IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
PODERES DA RELAÇÃO
LEI PROCESSUAL
VIOLAÇÃO DE LEI
MATÉRIA DE DIREITO
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
MEIOS DE PROVA
DUPLA CONFORME
DECISÃO MAIS FAVORÁVEL
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
Sumário


O dever de o juiz examinar criticamente as provas, a que se refere o n.º 4 do artigo 607.º do CPC, não implica o dever de o juiz expor, na fundamentação da decisão de facto, o exame crítico de todas as provas produzidas. O que é indispensável é que o juiz indique a sua convicção sobre cada facto e especifique os fundamentos que foram decisivos para tal convicção

Texto Integral


Acordam na 2.ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça


Ernesto Pinto, Lda, com sede na Rua ..., em ..., propôs acção declarativa com processo comum contra Magiaformosa – Investimentos Imobiliários, Lda, com sede na Rua ..., ..., pedindo:

a. Se declarasse resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre a autora e a ré, em 23.01.2018, e que teve por objeto a fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão com os n.ºs 172 e 174, do prédio urbano sito na Rua ..., nºs 172 a 182, em ..., a partir de 02.10.2020;

b. A condenação da ré MagiaFormosa – Investimentos Imobiliários Lda., a reconhecer a resolução do contrato de arrendamento celebrado com a autora, em 23.01.2018 nos termos aludidos a petição, a partir de 02.10.2020, e, em consequência,

c. A condenação no pagamento à autora pela mora na entrega do locado nos termos referidos na petição, a título de sanção pecuniária compulsória, na indemnização prevista no n.º 1 da cláusula Décima-Primeira do Contrato de Arrendamento, no montante de € 78.250,00;

d. A condenação da ré no pagamento à autora pela não entrega definitiva e culposa da fração autónoma arrendada supra-referida, na indemnização prevista no n.º 2 da cláusula Décima-Primeira do Contrato de Arrendamento, no montante de € 140.00,00€.

e. Em consequência, a condenação da ré no pagamento à autora de indemnização pelo não cumprimento das suas obrigações referidas nas alíneas c) e d) do pedido e consequente incumprimento definitivo e culposo do contrato de arrendamento, no montante global de € 218.250,00 (duzentos e dezoito mil, duzentos e cinquenta euros) a que devem acrescer os juros de mora vincendos desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Para o efeito alegou em síntese:

• Que celebrou com a ré, em 23 de Janeiro de 2018, um contrato de arrendamento pelo prazo de 6 anos, improrrogável, tendo por objecto a fracção “A” de um prédio sito na Rua ..., ..., que se destinava exclusivamente a actividade de comércio de ourivesaria, joalharia e relojoaria, da arrendatária;

• Que dada a circunstância de o edifício de que fazia parte a fracção ir ser sujeito a obras de reabilitação, ela e a ré acordaram que o contrato ficaria suspenso até que as obras de reabilitação do prédio urbano e da fracção permitissem a reabertura do estabelecimento ao público;

• Que a autora e a ré acordaram que a senhoria procuraria entregar a fracção autónoma à arrendatária 75 dias antes das obras de reabilitação do prédio findarem;

• Que a senhoria notificaria a arrendatária da data em que poderia tomar posse da loja para realizar as intervenções para preparação da abertura do estabelecimento;

• Que, em caso de incumprimento culposo do contrato, a parte faltosa, depois de notificada para o cumprimento, ficava obrigada ao pagamento de 250 euros por cada dia de incumprimento, a título de sanção pecuniária compulsória, com o limite de 140 000 euros;

• Que caso o incumprimento da senhoria respeitasse à não entrega definitiva e culposa da fracção autónoma, sendo a entrega possível em função das normas legais, da realização da obra de reabilitação e sem prejudicar o seu andamento e celeridade, estava obrigava-se a indemnizar a arrendatária em 140 000 euros;

• Que a ré não concluiu as obras de reabilitação da fracção nem nunca a entregou à autora para preparar a abertura do estabelecimento ao público.

A ré contestou e deduziu reconvenção. Em sede de defesa pediu se julgasse improcedente a acção. Em reconvenção pediu:

a. Se declarasse licitamente resolvido pela ré o contrato de arrendamento celebrado entre a autora e a ré no dia 23.01.2018, relativo à loja no R/C, sita na Rua ..., 172 a 174, em ..., correspondente à fração “A”, nos termos das comunicações realizadas pela ré à autora;

b. Caso assim se não entendesse, se declarasse a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre a autora e a ré no dia 23.01.2018, relativo à loja no R/C, sita na Rua ..., 172 a 174, em ..., correspondente à fração “A”, por incumprimento da autora que, pela sua gravidade ou consequências, tornou inexigível o contrato de arrendamento, nos termos do art.º 1083, nº 2, do CC, e/ou por falta de pagamentos de rendas, nos termos do nºs 3 e 4 do art.º 1083, do CC;

c. A condenação da autora a pagar à ré:

• (i) O valor das rendas de 2020, designadamente a renda de Março – no valor de 2.258,00€, deduzindo os primeiros 3 dias de Março –, e das rendas de Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro e Outubro, estas no valor de 2.500,00€ cada, tudo no total 19.758,00€, acrescido de juros à taxa legal aplicável a créditos de comerciantes, ascendendo, nesta data, ao valor de 1.383,06€, sendo ainda devidos os juros vincendos e até integral pagamento, à mesma taxa aplicável a créditos de comerciantes;

• (ii) o valor de 250,00€ por cada dia de incumprimento do contrato de arrendamento, pelo menos desde 19 de Dezembro de 2019 e até à data em que a resolução do contrato de arrendamento realizada pela ré produziu efeitos, isto é, no dia 26 de Outubro de 2020, no total de 311 dias, no valor total de 77.750,00€, acrescido de juros à taxa legal aplicável a créditos de comerciantes, ascendendo, nesta data, ao valor de 6.352,07€, sendo ainda devidos os juros vincendos e até integral pagamento, à mesma taxa aplicável a créditos de comerciantes.

A autora respondeu, pedindo se julgassem improcedentes as excepções invocadas, se julgasse improcedente a contestação e se julgasse improcedente a reconvenção. Mais pediu a condenação da ré, como litigante de má-fé, no pagamento de indemnização a favor da autora/reconvinda e no máximo de multa a favor do tribunal.

A ré pediu a condenação da autora como litigante de má-fé e em multa e indemnização a favor dela.

O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência final foi proferida sentença que decidiu:

1. Julgar a acção improcedente por não provada e, em consequência, absolver a Ré MAGIAFORMOSA – INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA. dos pedidos formulados pela autora ERNESTO PINTO, LDA.

2. Julgar a reconvenção parcialmente procedente e, em consequência:

a. Declarar resolvido o contrato de arrendamento celebrado por autora e ré em 23 de Janeiro de 2018;

b. Condenar a autora/reconvinda ERNESTO PINTO, LDA. a pagar à ré/reconvinte MAGIAFORMOSA – INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA. quantia de € 77.750,00, a que acresciam juros de mora comerciais desde a notificação da autora da reconvenção até efectivo e integral pagamento;

c. Absolver a autora/reconvinda do demais peticionado – rendas e juros de mora vencidos.

3. Julgar improcedente o pedido de condenação da Autora ERNESTO PINTO, LDA. como litigante de má-fé.

4. Julgar improcedente o pedido de condenação da Ré MAGIAFORMOSA – INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA. como litigante de má-fé.

Apelação:

A autora não se conformou com a sentença e interpôs recurso de apelação, pedindo se revogasse e substituísse a sentença recorrida por decisão:

• Que condenasse a ré no pagamento à autora, pela mora na entrega do locado nos termos referidos na petição, a título de sanção pecuniária compulsória, na indemnização prevista no n.º 1 da cláusula Décima Primeira do Contrato de Arrendamento, no montante de € 78.250,00;

• Que reconhecesse e declarasse a resolução do contrato de arrendamento celebrado com a autora em 23.01.2018, a partir de 02.10.2020;

• Que condenasse a ré no pagamento à autora pela não entrega definitiva e culposa da fração autónoma arrendada supra referida, na indemnização prevista no n.º 2 da cláusula Décima-Primeira do contrato de arrendamento, no montante de € 140.00,00€.

Por acórdão proferido em 13-12-2023, o tribunal da Relação de ... julgou parcialmente procedente a apelação e, em consequência:

• Revogou a sentença proferida na 1.ª instância, na parte em que condenou a autora a pagar à ré reconvinte a quantia de € 77.750,00 e substituiu esse segmento da sentença por decisão a condenar a autora a pagar à ré reconvinte a quantia de 44 250 euros (quarenta e quatro mil duzentos e cinquenta euros;

• Manteve a parte restante do acórdão recorrido.

Revista

A autora/apelante não se conformou com o acórdão e interpôs recurso de revista, pedindo se revogasse e substituísse o acórdão recorrido por outro que julgasse procedente a impugnação da matéria de facto quanto aos factos 10, 19, 33 e 37 e que julgasse verificado o incumprimento do contrato celebrado por parte da ré, assim como resolvido o contrato pela autora em Outubro de 2020, com as legais consequências.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:

1. Ascende à douta cognição deste Superior Tribunal “ad quem”, o presente recurso de revista sobre o Douto Acórdão de fls...., que julgou o recurso de apelação, pela mesma interposto, parcialmente procedente, quer no que respeita à deduzida impugnação da decisão sobre a matéria de facto, quer no que respeita à deduzida impugnação da decisão de direito.

2. Acórdão, este, com o qual a ora recorrente não concorda e não se pode conformar, na parte em que julgou improcedente o recurso de apelação interposto, e, bem assim, na parte da decisão proferida quanto à alteração da matéria de facto dos pontos 10, 19, 33 e 37 dos factos julgados provados.

3. O Acórdão proferido, nessas partes, viola e faz uma errada aplicação de normas de direito substantivo e processual, aplicáveis, nomeadamente do disposto nos artigos 236.º, 246.º, 250.º, 252.º, 342.º, 349.º, 376.º, 803.º, 808.º, 810.º, 1031..º e 1083º do CC e artigos 574.º, 608.º, 662..º e 663º do C.P.C.

4. No seguimento da deduzida impugnação da decisão proferida em 1ª instância sobre a matéria de facto, veio o Tribunal a quo alterar a resposta dada aos seguintes factos julgados provados:

• “Ponto 10. As obras de reabilitação da loja arrendada à Autora foram concluídas em 6.”

• “Ponto 37: A A. sempre recusou receber as chaves até à data de 7 de Outubro de 2020, data em que pôs termo ao contrato de arrendamento.”

