PROPRIEDADE HORIZONTAL
PARTES COMUNS
USUCAPIÃO
ABUSO DO DIREITO
SUPRESSIO
DEMOLIÇÃO DE OBRAS
CONSENTIMENTO TÁCITO
RENÚNCIA
CONDOMÍNIO
EXCEÇÃO PERENTÓRIA
RECONVENÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PROVA PERICIAL
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Sumário


I. Sendo a força probatória das perícias apreciada livremente pelo tribunal, não pode o Supremo Tribunal de Justiça pronunciar-se sobre o juízo relativo à prova pericial, salvo nos casos de manifesta desadequação ou ilogicidade da fundamentação desse juízo.
II. Não há obstáculo a que a alegação, pelo réu, de aquisição originária (usucapião) seja feita por excepção, sem necessidade de dedução de reconvenção.
III. O fim social e económico do direito é a função instrumental própria do direito, a justificação da respectiva atribuição pela lei ao seu titular, sendo a sanção natural para a execução pelo condómino de obras ilícitas nas partes comuns de edifício em regime de propriedade horizontal a sua demolição, não constituindo, por isso, em princípio, abuso de direito o pedido de demolição dessas obras.
IV. Porém, ao vir pedir em 2015 pedir a condenação dos réus na demolição de uma piscina, uma construção com três divisões e uma garagem, obras efectuadas em parte comum da propriedade horizontal, e na restituição dessa parte comum do prédio ao seu estado anterior, a autora actua com abuso do direito, na modalidade de supressio (o que é de conhecimento oficioso), na medida em que ficou provado que a ocupação pelos réus daquela parte comum, e bem assim das referidas construções, já existia há cerca de três décadas, sem que durante tal período temporal, quer a Autora, quer qualquer outro condómino – incluindo o anterior condómino a quem a Autora adquiriu a sua fracção – tivessem manifestado qualquer reação adversa ou de oposição a essa ocupação e/ou edificação.
V. Com efeito, a inércia da Autora (e como dos demais condóminos) durante todos esses anos, revela o consentimento tácito, uma verdadeira renúncia adequada a reforçar a convicção dos Réus de que exerciam um direito próprio que os condóminos jamais poriam em causa.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível


I – RELATÓRIO

AA, condómina (fração 3-B) do Condomínio ..., antigo bloco D, designado, correntemente, por "Condomínio do Bloco Antigos dos Apartamentos da ...", intentou acção declarativa de condenação contra BB, CC e DD (1ºs réus), condóminas (fração 2-C) do mesmo condomínio, EE (2º réu)1, condómino no aludido condomínio (fração 1-C) e S..., S.A. - administradora do referido condomínio (3ª ré).

Pedem que2, declarando-se o direito de compropriedade dos condóminos sobre duas áreas de terreno de 290,30 m2 e 261,50 m2 - parte integrante do perímetro do mencionado condomínio (das suas partes comuns) -, alegadamente, objecto de "apropriação" por parte dos demandados pessoas singulares, e sobre uma garagem - implantada, também, no dito perímetro - "apropriada", no critério da demandante, pela requerida sociedade, se condene os demandados na demolição de quaisquer edificações que hajam realizado nas "partes comuns do edifício" e na sua restituição, no estado em que se encontravam, aquando da dita "apropriação", no prazo de 30 dias, após ser proferida sentença, acrescida de sanção pecuniária compulsória de €200,00, "por cada dia de atraso no cumprimento da sentença condenatória, por parte de cada um dos Réus".

Contestaram os Réus, pugnando pela improcedência da demanda.

A final, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente com a consequente absolvição dos réus do pedido.

Inconformada com o decidido, apelou a demandante AA, vindo a Relação de Évora, em acórdão, a julgar a apelação procedente e, revogando a sentença impugnada, declarar a recorrente/demandante AA comproprietária, atenta a sua qualidade de condómina do "Condomínio do Bloco Antigos dos Apartamentos da ...", das áreas ajardinadas de 261,5 m2 e 193,72 m2, detidas, respectivamente, pelos demandados/recorridos EE e FF e BB, CC e DD, condenando, em consequência, estas e a Ré/recorrida S..., S.A. na demolição, no prazo de 120 dias, das construções nelas realizadas, com a fixação de uma sanção compulsória de €50,00 diários.

Por sua vez inconformados com esta decisão da Relação, vieram os Réus BB; CC; DD; EE; e S..., S.A., interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando alegações (após convite à sintetização das extensas e complexas conclusões – convite a que acederam, mas, em boa verdade, continuando a quase replicar as conclusões inicialmente apresentadas, as quais, reitera-se, de conclusões apenas têm o nome (!), dessa forma olvidando o estatuído no artº 639º, nº1 do CPC, a exigir que as mesmas devam ser sintéticas) que rematam com as seguintes

CONCLUSÕES

I. O Tribunal recorrido condenou os RR. a reconhecer a recorrida como comproprietária atenta a sua qualidade de condómina do “Condomínio do Bloco Antigos dos Apartamentos da ...”, das áreas ajardinadas de 261,5 mts2 e 193,72mts2, detidas, respetivamente, pelos demandados/recorridos EE e FF e BB, CC e DD e S..., S.A., na demolição no prazo de 120 dias, das construções nelas realizadas, com a fixação de uma sanção compulsória de €.50,00 Euros diários.

II. As 1.ªs rés edificaram na parcela de terreno objeto da douta decisão recorrida e também objeto de perícia, em data não posterior a 1982, uma piscina e, a poente desta, posteriormente, em data não posterior a setembro de 1987, uma construção com 3 divisões e uma garagem.

III. A área equivalente a, aproximadamente, 2/3 da piscina -parte nascente da piscina - foi edificada em área do perímetro do lote onde foi constituído o edifício referido em A, em zona não especificada no título constitutivo da propriedade horizontal como pertencente a qualquer fração, nomeadamente à fração “2C”.

IV. A área do terreno ajardinado que rodeia os referidos 2/3 da piscina (parte nascente da piscina) e a área do terreno ajardinado que acompanha o muro que delimita, a sul, do arruamento, integra o perímetro do condomínio, e no título constitutivo da propriedade horizontal não está especificada como pertencente a qualquer fração, designadamente à fração “2C”.

V. Desde data não posterior a 1982 que as 1.ªs rés, e antes destas os seus pais, gozam e fruem continuamente, em exclusivo, à vista de todos, de todas as utilidades dessa área como se proprietárias fossem opondo-se nesse gozo e fruição aos demais.

VI. Os 2ºs réus vêm usando exclusivamente, desde data não posterior a agosto de 1982, duma área descoberta de 261,5m2 contígua ao edificado da sua fração “1C”, delimitada no seu perímetro, salvo na parte em que confina com a própria parede da sua fração, por muros e murete com vedação.

VII. A área ajardinada a poente do murete construído de forma paralela à fachada lateral mais a poente do edifício -murete que desenha um segmento de reta com sentido norte/sul - não está incluída no perímetro do lote onde foi constituída a propriedade horizontal.

VIII. Os 2° Réus edificaram na extrema norte/poente desta área referida em O, em data não apurada, mas não posterior a agosto de 1987, uma construção do tipo “garagem”.

IX. A área ajardinada situada a nascente do murete, entre o terraço descoberto da fração 1- C e o muro que a separa, a sul, da área agora ocupada pelas 1.ªs rés, está no perímetro do lote onde foi constituída a propriedade horizontal, e no título constitutivo da propriedade horizontal não está especificada como pertencente a qualquer fração, nomeadamente à fração “1C”.

X. A área ajardinada, desde data não posterior a 1982, e a garagem, desde data não posterior a agosto de 1987, são utilizadas em exclusivo pelos 2.ºs réus, como se delas proprietários fossem, para fruição e arrumo de diversos bens de sua propriedade, o que é do conhecimento de todos os condóminos.

XI. As 1.ªs rés e 2.ºs réus ocuparam as áreas descobertas não identificadas no título constitutivo da propriedade horizontal como pertencentes às frações 2-C e 1-C na sequência de, respetivamente, declarações verbais de compra e venda e declarações verbais de doação e aceitação trocadas com o Dr. GG, então legal representante da Sociedade Turística ..., S.A. , que se apresentava perante todos como o proprietário da área dos vários lotes de terreno envolventes ao Lote 56.

XII. As 1.ªs e 2.ºs réus vêm contribuindo para as despesas de condomínio de acordo com o valor relativo das frações estabelecido na escritura da propriedade horizontal.

XIII. Os Réus EE e FF edificaram na estrema poente/sul da área antes referida, em data não apurada, mas não posterior a agosto de 1987, uma construção do tipo "garagem".

XIV. Os réus, ora recorridos, entraram na posse de tais parcelas de terreno desde pelo menos os anos de 1982, cfr. Factos M e N, dados como provados.

XV. Tendo por base a citada matéria de facto dada como provada entendeu o Tribunal recorrido determinar o reconhecimento por parte do condomínio das áreas ajardinadas, respetivamente, detidas pelos RR., com as áreas de 261,50 mts2 e 193,72 mts2.

XVI. Os réus, ora recorridos, entraram na posse de tais parcelas de terreno desde pelo menos os anos de 1982, cfr. Factos M e N, dados como provados.

XVII. Desde os referidos anos que vieram sempre mantendo, por mais de 20 anos, pelo que adquiriram tal espaço por prescrição aquisitiva (usucapião).

XVIII. Entendendo-se nada obstar a que as partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal possam ser objecto de usucapião por um dos condóminos, desde que não se trate de parte essencial às fracções autónomas do mesmo, podem os réus adquirir, por usucapião, o direito de propriedade sobre os citados espaços, sendo seus donos e legítimos possuidores.

XIX. As partes imperativamente comuns são insuscetíveis de apropriação individual.

XX. A presunção consagrada no artigo 1421.°, n.° 2, do Código Civil é ilidível, podendo demonstrar-se que a coisa foi atribuída no título constitutivo da propriedade horizontal ou que foi adquirida por usucapião por algum dos condóminos.

Os espaços em apreço nos autos fazem atualmente e desde há mais de 20 anos parte integrante das frações detidas pelos RR., que os mantêm murados e onde se encontram respetivamente, jardim (EE e mulher), piscina e dependências (BB e outros) e bem assim uma arrecadação (S..., S.A.), que ocupam partes do prédio (condomínio) não imperativamente comuns no sentido do artigo 1421.°, n.° 1, do Código Civil.

XXI. Os espaços correspondentes e descritos nos autos, ocupados pelos RR. não tem uma destinação objetiva, nem uma afetação material com nenhuma das fracções, pelo que não há impedimento ao funcionamento da presunção de comunhão consagrada no artigo 1421.°, n.° 2, do Código Civil.

XXII. A presunção de comunhão consagrada no artigo 1421.°, n.° 2, do Código Civil foi ilidida com a demonstração de que, através de posse pacífica, pública, não titulada, mas de boa-fé, os RR as adquiriram por usucapião ao fim de 20 anos, nos termos do artigo 1296.° do Código Civil.

XXIII. Com excepção das partes obrigatória ou necessariamente comuns, a lei permite que o título constitutivo fixe se as partes são comuns ou se se integram nalguma fracção autónoma, funcionando, no silêncio do título, uma presunção - uma presunção ilidível - de comunhão.

XXIV. Do título constitutivo da propriedade horizontal não faz, aliás, qualquer menção a ele, existindo apenas, e como é habitual neste tipo de actos, uma referência genérica e residual às “restantes partes do edifício, não individualizadas”, que “fica[ria]m em comum nos termos da lei”.

XXV. O título constitutivo da propriedade horizontal não é, tão-pouco, uma parte obrigatória ou necessariamente comum, pois não é reconduzível a qualquer das partes enumeradas no n.° 1 do artigo 1421.° do CC.

XXVI. Não há impedimento ao funcionamento da presunção de comunhão quanto a tal espaço, pois não existem sinais de qualquer destinação objectiva ou afectação material do espaço a determinada fracção autónoma (como aconteceria no caso de só se poder aceder ao espaço por determinada fracção).

XXVII. A presunção funciona e, funcionando a presunção, parece que os espaços correspondentes ocupados pelos RR. teriam de ser qualificados como partes comuns.

XXVIII. Os espaços em causa, desde o início, têm as características necessárias para a sua qualificação logradouro das fracções dos RR. e no caso da R. S..., S.A. a detenção pública, pacifica e de boa fé de uma arrecadação que, diga-se, é utilizada pelo próprio condomínio na arrumação dos materiais necessários à manutenção de todos os espaços verdes.

