AUDIÊNCIA PRÉVIA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
NULIDADE PROCESSUAL
Sumário


1 - A audiência prévia não pode ser dispensada quando o Juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.
2 – A não convocação da mesma, influindo no exame ou decisão da causa, configura uma nulidade processual, que inquina a própria decisão proferida (saneador sentença) e que pode ser arguida em sede de recurso a interpor da mesma.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

AA, BB e CC deduziram ação declarativa contra DD e mulher EE e DD e mulher FF pedindo que os réus sejam condenados a praticarem, no prazo de 60 dias, todos os atos indispensáveis à criação das condições legais e documentação necessárias à realização do contrato definitivo objeto dos contratos promessa alegados, com segurança jurídica, mormente legalizando os imóveis/pavilhões industriais objeto dos mesmos perante a Câmara Municipal ..., a Conservatória do Registo Predial e a Autoridade Tributária e demais entidades públicas cuja legalização se mostre necessária a tal desiderato. Em alternativa, pedem que os réus sejam condenados a pagar aos autores todas as despesas que estes tiverem, sem exceção, impostos incluídos, para criarem todas as condições legais e documentação necessária à realização do contrato definitivo objeto dos contratos promessa alegados e, no prazo de 30 dias contados da concretização do primeiro pedido ou da legalização dos imóveis/pavilhões industriais pelos autores, a agendar a realização dos contratos definitivos objeto dos contratos promessa identificados, avisando disso os autores com 15 dias de antecedência.

Alegaram que celebraram, em 11 de setembro de 1990, contratos promessa com os 1.ºs e 2.ºs réus, pelos quais prometeram comprar-lhes (e aqueles, vender-lhes), em cada um dos contratos, uma terça parte indivisa de quatro pavilhões industriais, anexos e logradouro, tendo-se, ainda, os réus obrigado a trespassar aos autores uma terça parte indivisa (cada um deles) de um estabelecimento industrial de serralharia aí instalado. O preço de ambos os contratos foi integralmente pago, a última parcela em 13/07/2000 (contrato com os ....ºs réus) e em 03/01/1992 (contrato com os ....ºs réus) e os autores entraram na posse (na data dos contratos promessa), com exclusão de outrem, dos imóveis e do estabelecimento comercial. Acontece que os pavilhões industriais não estavam legalizados, sendo que ficou acordado que a legalização dos mesmos seria da responsabilidade solidária dos réus, o que não aconteceu até hoje, apesar das sucessivas interpelações para o efeito, e era condição necessária à celebração do contrato prometido de compra e venda que, assim, não foi celebrado.
Contestaram os réus DD e mulher, excecionando a prescrição, por terem decorrido trinta e dois anos sobre a celebração do contrato promessa. No mais, contestaram por impugnação, alegando que o marido e pai dos autores era proprietário de 1/3 do imóvel em questão e conhecia bem o seu estado físico e jurídico, tendo ele assumido a legalização e registo dos edifícios para, em seguida, agendar a marcação da escritura, o que nunca fez, nos 25 anos que ainda teve de vida.
Contestaram, também, os réus DD e mulher, alegando que nunca assumiram qualquer obrigação de legalização dos imóveis e, sem prescindir, ainda que tal obrigação existisse, estaria extinta por prescrição. Invocam, ainda, o abuso de direito, por nunca, durante mais de 30 anos, o irmão dos réus ou, posteriormente, os autores, terem confrontado os contestantes com o seu suposto direito. Mais alegam que cumpriram todas as obrigações que para si resultavam do contrato promessa e ficaram à espera que o marido e pai dos autores diligenciasse pela marcação da escritura, o que nunca aconteceu.
Notificados os autores para se pronunciarem quanto às exceções invocadas pelos réus, vieram estes dizer que a prescrição se interrompeu em 1992 e em 2000 pela emissão dos recibos pelos réus e que, durante os anos que decorreram desde a assinatura dos contratos promessa até hoje, várias vezes (todos os anos) os réus foram interpelados pelos autores (por escrito ou verbalmente) para procederem à legalização dos imóveis e para agendarem a realização do contrato prometido, o que alegam também, como impeditivo do abuso de direito.
Foi dispensada a audiência prévia e proferida decisão que julgou habilitados os autores BB e CC como herdeiros de sua mãe, falecida na pendência da causa.
Foi julgada procedente a exceção de prescrição que foi invocada pelos réus e, em consequência, foram os réus absolvidos dos pedidos contra si formulados.