• “Ponto 38: O mecanismo de movimentação das chapas metálicas que se encontravam na fachada da loja foram instalados, mas encontram-se a funcionar apenas mecanicamente (o do vão central só depois de re8rada a porta de vidro interior), não tendo sido testado o funcionamento dos mesmos com os motores elétricos.”

• “Ponto 41. A Ré instalou os vidros simples nas laterais da loja, o mais tardar a 6 de em Março de 2020.”

5. Passou também para o elenco dos factos provados os seguintes factos antes julgados não provados, e manteve os demais factos impugnados do elenco de factos provados e do elenco de factos não provados:

• “b) As grades e portas de segurança na fachada da entrada da loja que corresponde ao locado são condição essencial para a realização das obras no interior da loja e para a abertura ao público do estabelecimento e do subsequente funcionamento da loja, pela segurança que conferem ao estabelecimento e aos bens existentes no interior do mesmo.”

• “e) As grades e as portas de segurança colocadas na fachada da entrada da loja só estavam a funcionar mecanicamente, o que era complicado, pois não correspondia ao seu normal funcionamento que era elétrico.”

• “g) A A. contratou eletricidade com a EDP para a loja dos autos, por contrato datado de 9 de Julho de 2020. Por mail de 15 de Julho a A. comunica à R. que a colocação do quadro elétrico seria efetuada a 16 de Julho e solicita a presença para abertura da porta. Na mencionada data a R. não se fez representar nem jus8ficou a sua falta. A 24 de Julho a EDP volta a deslocar-se ao local para colocar o contador, não o tendo feito por não ter acesso - doc.17.”

• “l) A Ré retirou a porta em vidro e colocou um sistema de “lagartas” (gradeamento em metal).”

6. E, por fim, aditou à matéria julgada provada os seguintes factos:

• “1- em 04/12/2019 a A. remeteu à R., e esta recebeu a comunicação junta à p.i. sob o n.º 11, com o conteúdo que aqui se dá por integralmente reproduzido;

• 2- em 26/05/2020 a A. remeteu à R., e esta recebeu a comunicação junta à p.i. sob o n.º 22, com o conteúdo que aqui se dá por integralmente reproduzido;

• 3- em 08/06/2020 a A. remeteu à R., e esta recebeu a comunicação junta à p.i. sob o n.º 23, com o conteúdo que aqui se dá por integralmente reproduzido;

• 4- em 15/07/2020 a A. remeteu à R., e esta recebeu a comunicação junta à p.i. sob o n.º 19, com o conteúdo que aqui se dá por integralmente reproduzido;

• 5 - em 16/07/2020 os técnicos da EDP que se deslocaram à fração arrendada com um representante da A. emitiram a nota de visita constante do doc. 21 junto com a p.i., por não ter sido possível proceder à instalação de energia elétrica.

• 6- em 17/07/2020 a A. remeteu à R., e esta recebeu a comunicação junta à p.i. sob o n.º 24, com o conteúdo que aqui se dá por integralmente reproduzido;

• 7- em 21/07/2020 a A. remeteu à R., e esta recebeu a comunicação junta à p.i. sob o n.º 25, com o conteúdo que aqui se dá por integralmente reproduzido;

• 8- em 24/07/2020 os técnicos da EDP que se deslocaram à fração arredada com um representante da A. emi8ram a nota de visita constante do doc.20 junto com a p.i., por não ter sido possível proceder à instalação de energia elétrica;

• 9- em 27/08/2020 a A. deu entrada em juízo de um pedido de no8ficação judicial avulsa conforme documento junto à p.i. sob o n.º 26 e com o conteúdo que se dá por integralmente reproduzido;

• 10- a agente de execução nomeada para proceder à referida no8ficação judicial avulsa lavrou o documento junto à p.i. sob o n.º 28, com o teor que se dá aqui por integralmente reproduzido;

• 11- em 16/09/2020 a A. remeteu à R., e esta recebeu a comunicação junta à p.i. sob o n.º 29, com o conteúdo que aqui se dá por integralmente reproduzido;

• 12- em 25/09/2020 a A. remeteu à R. a comunicação junta à p.i. sob o n.º 30, com o conteúdo que aqui se dá por integralmente reproduzido;

• 13- em 07/10/2020 foi tentada a realização de uma notificação por mandatária judicial, conforme documento que sob o n.º31 foi junto à p.i., com o conteúdo que aqui se dá por integralmente reproduzido, a qual não foi possível nos termos constantes do respetivo auto negativo, cujo conteúdo se deve igualmente dar por integralmente reproduzido.

• 14- para a emissão da licença de utilização não foi feita qualquer vistoria pela Câmara Municipal de ...;

• 15- toda a serralharia (grades) do exterior da fração arrendada tinha que ser mantida, pois aquela montra estava listada na Câmara Municipal de... como montra protegida e tinha necessariamente que ser mantida sem quaisquer alterações, tendo optado precisamente por essa manutenção no projeto apresentado.

• 16 - Com data de 31 de Agosto de 2020 a R. envia à A. carta – doc. 25 junto com a contestação - onde declara que a A deverá proceder ao pagamento das rendas vencidas entre Março de 2020 e Outubro no total de €19.758,00, sendo que se o pagamento não for feito em 10 dias a R. procederá à resolução do contrato de arrendamento. A recusa no recebimento da fração determina que a A. tenha que liquidar €250,00 por cada dia de incumprimento, desde 19 de Dezembro de 2020, nos termos da cl.ª11.ª, 1 do contrato, que à data liquida em €63.750,00

• 17 - Com data de 14 de Setembro de 2020 a R. envia à A. carta – doc. 26 junto com a contestação – a R declara a resolução do contrato de arrendamento com base na falta de pagamento das rendas vencidas desde de Março de 2020 até Outubro, no montante €19.758,00. Mais declara que, por recusa no recebimento do arrendado, é devida, desde 19 de Dezembro de 2019, a quantia de €250,00/dia que, contados até 14 de Setembro de 2020 liquida em €67.250,00.

• 18 - Com data de 16/10/2020 a R. envia à A. carta – doc. 29 junto com a contestação -onde reafirma o teor da carta de 14 de Setembro, sendo idênticos os seus dizeres.

• 19 - Com data de 7/10/2020 a A. envia à R. carta – doc. 31 junto com p.i. - onde declara a resolução do contrato de arrendamento por inicitiva da arrendatária, com efeitos a partir de 2/10/2020, com fundamento na não realização das obras que cabia senhoria realizar devendo diligenciar pelo pagamento da quantia de €79.500,00 a título de sanção compulsória pela mora na entrega do locado desde 30/9/2029 até à data da resolução - 2/10/2020 - e ainda no pagamento da indemnização à arrendatária no montante de €140.000,00 pela não entrega definitiva do locado à A. –doc. 31 junto com a p.i..

7. No que concerne à redação dada aos factos julgados provados sob os pontos 10, 19, 33 e 37, entende a recorrente que o Tribunal a quo violou o disposto no artigos 236.º, 246.º, 250.º, 252.º, 342.º, 349.º e 376.º do CC e artigos 574.º, 608.º, 662.º e 663.º do C.P.C.

8. Tendo a Autora impugnado a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, a apreciação de tal impugnação está legalmente sujeita ao disposto nos artigos 608.º, 662.º e 663.º do C.P.C.

9. Os poderes da 2ª Instância em sede de reapreciação da matéria de facto foram reforçados, cabendo a esta Instância os poderes cassatórios que lhe permitem anular a decisão recorrida se se mostrar insuficiente, obscura ou contraditória e ainda os poderes e deveres de proceder à reapreciação da matéria de facto com vista a alcançar a verdade material.

10. Trata-se efectivamente agora de um dever e não apenas de uma mera faculdade, devendo o Tribunal de 2.ª instância proceder à efectiva audição dos depoimentos testemunhais que o recorrente apresente na sua alegação de recurso, no sentido de aferir da existência, ou não, de desconformidades entre a prova produzida em audiência e os fundamentos indicados pelo julgador da 1.ª instância e nos quais baseou as suas respostas, formando a sua própria convicção.

11. Não podendo, para além do mais, ser invocada a falta de imediação que existe no julgamento para afastar este concreto dever.

12. Entre outros, repetidas vezes o Tribunal a quo usou, como fundamentação para a decidida improcedência de matéria de facto impugnada, considerações genéricas sobre os princípios da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, mormente no que se refere à “credibilidade” atribuída, ou não, pela 1ª instância aos depoimentos de testemunhas e mesmo às declarações de parte do legal representante da Autora, sem que tenha feito a sua própria avaliação e apreciação de tais depoimentos/declarações e formado a sua própria convicção.

13. Como decidido por este Supremo tribunal de Justiça, Ac. do STJ, de 1/07/2010 (www.dgsi.pt), “sendo embora certo que o recurso não significa um julgamento ex novo, mas a reapreciação da decisão recorrida, daí não pode inferir-se, como decorre de uma certa corrente jurisprudencial que ainda se revela em alguns Tribunais de 2ª instância, que essa reapreciação não imponha da parte da Relação a formação de uma convicção própria que deverá ser cotejada com aquela que está em causa e posteriormente firmada e decidida em conformidade”.

14. Quanto à decisão sobre a impugnação do facto julgado provado sob o n.º 10 e n.º 19, o tribunal de 1ª instância considerou provado que as obras de reabilitação do prédio a que pertence a loja arrendada à Autora foram concluídas em Novembro de 2019, tendo o tribunal a quo alterado a redação dada a este concreto ponto para: ”As obras de reabilitação a loja arrendada à Autora foram concluídas em 6 de Março de 2020.”

15. Inexiste, porém, fundamento válido para considerar a data agora indicada pelo Tribunal a quo – 6 de Março de 2020.

16. O Tribunal a quo considerou que, “cabia R./senhoria proceder à colocação dos vidros nas montras e porta” e que “só após tal colocação se pode considerar a obra como terminada”, e que “no tocante às grades” a Ré apenas se obrigou “a não danificar as grades e portas de segurança na fachada da entrada da loja que corresponda ao locado”. E que não decorre “do teor do contrato que a senhoria se tenha obrigado a colocar as grades a funcionar, em modo elétrico, que é a versão da A.”.

17. E considerou ainda que conjugado o teor da comunicação (que julgou não impugnada) enviada pela Ré à Autora, datada de 6 de março de 2020 (aludindo ainda às fotografias anexas a tal comunicação) com o depoimento da testemunha AA que deu a conhecer que os vidros foram colocados, se considerava provado que, pelo menos a 6 de Março de 2020 os vidros estavam colocados.