XXIX. Os recorridos exerceram sobre tais partes comuns do condomínio, desde o início, a posse (corpus e animus) de forma reiterada e ostensiva.

XXX. A presunção de comunhão pode ser ilidida demonstrando que a coisa foi adquirida através de actos possessórios por algum ou alguns dos condóminos.

XXXI. Apesar de não constarem do título constitutivo de propriedade horizontal os RR. detêm as mesmas parcelas, desde um primeiro momento e cumprindo todos os requisites que o artigo 1287.° e seguintes do Código Civil, tal qual excecionaram os RR na sua contestação que, diga-se, viu a matéria por si alegada dada como provada no que tange aos requisitos da posse.

XXXII. Os recorridos comportaram-se, de facto, reiterada e ostensivamente, como proprietários das parcelas de terreno, integrando-as nas suas frações permitindo a sua utilização por terceiros.

XXXIII. A posse dos recorridos é não titulada, de boa fé, pacífica e pública.

XXXIV. É posse não titulada porque a única referência à aquisição das suas fracções consta dos títulos aquisitivos, juntos aos autos.

XXXV. É posse de boa fé porque a factualidade provada mostra que os recorridos actuavam na convicção de que não lesavam os direitos do condomínio.

XXXVI. A posse pública porque os actos de posse foram exercidos à vista de todos os condóminos (cfr. factos M. e N. factualidade provada). Mais do que isso, os actos de posse foram exercidos durante muito tempo com a tolerância (activa e passiva) do condomínio, a quem os recorridos pagaram durante muito tempo as quotas correspondentes às suas fracções.

XXXVII. Como é sabido, a posse do direito de propriedade mantida por certo lapso de tempo, faculta, em princípio, ao possuidor a aquisição do direito - por usucapião (cfr. artigo 1287° do CC).

XXXVIII. Os recorridos exerceram a posse por tempo suficiente para adquirir. Considerem-se as datas constantes dos Pontos M. e N. da matéria de facto dada como provada, o que sucede há mais de vinte anos.

XXXIX. Mesmo que qualificando a posse como de má fé, ela terá durado tempo suficiente para que se tenha produzido a aquisição (cfr. artigo 1296.°, 2.a parte, do Código Civil).

XL. Cumprindo as parcelas, como se viu, os requisitos que o artigo 1297.° do Código Civil impõe para a sua incorporação nas frações dos RR. cumpram os requisitos da posse para que configurem a aquisição por usucapião, não se podendo deixar de reconhecer que os RR. adquiriram o direito de propriedade sobre as mencionadas parcelas de terreno que são, hoje em dia, parte integrante das suas frações.

XLI. Atento o disposto no artigo 1417.°, n.° 1, do Código Civil admite-se que a propriedade horizontal seja constituída por usucapião.

XLII. Reconhece-se que a situação em presença (usucapião partes comuns de condomínio detidas pelos RR. seja admissível) não é a mais comum. Normalmente, o que está em causa é a hipótese de um sujeito obter a divisão de certa parte de prédio ainda indiviso/ou em compropriedade.

XLIII. As exigências impostas por ela valerão in totum mas somente para as hipóteses em que a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal é feita por negócio jurídico. Quando esteja em causa, ao abrigo da primeira norma, uma das demais fontes de constituição / modificação da propriedade horizontal (usucapião, decisão administrativa ou decisão judicial), deverá entender-se que a norma não é aplicável.

XLIV. Os RR. vieram defender a sua posse por meio de exceção que, diga-se, apenas poderá operar ou não, após a conclusão da perícia determinada pelo TR de Évora.

XLV. E porque se conclui, ainda que de forma errada, no entender dos RR. que as parcelas ocupadas fazem parte integrante do condomínio, dir-se-á que, da mesma forma, ter-se-á que entender que as mesmas podem ser objeto de aquisição por via da posse.

XLVI. Não se estando perante coisa imperativamente comum e, logo, insusceptível pela sua própria natureza de apropriação individual, a aquisição da propriedade de coisa comum através de usucapião pressupõe uma posse exclusiva durante o tempo necessário à prescrição, revelada num comportamento idóneo à inversão do título da posse, à actuação com animus possidendi, como é o caso vertente nos autos no que se refere aos aqui RR..

XLVII. Questão diversa prende-se com a ponderação que a decisão recorrida deveria ter efetuado, por aplicação do princípio da proporcionalidade ao determinar a demolição das edificações erigidas nas faixas de terreno que entendeu pertencerem ao condomínio.

XLVIII. Do erro em que assenta a perícia que determinou circunscrever o perímetro do condomínio nos precisos termos constantes da decisão recorrida.

XLIX. A douta decisão recorrida entendeu que a violação (alegada) do disposto nos artigos 1418º e 1419º do Código Civil resultante da edificação em partes comuns de um condomínio seriam, só por si, suscetíveis de justificar e fundamentar a ordem de demolição, sem acautelar os interesses contraditórios em ponderação - os dos recorrentes - resultantes dos danos avultados que tal opção causa inevitavelmente no seu património, sem que se demonstre ter sido julgada a usucapião invocada sobre tais partes comuns.

L. Subscreve-se e invoca-se aqui o exemplar enquadramento da matéria relacionada com a descrição do princípio constitucional da proporcionalidade que atrás se deixou explícito no citado Acórdão do Tribunal Constitucional, com o n° 632/2008, de 23-12-2008, muito douto e exemplar.

LI. No que concerne à perícia realizada, em que assenta a decisão sob recurso entendeu não compreender uma faixa de terreno, ajardinada, detida pelo condomínio que se situa a Norte do prédio, forçosamente teve como reflexo que a área total ocupada pelos RR. fosse considerada como integrante do condomínio.

LII. Com o devido respeito e atenta a prova dada como assente pelo próprio Tribunal da Relação de Évora teria que a área ter circunscrição diversa.

LIII. Resulta dos Pontos “L” e “S” da matéria dada como provada, que não foi modificada em sede de recurso: L. A área do terreno ajardinado que rodeia os referidos 2/3 da piscina (parte nascente da piscina) e a área do terreno ajardinado que acompanha o muro que delimita, a sul, do arruamento, integra o perímetro do condomínio, e no título constitutivo da propriedade horizontal não está especificada como pertencente a qualquer fração, designadamente à fração “2C”; S. As 1.ªs rés e 2.ºs réus ocuparam as áreas descobertas não identificadas no título constitutivo da propriedade horizontal como pertencentes às frações 2-C e 1-C, sequência de, respetivamente, declarações verbais de compra e venda e declarações verbais de doação e aceitação trocadas com o Dr. GG, então legal representante da Sociedade Turística ..., S.A., que se apresentava perante todos como o proprietário da área dos vários lotes de terreno envolventes ao Lote 56.

LIV. Por essa ordem de razão não tendo sido modificado este ponto da matéria dada como provada não poderia a decisão sob recurso entender que parte da piscina das RR. se encontra implantada em área pertencente ao condomínio, sendo que a alteração do título de propriedade horizontal não pode operar por decisão judicial.

LV. Essa alteração da composição das fracções consubstancia uma modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, para a qual a lei exige o acordo de todos os condóminos e a forma de escritura pública, verdadeira formalidade ad substantiam (art.°s 220, 371 e 1419, n.° 1, todos do Código Civil). (vide, Acórdão STJ de 23-09-2003, Proc. 03A1835, NUNO CAMEIRA, www.dgsi.pt )

LVI. A modificação do título constitutivo da propriedade horizontal por meio de sentença judicial, não é legalmente possível visto que, para tal efeito, exige-se sempre que haja acordo de todos os condóminos e que a modificação se realize por meio de escritura pública, a qual se assume como verdadeira formalidade ad substantiam, isto é, como requisito de validade do negócio (art°s. 220°, 371° e 1419°, n°. 1, do CC).

LVII. Está vedado ao tribunal intrometer-se no assunto e afastada a possibilidade de que isso possa suceder, ainda que seja no quadro duma acção de suprimento judicial do consentimento, dado o carácter excecional de que este sempre se reveste.

LVIII. O art°. 1419°, n°. 1, atrás citado, é terminante e imperativo: só o acordo unânime, devidamente formalizado, de todos os condóminos poderá validar a modificação.

LIX. Face ao exposto e porque a perícia realizada não é vinculativa, evidente se torna que a mesma não reflita a realidade dos factos pois que, nem sequer dos documentos constantes da CM de ... no processo de licenciamento constam os limites físicos do condomínio pelo que não poderá agora, a perícia, sem que esteja munida desses mesmos elementos pronunciar-se quanto a esta questão, pelo que se imporá a modificação da matéria de facto quanto à circunscrição/delimitação dos limites do condomínio. (artigo 662°, n°.2, do Código de Processo Civil).

LX. A decisão recorrida deveria ter julgado procedente a exceção invocada pelos RR. e em consequência serem absolvidos do pedido com as legais consequências.

LXI. Da mesma forma deveria a decisão recorrida, atenta a factualidade demonstrada ter declarado que os RR. eram donos e legítimos possuidores das parcelas de terreno que vêm ocupando por as terem adquirido por via da posse, publica, pacifica e de boa fé.

LXII. A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 674º, nº.1, al.s a) e b) do Cód. de Processo Civil; Artigo 18º, n°.s 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, e, Artigos 1251°, 1259°, 1260°, 1261°, 1262°, 1415°, 1417°, 1418°, n°.l, 1421°, n°.s 1 e 2, al.e), 1296° e 1297°,
todos do Código Civil.

Nestes termos,

Deve ser lavrado acórdão que revogue a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Évora e em consequência julgar procedente a exceção invocada absolvendo-se os RR. do pedido com as legais consequências; Caso assim se não entende,

Deverá operar a usucapião de espaços que não são exclusivamente e necessariamente comuns, reconhecendo-se a posse e o direito de propriedade dos RR.; Caso assim ainda se não entenda,

Deve ser proferida decisão que, com a ponderação que a decisão recorrida deveria ter efetuado, por aplicação do princípio da proporcionalidade ao determinar a demolição das edificações erigidas nas faixas de terreno que entendeu pertencerem ao condomínio, determine a fixação de compensação ao condomínio por recurso a juízo de equidade.


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Contra-alegou a Autora AA, pugnando pela improcedência do recurso, com a consequente manutenção do acórdão recorrido.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Nada obsta à apreciação do mérito da revista.

Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).


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Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), as questões a decidir – tal, aliás, como é elencado pelos próprios recorrentes – são as seguintes:

• Do alegado erro da perícia realizada por ordem do Tribunal da Relação do Porto (ao abrigo do artº 662º, nº2 (al. b) – acrescentamos nós, pois se não vislumbra em que outra alínea seja enquadrada tal diligência probatória), do CPC.

• Da aquisição (por condómino) por usucapião do direito de propriedade sobre partes comuns de prédio constituído em propriedade horizontal.

• Da inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade (enquanto proibição do excesso, ut artº 18 da CRP), da interpretação dos arts. 1418º e 1419º do CC no sentido de que a sua violação por condómino que edifique sobre as partes comuns de um condomínio sem haver alteração do título constitutivo da propriedade horizontal e acordo de todos os condóminos, justifica a demolição de tais edificações.

• Acresce que, face à especificidade da factualidade provada, se conhecerá também da questão do abuso do direito.

III – FUNDAMENTAÇÃO

III. 1. FACTOS PROVADOS

É a seguinte a matéria de facto provada (fixada na Relação após impugnação em recurso):

A - O Condomínio ..., antigo bloco D, designado, correntemente, "Condomínio do Bloco Antigos dos Apartamentos da ...", é composto por 35 frações autónomas e independentes entre si, edificadas em 14 de dezembro de 1970, sobre parte de um lote de terreno, com a área de 4.000 m2, descrito na conservatória do Registo Predial de ..., sob o n° 7288, a fls. 112 verso, do livro B-19, e inscrito na matriz predial urbana, sob o n° 4128;

B - Pela apresentação 29, de 13 de agosto de 2002, mostra-se registado, a favor da Autora AA, a aquisição, por compra, da fração autónoma, designada por 3A, situada na ala esquerda/corpo A - lado nascente do edifício, constituída por r/c, com a superfície de 91,13 m2, um terraço descoberto de 10,20 m2 e um logradouro com 89,49 m2, correspondendo a 5,12% do valor total do prédio, conforme descrição constante da ficha n° 14750/197012229 -3 da Conservatória do Registo Predial de...;

C - Pela apresentação 1678, de 12 de agosto de 2011, mostra-se registado, a favor das Réus BB, CC e DD, a aquisição, por adjudicação em partilha, subsequente a inventário, por óbito de HH e de II, da fração autónoma designada por 2C do mesmo condomínio, situada no r/c e constituída por sala, com recanto para cozinhar, dois quartos, casa de banho e duche, com a superfície de 81,56 m2, um terraço descoberto de 10,89 m2 e um logradouro de 70,98 m2, correspondendo a 4,38 % do valor total do prédio, registada na Conservatória do Registro Predial de ..., com a ficha n°14750/19701229 -2C, situada na ala direita /corpo C - lado poente do edifício;

D - Pela apresentação 1, de 10 de setembro de 1976, mostra-se registada, a favor do Réu EE e da interveniente FF, a aquisição, por compra, da fração autónoma, designada por 1C do mesmo condomínio, situada no rés-do-chão, constituída por sala, com recanto para cozinhar, dois quartos, uma casa de banho e duche, com a superfície de 89,49 m2, um terraço descoberto, com 10,20m2 e um logradouro de 57,40 m2, correspondendo a 4,21% do valor toral do prédio, registada na Conservatória do Registo Predial de ..., com a ficha n° 14750/19701229 - 1C, situada na ala direita/corpo C - lado poente do edifício;

E - A Ré S..., S.A. - que administra o condomínio, há muitos anos - não é proprietária de qualquer fração autónoma e usa uma "garagem", situada na zona sul/poente do condomínio, em área integrante do perímetro do Lote 56 (redacção dada pela relação).

