02 de agosto (Lei Orgânica do IHRU, I. P).
12ª – Está em causa a apreciação da vigência de um contrato de arrendamento em que surge, como contratante, uma entidade administrativa, no exercício das suas atribuições legais, com vista a promover o acesso à habitação, que tem como objeto um imóvel pertencente à mesma e cuja disciplina se afasta do regime normal do arrendamento no que tange à cobrança de rendas.
13ª – O contrato de arrendamento enquadra-se nos contratos abrangidos pela al. e) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF, cabendo a apreciação da sua validade e vigência à jurisdição administrativa e fiscal.
14ª – São, portanto, os tribunais administrativos e fiscais que têm competência para dirimir o caso sub judice; a incompetência absoluta do tribunal, resultante da infração das regras da competência em razão da matéria constitui exceção dilatória e conduz à absolvição da instância, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 96.º, al. a), 97.º, 99.º, 278.º, n.º 1, al. a), 576.º, nºs 1 e 2, 577.º, al. a) e 578.º, todos do CPC.”
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados nos artigos 635º/4 e 639º/1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importa, no caso, apreciar e decidir se se verifica a excepção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A factualidade relevante para a decisão é a que consta do relatório supra.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Insurgindo-se contra a decisão recorrida, que julgou os tribunais administrativos competentes para apreciar o presente litígio, defende o apelante que “pese embora o contrato de arrendamento tenha sido  celebrado no âmbito do mercado social de arrendamento (MSA), que corresponde a instrumento criado pelo Estado, a vertente pública extingue-se na regulamentação do programa, definindo os critérios para a inscrição dos senhorios e arrendatários, já que a formação e execução dos contratos ocorre na esfera privada das partes, sem qualquer intervenção ou ingerência pública, tratando-se de um contrato de arrendamento típico celebrado no âmbito do mercado de arrendamento.”
Em sentido contrário, dizem os apelados: “Está em causa a apreciação da vigência de um contrato de arrendamento em que surge como contratante, uma entidade administrativa no exercício das suas atribuições legais, com vista a promover o acesso à habitação, que tem por objecto um imóvel pertencente à mesma e cuja disciplina se afasta do regime normal do arrendamento no que tange à cobrança de rendas.” Concluindo que “o contrato de arrendamento enquadra-se nos contratos abrangidos pela al e) do nº 1 do art.º 4º do ETAF, cabendo a apreciação da sua validade e vigência à jurisdição administrativa e fiscal.”
Vejamos.
A questão a decidir respeita à competência material do tribunal, sendo que a incompetência em razão da matéria configura um caso de incompetência absoluta (art.º 96º a) do CPC), que implica a absolvição do réu da instância ou o indeferimento liminar, quando o processo o comportar (art.º 99º/1).
Decorre do artigo 211º/1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) que os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
Sob a epígrafe «factores determinantes da competência na ordem interna», dispõe o art.º 60º do Código Processo Civil que:
“1. A competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições deste Código.
2. Na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, o valor da causa, a hierarquia judiciária e o território.”
Por seu turno, sob a epígrafe «competência em razão da matéria», prescreve o art.º 40.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ, aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, sucessivamente alterada) que:
“1 - Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
2 - A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada.”
Tal regime encontra correspondência na previsão dos arts 64º e 65º do CPC.
 Adicionalmente, estabelece o art.º 212º/3 da CRP que “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”
Dispondo o art.º 144º/1 da LOSJ que “Aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.”
Quanto ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal rege o art.º 1º/1 e o art.º 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF, aprovado pela Lei 13/2002, de 19 de Fevereiro, na versão actual), estipulando designadamente as alíneas a) e e) do art.º 4º que: “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;”
Os tribunais judiciais têm, pois, competência residual, abarcando todas as questões cuja apreciação não seja atribuída a tribunais de outra ordem jurisdicional (v.g. tribunais administrativos e fiscais).
A competência do tribunal em razão da matéria afere-se de harmonia com a relação jurídica controvertida, tal como definida pelo autor no que se refere aos termos em que propõe a resolução do litígio, a natureza dos sujeitos processuais, a causa de pedir e o pedido (vide acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/6/2017 proferido no P. 259/16.1T8PBL.C2, publicado em www.dgsi.pt).
Importa, pois, determinar se a presente acção pode ser integrada em alguma das alíneas do nº 1 do art.º 4º do ETAF, designadamente na alínea e), afastada que está a hipótese de aplicação dos nºs 2, 3 e 4 do mesmo preceito.