18. Considerou assim, bem, o Tribunal a quo que a Autora fez depender o recebimento da loja da colocação dos vidros, e que de facto era obrigação da Ré colocar esses vidros nas montras e porta, e que só após a sua colocação se poderia considerar a obra como terminada.

19. Mas considerou depois, erradamente, que esses vidros das montras e porta tinham sido colocados em 6 de Março de 2020.

20. Quanto à comunicação para tanto considerada, resulta da matéria julgada provada apenas que “46. Por carta datada de 6 de Março de 2020, a Ré respondeu à Autora, nos termos do documento junto aos autos a fls. 165 vs. a 169 vs., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.”

21. E quanto a tal comunicação (como em relação às demais) havia o Tribunal de 1ª instância clarificado que “…foi junta vária correspondência entre as partes, tendo o Tribunal dado como provado que as mesmas foram enviadas e, em alguns casos, recebidas, sendo certo que o descrito nessa correspondência não pode ser dado como facto provado apenas por constar dessas cartas, pelo que o Tribunal (não havendo outro meio de prova) apenas deu como provado a remessa dessas cartas e o seu conteúdo.”

22. Não podia, por isso, o Tribunal a quo considerar, sem mais, provado o teor dessa mesma comunicação no que concerne à colocação de vidros, atribuindo a este documento particular valor probatório que o mesmo não tem.

23. Muito menos o podia ter feito em relação às fotografias anexas a tal comunicação.

24. Também do depoimento da testemunha para tanto invocado, não resulta de modo algum a conclusão a que chegou o Tribunal a quo, pois essa testemunha apenas afirmou que “só em 2020 colocaram os vidros das montras da fração”.

25. Ou seja, referiu-se apenas aos vidros das montras, nunca aos vidros da porta.

26. O tribunal a quo ignorou por completo outros factos julgados provados com relevância para a resposta a dar a este concreto ponto, nomeadamente os pontos 38, 41 e 42 (com a redação pelo mesmo dada) e as alíneas b) e l) que passaram a figurar dos factos julgados provados, pelos quais se evidencia que os vidros da porta não foram colocados.

27. O tribunal a quo ignorou o depoimento da testemunha da própria Ré, BB - autor do projeto- o qual foi expressamente invocado pela Recorrente, quando afirmou que “já em 2020 ainda foram feitas obras para rectificar vários defeitos (minuto 23 e ss.) …que só depois da licença foram instaladas as portas (primeiro de vidro e mais tarde “lagartas”).

28. O Tribunal a quo ignorou o depoimento da testemunha da própria Ré, CC, igualmente invocado pela Recorrente, que afirmou que foi à obra uma primeira vez para fechar as grades, que só fechou as laterais pois a central tinha uma estrutura de vidro e não se podia fazer nada nessa porta e que posteriormente foi uma segunda vez, desta feita para abrir as grades e que nesta altura a porta de vidro já lá não estava.

29. O tribunal a quo ignorou o teor de todas as comunicações dirigidas pela Autora à Ré posteriormente à data de 6 de Março de 2020, assim como o teor da notificação judicial avulsa que requereu junto do tribunal, onde expressamente é indicada esse fundamento para a não tomada de posse da loja.

30. E desconsiderou, (com fundamento apenas em considerações genéricas sobre os princípios da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, mormente no que se refere à “credibilidade” atribuída, ou não, pela 1ª instância aos depoimentos de testemunhas e mesmo às declarações de parte do legal representante da Autora, sem que tenha feito a sua própria avaliação e apreciação de tais depoimentos/declarações e formado a sua própria convicção) os demais depoimentos invocados pela Recorrente na sua impugnação, nomeada e concretamente o depoimento da testemunha DD que afirmou perentoriamente que o projeto previa a colocação de caixilharia e vedação em vidro, e que a obra não se encontra concluída até ter portas e janelas, e ainda que em Agosto de 2022 passou na loja e a mesma encontrava-se sem porta, assim como o depoimento da testemunha EE que afirmou que tinha passado no local da loja na semana passada e que ainda não tinha porta, só um gradeamento.

31. Sendo certo ademais que estas afirmações feitas por estas testemunhas nada têm de “parecer” constituindo antes constatações de quem analisou o projeto e quem tinha passado na loja há pouco tempo.

32. A decisão assim proferida pelo Tribunal a quo quanto a estes concretos pontos violou frontalmente o dever de reexaminar todas as provas indicadas pela Recorrente na impugnação da decisão proferida, de as valorar devidamente e as concatenar no sentido de alcançar a verdade material.

33. De facto, a Ré colocou os vidros das laterais da loja, mas não colocou os vidros da porta.

34. Ficou expressamente provado que a colocação das grades de segurança na fachada não foi possível por causa do vidro que ali estava colocado, sendo que, por essa razão, o vidro acabou por ser retirado e colocado um gradeamento de lagartas.

35. Ficou expressamente provado que o facto de as grades de segurança da fachada não poderem ser fechadas ficou a dever-se à colocação dos vidros nas laterias da loja, o que impedia o acesso ao mecanismo do gradeamento.

36. Sem porta de vidro e sem gradeamento de segurança fechado, naturalmente que a loja se mantenha aberta, o que, por si só denota, o total incumprimento da obrigação da Ré.

37. A impossibilidade de colocar o gradeamento com o vidro da porta que havia sido colocado apenas se ficou a dever ao facto de esse vidro não estar recuado em relação à posição que o gradeamento tenha que manter. Portanto, a partir do momento em que a Ré, para poder colocar o gradeamento de segurança, retira o vidro e substitui por uma grade de lagarta ao invés de colocar o vidro de modo a possibilitar a colocação das grades de segurança, está a incumprir com a sua obrigação.

38. E se a loja se mantinha aberta, a Ré não havia ainda cumprido com a sua obrigação, não existindo qualquer obrigação para Autora de receber as chaves.

39. Tanto mais que este facto é absolutamente relevante pois como ficou provado, a loja era uma loja fechada, não aberta – pelo que se não tinha porta, ainda estava aberta.

40. Para além de ser absolutamente relevante pelo facto de nesse estado não conferir a segurança que se impunha para uma loja naquela localização, como de resto, reconheceu o Tribunal a quo, que afirmou que pois uma loja na zona da baixa de ... necessita de grades para se levar a cabo obras no interior da loja e para posteriormente se abrir ao público, atentando-se que se trata de uma ourivesaria.

41. A decisão proferida pelo Tribunal da Relação quanto a este concreto facto não pode ser mantida, porque violou frontalmente o disposto nos artigos 608.º, 662.º e 663.º do C.P.C.

42. Mas também a questão suscitada pela Autora quanto às grades de segurança, e que o Tribunal a quo julgou como não verificada, deve ser devidamente valorada e consequentemente levar à alteração da decisão que sobre a impugnação dos factos 10 e 19 dos factos julgados provados foi proferida pelo Tribunal a quo.

43. Contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, a leitura da cláusula contratual que estipulava que a Ré se obrigava a “a não danificar as grades e portas de segurança na fachada da entrada da loja que corresponda ao locado” não pode levar a conclusão diferente da conclusão de que a Ré se obrigou a manter aquelas grades e portas de segurança na fachada da entrada tal e qual elas se encontravam à data em que a Autora entregou a loja para que a Ré procedesse às obras.

44. Aliás mais do que isso, era mesmo uma obrigação, como de resto acabou por ser igualmente julgado provado “toda a serralharia (grades) do exterior da fração arrendada tinha que ser mantida, pois aquela montra estava listada na Câmara Municipal de... como montra protegida e tinha necessariamente que ser mantida sem quaisquer alterações, tendo optado precisamente por essa manutenção no projeto apresentado” – facto 15 aditado aos factos provados.

45. Se aquando da entrega à Ré da loja para a realização das obras as grades e portas de segurança se encontravam a funcionar eletricamente e mecanicamente, a obra só poderia ser considerada concluída quando as mesmas estivessem de novo a funcionar eletricamente e mecanicamente.

46. A interpretação feita pelo tribunal a quo violou o disposto no artigo 236.º do CC já que na interpretação de um contrato, ou seja, na fixação do sentido e alcance juridicamente relevantes, deve ser procurado, não apenas o sentido das declarações negociais artificialmente isoladas do seu contexto negocial global, mas antes o discernir do sentido juridicamente relevante do complexo regulativo como um todo.

47. Não podendo ademais deixar de ser no mínimo incongruente que se considere que aquelas grades e portas de segurança estavam a funcionar mecanicamente e se considere por isso cumprida a obrigação de “as não danificar”, quando na realidade, apesar de a funcionar mecanicamente, não podiam ser fechadas pois o respetivo mecanismo estava no interior da loja…

48. O Digno Tribunal da Relação violou assim o disposto nos artigos 236.º, 246.º, 250.º, 252.º, 342.º, 349.º e 376.º do CC e artigos 574.º, 608.º, 662..º e 663º do C.P.C., devendo os factos 10 e 19 impugnados ser alterados no sentido pugnado pela Recorrente.

49. Também quanto à decisão sobre a impugnação dos factos julgados provados sob os n.ºs 33 e 37, tendo o tribunal a quo mantido a resposta dada ao primeiro daqueles factos e alterado a resposta dada ao segundo nos seguintes termos “A A. sempre recusou receber as chaves até à data de 7 de Outubro de 2020, data em que pôs termo ao contrato de arrendamento”, ocorreu uma clara violação do disposto nos artigos 608.º, 662..º e 663º do C.P.C.

50. Invocou a Recorrente que só não quis receber as chaves, apenas e tão só, pelo facto de a Ré não ter concluído todas as obras necessárias à tomada de posse pela Autora da fração arrendada, na medida em que a posse da mesma só poderia ocorrer quando aquela estivesse nas condições previstas no projeto e apta a receber as obras de layout com vista à sua abertura ao público.

51. O Tribunal a quo apesar de considerar que as respostas dadas estão devidamente suportadas quer no depoimento da testemunha AA, quer na vasta correspondência trocada entre as partes, onde a Recorrente afirmou e reafirmou que a loja não estava em condições de ser entregue, por faltarem os vidros e a colocação das grades a funcionarem eletricamente, não alterou a resposta dada.

52. A explicitação da razão pela qual não quis receber as chaves é essencial e, uma vez que foi julgada provada, deve necessariamente figurar na resposta a estes concretos pontos.