F - Para o loteamento que deu origem ao lote 56, foi emitido pelo Presidente da Câmara Municipal de ..., em 31 de agosto de 1970, alvará que integrava a planta do lote 56, bloco D, com a área de 4.000m2;

G - Pela apresentação 4130, mostra-se registada, a favor das Rés BB, CC e DD, a aquisição, por usucapião, de um prédio urbano, sito em ..., freguesia e concelho de ..., que se compõe de edifício de rés-do-chão, com piscina, garagem e logradouro, com a área global de 193,73 m2, confrontando a norte e nascente com as referidas Rés, a sul e poente com o arruamento, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n° 18368/20150601, inscrito na matriz sob o artigo 14033, da freguesia de ...);

H - Para tanto, as Rés BB, CC e DD outorgaram, em 24 de março de 2015, a fls. 69 do livro 129-A, do Cartório Notarial de ..., escritura de justificação notarial;

I - As Rés BB, CC e DD, bem como os seus falecidos pais, vêm usando, exclusivamente, desde data não posterior a agosto de 1982, uma área descoberta, com medida compreendida, aproximadamente, entre os 275 e os 290,3 m2, contígua à parte edificada da fração 2C - área que é delimitada no seu perímetro, salvo na parte em que confina com a parede exterior da parte edificada da fração, por muros e murete com vedação;

J - As Rés BB, CC e DD edificaram nessa área, em data não posterior a 1982, uma piscina e, a poente desta, posteriormente, em data não posterior a setembro de 1987, uma construção com três divisões e uma garagem;

K - "A área referida no ponto I) e a piscina e a construção mencionadas no ponto J) dos factos assentes, integram o perímetro do Lote 56, constituído em propriedade horizontal, não estando especificada como pertencente a qualquer fração, designadamente à fração "2C", no respetivo título constitutivo" (redação alterada pela Relação).

L - A área do terreno ajardinada que rodeia os referidos 2/3 da piscina (parte nascente da piscina) e a área do terreno ajardinado que acompanha o muro que delimita, a sul, do arruamento, integra o perímetro do condomínio, e no título constitutivo da propriedade horizontal não está especificada como pertencente a qualquer fração, designadamente, à fração 2C;

M - Desde data não posterior a 1982, que as Rés BB, CC e DD e, antes destas, os seus pais, gozam e fruem continuamente e em exclusivo, à vista de todos, de todas as utilidades dessa área como se proprietárias fossem, opondo-se nesse gozo e fruição aos demais;

N - O Réu EE e da interveniente FF vêm usando, desde data não posterior a agosto de 1982, duma área descoberta de 251,5 m2, contígua ao edificado da sua fração 1C, delimitada no seu perímetro, salvo na parte em que confina com a própria parede da sua fração, por muros e murete, com vedação;

O - A área ajardinada identificada no ponto N, a poente do murete construído de forma paralela à fachada lateral mais a poente do edifício - murete que desenha um segmento de reta com sentido norte/sul - está incluída no perímetro do lote onde foi constituída a propriedade horizontal, não estando especificado como pertencente a qualquer fração, designadamente, à fração "1C", no respetivo título constitutivo (redação alterada pela Relação).

P - Os Réus EE e FF edificaram na estrema poente/sul da área antes referida, em data não apurada, mas não posterior a agosto de 1987, uma construção do tipo "garagem" (redação alterada pela Relação).

Q - A área ajardinada situada a nascente do murete, entre o terraço coberto da fração 1C e o muro que separa, a sul, da área agora ocupada pelas Rés BB, CC e DD, está no perímetro do lote onde foi constituída a propriedade horizontal, e no título constitutivo da propriedade horizontal não está especificada como pertencente a qualquer fração, nomeadamente, à fração 1C;

R - A área ajardinada, desde data não posterior a 1982 e a garagem, desde data não posterior a agosto de 1987, são utilizadas pelo Réu EE e da interveniente FF, para fruição e arrumo de diversos bens de sua propriedade, o que é do conhecimento de todos os condóminos (Relação eliminou a expressão “como se delas proprietários fossem”).

S - As Rés BB, CC e DD, o Réu EE e a interveniente FF ocuparam as áreas descobertas não identificadas no título constitutivo da propriedade horizontal como pertencentes às frações 2-C e 1-C, na sequência de, respetivamente, declarações verbais de compra e venda e declarações verbais de doação e aceitação trocadas com GG, então legal representante daSociedade Turística ..., S.A., que se apresentava perante todos como proprietário da área dos vários lotes de terreno envolventes ao lote 56;

T - As Rés BB, CC e DD, o Réu EE e a interveniente FF vêm contribuindo para as despesas de condomínio, de acordo com o valor relativo das frações estabelecidas escritura na escritura da propriedade horizontal.

U - 5- O Réu EE e a interveniente FF vêm manifestando aos demais condóminos serem titulares de um direito de uso da área exterior, referida em N a R dos factos provados (acrescentado pela Relação).

V - A garagem ocupada pela Ré S..., S.A. está inserida no lote 56 em que foi edificada a propriedade horizontal (acrescentado pela Relação).

X - As construções levadas a cabo pelos Réus estão ligadas às redes de água, esgotos e eletricidade do condomínio (acrescentado pela Relação).

Z - As Rés BB, CC e DD arrendam regularmente a sua fração, dela retirando há muitos anos rendimentos significativos (acrescentado pela Relação).

Factos não provados:

- A parcela de terreno que vem sendo ocupada pelo Réu EE e a interveniente FF encontra-se implantada em prédio propriedade da Sociedade Turística ..., S.A.

(os pontos 1, 2, 3 e 5 foram eliminados pela Relação, transitando para a relação dos factos provados).


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III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO

DO ALEGADO ERRO DA PERÍCIA ORDENADA PELA RELAÇÃO

Dizem os Recorrentes que tal perícia, porque “não é vinculativa” e não reflecte a realidade dos factos, não pode servir de suporte à decisão do tribunal recorrido “quanto à circunscrição/delimitação dos limites do condomínio”.

Como é consabido, ainda que a prova pericial seja realizada com recurso a juízos técnicos emitidos por especialistas, não deixa a mesma de estar sujeita ao princípio da livre apreciação da prova.

Porém, como é salientado no acórdão deste STJ, de 15-09-20223, “a força probatória das perícias, …, é apreciada livremente pelo tribunal — daí que o Supremo Tribunal de Justiça não possa pronunciar-se sobre os resultados da livre apreciação da prova pericial.” – proc. n.º 786/20.6T8PVZ.P1.S1 (Nuno Pinto de Oliveira). Neste sentido, vejam-se, entre outros, os acórdãos do STJ de 31-03-20224 (proc. n.º 812/06.1TBAMT.P1.S1 – Rijo Ferreira), de 15-02-20185 (proc. n.º 4084/07.2TBVFX.L1.S1 - Fátima Gomes) e de 27-02-2018 (proc. n.º 594/13.0TBBNV.E1.S1).

É claro que se é certo que o STJ não pode emitir pronúncia sobre os resultados da livre apreciação da prova pericial, dado estar sujeita à liberdade de apreciação do juiz, tal não significa que essa liberdade na apreciação da prova pericial produzida equivalha a arbitrariedade. Daí que a actuação do STJ no que tange à prova pericial não possa estar completamente vedada. Ou seja, como é referido nos Acórdãos do STJ, de 31-03-2022 (cit. proc. n.º 812/06.1TBAMT.P1.S1, citado supra - Rijo Ferreira) e de 16.02.2023 (proc. nº 457/18.3T8ABF.E1.S1 – Fernando Baptista), o juízo relativo à prova pericial “é susceptível de censura nos casos de manifesta desadequação ou ilogicidade da sua fundamentação.”.


*


Ora, antes de mais, deve referir-se que a Relação, ao ordenar a perícia, não incorreu no disposto no artº 662º do CPC. Ao invés, levou a cabo tal diligência probatória apoiada nesse preceito da lei adjectiva, mais precisamente da al. b) do seu nº 2 (ao prescrever que a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente, …Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova”).

*


Como dito, não pode este Supremo Tribunal controlar a pronúncia da Relação sobre a perícia, dado que a sua força probatória é apreciada livremente pelo tribunal. E não cremos, de todo, que a Relação, ao ordenar a prova pericial, tenha incorrido naquela discricionariedade ou arbitrariedade de forma permitir a este STJ controlar a pronúncia havida por aquela instância sobre a tal diligência probatória, ajuizando do seu teor. Outrossim, não se vislumbra que o juízo plasmado na decisão recorrida relativo à prova pericial seja manifestamente desadequado ou ilógico na sua fundamentação.

É certo, os Recorrentes não concordam com a apreciação e valoração feita pela Relação. Mas tal não habilita, por si só, este Supremo Tribunal a emitir qualquer juízo de censura à decisão recorrida.

Acresce que a decisão da matéria de facto pelo Tribunal da Relação não resultou apenas da prova pericial produzida em segunda instância, antes tendo sido o resultado da reapreciação do conjunto da prova havida nos autos.

Improcede esta questão.

DA USUCAPIÃO DE PARTES COMUNS EM EDIFÍCIOS CONSTITUÍDOS EM PROPRIEDADE HORIZONTAL

Assente, pela Relação, a matéria de facto, é com esta que temos de trabalhar.

Dessa relação factual resulta que os Réus vêm ocupando as parcelas aqui em causa, onde edificaram as construções descritas nos factos provados, parcelas essas que integram o perímetro do Lote 56, constituído em propriedade horizontal, esta que teve lugar em 14.12.1970 no Cartório Notarial de ..., conforme documentam os autos (O Condomínio ..., antigo Bloco D, designado correntemente "Condomínio do Bloco Antigos dos Apartamentos da ...", é composto por 35 frações autónomas e independentes entre si, edificadas em 14 de Dezembro de 1970 sobre parte dum lote de terreno com área de 4.000 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 7288, a fls. 112-v.º do Livro B-19 e inscrito na matriz Predial Urbana sob o n° 4128 – facto provado A)) – terrenos esses cuja propriedade a Autora pretende seja declarada a favor do condomínio e bem assim sejam demolidas todas construções nelas levadas a cabo pelos Réus.

Na verdade, basta atentar, em especial, no teor das alíneas E), I, J, K), L, N, O), P) e K) dos factos provados, para se concluir – como fez a Relação – que as áreas de terreno ocupadas pelos Réus, aqui em causa, fazem todas parte do (perímetro do) lote 56 constituído em propriedade horizontal de que as partes são condóminas, sem que esteja especificado no título da PH como pertencentes a qualquer fracção.

Rezam assim tais alíneas da matéria de facto:

E - A Ré S..., S.A. - que administra o condomínio, há muitos anos - não é proprietária de qualquer fração autónoma e usa uma "garagem", situada na zona sul/poente do condomínio, em área integrante do perímetro do Lote 56 (redacção dada pela relação).