Em causa está um contrato de arrendamento (para habitação permanente com prazo certo – cf. doc nº 2 junto com a petição inicial – ref. citius 21478683) em que são outorgantes o autor/apelante Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana, IP (IHRU) e os réus/apelados A e B, contrato esse celebrado, em 20/11/20, no âmbito do mercado social de arrendamento (facto assumido por ambas as partes), tendo os réus apresentado a respectiva candidatura através de formulário disponibilizado no Portal da Habitação, acessível na internet (cf. docs nº 3 e 4 junto com a petição inicial, ref. citius 21478683).
O contrato situa-se, pois, no domínio da habitação social (destinada a satisfazer as necessidades da população mais carenciada, sendo a habitação/arrendamento atribuída por razões de interesse público, de acordo com os critérios legais, exigindo a ponderação dos respectivos rendimentos familiares), o que constitui uma atribuição do Estado (cf. art.º 65º/1 e 3 da CRP), sendo que, como sublinhou o tribunal a quo na decisão sob recurso, o IHRU é um instituto público de regime especial e gestão participada, nos termos da lei, integrado na administração indireta do Estado, dotado de autonomia administrativa e financeira e património próprio (art.º 1º/1 do DL 175/2012, de 2 de Agosto, que aprovou a orgânica do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, I.P.), prosseguindo atribuições do Ministério da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, sob superintendência e tutela do respectivo ministro (art.º 1º/2 do citado diploma), tendo por missão assegurar a concretização da política definida pelo Governo para as áreas da habitação e da reabilitação urbana, de forma articulada com a política de cidades e com outras políticas sociais e de salvaguarda e valorização patrimonial, assegurando a memória do edificado e a sua evolução (art.º 3º/1).
Entre as suas atribuições legais, constam as consignadas na alínea v) do nº 2 do art.º 3º: “Adquirir ou arrendar imóveis para alojamento de pessoas em situação de carência habitacional ou para instalação de equipamentos de utilização coletiva em bairros sociais.”; e na alínea s): “Ceder a propriedade ou direitos reais menores sobre os prédios e frações autónomas que integram o seu património imobiliário e atribuí-los em arrendamento ou por outra forma legalmente aplicável.”
Como decorre do contrato sub judice, estipula a cláusula 7ª nº 2 que «No caso de incumprimento do contrato por falta de pagamento de rendas ou outros encargos devidos nos termos gerais ou contratuaus, ao IHRU reserva-se o direito de recorrer à cobrança coerciva da correspondente dívida através do processo de execução fiscal, nos termos do art.º 21º do Decreto-Lei nº 175/2012 de 2 de Agosto.»
Este regime configura, sem dúvida, um desvio ao regime geral da locação civil, o que associado ao carácter público da entidade e atribuições de interesse público cometidas ao outorgante IHRU, o qual procedeu (dotado de poderes de autoridade para cumprimento das suas tarefas de realização do interesse público - cf. Ac TRL de 25/5/23, P. 111178/21.3YIPRT.L1-2, relator Nelson Borges Carneiro, www.dgsi.pt), nos termos legais, à apreciação prévia da candidatura dos réus (ao arrendamento social), permite qualificar a relação jurídica emergente do contrato como relação jurídico-administrativa e não como um litígio de natureza privada ou jurídico-civil. Neste sentido, decidiu o acórdão do TRE de 1/10/2018, P. 3652/17.9T8FAR.E1, relatora Florbela Lança in www.dgsi.pt. – citado pelo tribunal recorrido - em caso idêntico (em que o contrato de arrendamento continha cláusula equivalente).
 No caso dos contratos de arrendamento de renda apoiada a que se reporta a Lei nº 81/2014, de 19 de Dezembro, é estabelecida a sua natureza de contrato administrativo e a sua sujeição ao respectivo regime jurídico (art.º 17º/2), atribuindo a lei expressamente competência dos tribunais administrativos para conhecer das matérias relativas à invalidade ou cessação de tais contratos (art.º 17º/3). Vide, quanto a este ponto, o acórdão do TRE de 14/2/2019, P. 186/18.8T8FRT.E1, relator Manuel Bargado e o acórdão do Tribunal de Conflitos de 9/12/2014, Processo 036/14, relator Paulo Sá, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
Não podendo subsumir-se, sem mais, o contrato dos autos ao regime previsto na referida Lei nº 81/2014, desde logo, porque do mesmo não consta o regime legal aplicável (cf. art.º 18º/1 a) da Lei nº 81/2014) e demais elementos ali previstos (v.g. alíneas f) e  h) do art.º 18º/1 do mesmo diploma), devemos recorrer às aludidas características dos seus outorgantes e especificidade do regime constante do contrato para qualificar a relação dele emergente como relação jurídico-administrativa e como tal enquadrável no art.º 4º/2 e) do ETAF.