53. Repete-se, o Digno Tribunal da Relação violou o disposto no artigos 236.º, 246.º, 250.º, 252.º, 342.º, 34.9º e 376.º do CC e artigos 574.º, 608.º, 662.º e 663.º do C.P.C., devendo a decisão pelo mesmo proferida quanto aos pontos 10, 19, 33 e 37 ser revogada e alterada no sentido pugnado pela recorrente e decorrente da prova existente nos autos.

54. Do que resulta que a Ré incumpriu o contrato celebrado pois não facultou à arrendatária o gozo do arrendado - artigo 1031.º, al. b) CC.

55. Foi feita prova concludente de que foi a Ré e não a Autora que incumpriu de forma deliberada o contrato de arrendamento celebrado entre ambas, não tendo procedido a todas as necessárias e devidas obras na fração objeto de tal contrato, de modo a colocar a mesma em condições de poder ser recebida pela A. para na mesma proceder ao layout para abertura ao público do estabelecimento de ourivesaria, joalharia e relojoaria.

56. Foi feita prova concludente que a Ré não procedeu à instalação na referida fração dos meios necessários ao encerramento das suas montras e das suas portas, concretamente a porta de vidro e as montras da fachada.

57. Foi feita prova concludente que a Ré não procedeu à instalação devida do gradeamento de segurança de modo a permitir a sua normal utilização elétrica.

58. Foi feita prova concludente que a Ré não procedeu à instalação devida do gradeamento de segurança de modo a permitir a sua utilização manual, já que, apesar de este se encontrar a funcionar manualmente, o certo é que não podia ser fechado porque o seu mecanismo estava do lado interior da loja.

59. Obrigações que eram indubitavelmente da Ré.

60. Ou seja, instalar as montras e as portas da fração de modo a que a mesma estivesse devidamente munida de suportes de fecho total da fração para que pudesse servir para o fim a que se destinava, o comércio.

61. E instalar as portas e grades de segurança que obrigatoriamente tinha que ali manter por imposição regulamentar da Câmara Municipal de ... e colocar as mesmas a funcionar e a funcionar de modo a permitir o seu normal uso (o que implicava que pudessem ser fechadas e enquanto o respetivo sistema de acionamento estivesse no interior da loja, tal não sucederia);

62. O Tribunal a quo, apesar de ter considerado provado que era obrigação da Ré instalar os vidros das montras e da porta acabou por desconsiderar a prova que realmente foi feita de que os vidros das portas não foram instalados.

63. O Tribunal a quo apesar de ter considerado provado que era imposição regulamentar da Câmara Municipal de ... a manutenção das grades e portas de segurança, e de ter considerado provado que tais portas e grades foram instaladas mas as do vão central não podiam ser fechadas porque caso contrário não poderiam voltar a ser abertas uma vez que o mecanismo de abertura estava no interior, e de ter considerado provado que as mesmas antes da obra funcionavam eletricamente, e de ter ainda considerado que as mesmas apenas estavam a funcionar de modo manual e não nos mesmos moldes que funcionavam quando a loja foi entregue para obras, acabou por apenas relevar o facto de estarem a funcionar, desconsiderando que mesmo estando a funcionar (não das duas formas como funcionavam antes) não estavam a permitir o seu normal uso.

64. Pelo que ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou, para além do mais, o disposto nos artigos 1083.º, 1031.º, 802.º e 808º do CC.

65. Face ao incumprimento culposo da Ré na conclusão das obras a que estava obrigada na fração dada de arrendamento à Autora, e face à notificação expressamente feita pela Autora para o seu cumprimento nos termos do disposto no artigo 808.º, a interpelar aquela para cumprir a obrigação, fixando-lhe um prazo suplementar, com a advertência de que a inobservância deste prazo implicará o incumprimento definitivo do contrato, e sob a cominação da aplicação da sanção pecuniária compulsória, a decisão proferida não pode ser outra senão a de condenação a Ré no pagamento à Autora, pela mora na entrega do locado nos termos referidos peticionados, a título de sanção pecuniária compulsória, na indemnização prevista no n.º 1 da cláusula Décima Primeira do contrato de arrendamento, no montante de € 78.250,00;

66. E de condenar a Ré a reconhecer a resolução do contrato de arrendamento celebrado com a Autora em 23.01.2018, a partir de 02.10.2020, resolução que deve ser declarada, e em consequência, no pagamento à A. pela não entrega definitiva e culposa da fração autónoma arrendada supra referida, na indemnização prevista no n.º 2 da cláusula Décima-Primeira do contrato de arrendamento, no montante de € 140.00,00.

67. Mesmo que assim não viesse a ser entendido, não podia o Tribunal a quo ter afirmado, como fez, que não tem que ficar dependente da motivação invocada pela Ré para resolução do contrato, concluindo que a Ré tinha fundamento para pôr termo ao vínculo contratual e, consequentemente, para reclamar a fixação de uma cláusula penal.

68. Se o contrato de arrendamento nunca deixou de estar suspenso nos termos decididos definitivamente em 1.ª instância e estipulados e se em consequência não eram devidas quaisquer rendas, a resolução do contrato operada pela Ré por falta de pagamento das rendas tem que ser julgada inexistente, precisamente porque inexisia o fundamento invocado para a resolução.

69. As normas sobre a resolução do contrato de arrendamento têm natureza imperativa, pelo que não se pode considerar que a resolução do contrato, invocada com um determinado fundamento (no caso falta de pagamento de rendas) opere mesmo que esse fundamento inexista.

70. Ao decidir como decidiu violou o Tribunal a quo, para além do mais, o disposto no artigo 1080.º e ss. do CC.

71. Não podia de modo algum o Tribunal a quo ter decidido que pela “alegada” mora da Autora em receber a fração era devida uma sanção pecuniária compulsiva à R.

72. A aplicação de uma tal sanção, nos termos constantes do próprio contrato e nos termos legais aplicáveis – artigo 810º do CC – implicava que a R. tivesse expressamente interpelado a A. para o cumprimento, e o que aconteceu é que a Ré quando interpelou a Autora sob cominação da sanção pecuniária compulsiva, fê-lo única e simplesmente por alegada falta de pagamento de rendas, interpelando a A. para o seu pagamento.

73. Não se pode considerar que tal interpelação ocorreu, nem tão pouco considerar-se, como decidiu o Tribunal a quo que a mesma não era necessária ou era dispensável, pois tinha ocorrido uma recusa antecipada e inequívoca da Autora de tomar posse da obra.

74. Tal recusa nunca ocorreu.

75. Em todas as comunicações que a Autora dirigiu à Ré são devidamente explicitadas as razões para que não considere a obra concluída e, consequentemente, para que não possa tomar posse da loja, e a prova desse facto foi perentoriamente feita.

76. A solução legal aplicada viola determinantemente também o disposto neste artigo 810º e ss. do CC.

A recorrida respondeu, pedindo se julgasse improcedente o recurso. Para o efeito alegou em síntese:

1. O recurso apresentado pela autora não deverá merecer acolhimento, tanto quanto à matéria de facto como quanto à matéria de direito.

2. O recurso apresentado nunca poderá ser admitido quanto à decisão da matéria de facto, como preceitua os art.ºs 662.º, n.º 4, e 674.º, n.º 3, ambos do CPC.

3. Tanto mais que recorrente nem sequer invoca “erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais” e uma “ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” – art.º 674.º, n.º 3, do CPC.

4. Os n.ºs 1 a 66 das conclusões das alegações de recurso respeitam exclusivamente à decisão da matéria de facto e o recurso, nesta parte, deverá ser liminarmente julgado improcedente.

5. O acórdão recorrido apreciou toda a decisão da matéria de facto objecto do recurso de apelação da recorrente, julgando definitivamente esta matéria, nos termos do disposto nos art.ºs 662.º, n.º 4, e 674.º, n.º 3 do CPC, como interpretados, a titulo de exemplo, pelo Ac. do STJ de 03.11.2021, proferido no proc. n.º 4096/18.0T8VFR.P1.S, e no Ac. do STJ de 18.05.2017, proferido no proc. n.º 5164/07.0TTLSB-B.L1.S1.

6. Sem conceder quanto ao supra alegado relativamente à inadmissibilidade do recurso quanto à decisão da matéria de facto, e por mera cautela, sempre se dirá que esta decisão nunca seria merecedora de qualquer censura.

7. A Recorrente limita-se a repetir os mesmos argumentos que já havia apresentado no recurso da decisão da primeira instância e que já foram apreciados – e de forma definitiva – no douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

8. A Recorrente invoca os depoimentos de testemunhas que foram qualificados na decisão recorrida como pouco credíveis, subjetivos, conclusivos e sem interesse para a decisão da causa.

9. Sempre sem prescindir da já alegada impossibilidade de ser sindicada a decisão quanto à matéria de facto que emerge do acórdão recorrido, é evidente que a Recorrente nem sequer especifica os elementos probatórios, considerados ou não pelo tribunal a quo, que deveriam impor decisão diferente quanto a esta matéria – art.º 640.º, n.º 1, b), do CPC

10. De resto, a A. recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa dizendo que a obra não se poderia dar por concluída antes de Março de 2020, quando foram colocados os vidros nas montras laterais da loja, aceitando, pois, que os vidros centrais foram colocados antes desta data.

11. Depois da matéria de prova ter sido alterada em função da alegação da Recorrente, esta vem agora insinuar que foram instalados os vidros laterais, mas não os centrais, quando é evidente que estes já estavam instalados há muito tempo e estes nunca foram motivo de qualquer reparo da recorrente.

12. Quanto a essa questão, a decisão do Tribunal da Relação resolveu de forma lapidar, considerar “(…) ser obrigação da R colocar os vidros e que essa obrigação só se mostrou cumprida a 6 de Março de 2020.”

13. Isto é, é evidente que da prova produzida resulta amplamente demonstrado que todos os vidros da loja estavam colocados nessa data de “6 de Março de 2020”.

14. Quanto às portas de segurança, foi feito prova inequívoca de que as mesmas estavam montadas e em funcionamento, como resulta da sentença proferida em primeira instância e do douto acórdão da Relação de Lisboa ora recorrido.

15. Quanto ao funcionamento eléctrico das grades de segurança, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou que “não é certo que por falta do quadro eléctrico (que, diga-se, cabia à A. providenciar) a A. tenha estado impossibilitada de testar as grades e verificar se a loja estava em condições de ser recebida. A R. menciona a possibilidade da A. ter energia através das instalações da R., o que esta não contraria”, e não existe qualquer razão atendível para alterar este entendimento.