I - As Rés BB, CC e DD, bem como os seus falecidos pais, vêm usando, exclusivamente, desde data não posterior a agosto de 1982, uma área descoberta, com medida compreendida, aproximadamente, entre os 275 e os 290,3 m2, contígua à parte edificada da fração 2C - área que é delimitada no seu perímetro, salvo na parte em que confina com a parede exterior da parte edificada da fração, por muros e murete com vedação;

J - As Rés BB, CC e DD edificaram nessa área, em data não posterior a 1982, uma piscina e, a poente desta, posteriormente, em data não posterior a setembro de 1987, uma construção com três divisões e uma garagem;

K - "A área referida no ponto I) e a piscina e a construção mencionadas no ponto J) dos factos assentes, integram o perímetro do Lote 56, constituído em propriedade horizontal, não estando especificada como pertencente a qualquer fração, designadamente à fração "2C", no respetivo título constitutivo" (redação alterada pela Relação).

L- A área do terreno ajardinada que rodeia os referidos 2/3 da piscina (parte nascente da piscina) e a área do terreno ajardinado que acompanha o muro que delimita, a sul, do arruamento, integra o perímetro do condomínio, e no título constitutivo da propriedade horizontal não está especificada como pertencente a qualquer fração, designadamente, à fração 2C;

N - O Réu EE e da interveniente FF vêm usando, desde data não posterior a agosto de 1982, duma área descoberta de 251,5 m2, contígua ao edificado da sua fração 1C, delimitada no seu perímetro, salvo na parte em que confina com a própria parede da sua fração, por muros e murete, com vedação;

O - A área ajardinada identificada no ponto N, a poente do murete construído de forma paralela à fachada lateral mais a poente do edifício - murete que desenha um segmento de reta com sentido norte/sul - está incluída no perímetro do lote onde foi constituída a propriedade horizontal, não estando especificado como pertencente a qualquer fração, designadamente, à fração "1C", no respetivo título constitutivo (redação alterada pela Relação).

P - Os Réus EE e FF edificaram na estrema poente/sul da área antes referida, em data não apurada, mas não posterior a agosto de 1987, uma construção do tipo "garagem" (redação alterada pela Relação).

Q - A área ajardinada situada a nascente do murete, entre o terraço coberto da fração 1C e o muro que separa, a sul, da área agora ocupada pelas Rés BB, CC e DD, está no perímetro do lote onde foi constituída a propriedade horizontal, e no título constitutivo da propriedade horizontal não está especificada como pertencente a qualquer fração, nomeadamente, à fração 1C;

Portanto, as 1ªs e 2ºs Réus vêm ocupando, em exclusivo, as áreas referidas supra, privando das mesmas os demais condóminos, áreas que não estão no título constitutivo da propriedade horizontal afectas ao uso exclusivo de qualquer fracção.


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Na sentença entendeu-se que, “perante os concretos factos dados como provados, designadamente: levantamento por parte dos réus de muros e vedações em redor das áreas ajardinadas e construção pelas 1.ªs rés de piscina que só em parte está edificada em área comum, o que tudo vem acontecendo desde pelo menos o longínquo ano de 1982 – há mais de 35 anos, portanto – constituem comportamentos inequívocos de que as 1.ªs rés e 2.ºs réus inverteram o título de posse pelo menos em 1982, ao fazerem sentir aos restantes condóminos a sua inequívoca intenção de atuarem como exclusivos proprietários dessas áreas, atuação que exerceram de forma pacífica e à vista de todos”.

Dai ter concluído a sentença pela aquisição prescritiva – usucapião – dos bens comuns reivindicados pela autora.

Já a Relação não seguiu esse entendimento.

Com efeito, considerando, embora, que, apesar de estar provado que as Rés BB, CC e DD, "agregaram" à sua fração autónoma – designada por 2C, situada no r/c e constituída por sala, com recanto para cozinhar, dois quartos, casa de banho e duche, com a superfície de 81,56 m2, um terraço descoberto de 10,89 m2 e um logradouro de 70,98 m2 – , mais 193,72 m2, ocupados por edifício, com piscina, garagem e logradouro – “parte comum do Lote 56” – , “por via de uma posse boa para usucapião e utilização do expediente registral da escritura de justificação notarial” – , já o mesmo não considerando quanto aos Réus EE e FF por entender que os factos provados apenas permitem concluir que são meros “detentores precários” (devido ao seu insucesso na prova de posse boa para usucapião”, daí que “devem abrir mão da parte comum detida - área descoberta e ajardinada de 261,5 m2, contígua ao edificado da sua fração 1C, delimitada no seu perímetro, salvo na parte em que confina com a própria parede da sua fração, por muros e murete, com vedação, a fim desta área passar a estar acessível aos "diversos condóminos", eliminando, para o efeito, os mencionados obstáculos”) e, outrossim, quanto à Ré S..., S.A. (“relativamente à área ocupada pela garagem, que vem utilizando, dado que a sua relação de facto com esta é, também, a de uma detentora precária”) – , entendeu “não ser usucapível um segmento de parte comum de um edifício sujeito ao regime da propriedade horizontal” (parte comum do lote 56).

Considerou o acórdão recorrido que tal impedimento decorre da regra da inseparabilidade do direito de propriedade de cada fração com o de compropriedade sobre as coisas comuns, não sendo, assim, possível a alienação daquela sem estas, ou estas sem aquela. Ora, “não sendo legalmente possível a alienação, também não o é a aquisição, por via da usucapião das partes comuns”.

Por outro lado, fez notar que uma vez constituída a propriedade horizontal, o título constitutivo, em princípio, só pode ser modificado por escritura pública ou por documento particular autenticado, desde que haja acordo de todos os condóminos. Donde considerar que acolher a pretensão das referidas demandadas, implicaria a violação da norma do artº 1419º, nº, do CC, "que é de natureza imperativa".

Acrescenta a Relação (citando jurisprudência do Supremo) que "após a constituição da propriedade horizontal, só as frações individualizadas no título constitutivo é que podem ser reconhecidas como tal e só essas podem ser objeto do direito de propriedade exclusiva dos condóminos".

Nessa senda, remata o acórdão recorrido que «os atos de posse levados a cabo pelas Réus BB, CC e DD, apesar da intenção de exercer, como seu titular, o direito de propriedade sobre os tais 193,72 m2, ocupados por edifício, com piscina, garagem e logradouro, não desembocaram na aquisição do direito de propriedade sobre tal porção de terreno.

Por isso, devem, igualmente, abrir mão, tendo em vista o acima referido objetivo, desta parte comum detida, com eliminação do edifício, piscina e garagem.».


*


Que dizer?

A questão que os recorrentes ora suscitam (saber se é possível a usucapião de partes comuns em edifícios constituídos em propriedade horizontal) é, sem dúvida, interessante. E sobre a mesma não pode, de todo, dizer-se haver unanimidade de entendimento, quer na jurisprudência do Supremo6, quer na doutrina7.

Acontece, porém, que esta questão da usucapião não foi invocada pelas Rés aqui Recorrentes – os 1ºs RR (BB, CC, divorciada, e DD), únicos a quem poderia interessar a apreciação da questão!

Para melhor compreensão do que falamos, atente-se na seguinte lacónica síntese do historial dos autos (posições das partes e decisões):

A autora pediu que fosse reconhecido que faziam parte das partes comuns as seguintes áreas e construções:

Uma área de 290,3 metros ocupada pelas 3 primeiras rés;

Uma área de 261,50 metros ocupada pelo 2.º réu (JJ);

Uma garagem ocupada pela 3.ª ré (sociedade).

Os réus contestam, alegando, em síntese:

Que a área que as 3 primeiras rés estavam a ocupar estava fora do condomínio (cfr., v.g., artº 67º da contestação: “O que sabem as Rés é que não ocupam espaço nenhum que esteja integrado nas áreas comuns ou privativas de qualquer condómino ou que pertençam a todos eles”);

Quanto ao 2.º réu, que a parcela reivindicada e por ele ocupada estava fora do condomínio, por pertencer a um prédio da Sociedade Turística ..., S.A.. Porém, a título subsidiário alegaram que este 2º réu (o EE) sempre tinha adquirido tal área por usucapião. Finalmente disseram que a área de 261,50 incluía área de terreno da fracção (terraço com cerca de 10 metros e logradouro com cerca de 57 m2).

Quanto à 3.ª ré, disseram que a garagem que estava ocupada estará fora dos terrenos do condomínio.


A 1.ª instância julgou a acção improcedente com a seguinte justificação:

Em relação à 3.ª ré não se provou que a garagem estivesse nos terrenos do condomínio;

Em relação às primeiras rés e ao 2.º réu provou-se que parte das áreas reivindicadas estavam fora dos terrenos do condomínio.

Quanto às áreas reivindicadas que estavam nos terrenos do condomínio (áreas das alíneas k), L) e Q)) foram adquiridas por usucapião.

A Relação alterou a matéria de facto, incluindo as áreas reivindicadas nos terrenos do condomínio, revogou a sentença e julgou a ação procedente porque:

- Os 2.ºs réus (EE e FF) não estavam em condições de adquirir por usucapião, visto serem meros detentores da área;

- A 3.ª ré não estava em condições de adquirir porque era mero detentor;

- As primeiras rés eram possuidores da área reivindicada, mas não estavam em condições de adquirir porque não era possível a aquisição de partes comuns por usucapião.


*


Os réus (todos eles) vêm com a presente revista e um dos pedidos que fazem é que se reconheça a aquisição por usucapião das partes que ocupam, por serem áreas apenas presuntivamente comuns.

Como referido supra, ressalta claramente da contestação que os réus apresentaram que a questão da aquisição por usucapião das partes que ocupam apenas foi invocada/suscitada (via excepção) relativamente ao segundo Réu, o EE (isso mesmo ressalta com toda a evidência dos arts. 81º e segs da contestação.

Com efeito, e sempre com referência a esta réu EE, começa-se por referir (artº 81º da contestação) que embora a Autora alegue que esse Réu se apropriou “indevidamente” da “parcela de terreno com 261,50 mts2”, por estar integrada no perímetro do condomínio” (artº81º), o réu rejeita essa afirmação da Autora, já que (cfr. artº 82º cont.) “tal parcela de terreno não se encontra localizada no perímetro que compõe o Condomínio do Bloco Antigos dos Apartamentos da ...”, antes (artº 83º) ”encontra-se implantada em prédio propriedade da Sociedade Turística ..., S.A. que, há mais de vinte (20) anos, cedeu ao Réu EE tal parcela, onde foi edificada garagem e que a restante parte, o Réu EE jardinou e é utilizada, repete-se, há mais 20 anos, o que faz aquele de forma pública pacifica e de boa fé”.

E acrescenta (artº 84º cont): “Ainda que se entenda que tal parcela de terreno se encontra implantada no interior do Condomínio o Réu adquiriu a posse da mesma por usucapião, o que desde já se invoca para todos os efeitos legais” – o que procura demonstrar na subsequente alegação ínsita nos arts. 85º a 95º da contestação, onde, sempre e só, se refere ao “Réu EE”, nunca às 1ºas Rés.

Ora, se não se vê obstáculo a que a alegação de um direito incompatível com o direito do Autor – neste caso a aquisição originária, pelo segundo Réu, da parcela de terreno que se encontre implantada no interior do Condomínio – possa ser feita por excepção, sem necessidade de dedução de reconvenção8, o certo é que a usucapião para ser eficaz precisa/tem de ser invocada por aquele a quem aproveita (ut artigo 303.º do CC, aplicável por remissão do artigo 1292.º do CC). E não tendo os 1º RR invocado nos autos, a seu favor, a usucapião, não podemos apreciar da sua verificação relativamente a si.

Daqui que, mais não houvesse, não seria pela via da usucapião que os 1ºs réus (BB, CC, e DD) poderiam levar de vencida a sua pretensão recursiva.

Efectivamente, perante a alteração da matéria de facto pela Relaçãoque aqui se mantém intocável, dado não impugnada , está provado que estes 1ºs RR agregaram” à sua fracção o espaço de terreno mencionado nos factos provados, “ocupados por edifício, com piscina, garagem e logradouro” e que é “parte comum do Lote 56”. E sendo parte comum, está afecto ao serviço do todo ou ao uso comum dos diversos condóminos. Daí que, em princípio, não lhes restasse senão a restituição ao condomínio de tal ou tais indevidas ocupações (salvo havendo modificação do título nos termos do estatuído no artº 1419º do CC).

Já quanto aos Réus EE e interveniente mulher, FF, não obstante terem invocado a usucapião, porque provado está que são apenas detentores precários – devido ao seu insucesso (no recurso de apelação) na prova de posse boa para usucapião, esta, sim, que, oportunamente e apenas o EE invocou, por via de excepção –, naturalmente que, em princípio, lhes não restaria senão abrir mão da parte comum detida que está “incluída no perímetro do lote onde foi constituída a propriedade horizontal, não estando especificado como pertencente a qualquer fração” (facto O) – onde “edificaram (…), em data não apurada, mas não posterior a agosto de 1987, uma construção do tipo "garagem" (facto P)).