Neste conspecto, escreveu-se no acórdão do TRL de 28/1/2014 (P. 5/12.9TVLSB.L1, relator Rui Vouga in www.dgsi.pt.), que “o critério em causa, de conteúdo material, entronca agora em conceitos como a relação jurídica administrativa e a função administrativa, havendo que deparar-se com uma relação jurídica em que um dos sujeitos, pelo menos seja ente público (Administração, intervindo com poderes de autoridade, com vista à realização do interesse público), regulada por normas de direito administrativo.” No mesmo sentido, veja-se o acórdão do TRG de 13/9/2012, P. 654/12.5TBGMR.G1, relator Conceição Ferreira, in www.dgsi.pt.
Sobre esta matéria, embora num caso diferente, pronunciou-se o acórdão proferido nesta secção em 6/7/2021 (P. 1297/20.5T8PDL.L1, relatora Micaela Sousa): “Por força deste normativo legal [art.º 4º do ETAF] tem-se vindo a entender que a delimitação da competência material entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais deixou de assentar na distinção tradicional entre “actos de gestão pública” e “actos de gestão privada”, para passar a fazer-se com abstracção da natureza das normas que materialmente regulam o contrato, bastando para o efeito que a lei preveja a possibilidade da sua submissão a um procedimento pré-contratual de direito público, ou seja, tudo estaria em determinar “se, relativamente aos contratos visados nos autos, havia lei específica que os submetesse ou permitisse a sua submissão a um regime pré-contratual de carácter juspublicístico” –. cf. acórdão do Tribunal de Conflitos de 11-03-2010, relator Azevedo Moreira, processo n.º 028/09.
Como se refere de modo claro no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-10-2015, relator Tomé Gomes, processo n.º 678/11.0TBABT.E1.S1 citando relevante doutrina:
“Nas palavras de Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira […]: «A opção tomada na alínea e), que constitui a grande revolução do Código na matéria, traduziu-se na adição à jurisdição dos tribunais administrativos do conhecimento dos litígios relativos a contratos precedidos ou precedíveis de um procedimento administrativo de adjudicação, independentemente da qualidade das partes nele intervenientes – de intervir aí uma ou duas pessoas colectivas de direito público ou apenas particulares – e independentemente de, pela natureza e regime, eles serem contratos administrativos ou contratos de direito privado (civil, comercial, etc.»
De igual modo, se pronunciam Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, quando sustentam que: «Sem prejuízo de outros casos que possam resultar de legislação especial, inscreve-se ainda nas competências dos tribunais administrativos, por força do artigo 4.º, n.º 1, - que, deste modo, amplia o âmbito da jurisdição administrativa (…) a apreciação de litígios: b) relativos à interpretação, validade e execução de qualquer tipo de contrato, desde que haja lei especial que diga que esse tipo específico de contrato (ou que um contrato com esse objecto) deve ser obrigatoriamente precedido (ou pode sê-lo) de um procedimento pré-contratual (concurso público, concurso limitado, negociação ou ajuste directo) regulado por normas de direito público (…)»
E ainda Mário de Aroso de Almeida, observa que: «A previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF possui, contudo, um alcance mais amplo, pois, […] atribui à jurisdição administrativa a competência para dirimir os litígios emergentes de todos os contratos que a lei submeta, ou admita que possam ser submetidos, a um procedimento de formação regulado por normas de direito público, independentemente da questão de saber se “a prestação do co-contraente pode condicionar ou substituir, de forma relevante, a realização das atribuições do contraente público.»”
No sentido sufragado no presente acórdão, pronunciou-se também o acórdão do Tribunal de Conflitos de 14/3/2013, P. 025/12, relator Madeira dos Santos, em cujo sumário se pode ler: “Nos termos da al. e) do n.º 1 do art.º 4º do ETAF, compete à jurisdição administrativa conhecer da acção de despejo referente a um contrato de arrendamento legalmente precedido de um procedimento pré-contratual de direito público para selecção do arrendatário.”
Flui de todo o exposto que, atenta a relação jurídico-administrativa emergente do acordo celebrado entre as partes, cabe aos tribunais administrativos a competência material para apreciar e julgar a presente acção, não merecendo censura a decisão recorrida, que julgando verificada a excepção de incompetência absoluta do tribunal, absolveu os réus da instância.
Improcede, pois, a apelação.
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V – DECISÃO
Pelo exposto, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando, em consequência, a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente (art.º 527º/1 do Código Processo Civil)
Registe e notifique.
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Lisboa, 23 de Abril de 2024
Ana Mónica Mendonça Pavão
Carlos Oliveira
Paulo Ramos de Faria