16. Atento o supra exposto, é manifesto que não existe qualquer razão atendível para alterar a decisão da matéria de facto que emerge do douto acórdão recorrido, o qual não deve merecer qualquer reparo.

17. De igual forma, não há qualquer razão para se proceder à alteração da decisão quanto à matéria de direito.

18. Ao contrário do alegado pela Recorrente, a R. cumpriu integralmente o contrato de arrendamento que celebrou com a A. e não resultou provado qualquer facto susceptível de poder consubstanciar o incumprimento das suas obrigações.

19. A R. não se obrigou a alterar o sistema de grades para o seu funcionamento eléctrico a partir do exterior.

20. Nem se percebe como a R. poderia alterar o sistema das grades de segurança que se obrigou contratualmente a manter e que eram propriedade exclusiva da A., e que a Câmara Municipal de ..., segundo a A., entendia que “tinham que ser mantidas exactamente na mesma sem qualquer alteração”.

21. Havendo sido acordada a entrega da loja “em tosco”, muitas alterações necessárias à actividade da A. teriam de ser realizadas por esta e foram expressamente acordadas como sendo da responsabilidade da A.

22. A Recorrente vem alegar que não podia o Tribunal a quo ter afirmado, como fez, que não tem de ficar dependente da motivação invocada pela Ré para a resolução do contrato de arrendamento, quando concluiu que a Ré tinha fundamento para pôr termo ao vínculo contratual, vd. conclusão n.º 67 das alegações da recorrente.

23. É manifesto que a comunicação de resolução do contrato de arrendamento surge na sequência de inúmeras advertências à A. quanto ao seu incumprimento da obrigação de executar o contrato de arrendamento celebrado e comunicação da intenção de resolução do mesmo contrato caso tal incumprimento se mantivesse, a título de exemplo, veja-se a carta da R. à A. de 24.07.2020, junta com a contestação como doc. n.º 24. 24.

24. Por outro lado, como resulta do acórdão recorrido, é manifesta a peremptória recusa de cumprimento do contrato de arrendamento pela A., como “consta das várias comunicações levadas a cabo pela A à R. a sua recusa em tomar posse da loja –carta de 26/5/2020 (doc. 22 junto com a p.i), carta 8/6/2020 (doc. 23), 21/7/2020 (doc. 25), recusa essa que ocorreu antes da R. proceder à resolução do contrato de arrendamento, em 14/9/2020”.

25. A carta de resolução do contrato de arrendamento enviada pela R. à A. com data de 14.09.2020 e 16.10.2020, tem como assunto “Incumprimentos contratuais vários e valores a liquidar” e a R. refere os vários incumprimentos da A. quanto aos seus deveres de tomada a posse do locado e de o preparar para a abertura do mesmo ao público.

26. A R. concluiu as referidas comunicações, transmitindo à A. o seguinte: Estando há muito verificadas todas as condições a que nos obrigámos para que preparassem a loja e procedessem à sua abertura ao público, o contrato de arrendamento está em vigor e a produzir plenos efeitos desde o dia 4 de Março de 2020, sendo devidas as respectivas rendas e incorrendo V. Exas. nas penalizações acordadas para o incumprimento do contrato de arrendamento. Como sempre transmitimos, não prescindimos do valor das rendas já vencidas, e vincendas, sendo que não liquidaram o valor da renda de Março – no valor de 2.258,00€, deduzindo os primeiros 3 dias de Março – e de Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro e Outubro, estas no valor de 2.500,00€ cada, tudo no total 19.758,00€, ou seja, 2.258,00€ + 17.500,00€ (2.500,00€ x 7). Estas rendas não foram liquidadas até esta data, apesar de terem sido por diversas vezes alertados para a falta de pagamento das referidas rendas e avisados de que não nos era exigível manter o contrato de arrendamento nessas condições e que procederíamos à resolução do contrato de arrendamento caso não procedessem ao pagamento das rendas por liquidar. Por esta razão, comunicamos à Ernesto Pinto, Lda. a resolução do contrato de arrendamento comercial, com prazo certo, relativo à loja sita na Rua ..., 172 a 174, no R/C, correspondente à fração “A”, do prédio inscrito na matriz sob o art. 2321 da freguesia da ..., em ..., e descrito no Registo Predial de ... sob o nº 31 da freguesia da ....

27. Donde decorre que a R. resolveu o contrato de arrendamento por entender que a A. incumpriu os deveres de executar o contrato de arrendamento, designadamente de tomar a loja nos termos acordados e de preparar a sua abertura ao público, bem como o dever de pagar as rendas, cujo pagamento disse ser condição para aceitar que o contrato de arrendamento continuasse em vigor.

28. De forma alguma a R. transmitiu que apenas resolvia o contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas, como pretende agora a Recorrente – e nem é isso que emerge da antecedente, e abundante, correspondência enviada pela R. à A., documentada nos autos, onde esta foi sucessivamente interpelada para cumprir as suas obrigações de receber o locado nas condições acordadas.

29. Uma vez que a R. transmitiu à A. que resolvia o contrato de arrendamento devido ao incumprimento pela A. do seu dever contratual de executar o contrato de arrendamento - designadamente de tomar a loja nos termos acordados para preparar a sua abertura ao público – e do que entendia ser o consequente não cumprimento do dever da A. de pagar as rendas acordadas, sempre bastará a verificação do incumprimento pela A. do seu dever contratual de executar o contrato de arrendamento no que concerne a tomar/receber a loja nos termos acordados para preparar a sua abertura ao público, depois das diversas advertências prévias que recebeu da R. quanto ao referido incumprimento e da antecedente expressada peremptória recusa de cumprimento do contrato de arrendamento pela A., para se considerar a legitimidade da resolução do contrato de arrendamento comunicada.

30. Não há qualquer razão para não considerar como correcta a fundamentação da resolução do contrato de arrendamento comunicada pela R. à A.

31. De qualquer forma, a R. pediu, em reconvenção, que fosse (a) declarado licitamente resolvido pela R. o contrato de arrendamento celebrado entre a A. e a R. no dia 23.01.2018, relativo à loja no R/C, sita na Rua ..., 172 a 174, em..., correspondente à fração “A”, nos termos das comunicações realizadas pela R. à A. - e caso assim se não entenda, (b) deverá ser declarada a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre a A. e a R. no dia 23.01.2018, relativo à loja no R/C, sita na Rua ..., 172 a 174, em ..., correspondente à fração “A”, por incumprimento da A. que, pela sua gravidade ou consequências, tornou inexigível o contrato de arrendamento, nos termos do art.º 1083.º, n.º 2, do CC, e/ou por falta de pagamentos de rendas, nos termos do n.ºs 3 e 4 do art.º 1083.º, do CC.

32. Sem conceder quanto à legitima resolução do contrato de arrendamento pela R., caso que se entenda que a resolução do contrato de arrendamento comunicada pela R. à A. não foi realizada de forma válida, o que apenas se equaciona por mera cautela, sempre caberá ao julgador declarar a resolução do mesmo contrato pelos fundamentos que já foram considerados como verificados e justificativos da referida resolução – o incumprimento pela A. do seu dever contratual de executar o contrato de arrendamento no que concerne a tomar/receber a loja nos termos acordados para preparar a sua abertura ao público – nos termos supletivamente peticionados pela R. na sua reconvenção, uma vez que este pedido não foi apreciado pela solução dada ao litigio nas decisões anteriores – art.º 665.º, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi art.º 679.º do CPC.

33. De qualquer forma, quanto à aplicação da sanção pecuniária compulsória, acordada entre as partes para o incumprimento do contrato de arrendamento, sempre se deverá entender que esta sanção é devida independentemente da resolução do contrato de arrendamento.

34. Como bem se considerou no acórdão recorrido quanto ao valor da cláusula, “a cláusula penal deve ser calculada desde a interpelação da A. para cumprir – interpelação essa que ocorreu com a carta de 18/3/2020, presumindo-se a notificação a 21/3 – e até à data em que a R. resolveu o contrato – 14/9/2020”.

35. A consequência de eventualmente não se considerar válida a resolução do contrato de arrendamento comunicada pela R. à A. a 14.09.2020 seria a manutenção da situação de incumprimento da A. perante a R. depois desta data, pelo que em nada aproveitaria a A.


*


Questões suscitadas pelo recurso:

O recurso suscita no essencial as seguintes questões:

a. Saber se o acórdão recorrido, na parte em que julgou a impugnação da decisão relativa à matéria dos pontos números 10, 19, 33 e 37 é de revogar e de substituir por outro que julgue procedente impugnação da decisão proferida sobre tais pontos da matéria de facto;

b. No caso de ser dada resposta afirmativa à questão anterior, saber se é de julgar verificado o incumprimento, por parte da ré, do contrato de arrendamento em questão nos autos;

c. Saber se o contrato é de julgar resolvido pela autora, com efeitos a partir de 2 de Outubro de 2020;

d. Saber se é de condenar a ré no pagamento à autora da quantia de 78 250 euros, a título de sanção pecuniária compulsória e da quantia de 140 000 euros, pela não entrega definitiva e culposa da fracção arrendada;

e. Saber se o acórdão violou o disposto nos artigos 1080.º e seguintes do Código Civil ao decidir que a ré tinha fundamento para pôr termo ao contrato de arrendamento;

f. Saber se o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 810.º do Código Civil ao condenar a autora no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória por alegada mora em receber a fracção.

Apesar de serem estas, no essencial, as questões suscitadas no recurso, não cabe a este tribunal conhecer de todas elas. Cabe-lhe conhecer apenas da questão de saber se o tribunal da Relação não observou os seus poderes/deveres no julgamento da impugnação da decisão proferida na 1.ª instância quanto aos pontos números 10, 19, 33 e 37 da matéria de facto.

Vejamos, em primeiro lugar, as razões pelas quais não cabe a este tribunal conhecer das questões acima enunciadas sob as alíneas b) a f), todas elas questões de direito.

A recorrente interpôs recurso de revista ao abrigo do artigo 671.º, n.º 1, do CPC. Este preceito indica as decisões que comportam revista. Nos seus termos, “Cabe recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos”.

O acórdão recorrido cabe na previsão do preceito, na parte em que se refere a acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa.

Mas trata-se de acórdão que confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a sentença proferida na 1.ª instância, o que o faz cair sob a alçada do n.º 3 do artigo 671.º. Vejamos.

Conforme resulta do exposto acima, a sentença proferida na 1.ª instância julgou improcedentes todos os pedidos deduzidos pela autora e julgou parcialmente procedente a reconvenção.