O mesmo ocorrendo com a Ré S..., S.A. relativamente à área ocupada pela garagem, que vem utilizando, dado que a sua relação de facto com esta é, também, a de uma detentora precária.

Porem, como se verá, por outras razões não merece provimento a pretensão da Autora.


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DO ABUSO DO DIREITO

Atentemos no essencial da factualidade relevante na apreciação desta questão:

O Condomínio ... ("Condomínio do Bloco Antigos dos Apartamentos da ...") é composto por 35 frações autónomas e independentes entre si, edificadas em 14 de dezembro de 1970, sobre parte de um lote de terreno.

Desde Agosto de 2002 que se mostra registado, a favor da Autora a aquisição, por compra, da fração autónoma, designada por 3ª, constituída por r/c, um terraço descoberto e um logradouro.

Desde Agosto de 2011 que se mostra registado, a favor das Réus BB, CC e DD, a aquisição, por adjudicação em partilha, da fração autónoma designada por 2C do mesmo condomínio, constituída por sala, com recanto para cozinhar, dois quartos, casa de banho, duche e um logradouro.

Desde Setembro de 1976 que se mostra registada, a favor do Réu EE e da interveniente FF, a aquisição, por compra, da fração autónoma, designada por 1C do mesmo condomínio, constituída por sala, com recanto para cozinhar, dois quartos, uma casa de banho e duche.

A Ré S..., S.A. não é proprietária de qualquer fração autónoma e usa uma "garagem", situada na zona sul/poente do condomínio, em área integrante do perímetro do Lote 56.

Mostra-se registada, a favor das Rés BB, CC e DD, a aquisição, por usucapião, de um prédio urbano, sito em ..., freguesia e concelho de ..., que se compõe de edifício de rés-do-chão, com piscina, garagem e logradouro, com a área global de 193,73 m2, confrontando a norte e nascente com as referidas Rés, a sul e poente com o arruamento, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n° 18368/20150601, tendo, para tal, outorgado, em 24 de março de 2015, em Cartório Notarial, escritura de justificação notarial.

As mesmas Rés, bem como os seus falecidos pais, vêm usando, exclusivamente, desde data não posterior a agosto de 1982, uma área descoberta, com medida compreendida, aproximadamente, entre os 275 e os 290,3 m2, contígua à parte edificada da fração 2C - área que é delimitada no seu perímetro, salvo na parte em que confina com a parede exterior da parte edificada da fração, por muros e murete com vedação;

As mesmas Rés edificaram nessa área, em data não posterior a 1982, uma piscina e, a poente desta, posteriormente, em data não posterior a setembro de 1987, uma construção com três divisões e uma garagem.

A aludida “área descoberta” e a piscina e “construção com três divisões” nela edificadas pelas mesmas Rés integram o perímetro do Lote 56, constituído em propriedade horizontal, não estando especificada como pertencente a qualquer fração, designadamente à fração "2C", no respectivo título constitutivo de constituição da Propriedade horizontal.

A área do terreno ajardinada que rodeia os referidos 2/3 da piscina (parte nascente da piscina) e a área do terreno ajardinado que acompanha o muro que delimita, a sul, do arruamento, integra o perímetro do condomínio, e no título constitutivo da propriedade horizontal não está especificada como pertencente a qualquer fração, designadamente, à fração 2C.

Desde data não posterior a 1982, que as Rés BB, CC e DD e, antes destas, os seus pais, gozam e fruem continuamente e em exclusivo, à vista de todos, de todas as utilidades dessa área como se proprietárias fossem, opondo-se nesse gozo e fruição aos demais.

O Réu EE e a interveniente FF vêm usando, desde data não posterior a Agosto de 1982, duma área descoberta de 251,5 m2, contígua ao edificado da sua fração 1C, delimitada no seu perímetro, salvo na parte em que confina com a própria parede da sua fração, por muros e murete, com vedação, sendo que tal área ajardinada, a poente do murete construído de forma paralela à fachada lateral mais a poente do edifício está incluída no perímetro do lote onde foi constituída a propriedade horizontal, não estando especificado como pertencente a qualquer fração, designadamente, à fração "1C", no respetivo título constitutivo.

Nessa área “descoberta” os Réus EE e FF edificaram, em data não posterior a agosto de 1987, uma construção do tipo "garagem".

A área ajardinada situada a nascente do murete, entre o terraço coberto da fração 1C e o muro que separa, a sul, da área agora ocupada pelas Rés BB, CC e DD, está no perímetro do lote onde foi constituída a propriedade horizontal, e no título constitutivo da propriedade horizontal não está especificada como pertencente a qualquer fração, nomeadamente, à fração 1C;

A área ajardinada, desde data não posterior a 1982, e a garagem, desde data não posterior a agosto de 1987, são utilizadas pelo Réu EE e a interveniente FF, para fruição e arrumo de diversos bens de sua propriedade, o que é do conhecimento de todos os condóminos.

As Rés BB, CC e DD, o Réu EE e a FF ocuparam as áreas descobertas não identificadas no título constitutivo da propriedade horizontal como pertencentes às frações 2-C e 1-C, na sequência de, respetivamente, declarações verbais de compra e venda e declarações verbais de doação e aceitação trocadas com GG, então legal representante da Sociedade Turística ..., S.A., que se apresentava perante todos como proprietário da área dos vários lotes de terreno envolventes ao lote 56.

Os 1ºs e 2º Réus vêm contribuindo para as despesas de condomínio, de acordo com o valor relativo das frações estabelecidas escritura na escritura da propriedade horizontal.

O Réu EE e a interveniente FF vêm manifestando aos demais condóminos serem titulares de um direito de uso da área descoberta supra referida.

A garagem ocupada pela Ré S..., S.A. está inserida no lote 56 em que foi edificada a propriedade horizontal.

As construções levadas a cabo pelos Réus estão ligadas às redes de água, esgotos e eletricidade do condomínio.

As Rés BB, CC e DD arrendam regularmente a sua fração, dela retirando há muitos anos rendimentos significativos.

Estes factos mostram, à saciedade, que os 1ºs e 2ºs réus não tomaram de “assalto” as áreas descobertas cuja restituição qui é peticionada pela Autora, bem assim nelas não edificaram “à surrapa”, ou de forma escondida, as construções aludidas supra. E, outrossim, não fazem uso há pouco tempo de tais espaços e construções.

Muito pelo contrário: trata-se de obras bem visíveis a todos os condóminos – sendo que as 1ªas Rés ocuparam as referidas áreas descobertas “na sequência de, respetivamente, declarações verbais de compra e venda e declarações verbais de doação e aceitação trocadas com GG, então legal representante da Sociedade Turística ..., S.A., que se apresentava perante todos como proprietário da área dos vários lotes de terreno envolventes ao lote 56”.

E note-se que o uso que as 1ªs Rés – e já antes os seus falecidos pais – vinham fazendo, “exclusivamente”, da aludida área descoberta, teve lugar ao longo de, pelo menos, 33 anos à data da instauração esta acção (desde, pelo menos, 1982 até 2015).

O mesmo se dizendo relativamente às construções que estas Rés ali implantaram: em data não posterior a 1982, uma piscina e, a poente desta, posteriormente, em data não posterior a setembro de 1987, uma construção com três divisões e uma garagem. Ou seja, à data da instauração desta acção, a piscina tinha já cerca de 33 anos e a construção com três divisões e uma garagem cerca de 27 anos!

E o mesmo se diga quanto aos Réus EE e interveniente mulher: a ocupação que vêm fazendo da apontada área descoberta já ocorre desde data não posterior a Agosto de 1982 ou seja, há 33 anos à data da instauração desta acção. E o mesmo período já decorreu relativamente à construção que nessa mesma área levaram a cabo.

Pergunta-se: e só agora a Autora reage? Quando era proprietária da sua fracção autónoma, pelo menos, “desde Agosto de 2002”, pois desde essa data “que se mostra registado, a favor da Autora a aquisição, por compra” de tal fracção?

Ainda mais, exigindo a demolição de tais edificações – as quais, dada a sua natureza e localização, são, óbviamente, de todos os condóminos bem visíveis, incluindo, portanto, pela própria Autora pelo menos desde a referida data de aquisição.

Ou seja, a Autora manteve-se serena, assistindo ao uso da piscina e demais construções levadas a cabo pelos Réus, ao longo de todo este tempo. Mas só agora manifesta preocupação com a situação.


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Sobre esta temática da demolição como sanção para a execução pelo condómino de obras ilícitas nas partes comuns de edifício em regime de propriedade horizontal, na perspectiva do abuso do direito, se tem pronunciado este Supremo Tribunal de Justiça.

Assim, v.g.:

Ac de 17-05-2017 - Revista n.º 309/07.2TBLMG.C1.S1 (Nunes Ribeiro)

“ (…)

IV - O fim social e económico do direito é a função instrumental própria do direito, a justificação da respectiva atribuição pela lei ao seu titular.

V - A sanção natural para a execução pelo condómino de obras ilícitas nas partes comuns de edifício em regime de propriedade horizontal é a sua demolição (art. 829.º, n.º 1, do CC), não constituindo, por isso, abuso de direito, o pedido de demolição dessas obras já que é a própria lei que o determina e o condómino, requerendo-o, não está a exceder em nada os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do respectivo direito, mas antes a reagir contra o condómino que inovou, para que o edifício seja restituído ao estado anterior.

VI - O eventual licenciamento administrativo das referidas obras apenas significa que, do ponto de vista da entidade licenciadora, que se rege por critérios de prossecução de interesse público, nada obsta ao seu desenvolvimento, não derrogando as disposições legais que visam a tutela dos direitos de propriedade em que repousa a propriedade horizontal e daí que os condóminos lesados não fiquem impedidos de exercer os direitos que a lei lhes confere. “

Ac. de 24-05-2007 - Revista n.º 826/07 – (Gil Roque)

I - Os recorrentes construíram uma parede em alvenaria no vestíbulo do 5.º andar do prédio em causa, suprimindo aproximadamente metade da sua área, que é parte comum do prédio, constituído em propriedade horizontal.

(…….)

IV - A conduta da recorrida, igualmente condómina daquele prédio, ao pretender a demolição das obras realizadas na parte comum e a reposição do local como estava anteriormente, não caracteriza uma situação de abuso do direito em qualquer das suas vertentes.

Ac de 02-11-2004 - Revista n.º 3100/04 (Ponce de Leão)

I - As obras que constituam inovações introduzidas nas partes comuns de prédio submetido ao regime da propriedade horizontal dependem da aprovação da maioria dos condóminos, devendo essa maioria representar dois terços do valor total do prédio.

II - Nas partes comuns não são permitidas inovações que sejam capazes de prejudicar a sua utilização por parte de algum dos condóminos.

III - Ao pedir em 1996 a condenação dos réus na demolição das obras efectuadas na casa da porteira e na restituição dessa parte comum do prédio ao seu estado anterior, a autora actua com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, na medida em que ficou demonstrado que a ocupação dos réus daquela parte comum decorreu entre 1980 e 1993 (data em que foi “devolvida”), era onerosa (sendo que a contrapartida mensal revertia para o condomínio) e regia-se por um acordo nos termos do qual estavam previstas as obras que aí podiam ser efectuadas bem como a “perda” das mesmas a favor do condomínio, e que a autora aceitou tacitamente tal estado de coisas, pois jamais reagiu contra o mesmo nas assembleias de condóminos em que participou.

Ac. de 14-12-2006 - Revista n.º 3718/06 (Moreira Alves)

I - Não constando do título constitutivo da propriedade horizontal qualquer fim quanto à utilização da fracção dos Réus, ao contrário do que acontece com as outras fracções, em relação às quais se assinala o fim a que se destinam, e apesar de se ter provado que da licença de utilização resulta que o fim é o da habitação, não é possível concluir que tal omissão se deveu a simples lapso material.

II - Considerando que os Réus habitam a sua fracção e nela exercem a actividade de exploração de consultório de odontologia pelo menos desde 1981, facto que é do conhecimento dos Réus, pelo menos desde 1983, os quais nunca se opuseram a esse uso da fracção, a sua pretensão de encerramento do referido consultório configura um abuso do direito.

III - Com efeito, a sua inércia, durante pelo menos 17 anos, revela o consentimento tácito, uma verdadeira renúncia adequada a reforçar a convicção dos Réus de que exerciam um direito próprio que os condóminos jamais poriam em causa.

IV - Acresce que existe uma grande desproporção entre os prejuízos que decorreriam para os Réus do encerramento do seu consultório e as vantagens ou benefícios que eventualmente adviriam para os Autores que, de resto, nem habitam na sua fracção.

V - Tendo os Réus construído - com licença camarária - um anexo no seu quintal e, a solicitação dos Réus, feito o tecto do anexo em placa, em vez de telhas, para que os Autores pudessem usufruir desse espaço como terraço, é de concluir que autorizaram tacitamente a construção em causa, feita em 1982, pelo que ao virem exigir sua demolição, actuam em abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium.


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Considera-se que o circunstancialismo fáctico apurado nos autos permite enquadrar a conduta da Autora na figura do abuso do direito.

Efectivamente, é difícil conceber que um condómino – in casu, a Autora – venha, nas circunstâncias factuais apuradas nos autos, exigir a demolição das obras, de vulto e de todos os condóminos bem visíveis (falamos de uma piscina e uma construção com três divisões e uma garagem) desde a sua existência, levadas a cabo pelas Rés há décadas, quando se não vislumbra que dano adicional as mesmas possam trazer para a Autora.

Veja-se que não está em causa a alteração da posição relativa dos demais condóminos; a situação existente não vai alterar substancialmente a posição deles em relação às partes comuns, na medida em que estes já há décadas (desde data não posterior a 1982) que não usavam esse espaço comum onde as Rés levaram a cabo as referidas edificações.

É certo com tal ocupação/edificação pela Rés muda a percentagem ou permilagem na globalidade do prédio, os condóminos poderão ter mais encargos. No entanto, apesar de as Rés – e já antes os seus falecidos pais – virem fazendo, “exclusivamente”, uso da área descoberta (onde vieram a levar a cabo as referidas edificações) ao longo (repete-se) de, pelo menos, 33 anos à data em que a Autora reage por via desta acção (veja-se que à data da acção, a piscina tinha já cerca de 33 anos e construção com três divisões e uma garagem cerca de 27 anos), nunca qualquer dos condóminos com isso se preocupou (incluindo a Autora e os anteriores proprietários da sua fracção, que adquiriu, por compra, em Agosto de 2002), quando os vizinhos (as Rés) estavam na posse daquela parcela, parte comum, sabendo os condóminos (incluindo, repete-se, a Autora e anteriores proprietários da sua fracção), ou podendo saber se assim o quisessem, que poderiam estas Rés, um dia, vir a usucapi-la.

Na verdade, os condóminos que se poderiam opor já não utilizavam aquela parte comum há décadas, podendo bem dizer-se que aquela parte comum já não fazia parte da vida deles.

A ser assim, parece não fazer qualquer sentido que agora – só agora – venha a Autora reagir, procurando mostrar que, afinal – contra todas as expectativas criadas nas Rés (e demais condóminos) – , a ocupação de parte comum do condomínio lhes causa prejuízo – melhor, avultadíssimo prejuízo, ao ponto de se arrogarem com direito a exigir a demolição de todas as obras levadas a cabo pelas Ré.

E o acabado de dizer vale mutatis mutandis para o Réu EE e a interveniente, sua mulher: como dito acima, a ocupação da apontada área descoberta teve lugar desde data não posterior a Agosto de 1982; ou seja, estavam decorridos 33 anos à data da instauração desta acção. O mesmo período temporal decorrera no que toca à construção que nessa mesma área levaram a cabo. Sem quem quer que fosse, 44áxime a Autora, manifestasse qualquer reação adversa ou de oposição!


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Assim se reitera que esta conduta da Autora configura um claro abuso do direito.

Com efeito, se é assertivo dizer-se que o fim social e económico do direito é a função instrumental própria do direito, a justificação da respectiva atribuição pela lei ao seu titular e que a sanção natural para a execução pelo condómino de obras ilícitas nas partes comuns de edifício em regime de propriedade horizontal é a sua demolição, não constituindo, por isso, em princípio, abuso de direito o pedido de demolição dessas obras – já que é a própria lei que o determina e o condómino, ao requerê-lo, não está, em princípio (repete-se) a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do respectivo direito, mas antes a reagir contra o condómino que inovou, para que o edifício seja restituído ao estado anterior – , não menos assertiva é a afirmação de que na pronúncia sobre a existência ou não de conduta abusiva do direito é imperioso atender à factualidade concreta do caso concreto sub judice e, perante o seu todo, aferir da justeza, ou não, da concretização da pretensão de demolição das obras,

Ora, perante toda a factualidade apurada nos autos, com os contornos que acima descrevemos e que nos dispensamos de reiterar, parece-nos manifestamente abusiva do direito a pretensão da Autora em ver devolvidas as áreas ocupadas pelos Réus e demolição das edificações que nelas estes implantaram, referidas supra.

A Autora, ao longo de todos estes anos – bem assim o(s) anterior(es) proprietário(s) da sua fracção – nada, mesmo nada, fez (nada se provou nesse sentido, nem, sequer, vem alegado) que indiciasse, sequer, oposição, ou qualquer hostilidade, à manutenção das obras, com elas se conformando, sem que nas mesmas visse, por qualquer forma, beliscados os seus direitos enquanto condómina.

O mesmo é dizer, portanto, que a Autora, ao pretender a demolição das obras em causa, está a agir em abuso do direito – abuso do direito que é de conhecimento oficioso9 (daí que dele conheçamos mesmo não suscitada tal questão), conceito este assim enunciado no artº 334º do Cód. Civil: “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Conforme se colhe dos ensinamentos de PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA10, «[O]s tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais e económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações. Manuel de Andrade refere-se aos direitos exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça (Teoria Geral das Obrigações, pág. 63) e às «hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito de lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico, embora lealmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos a sua estatuição» (Sobre a validade das cláusulas de liquidação de partes sociais pelo último balanço, na Rev. de Leg. e de Jur., ano 87.º, pág. 307)».

O que significa que o preenchimento da cláusula geral que constitui o abuso do direito depende da ponderação casuística feita pelo tribunal em função do circunstancialismo fáctico dado como provado no caso concreto.

Várias são as situações que a doutrina e a jurisprudência têm vindo a identificar como integradoras de abuso do direito. Entre elas figuram as que se traduzem num venire contra factum proprium, ou seja, no exercício de um direito em contradição com um comportamento anterior do titular dele, bem assim a designada supressio.

Visto, no entanto, que não há uma proibição geral de comportamentos contraditórios, a circunstância de o titular de um direito o exercer em desconformidade com um seu comportamento anterior não é suficiente para fazer cair tal exercício nas malhas do abuso do direito.

A doutrina11 e a jurisprudência têm entendido (na consideração de todas as vertentes interpretativas do instituto) que o exercício de um direito em termos contraditórios com um comportamento anterior só excede manifestamente os limites da boa fé: i) quando o comportamento anterior tenha criado na contraparte uma situação objectiva de confiança relativa ao modo de exercício do direito (traduzida na boa fé própria da pessoa que acredita numa conduta alheia (no factum proprium)); ii) quando, com base nessa situação objectiva de confiança, a contraparte tenha tomado disposições ou organizado a sua vida (investimento da confiança – traduzido no facto de ter havido, por parte do confiante, o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade, pelo venire, e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara), que se veriam frustradas com os termos em que o direito é exercido – fala-se, aqui, de uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança, no factum proprium, lhe seja de algum modo recondutível; iii) que haja uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis; iv) quando a contraparte tenha agido com boa fé e com cuidado e precauções usuais no tráfego12.

Com efeito, releva aqui sublinhar que o princípio da confiança “(...) surge como uma mediação entre a boa fé e o caso concreto. Ele exige que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas. Várias razões depõem nesse sentido. (...) Juridicamente, a tutela da confiança acaba por desaguar no grande oceano da igualdade e da necessidade da harmonia, daí resultante: tratar o igual de modo igual e o diferente de modo diferente, de acordo com a medida da diferença. Ora a pessoa que confie, legitimamente, num certo estado de coisas, não pode ser tratada como se não tivesse confiado: seria tratar o diferente de modo igual”13.

Numa proximidade natural, e numa tipologia de actos abusivos, encontra-se a, acima já referida, suppressio, como a posição do direito subjetivo – ou, mais latamente, a de qualquer situação jurídica – que não tendo sido exercida, em determinadas circunstâncias e por um lapso de tempo, não mais possa sê-lo, por de outro modo se contrariar a boa fé14, numa tutela da confiança do beneficiário que assenta no surgimento, ex bona fide, de uma nova posição jurídica15, beneficiário esse que com base numa confiança legítima adquire uma posição que se torna incompatível com o exercício superveniente, numa prevalência, face aos interesses contrapostos.

Deste modo, enquanto forma de tutela do beneficiário confiante na inação do agente, aponta-se16, como um modelo um pouco mais complexo que a habitual tutela da confiança, esquematizando: um não exercício prolongado, cujo quantum será determinado pelas circunstâncias do caso, tido por necessário para convencer um homem normal, colocado na posição do real, que não haveria mais exercício; uma situação de confiança daí derivada; uma justificação para essa confiança, que surge reforçada por todo o circunstancialismo capaz de a confirmar; um investimento de confiança; e a imputação da confiança ao não exercente.

Anote-se que não se mostra necessário a existência de culpa por parte do titular do direito, bastando a situação objetiva criada pela inação constatada, que gerou a justificada confiança da pessoa contra quem o direito se dirigia, pois não pode ser obliterado que se visa sobretudo proteger uma legítima confiança gerada, e não sancionar a inércia do titular do direito17.

Ora, os factos apurados, supra elencados, permitem, como dito, a nosso ver, concluir que a Autora, com o seu comportamento anterior (de inércia relativamente à ocupação e uso dado pelas Rés à parcela/área descoberta ocupada pertence ao espaço comum do lote 56 pertencente e onde funciona o condomínio), criou (ao longo de tantos e tantos anos em que a situação se manteve à vista de todos e sem que alguém se opusesse - maxime a Autora) na contraparte, aqui 1ªs e 2ºs Réus, uma situação objectiva de confiança relativa ao modo como estavam a exercer o seu “direito” sobre a mesma área descoberta, permitindo que, com base nessa confiança, tais Réus organizassem a sua vida (investimento da confiança), ali implantando uma piscina e levassem a cabo as demais referidas edificações, confiança e investimento esses que se veriam, injusta e inexplicavelmente, frustrados caso se desse deferimento à pretensão indemnizatória da Autora – dado que o circunstancialismo fáctico apurado mostra que os RR agiram de boa fé, sem que se provasse que não observaram os usuais cuidados nestas situações.

Temos, assim, verificado o abuso do direito na aludida modalidade da supressio.

Nesta senda, no caso sub judice, considerado o acervo factual dado como provado, a solução pretendida pela Autora apresenta-se intoleravelmente ofensiva do sentido ético-jurídico da comunidade, bem como do princípio da confiança. E daí que, nesse específico circunstancialismo de conduta contraditória e de violação das fundadas expectativas da contraparte, se entenda que o caso se insere nas situações excepcionais e bem delimitadas em que se justifica paralisar os efeitos decorrentes da ocupação e edificação em parte comum de edifícios constituído em propriedade horizontal sem o acordo de todos os condóminos.


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E sempre se anote que fazer cair a situação nas malhas do abuso do direito não é desconforme com a Constituição da república Portuguesa.

Com efeito, o Tribunal Constitucional já se pronunciou, mais do que uma vez, a propósito da cláusula geral do abuso do direito (cfr., entre outros, os acórdãos n.º 655/99 e n.º 532/0418), nos seguintes termos:

«Trata-se, pois, de uma cláusula geral a que apenas se recorre, numa clara atitude valorativa e constitutiva, em face da hipótese concreta, recebendo, de acordo com o padrão valorativo a seguir, concretizações diversas no caso, mediante a decisão do juiz.

(…) o que se defende na melhor doutrina é que esse juízo sobre a existência de abuso do direito nem sequer se coloca no plano da legalidade – veja-se Castanheira Neves, Questão-de-facto/Questão-de-Direito ou o problema metodológico da juridicidade (ensaio de uma reposição crítica) I- A Crise, Coimbra, 1967, pág. 528: «sendo deste modo o problema do ‘abuso do direito’ um problema metodológico-normativo de realização (ou de ‘aplicação’) concreta do direito, e não um problema dogmático da determinação do conteúdo jurídico positum (na lei)», chegando a afirmar a «necessária independência do problema (e da solução) do ‘abuso do direito’ relativamente às determinações legais que o visem» (págs. 528-529), uma vez que um tal problema se põe da mesma forma quer existam, quer não existam normas como as do artigo 334º do nosso Código Civil.