A procedência da reconvenção consistiu:

• Na declaração de resolução do contrato de arrendamento celebrado entre a autora e a ré, em 23 de Janeiro de 2018;

• Na condenação da autora/reconvinda a pagar à ré a quantia de 77 750 euros, acrescida de juros de mora comercias desde a notificação da reconvenção à autora até ao efectivo e integral pagamento.

A improcedência consistiu:

• Na improcedência do pedido reconvencional deduzido sob a alínea a), ou seja, do pedido no sentido de ser declarado licitamente resolvido pela ré o contrato de arrendamento celebrado entre a autora e a ré, no dia 23-01-2018, relativo à loja do r/c, sita na Rua ..., 172 a 174, em ..., correspondente à fracção “A”, nos termos das comunicações realizadas pela ré à autora;

• Na improcedência do pedido deduzido sobre a alínea c) (i), ou seja, do pedido de condenação da ré no pagamento à autora da quantia de 19 758,00, a título de rendas de Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro e Outubro de 2020, acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa legal aplicável a créditos de comerciantes;

• Na improcedência do pedido deduzido sob a alínea c (ii), na parte em que eram pedidos juros de mora calculados sobre a quantia de 77 500 euros até à data da notificação da reconvenção à autora.

A sentença proferida na 1.ª instância, na parte em que julgou improcedente parte da reconvenção, transitou em julgado, visto que a ré, a parte que dispunha de legitimidade para impugnar tal segmento da decisão (n.º 1 do artigo 631.º do CPC), não interpôs recurso de apelação e, segundo o artigo 628.º do CPC, “a decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou reclamação”.

Quanto à parte restante, o sentido do acórdão da Relação foi o seguinte:

• Confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação jurídica diferente, a sentença da 1.ª instância, na parte em que julgou improcedente a acção;

• Confirmou, também sem voto de vencido e sem fundamentação jurídica diferente, o segmento da decisão que, julgando procedente a reconvenção, declarou resolvido o contrato de arrendamento celebrado por autora e ré em 23 de Janeiro de 2018;

• Afastou-se da sentença proferida na 1.ª instância na parte em que esta, julgando procedente a reconvenção, condenou a autora a pagar à ré a quantia de 77 750 euros. O afastamento traduziu-se no seguinte: condenou a autora a pagar à ré a quantia de € 44.250,00.

Vê-se, assim, que o acórdão recorrido só não coincide com a sentença proferida em 1.ª instância quanto a este último segmento. Sucede que esta circunstância não descaracterizou, em relação à recorrente, a figura da dupla conforme, tal como ela está prevista no n.º 3 do artigo 671.º do CPC. Com efeito, na interpretação deste preceito segue-se o entendimento de que o acórdão da Relação tanto confirma a sentença proferida na 1.ª instância quando mantém o que nela foi decidido como quando a modifica em sentido mais favorável ao recorrente, como sucedeu no caso. Cita-se em abono desta interpretação o acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 7/2022, publicado no Diário da República 1.ª série de 18 de Outubro de 2022, em cuja fundamentação se escreveu o seguinte — “… a conformidade das decisões das instâncias que caracteriza a figura da dupla conforme, obstando a interposição da revista normal, é aferida por um critério de coincidência racional, avaliado em função do benefício (reformatio in melius) que o apelante retirou do acórdão da Relação relativamente à decisão da 1.ª instância”, bem como os seguintes acórdãos do STJ: acórdão proferido em 24-05-2018, no processo n.º 37/09.4T2ODM B.E2.S1; acórdão proferido em 04-07-2019, no processo n.º 7147/17.2T8VNG.1.P1.S1; acórdão proferido em 04-07-2019, no processo n.º 1677/16.0T8STB.E1.S1; acórdão proferido em 17-10 2019, no processo n.º 7223/12.8TBSXL -A.L1.S1; acórdão proferido em 17-12-2019, no processo n.º 796/14.2TBBRG.G1.S2; acórdão proferido em 14-12-2021, no processo 855/14.1TBRG.G1.S1; acórdão proferido em 10-02-2022, no pn.º 12213/15.6T8LSB.L1.S1; acórdão proferido em 15-03-2022, no processo n.º 1251/12.0TBVCD -A.P1.S1, todos publicados em www.dgsi.pt.

Assim interpretado o n.º 3 do artigo 671.º do CPC, é de concluir no sentido de que o acórdão sob recurso confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância.

Segue-se daqui que, na parte em que confirmou as decisões de direito proferidas na 1.ª instância, o acórdão seria passível de recurso de revista se a recorrente tivesse invocado como fundamento específico de recorribilidade algum caso em que o recurso é sempre admissível (parte inicial do n.º 3 do artigo 671.º do CPC) ou se tivesse interposto recurso de revista excepcional (n.º 1 do artigo 672.º do CPC), condições que não se verificam no caso.

Pelo exposto não se conhecem das questões de direito acima enunciadas sob as alíneas b) a f).

Vejamos, agora, as razões pelas quais não cabe a este tribunal conhecer da questão de saber se o acórdão recorrido, na parte em que julgou a impugnação da decisão proferida quanto aos pontos n.ºs 10, 19, 33 e 37 da matéria de facto, é de revogar e de substituir por acórdão que julgue procedente a impugnação da matéria de facto quanto a tais pontos.

As razões para o não conhecimento desta questão decorrem do artigo 46.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), do n.º 2 do artigo 682.º e do n.º 3 do artigo 674.º, ambos do CPC.

O artigo 46.º, dispondo sobre os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, estabelece: “Fora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de direito”.

Em conformidade com este comando, o n.º 2 do artigo 682.º do CPC dispõe: “A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no n.º 3 do artigo 674.º”.

Por sua vez, o n.º 3 do artigo 674.º, também em conformidade com os preceitos anteriores, determina: “O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Decorre destes preceitos que, em sede de revista, a alteração da decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto, reveste natureza excepcional e que as excepções são constituídas pelas seguintes hipóteses:

• Quando a decisão proferida pelo tribunal da Relação ofenda uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova;

• Quando a decisão proferida pelo tribunal da Relação ofenda disposição expressa da lei que fixe a força de determinado meio de prova.

Verifica-se a primeira hipótese quando a lei exige para prova da existência de um facto certa espécie de prova (por exemplo prova documental), mas o tribunal considera-o demonstrado apesar de tal prova não existir no processo. Verifica-se a segunda quando o julgador considere provado ou não provado um facto contra a força probatória qualificada de um meio de prova junto ao processo.

Como assinalava Alberto dos Reis em comentário ao parágrafo segundo do artigo 722.º do CPC de 1939, cujos termos são iguais aos do n.º 3 do artigo 674.º do CPC em vigor, “A bem dizer, as duas excepções previstas no parágrafo não constituem desvio da regra geral de que não é lícito ao Supremo conhecer de matéria de facto. Se atentarmos na natureza do erro cometido pela Relação nos casos apontados, havemos de reconhecer que se trata rigorosamente de erro de direito, e não de erro de facto. Há erro na fixação dos factos da causa; mas o erro traduz-se na violação de determinada norma jurídica. É, portanto, erro de direito”. [Código de Processo Civil anotado, Volume VI, Coimbra Editora, Lim., Coimbra 1981, páginas 80 e 81].

Segue-se do exposto que este tribunal estaria em condições de alterar a decisão do tribunal da Relação quanto à matéria dos pontos números 10, 19, 33 e 37, se a decisão proferida sobre eles tivesse ofendido uma disposição expressa da lei que exigisse certa espécie de prova para prova da existência deles ou que fixasse a força de determinado meio de prova.

Apesar de a recorrente alegar que a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto aos pontos acima referidos violou os artigos 236.º, 246.º, 250.º, 252.º, 342.º, 349.º e 376.º do Código Civil e os artigos 574.º, 608.º, 662.º e 663.º, do CPC, a sua pretensão no sentido de este tribunal alterar a decisão proferida pela Relação sobre tais pontos da matéria de facto não radica nas ofensas à lei previstas no n.º 3 do artigo 674.º do CPC.

Aliás, nem os preceitos indicados pela recorrente nem quaisquer outros fazem qualquer específica, em matéria de prova, para a existência dos factos a que se referem os pontos números 10, 19, 33 e 37. Excepção feita aos n.ºs 1 e 2 do artigo 376.º do Código Civil, nenhum deles versa sobre a força probatória de meios de prova. Quanto aos n.ºs 1 e 2 do artigo 376.º do Código Civil, embora disponham sobre a força probatória de documento particular cuja autoria esteja reconhecida, a sua aplicação não está em causa no recurso, visto que não é o desprezo da força probatória de documentos particulares cuja autoria esteja reconhecida que a recorrente censura à decisão recorrida.

A pretensão da recorrente apoia-se, no essencial, na seguinte linha argumentativa:

Em primeiro lugar, na alegação de que o tribunal a quo usou, como fundamentação para a improcedência da impugnação, considerações genéricas sobre os princípios da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, mormente no que se refere à credibilidade atribuída, ou não, pela 1.ª instância aos depoimentos de testemunhas e mesmo às declarações de parte do legal representante da autora sem que tenha feito a sua própria avaliação e apreciação de tais depoimentos/declarações e formado a sua própria convicção.

Em segundo lugar, na alegação de que o tribunal da Relação errou na apreciação de vários meios de prova (designadamente na apreciação da carta com data de 6 de Março de 2020, que a ré remeteu à autora e na apreciação das fotografias anexas a tal carta); que ignorou factos julgados provados (nomeadamente os julgados provados sob os números 38, 41 e 42, e as alíneas b) e l) que passaram a figurar nos factos julgados provados); que ignorou por completo os depoimentos de testemunhas (casos de BB e CC); que ignorou documentos (teor de todas as comunicações dirigidas pela autora à ré posteriormente a 6 de Março de 2020, assim como o teor da notificação judicial avulsa que requereu junto do tribunal); que desconsiderou com fundamento apenas em considerações genéricas sobre os princípios da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, mormente no que se refere à credibilidade atribuída, ou não pela 1.ª instância, aos depoimentos de testemunhas (casos da testemunha DD e EE).

Esta argumentação mistura erros na apreciação de provas sujeitas à livre apreciação do tribunal com violação, pela Relação, dos seus poderes/deveres no julgamento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

Como veremos de seguida, apenas cabe dentro dos poderes de cognição deste tribunal a questão de saber se a Relação violou os seus poderes/deveres, no julgamento da impugnação da decisão da 1.ª instância relativa à matéria de facto. O erro na apreciação de provas sujeitas à livre apreciação do tribunal, designadamente o erro na apreciação de prova documental, de prova testemunhal e de declarações de parte não pode ser objecto de recurso de revista. A tanto se opõem expressamente os termos terminantes e claros da 1.ª parte do n.º 3 do artigo 674.º do CPC. Daí que não caiba a este Tribunal responder à questão de saber se a Relação errou na apreciação dos meios de prova indicados pela recorrente. Este erro, a ter existido, é erro de facto subtraído por lei ao conhecimento do Supremo.