(…)

Em suma: «o abuso é um modo de ser jurídico que se coloca no trajecto [...] entre a norma e a solução concreta: como tal não depende da lei», para o dizer como Menezes Cordeiro (ob. cit.[Da boa fé no direito civil, vol. I, Coimbra, 1984], pág. 872) o diz da concepção de Castanheira Neves – sobre o abuso do direito, veja-se ainda Adriano Vaz Serra, «Abuso do direito (em matéria de responsabilidade civil)», Boletim do Ministério da Justiça, nº 85. Ou, como prefere aquele civilista de Lisboa, o abuso do direito é o produto de uma «aspiração cultural de integração sistemática», «quando ela actue no espaço não-funcional interno dos direitos subjectivos» (A. Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 885). E mesmo defendendo-se uma concepção do abuso de direito segundo a qual o que está nele em causa é – não o controlo de uma actuação contra legem (contra o direito objectivo, portanto), ainda que por um critério valorativo, mas antes – a relação entre as imagens estrutural e funcional do direito subjectivo (no sentido em que a actuação do direito subjectivo não corresponde ao poder de autodeterminação que lhe serve de fundamento – assim, Orlando de Carvalho, Teoria geral do direito civil – Sumários, cit., págs. 54-77; cfr. também as referências de António Pinto Monteiro, Cláusula penal e indemnização, Coimbra, 1990, pág. 733-4, n. 1648), não deixará o juízo sobre tal relação de remeter para a singular decisão do caso concreto.

Seja como for, é certo que o juízo aplicativo do critério sindicante do abuso do direito, concretizado numa decisão judicial em face de um particular conjunto concreto de circunstâncias (e, para a concepção dominante, segundo um determinado critério valorativo), é destituído do sentido normativo, com independência da sua decisão concretizadora, necessário a poder constituir objecto de sindicância por parte deste Tribunal – confinado que está este, em sede de recurso de constitucionalidade, às funções de controlo de constitucionalidade normativa. (…)»19.

Assim, portanto, alicerçando-se a posição ora tomada, na excepcionalidade da situação e na ponderação casuística que o preenchimento da cláusula geral a que se vem fazendo referência sempre impõe, a conclusão a que chegamos – do preenchimento da cláusula do abuso do direito, com as legais consequências (paralisação do pretendido exercício do “direito”) – está, também, em sintonia com os comandos constitucionais.


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Do exposto se conclui que, por via do instituto do abuso do direito, o acórdão recorrido não merece a nossa anuência ao determinar a demolição das edificações erigidas pelas 1ªs e 2ºs RR nas faixas de terreno que entendeu pertencerem ao condomínio. Donde se impor a necessidade de o revogar parcialmente, repristinando a decisão prolatada na sentença relativamente àqueles Réus, quanto aos mesmos julgando-se a acção improcedente.

Quanto à Ré S..., S.A.. (que administra o condomínio, há muitos anos), uma vez que apenas se provou que a mesma “não é proprietária de qualquer fração autónoma e usa uma "garagem", situada na zona sul/poente do condomínio, em área integrante do perímetro do Lote 56 (redacção dada pela Relação – ou seja, “inserida no lote 56 em que foi edificada a propriedade horizontal”) e porque, à míngua de outros factos, não vingam quanto a ela as razões aduzidas supra a propósito do princípio da proporcionalidade e do abuso do direito, manter-se-á o decidido pela Relação, devendo, como tal, abrir mão dessa parte comum detida e demolir a garagem que ocupa, nos termos referidos no ac. recorrido.


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Da alegada violação do princípio constitucional da proporcionalidade, na modalidade da proibição do excesso

Não obstante a sua invocação pelos Recorrentes, torna-se despiciendo aferir da sua eventual verificação no presente caso, dado que ao mesmo resultado se chega por aplicação do instituto do abuso do direito.

Ou seja, a análise desta questão de constitucionalidade ficou prejudicada face ao decidido quanto ao abuso do direito.


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IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso, concedendo-se parcialmente a revista, pelo que:

I. Se revoga o acórdão recorrido no que tange aos 1ºs e 2ºs Réus (BB, CC e DD e EE e mulher FF), quanto aos mesmos se repristinando o sentenciado em 1ª instância, absolvendo-os do pedido.

II. Se mantém, no mais (isto é, quanto à ré S..., S.A.), o decidido pela Relação (devendo, como tal, esta Ré abrir mão da parte comum por si detida, procedendo à demolição da garagem que ocupa).

Custas na proporção de vencidos.

Lisboa, 18 de Abril de 2024

Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Emídio Santos (Juiz Conselheiro 1º adjunto)

Afonso Henriques (Juiz Conselheiro 2º Adjunto)

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1. Na sequência de incidente de intervenção provocada, FF, mulher do Réu EE, foi admitida a intervir no processo, "a título principal, assumindo a posição de co-Ré" (despacho de fls. 400 e 401).

2. Relativamente "às indemnizações peticionadas pela Autora no ponto e) do petitório da petição inicial", os demandados foram absolvidos da instância.

3. Acessível em www.dgsi.pt.

4. Acessível em www.dgsi.pt.

5. Acessível em www.dgsi.pt.

6. I - As partes do edifício que não sejam especificadas no título constitutivo da propriedade horizontal como fracções autónomas nem sejam imperativamente comuns no sentido do art. 1421.º, n.º 1, do CC, são, em princípio, presumivelmente comuns, ao abrigo da presunção contida no n.º 2 da norma.

  II - Esta presunção pode ser ilidida demonstrando algum condómino que determinadas partes presumivelmente comuns do edifício foram por ele adquiridas pela prática de actos possessórios.

  III - Cumprindo tais partes os requisitos que o art. 1415.º do CC impõe para a autonomização de fracções e cumprindo a posse os requisitos para que se configure aquisição por usucapião, o condómino passa a ser proprietário das fracções, não obstante estas não estarem (ainda) especificadas no título constitutivo da propriedade horizontal.

  IV - Se a usucapião tem aptidão para constituir a propriedade horizontal (cfr. art. 1417.º, n.º 1, do CC), ela tem a fortiori (a maiori ad minus) aptidão para modificar os termos em que foi constituída a propriedade horizontal, sobretudo quando a modificação física preexiste e se trata apenas de uma modificação jurídica ou formal.

  V - O aparente conflito entre as normas dos arts. 1417.º, n.º 1, e 1419.º, n.º 1, do CC, é resolvido por via da interpretação restritiva da segunda, de forma a que ela se aplique à hipótese de modificação do título constitutivo da propriedade horizontal por negócio jurídico mas não já às restantes hipóteses (modificação por usucapião, decisão administrativa ou decisão judicial).

  Ac. de 19-12-2018 - Revista n.º 6115/08.OTBAMD.L1.S2 (Catarina Serra - 6.ª Secção) (in www.dgsi.pt)

  I - Na ação através da qual o autor pretende o reconhecimento do direito de propriedade sobre um bem, a defesa do réu sustentada na usucapião tanto pode integrar um pedido reconvencional como pode justificar a dedução de exceção perentória, tendo neste caso o objetivo de determinar a improcedência da ação.

  II - Nos termos do art. 1287.º do CC, o reconhecimento da usucapião, como forma de aquisição originária de direitos reais, é impedido quando exista “disposição em contrário”, abarcando os casos em que a usucapião se sobrepõe a um regime imperativo.

  III - A produção de efeitos jurídicos correspondentes à modificação do título constitutivo da propriedade horizontal por via judicial, não prescinde do acordo de todos os condóminos e, além disso, deve compatibilizar-se com regras imperativas em matéria de direito do urbanismo ligadas ao licenciamento da construção e da utilização de edifícios e respetivas frações.

  IV - O facto de a posse dos réus sobre uma fração (rés-do-chão esquerdo) se ter estendido a uma área integrante de outra fração contígua cuja titularidade está inscrita em nome dos autores (rés-do-chão esquerdo) ou o facto de a posse dos réus sobre outra fração (garagem) ter abarcado a totalidade da área correspondente a outra fração contígua do autores (garagem) não impede a procedência do pedido dos autores de reconhecimento do direito de propriedade sobre as suas frações e de condenação dos réus a desocuparem as áreas que lhes correspondem, de acordo com os elementos que constam do título constitutivo da propriedade horizontal elaborado de acordo com o precedente licenciamento camarário.

  Ac. de 06-12-2018 - Revista n.º 8250/15.9T8VNF.G1.S1 – Abrantes Geraldes - 2.ª Secção (in www.dgsi.pt)

  I - A aquisição originária de um bem imobiliário por usucapião só é legalmente possível se a posse recair sobre coisa imóvel ou parte de coisa imóvel suscetível de constituir objeto de direito real.

  II - A usucapião, enquanto ato jurídico de aquisição originária de direitos reais, não opera validamente sobre coisa que, nesse domínio, se traduza em objeto legalmente impossível, nos termos do art. 280.º, aplicável por via do art. 295.º, ambos do CC.

  III - O exercício de posse usucapível sobre parte delimitada de uma fração autónoma em regime de propriedade horizontal não conduz, por si só, à aquisição de um direito de propriedade singular sobre essa parte, destacável daquela fração, já que essa parte não é suscetível, no quadro daquele regime, de constituir unidade independente, nos termos dos arts. 1414.º e 1415.º do CC.

  IV - Face ao disposto no art. 1417.º, n.º 1, do CC, a propriedade horizontal pode ser originariamente constituída por usucapião, mas tal constituição tem de assentar em exercício de posse usucapível sobre prédio urbano, ou, porventura, parte dele, que reúna, desde logo, as características exigidas pelos arts. 1414.º e 1415.º, ambos do CC, mormente sobre frações em condições de constituírem unidades independentes, distintas e isoladas ente si com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública.

  V - Só assim poderão ficar a constar da sentença de reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião as especificidades obrigatórias a que se refere o art. 1418.º, n.º 1, do CC.

  VI - A ação em que se vise o reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião terá de correr entre todos os condóminos para que a respetiva sentença possa ter eficácia de caso julgado material em relação a todos eles.

  VII - No âmbito das pretensões de reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião, a causa de pedir deverá integrar duas vertentes essenciais, a saber:

  i) - a factualidade respeitante ao exercício da posse usucapível do prédio urbano ou parte dele sobre que se pretende o reconhecimento da propriedade horizontal;

  ii) - a descrição das características quer físicas, estruturais e funcionais, quer técnicas do objeto sobre que incide essa posse em termos de corresponder ao que é legalmente exigível para o reconhecimento de uma situação factual de propriedade horizontal, em especial no que se refere à concreta individualização e especificação das frações autónomas, de harmonia com o disposto nos arts. 1414.º e 1415.º, ambos do CC e ainda com a regulamentação aplicável das edificações urbanas.

  VII - Num caso como o dos autos, em que os autores pretendem a constituição da propriedade horizontal por usucapião sobre duas partes de uma fração autónoma já constituída, mas pedem que os réus realizem obras numa dessas partes para que possa ser destacável – chegando mesmo a admitir a possibilidade do não fracionamento –, uma tal pretensão contradiz a necessária verificação de pré-existência de uma situação de facto inerente ao regime da propriedade horizontal.

  IX - Nestas circunstâncias alegatórias, o suprimento de uma tal contradição implicaria a reformulação da causa de pedir, num segmento essencial, muito para além do aperfeiçoamento em sede de factos complementares ou concretizadores dos já alegados.

  X - Em tal situação, não se mostra útil um convite ao aperfeiçoamento para o adequado aproveitamento da pretensão deduzida de modo tão insuficiente, em termos de justificar que o tribunal use do poder-dever conferido pelo art. 590.º, n.º 2, al. b), e n.º 4, do CPC.

  Ac. de 04-10-2018 - Revista n.º 4080/16.9T9BRG-A.G1.S1 – Tomé Gomes - 2.ª Secção - (in www.dgsi.pt)

  I - A propriedade horizontal trata-se de uma figura jurídica nova, de um direito real novo, que, embora moldado sobre direitos reais à custa dos quais se formou, é mais do que a sua justaposição, reunindo uma teia de relações num complexo incindível de propriedade singular que recai sobre uma parte determinada de um prédio urbano e de compropriedade sobre outras partes dele, essenciais tanto à sua estrutura como à sua utilização funcional, ao exercício do domínio pleno sobre ele.

  II - Na propriedade horizontal, o direito de propriedade exclusiva só se pode exercer sobre fracções autónomas, tal como estão individualizadas no título constitutivo – arts. 1414.º, 1415.º, 1418.º e 1420.º do CC –, e assim será até que tal título seja objecto de modificação – cf. art. 1419.º, n.º 1, do CC –, sendo certo que tal modificação (do título constitutivo) apenas pode ser efectuada de acordo com o preceituado naquele normativo e nunca através de decisão judicial.