Vejamos, agora, as razões pelas quais cabe a este tribunal conhecer da questão de saber se o tribunal da Relação observou os seus poderes/deveres no julgamento da impugnação da decisão proferida na 1.ª instância quanto aos pontos números 10, 19, 33 e 37 da matéria de facto.

Como se escreveu acima, o acórdão da Relação confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância. E também como se escreveu acima, destes acórdãos não é admitida revista, salvo nos casos em que o recurso é sempre admissível ou nos casos excepcionais previstos no artigo 672.º, n.ºs 1, alíneas a), b) e c) (revista excepcional), hipóteses que não se colocam no caso.

Sucede que o n.º 3 do artigo 671.º do CPC tem sido interpretado pelo Supremo Tribunal de Justiça, interpretação que se segue, no sentido de que o acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, mas ao qual seja imputada a violação ou errada aplicação da lei do processo no que diz respeito ao julgamento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto está fora do alcance do preceito. Nesta hipótese, cabe revista do acórdão ao abrigo do n.º 1 do artigo 671.º. Citam-se em abono desta interpretação e a título meramente exemplificativo os seguintes acórdãos do STJ: acórdão proferido em 17-12-2020, no processo n.º 7228/16.0T8GMR.G1.S1; acórdão proferido em 25-03-2021, processo n.º 756/14.3TBPTM.L1.S1; acórdão proferido em 14-09-2021, no processo n.º 864/18.1T8VFR.P1.S1; acórdão proferido em 5-04-2022, no processo n.º 1916/18.3T8STS.P1.S1; e o acórdão proferido em 4-07-2023, no processo n.º 19645/18.6T8LSB.L1.S1, todos publicados em www.dgsi.pt.

Interpretando os artigos 671.º, n.º 1 e n.º 3 com o sentido e o alcance expostos é de concluir que o recurso de revista interposto pela recorrente é de admitir, uma vez que ela alegou que o tribunal da Relação não observou os seus poderes/deveres no julgamento da impugnação da decisão relativa aos pontos números 10, 19, 33 e 37.

Importa, no entanto, precisar o seguinte.

Em primeiro lugar, o recurso é de admitir, mas com o objecto limitado à questão de saber se o tribunal da Relação, na parte em que julgou a impugnação da decisão relativa à matéria dos pontos números 10, 19, 33 e 37, violou os seus poderes deveres no julgamento da impugnação.

Em segundo lugar, na hipótese de o Supremo Tribunal de Justiça concluir que o tribunal da Relação não cumpriu os seus poderes/deveres na reapreciação da prova, a consequência é a anulação da decisão recorrida e o reenvio do processo ao tribunal da Relação para que procede à reapreciação da impugnação em conformidade com as regras processuais aplicáveis. Não cabe, pois, a este tribunal revogar a decisão recorrida e substituí-la por outra que julgue procedente a impugnação da decisão relativa aos pontos da matéria de facto em causa.

Em terceiro lugar, na hipótese de o tribunal julgar improcedente a revista, a decisão recorrida quanto às questões de direito subsiste sem mais, visto que não foi interposto recurso de revista excepcional.


*


Posto isto, entremos na resolução da questão de saber se o tribunal da Relação violou os poderes/deveres no julgamento da impugnação da decisão proferida na 1.ª instância quanto aos pontos números 10, 19, 33 e 37 da matéria de facto.

Sob estes números, o tribunal da 1.ª instância julgou provados os seguintes factos:

• As obras de reabilitação do prédio a que pertence a loja arrendada à Autora foram concluídas em Novembro de 2019 (10);

• Todas as obras previstas foram realizadas, incluindo, as obras de reabilitação estrutural da fracção autónoma arrendada à Autora (19);

• Nessa vistoria [vistoria à loja, em que estiveram presentes o gerente da Autora, o gerente da Ré e o sócio da Ré a Autora, no dia 22-01-2020] não quis receber as chaves da loja (33);

• A Autora recusou receber as chaves (37.º).

A recorrente impugnou a decisão pedindo:

• Se julgasse não provada a matéria do ponto n.º 10;

• Se alterasse a matéria do ponto n.º 19, julgando provado que “As obras de reabilitação estrutural da fração autónoma arrendada à Autora foram realizadas.”

• Se julgasse não provada a matéria dos pontos números 33 e 37.

A Relação manteve a decisão proferida quanto aos pontos n.ºs 19 e 33 e alterou a decisão proferida quanto aos números 10.º e 37 no seguinte sentido. Quanto ao ponto n.º 10, julgou provado que “as obras de reabilitação a loja arrendada à Autora foram concluídas em 6 de Março de 2020”. Quanto ao n.º 37, considerou provado que “a autora sempre recusou receber as chaves até à data de 7 de Outubro de 2020, data em que pôs termo ao contrato de arrendamento”.

Na resolução da questão supra enunciada, este tribunal irá tomar em consideração como factos relevantes os seguintes elementos do processo:

1. A decisão proferida pelo tribunal da 1.ª instância quanto aos pontos números 10, 19, 33 e 37 da matéria de facto;

2. A impugnação da decisão destes pontos pela recorrente;

3. O acórdão da Relação na parte em que decidiu a impugnação da decisão relativa a tais pontos.


*


A resposta à questão ora em apreciação remete-nos, antes de mais, para o regime do julgamento da impugnação da decisão proferida em 1.ª instância quanto à matéria de facto.

O Código de Processo Civil refere-se à impugnação da decisão relativa à matéria de facto no artigo 640.º, especificando os ónus a cargo do recorrente e as consequências do seu incumprimento.

O artigo 662.º do mesmo diploma estabelece no seu n.º 1 que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Para o caso releva de modo especial a parte do preceito que dispõe que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida impuser decisão diversa, visto que foi com base na prova produzida em 1.ª instância que a recorrente pediu a alteração da decisão.

Os n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º do CPC, aplicáveis ao acórdão proferido em sede de apelação, por remissão do n.º 2 do artigo 663.º do CPC, versam, no essencial, sobre a fundamentação da decisão de facto e sobre os critérios que presidem à apreciação das provas.

Destes preceitos decorre que o Tribunal da Relação dispõe de amplos poderes de reapreciação da matéria de facto impugnada, como foi afirmado na proposta de Lei n.º 13/XII que esteve na origem da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o Código de Processo Civil em vigor. Tais poderes têm em vista permitir à Relação alcançar a verdade material e formar e formular a sua própria convicção sobre os pontos da matéria de facto impugnados. A formação desta convicção está sujeita às mesmas exigências da formação da convicção do juiz da 1.ª instância, concretamente trata-se de uma convicção assente no exame crítico das provas, devendo o juiz especificar os fundamentos que foram decisivos para declarar um facto provado ou não provado.

É, assim, de afastar a interpretação restritiva dos poderes da Relação em matéria de facto, segundo a qual ao tribunal de recurso cabia tão só controlar a racionalidade da motivação da decisão proferida em primeira instância, averiguando designadamente se a tal motivação era razoável, obedecia às regras da experiência e era compatível com a prova produzida.

Em abono da interpretação dos preceitos acima indicados sobre os poderes da Relação em matéria de facto citam-se a título de exemplo os seguintes acórdãos do STJ: acórdão do STJ de 11-02-2016, processo n.º 907/13.5TBPTG.E1.S1, acórdão do STJ de 7-09-2017, processo n.º 959/09.2TVLSB.L1S1, acórdão do STJ proferido em 21-09-2017, processo n.º 526/14.9TBCNT.C1.S1. acórdão do STJ proferido em 16-12-2020, processo n.º 4016/13.9TBVNG.P1.S3, acórdão do STJ de 7-06-2022, processo n.º 6138718.0T8VNG.P1.S1, todos publicados em www.dgsi. Na doutrina e a título meramente exemplificativo citam-se Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, página 332, 6.º Edição Atualizada, Almedina, Miguel Teixeira de Sousa, Prova, Poderes da Relação: a lição da epistemologia, Cadernos de Direito privado, n.º 44, páginas 33 a 36.

Interpretados os poderes/deveres da Relação em matéria de julgamento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, com o sentido e o alcance expostos, cabe responder à questão de saber se o acórdão recorrido observou tais deveres no julgamento da impugnação da decisão de facto.

A recorrente, como já se expôs acima, acusou o tribunal a quo de violar os seus poderes/deveres no julgamento da impugnação da decisão relativa aos pontos de facto acima referidos com a seguinte alegação:

• Que o Tribunal recorrido usou repetidas vezes, como fundamentação para a improcedência da matéria de facto impugnada, considerações genéricas sobre os princípios da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, mormente no que se refere á credibilidade atribuída, ou não, pela 1.ª instância, aos depoimentos de testemunhas e mesmo às declarações de parte do legal representante da autora, sem que tenha feito a sua própria avaliação e apreciação de tais depoimentos/declarações e formado a sua própria convicção (conclusão 12.ª);

• Que, em relação aos pontos n.ºs 10 e 19, o tribunal violou o dever de reexaminar todas as provas indicadas pelo recorrente na impugnação da decisão proferida;

• Que o tribunal ignorou meios de prova, tais como o depoimento das testemunhas BB, CC, e o teor das comunicações da autora para a ré posteriores a 6 de Março de 2020 e o teor da notificação judicial avulsa;

• Que o tribunal desconsiderou os depoimentos de DD e EE, com fundamento apenas em considerações genéricas sobre os princípios da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, mormente no que se refere à credibilidade atribuída pela 1.ª instância aos depoimentos das testemunhas e às declarações de parte da autora, sem que tenha feito a sua própria avaliação de tais depoimentos e formado a sua própria convicção.

Pese embora o respeito que nos merece esta alegação, ela não vale contra o acórdão recorrido.

Em primeiro lugar, cabe dizer que se é exacta a alegação de que o acórdão recorrido teceu considerações genéricas sobre os princípios da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, já não é exacta a alegação de que o tribunal a quo usou essas considerações genéricas para fundamentar a decisão proferida sobre os pontos da matéria de facto em questão.

As referidas considerações genéricas foram emitidas a propósito dos depoimentos das testemunhas DD, FF e EE e das declarações de parte do gerente da autora, no seguinte contexto. A recorrente invocou estes meios de prova para pedir a alteração da decisão proferida sob os pontos números 10 e 19.

A Relação, pronunciando-se sobre estes meios de prova, afirmou que o tribunal da 1.ª instância não lhes tinha dado credibilidade. Neste contexto, invocou os princípios da imediação e da oralidade para afirmar que a 1.ª instância estava mais bem posicionada do que a Relação para aferir da credibilidade dos depoimentos das mencionadas testemunhas e das declarações do gerente da autora

O tribunal da Relação não deixou, no entanto, de acrescentar que a recorrente não havia contrariado a motivação do julgador da 1.ª instância, pelo que não tinha razões para valorar de maneira diversa tais depoimentos e declarações.

Não se ficou, no entanto, por aqui. Em relação aos depoimentos das testemunhas DD, FF e EE, afirmou “De todo o modo sempre se dirá que estes depoimentos foram prestados por quem não demonstrou conhecimento dos contornos da relação entre as partes, desconhecendo o que as partes acordaram entre si. Os depoimentos foram no sentido de que cabia à R colocar os vidros e pôr as grades a funcionar electricamente. Ora, essas são as questões que se pretendem apurar como fazendo ou não parte do acordo celebrado entre as partes, sendo irrelevante o “parecer” das testemunhas”.

O exame das razões que levaram o tribunal da 1.ª instância a não dar crédito aos depoimentos, o confronto dessas razões com a alegação da recorrente e a apreciação dos depoimentos das testemunhas, dizendo que elas não estavam a par do que havia sido acordado entre as partes ajustam-se ao exame crítico das provas a que se refere o n.º 4 do artigo 607.º do CPC. Não colhe, assim, contra o acórdão recorrido a alegação de que o tribunal da Relação desconsiderou os depoimentos de DD e de EE com fundamento apenas em considerações genéricas sobre os princípios da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação.

Em segundo lugar, não é exacto que o tribunal da Relação tenha ignorado, no julgamento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, o depoimento da testemunha BB.

O tribunal ponderou o depoimento desta testemunha, na impugnação da decisão proferida sob o ponto n.º 10, como o atesta o seguinte passo do acórdão: “Atendendo ao depoimento BB, autor do projecto, é legítimo concluir que o pedido de “autorização de utilização” não significa necessariamente que a obra esteja pronta. Secunda-se o alegado pela recorrente que diz que a testemunha depôs no sentido de que «pedida autorização de utilização tal pedido não implicou qualquer vistoria por parte dos serviços da Câmara, já que “informalmente é pedida uma dispensa de vistoria mediante a afirmação de que não houve alterações em obra em relação ao que estava no projeto”».

Já é exacta a alegação de que o tribunal da Relação não se referiu expressamente ao depoimento de CC, aquando do julgamento da impugnação da decisão relativa aos pontos n.ºs 10, apesar de a recorrente o ter invocado como fundamento do erro na apreciação das provas no que diz respeito à decisão proferida sobre tais pontos.

Apesar de exacta, ela não significa que o tribunal recorrido tenha violado os seus deveres no julgamento da impugnação de tais pontos da matéria de facto. Com o efeito, o dever de examinar criticamente as provas a que se refere o n.º 4 do artigo 607.º do CPC não implica o dever de o juiz expor, na fundamentação da decisão de facto, o exame crítico de todas as provas produzidas. O que é indispensável é que o juiz indique a sua convicção sobre cada facto e especifique os fundamentos que foram decisivos para tal convicção.

Ora, o acórdão sob recurso revela com suficiente clareza qual foi a convicção do tribunal sobre os pontos de facto n.ºs 10, 19, 33 e 37 e quais as razões que levaram o tribunal da Relação a alterar a decisão da 1.ª instância quanto aos pontos números 10 e 33 e a manter a decisão quanto aos pontos números 19 e 37.

Em relação às razões que foram decisivas para se convencer que as obras de reabilitação foram concluídas em 6 de Março de 2020 (ponto n.º 10), afirmou o tribunal a quo: “Atendendo ao depoimento BB, autor do projecto, é legítimo concluir que o pedido de “autorização de utilização” não significa necessariamente que a obra esteja pronta. Secunda-se o alegado pela recorrente que diz que a testemunha depôs no sentido de que «pedida autorização de utilização tal pedido não implicou qualquer vistoria por parte dos serviços da Câmara, já que “informalmente é pedida uma dispensa de vistoria mediante a afirmação de que não houve alterações em obra em relação ao que estava no projeto”» Donde, tal pedido de autorização não bastaria para suportar a resposta dada. Mas outros depoimentos foram produzidos que merecem ser atendido - são as testemunha que fiscalizaram a obra, engenheiros civis. Diz-se o julgador “GG e HH, que confirmaram a fiscalização da obra por parte da Ré e que todas as obras foram realizadas nomeadamente na loja em causa nos autos (referindo que as obras são feitas conforme o projecto que está na Câmara Municipal e que a Câmara Municipal só emite a licença se a obra tiver sido executada nos termos do projecto). Conformaram ainda que a obra teve atrasos (deveria ter acabado em Maio de 2019 e acabou em Novembro de 2019).” Este o suporte da resposta dada. Mas a resposta não é de manter porque tendo consignado que recaia sobre a R. a obrigação de colocar os vidros e que estes só se mostram colocados a 6 de Março de 2020, só nessa data se deve considerar a obra como “pronta” para os efeitos de entrega da fracção à inquilina”.

A manutenção da decisão proferida quanto ao ponto n.º 19, foi justificada nos seguintes termos: “Invocando os meios de prova já aludidos na impugnação ao ponto 10. A recorrente defende, porque ficaram os vidros por colocar e as grades a funcionar, a redacção do ponto deve ser a seguinte: “As obras de reabilitação estrutural da fração autónoma arrendada à Autora foram realizadas”. Avança com os depoimentos das testemunhas BB, DD, FF, CC e declarações do representante legal da A. Em relação as testemunhas DD e FF reafirmamos o que acima se deixou consignado quanto à sua credibilidade. No tocante às declarações de parte o Tribunal nelas são se alicerçou, por as mesmas não lhe terem merecido credibilidade. Atentos os princípios da imediação e da oralidade o tribunal de 1.ª instância está muito melhor posicionado que este tribunal de recurso para aferir da aludida credibilidade. O julgador justificou porque motivos tais declarações não lhe mereceram credibilidade. Não contradiz a recorrente a motivação do julgador. Assim sendo prevalece a convicção do julgador (ou a falta dela). O julgador fundamentou a sua convicção assim: “o depoimento das testemunhas GG e HH, que confirmaram a fiscalização da obra por parte da Ré e que todas as obras foram realizadas nomeadamente na loja em causa nos autos (referindo que as obras são feitas conforme o projecto que está na Câmara Municipal e que a Câmara Municipal só emite a licença se a obra tiver sido executada nos termos do projecto).” Devidamente ancorada em meio de prova não alcançamos que tenha ocorrido qualquer erro de julgamento, com a rectificação acima feita quanto à data em que se deve considerar a obra pronta.

Convicção diversa é a da recorrente que entende que não foram realizadas “todas as obras” pois não foram postas a funcionar electricamente as grades nem foram colocados os vidros. Considerando o que já se deixou consignado quanto aos vidros e às grades mantemos a resposta dada que se mostra fundada em elementos probatórios sérios e credíveis”.

Os trechos do acórdão acabados de transcrever mostram que o tribunal especificou claramente as razões que o levaram a alterar a decisão proferido quanto ao ponto n.º 10 e a manter a proferida sob o ponto n.º 19.

Quanto ao julgamento da impugnação da decisão relativa à matéria dos pontos números 33 a 37, a recorrente censura o acórdão recorrido com a seguinte alegação:

• Que ela recorrente invocou que só não quis receber as chaves, apenas e tão só, pelo facto de a Ré não ter concluído todas as obras necessárias à tomada de posse pela Autora da fração arrendada, na medida em que a posse da mesma só poderia ocorrer quando aquela estivesse nas condições previstas no projeto e apta a receber as obras de layout com vista à sua abertura ao público;

• Que o Tribunal a quo, apesar de considerar que as respostas dadas estão devidamente suportadas quer no depoimento da testemunha AA, quer na vasta correspondência trocada entre as partes, onde a Recorrente afirmou e reafirmou que a loja não estava em condições de ser entregue, por faltarem os vidros e a colocação das grades a funcionarem eletricamente, não alterou a resposta dada;

• Que a explicitação da razão pela qual não quis receber as chaves é essencial e, uma vez que foi julgada provada, deve necessariamente figurar na resposta a estes concretos pontos;

• Que o Tribunal da Relação violou o disposto nos artigos 236º, 246º, 250º, 252º, 342º, 349º e 376º do CC e artigos 574º, 608º, 662º e 663º do C.P.C.

Esta alegação não colhe contra o acórdão recorrido.

Em primeiro lugar, do ponto de vista substancial, ela limita-se a exprimir a discordância da recorrente quanto à decisão da Relação, censurando-a por não ter feito constar nas respostas aos pontos números 33 e 37 a razão pela qual ela, autora, se recusou a receber as chaves da fracção. Razão que, no seu entender, resultava precisamente da prova de que se socorreu o tribunal a quo para manter a decisão impugnada.

Sucede, como já se escreveu neste acórdão, que a discordância do recorrente em relação à decisão das Relação e a alegação de erro na apreciação das provas (no caso, da “vasta correspondência trocada entre as partes”) não podem ser objecto de recurso de revista, por a tanto se opor expressamente a 1.ª parte do n.º 3 do artigo 674.º do CPC.

Em segundo lugar, a imputação ao acórdão recorrido da violação dos artigos acima citados é manifestamente destituída de fundamento. Só tem sentido imputar a uma decisão a violação de normas que tenham constituído fundamento da decisão (alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 639.º do CPC) e a leitura do acórdão da Relação mostra com suficiente clareza que o mesmo não se serviu de nenhum dos preceitos acima indicados para julgar improcedente a impugnação quanto aos pontos n.ºs 33 e 37 da matéria de facto provada.

Por todo o exposto é de negar a revista.


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Decisão:

Nega-se a revista e, em consequência, mantém-se o acórdão recorrido.

Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de a recorrente ter ficado vencida no recurso, condena-se a mesma nas respectivas custas.

Lisboa, 18-04-2024

Relator: Emídio Santos

1.º Adjunto: Fernando Baptista de Oliveira

2.º Adjunto: Paula Leal de Carvalho