  II - Nos termos do art. 686.º, n.º 1, do NCPC (2013), o julgamento ampliado da revista está pré-determinado para situações em que se torna “necessário ou conveniente” assegurar a uniformidade da jurisprudência, mormente quando seja provável o vencimento de uma solução jurídica que esteja em oposição com jurisprudência uniformizada.

  IV - Não se mostram ultrapassados os limites da condenação que hão-de ser interpretados de modo a permitir-se ao tribunal a correcção do pedido quando ela traduza mera qualificação jurídica, sem alteração do teor substantivo ou quando a causa de pedir, invocada expressamente pelo autor, não exclua uma outra abarcada por aquela.

  V - A prova plena do documento particular, quanto aos factos compreendidos nas declarações atribuídas ao seu autor, na medida em que sejam contrárias aos interesses do declarante, restringe-se ao âmbito das relações entre o declarante e o declaratário, ou seja, quando invocadas por este contra aquele.

  Ac. de 12-03-2015 - Revista n.º 1345/10.7TVLSB.L2.S1 - 1.ª Secção Martins de Sousa

  I - À forma derivada de aquisição preside o princípio de que ninguém pode transmitir mais direitos do que aqueles que, efectivamente, tem e, portanto, o título de aquisição não basta para provar, cabal e definitivamente, que ao adquirente foram transmitidos os direitos que pertenciam ao alienante.

  II - A distinção entre posse titulada e não titulada releva para efeitos de usucapião cujos prazos se diversificam, em conformidade. E o mesmo sucede com a posse de boa ou má fé – cf. arts. 1294.º e 1296.º do CC.

  III - A boa fé, na posse, subsiste, independentemente do título. O que sucede é que, presumindo-se de boa fé a posse titulada (art. 1260.º, n.º 2, do CC), dessa presunção beneficia o respectivo possuidor, fazendo recair sobre a parte contrária o ónus de prova dos factos que a possam ilidir. Ao contrário, não sendo a posse titulada, presume-se a má fé, e ao possuidor compete ilidir a presunção, demonstrando que, ao adquirir a posse, ignorava que lesava o direito de outrem (art. 1260.º, n.º 1, do CC).

  IV - Se a Relação concluiu que a posse dos recorrentes era de boa fé, este é um conceito psicológico, pois que se traduz na ignorância de que se lesam direitos alheios e, como tal, não cabe ao STJ censurar aquela conclusão.

  V - Na propriedade horizontal o direito de propriedade exclusiva só se pode exercer sobre fracções autónomas, tal como estão individualizadas no título constitutivo (arts. 1414.º, 1415.º, 1418.º e 1420.º, todos do CC); e assim será até que tal título seja objecto de modificação (art. 1419.º, n.º 1, do CC).

  VI - A modificação do título constitutivo da propriedade horizontal apenas pode ser efectuada de acordo com o preceituado no art. 1419.º do CC e nunca através de decisão judicial.

  Ac. de 24-09-2013 - Revista n.º 633/1998.L1.S1 - 1.ª Secção - Martins de Sousa

  I - Tendo os autores peticionado que seja reconhecido pelo tribunal que as três arrecadações que utilizam, localizadas na cave do prédio, fazem parte integrante das fracções autónomas de que são proprietários e provado que, do título constitutivo da propriedade horizontal, não consta a existência das aludidas arrecadações, de tal resulta, atenta a natureza real do estatuto jurídico que se contém nesse título, que a omissão nele da existência de partes edificadas integradas na estrutura do edifício constitui factor preclusivo a que tais espaços possam ser considerados susceptíveis de integração nas fracções mencionadas no referido título, como partes externas componentes das mesmas.

II - A modificação do título constitutivo da propriedade horizontal apenas pode ser efectuada de acordo com o preceituado no art. 1419.º, n.º 1, do CC, e nunca através de decisão judicial.

  Ac. de 29-06-2010 - Revista n.º 85/10.1YFLSB - 6.ª Secção - Sousa Leite

  I - As garagens de um edifício apenas são presuntivamente comuns, nos termos da al. d) do n.º 2 do art. 1415.º do CC, donde poderem ser subtraídas do regime de comunhão. Porém, constando do próprio título constitutivo a sua afectação em comunhão a mais de um condómino, uma alteração a esse estatuto deverá ser objecto de acordo de todos os demais e envolver a modificação daquele.

  II - Tal como a lei admite que a usucapião possa ser um modo de constituição de tal forma de propriedade se possuído o prédio pelos respectivos titulares à imagem do respectivo direito, nada obsta a que se opere da mesma forma, ainda por efeito de decisão judicial, a extensão da posse de uma parte comum de um prédio já constituído em propriedade horizontal por parte do titular de uma fracção, já que as restrições impostas pelo art. 1423.º do CC quanto ao direito de divisão das partes comuns pelos condóminos apenas operam no plano negocial e implicam elas, sim, a alteração, por escritura, do título constitutivo.

  III - Invocando os Autores a usucapião, ou seja, a utilização livre e sem oposição que vêm fazendo das garagens, desde há mais de 17 anos por eles e os anteriores titulares das suas fracções, com base no acordo verbal que disseram ter sido feito entre todos os adquirentes iniciais, mas contrariando este acordo o que se dispunha no título constitutivo da propriedade horizontal, impunha-se, para que a posse que invocam se pudesse considerar exercida em exclusivo e nome próprio, que se tivesse verificado a inversão do título, conforme estatuído nos arts. 1406.º, n.º 2, e 1265.º do CC.

  IV - No caso, seria necessária a inversão por oposição, a qual supõe que o detentor afaste de forma concludente a relevância do título que lhe atribui o corpus por força da invocação de uma diferente causa para a mesma, não bastando que o detentor passe a actuar com animus de verdadeiro possuidor da coisa à revelia do título aquisitivo.

  V - Não estando alegados factos integradores da oposição explícita justificativa da inversão do título de posse sobre as garagens, a pretensão dos Autores de reconhecimento do seu direito de propriedade estava condenada ao insucesso, bem andando o acórdão recorrido em decidir confirmar o saneador-sentença que julgou a acção improcedente.

  Ac. de 03-06-2008 - Revista n.º 1437/08 - 6.ª Secção - Cardoso de Albuquerque

  I - É insindicável pelo STJ a decisão da Relação que julgou não haver lugar a qualquer alteração da matéria de facto (art. 712.º, n.º 6, do CPC).

  II - Esta proibição de sindicância não padece de qualquer inconstitucionalidade, pois o direito ao recurso emergente, fundamentalmente, da parte final do n.º 1 do art. 32.º da CRP não abrange um terceiro grau de jurisdição.

  III - Na análise do conceito de posse deparam-se dois elementos: o corpus, consistente no exercício de poderes de facto sobre a coisa e o animus que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos poderes exercidos.

  IV - A tradição da coisa que acompanha, por vezes, o contrato-promessa não corresponde, em regra, à transmissão da posse: transmite-se o corpus, mas mantém-se, por parte do transmissário, o animus de que não se é proprietário, de que este é o promitente-vendedor.

  V - Sucede que há casos em que se deve entender ser outro o animus, porquanto ab initio, ou posteriormente, factos há que permitem inferir que o transmissário agiu, ou passou a agir, como titular do direito real correspondente, nos casos mais frequentes, ao direito de propriedade, como sucede, por exemplo nas situações em que é paga, com o contrato-promessa, a totalidade do preço.

  VI - A afectação de uma parte comum ao uso exclusivo de um condómino jamais lhe permitirá uma aquisição por usucapião, com fundamento em inversão do título da posse.

  14-09-2006 - Revista n.º 443/06 - 2.ª Secção - João Bernardo

  I - O art. 1419.º, n.º 1, do CC - segundo o qual o título constitutivo da propriedade horizontal pode ser modificado por escritura pública com o acordo de todos os condóminos - não constitui óbice a que por decisão judicial se reconheça que o Condomínio adquiriu por usucapião uma fracção autónoma do prédio, alterando nessa medida o título, passando a anterior fracção autónoma a ser um bem comum. II - Com efeito, afigura-se legalmente viável a intervenção do tribunal para dirimir uma tal questão, porquanto a todo o direito há-de corresponder uma acção destinada a fazê-lo reconhecer em juízo. O art. 1419.º, n.º 1, do CC, resolve apenas a questão de saber se a simples maioria dos condóminos pode alterar por escritura pública o estabelecido no título constitutivo da propriedade horizontal.

  III - Uma fracção autónoma (primeiramente registada em nome do pai da Ré recorrente e depois em nome desta) que, como consta do título constitutivo da propriedade horizontal, se destinou (e segundo o título ainda se destina) a habitação da porteira, utilização que foi observada durante pelo menos os primeiros 10 anos, após o que passou a servir de local de reunião da assembleia de condóminos, alteração essa ocorrida há 20 anos, deve considerar-se como estando na posse do Condomínio há pelo menos 20 anos.

 IV - A mera recusa da Administração do Condomínio em acatar a oposição da Ré à utilização da fracção autónoma para as reuniões não significa que a posse seja violenta, para efeitos do disposto nos art.ºs 1261, n.º 2 e 1297, do CC.

  V - Assim, reunidos os requisitos da usucapião, deve julgar-se procedente a acção intentada pelo Condomínio, em que pedia se declarasse que a identificada fracção autónoma fosse considerada parte comum, anulando-se o registo de aquisição efectuado em favor da Ré.

  Ac. de 11-10-2005 - Revista n.º 2377/05 - 1.ª Secção - Faria Antunes

 

7. ANA SOFIA GOMES, Assembleia de Condóminos, alterações ao título constitutivo, pp 89-90; PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, anotação ao artº 1419º; MOITINHO DE ALMEIDA, Propriedade horizontal, pp 25-48; JORGE ARAGÃO SEIA, Propriedade Horizontal, 2ª ed., pp 54-59; Revista de Direito e Estudos Sociais, Jan-Dez 1976, Ano XXIII, pp 117-119; FERNANDO PEREIRA RODRIGUES, Usucapião, pp; SANDRA PASSINHAS, A Assembleia de Condóminos (…), 2ª ed., pp 143-164.

8. Cfr., v.g., JOSÉ ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, ed. 1959, Vol. III, pág. 41 e Comentário ao Código de Processo Civil, ed. 1946, Vol. 3º, pág. 101, ambos da Coimbra Editora; ANTUNES VARELA e outros, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 322 e 323; REMÉDIO MARQUES, A Acção Declarativa À Luz do Código Revisto, ed. 2007, pág. 294 e 295, Coimbra Editora;

9. acórdão do S. T. J. de 28.10.2021, acessível em www.dgsi.pt. e ac. do T. R. C. de 18.11.2019, igualmente essível em www.dgsi.pt.

10. Assim, v.g., o acórdão do STJ de 20-12-2022, proferido no processo n.º 8281/17.4T8LSB.L1.S1., publicado em www.dgsi.pt

11. Código Civil Anotado, em anotação ao artº 334º.

12. Veja-se, v.g., assim, MENEZES CORDEIRO, O Direito 126º/pg. 701 ou R.O.A 58º/pg. 964.

13. Assim, v.g., J. BAPTISTA MACHADO, em Tutela da Confiança, e “venire contra factum proprium”, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 118, páginas 171 e 172; PAULO MOTA PINTO, Direito Civil, Estudos, páginas 442 a 446, GESTLEGAL. Na jurisprudência, v.g., os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Novembro de 2013, no processo n.º 1464/h11.2TBGRD-A.C1.S1; de 10-01-2023, no processo n.º 412/203T8PBL.C1.L1; de 19-01-2023, no processo n.º 3244/19.8T8STB.E1.S1; de 2-03-2023, no processo n.º 1558/21.6T8VIS.C1.S1 e de 12-10-2023, no processo n.º 19691/20.0T8PRT.P1.S1., todos publicados em www.dgsi.pt.

14. Cf. MENEZES CORDEIRO, Do abuso do direito: estado das questões e perspetivas, ROA, Ano 2005, Ano 65, Vol. II, Set. 2005, versão on line

15. Cf. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, fls. 313

16. Cf. MENEZES CORDEIRO, obra supra citada, a fls. 324.

17. Cf. MENEZES CORDEIRO, Do abuso do direito: estado das questões e perspetivas, que neste trecho se segue.

18. Cf. Acórdão do STJ de 5.06.2018 e Ac. STJ de 20.04.2021, mencionando “ (...) tudo será imputável ao não exercente, no sentido de ser social e eticamente explicável pela sua inação (…)”.

19. Disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt

20. Os destaques são nossos.