Os autores interpuseram recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:
PRIMEIRA: A decisão recorrida “viola o disposto no artigo 3º, n.º 3 do CPC, na medida em que constituiu uma “decisão-surpresa”.
SEGUNDA: Preceitua o artigo 3º, nº 3 do CPC, “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
TERCEIRA: Este princípio assume-se como consequência do princípio do dispositivo, ínsito no art.º 3º, nº 1 do CPC, e visa a proteção do exercício de ação e de defesa, permitindo a discussão entre as partes quanto a uma determinada questão e antes da tomada de decisão pelo juiz.
QUARTA: Consequência deste princípio é a proibição de decisões-surpresa, por estas se entendendo aquelas que são tomadas sem que as partes tenham podido acautelar a sua posição ou discutir a solução jurídica preconizada na decisão.
QUINTA: In casu, verifica-se que a decisão recorrida foi proferida após os Apelantes terem apresentado requerimento de resposta às exceções deduzidas nas contestações dos Apelados e após convite formulado pelo tribunal para esse efeito, sem que tenha sido qualquer despacho informando as partes sobre a intenção do tribunal em proceder ao conhecimento de mérito dos autos.
SEXTA: Ora, pretendendo conhecer do mérito da causa, o tribunal recorrido devia proporcionar às partes a discussão dessa decisão, bem como a possibilidade de carrear para os autos os elementos necessários para a sua efetivação ou não.
SÉTIMA: Ora, nos autos o tribunal recorrido apenas determinou o exercício do contraditório quanto às exceções deduzidas, não tendo dado qualquer oportunidade às partes para se pronunciarem sobre a dispensa de audiência prévia e/ou sobre a discussão do mérito da causa.
OITAVA: No caso dos autos, o saneador-sentença proferido não foi precedido de despacho designando data para a audiência prévia e sem que tenha sido feita menção à discussão de facto e de direito do mérito da causa, seja este por escrito ou oralmente.
NONA: Resulta dos autos que os Apelantes pronunciaram-se sobre as exceções deduzidas em sede de contestação, tendo sido, de imediato, dispensada a realização de audiência prévia e conhecido o mérito da causa, sem que tenha sido efetuada a discussão de facto e de direito do mérito da causa em momento prévio ao da prolação da decisão dos autos.
DÉCIMA: Quando o juiz pretenda decidir de imediato, no todo ou em parte, do mérito da causa, deve convocar a audiência prévia por forma a possibilitar às partes a discussão de facto e de direito da questão, sendo que o conhecimento do mérito da causa deve ser precedido da consulta das partes, nos termos e para os efeitos do art.º 3º, nº 3 do CPC.
DÉCIMA PRIMEIRA: Ora, a discussão da causa não se limita à abordagem das partes relativamente às exceções deduzidas, devendo também abranger a discussão efetiva sobre a decisão a tomar e a possibilidade de as partes carrearam para os autos elementos necessários para a sua efetivação ou não, nomeadamente o pedido de produção de prova.
DÉCIMA SEGUNDA: Este aspeto é de primordial importância para os presentes autos, face ao teor da resposta à contestação, onde os Autores alegam a interrupção do prazo prescricional.
DÉCIMA TERCEIRA: Assim, tendo o tribunal recorrido optado por proferir a decisão de mérito em causa nos autos sem essa discussão de facto e de direito e sem ter consultado previamente as partes quanto a essa possibilidade, estamos perante uma nulidade processual.
DÉCIMA QUARTA: Com efeito, nos termos do art.º 195º, nº 1 do CPC, “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”, sendo que o conhecimento do mérito da causa sem que seja efetuada a discussão oral do mesmo se pode enquadrar na situação prevista na parte final deste preceito.
DÉCIMA QUINTA: No caso vertente, não há qualquer despacho a alertar para a decisão de mérito a proferir, nem a justificar tal opção, não tendo existido qualquer discussão oral do mérito da causa, pelo que estamos perante a omissão de uma formalidade de cumprimento obrigatório, nos termos que se expuseram.
DÉCIMA SEXTA: Esta nulidade assume-se como uma nulidade da própria sentença proferida e, como tal, enquadrável no art.º 615º do CPC.
DÉCIMA SÉTIMA: Ou seja, o facto de o despacho recorrido ter sido proferido sem a consulta das partes e sem a discussão oral dos factos e direito aplicáveis aos autos, leva a que a sentença constante de tal despacho peque por excesso de pronúncia, nos termos do art.º 615º, nº 1, al. d) do CPC e, seja, por conseguinte, nula, não sendo possível a sua sanação.
DÉCIMA OITAVA: Deve ser declarada a nulidade da sentença recorrida, determinando-se a consequente remessa do processo ao tribunal a quo, para que aí seja facultada às partes a discussão de facto e de direito do mérito da causa, nos termos e para os efeitos do art.º 591º, nº 1, al. b) do CPC.
DÉCIMA NONA: Preceitua o artigo 615.º (Causas de nulidade da sentença),n.º 1,alínea b) do CPC que é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
VIGÉSIMA: Ora, em momento algum, a douta decisão recorrida faz qualquer referência aos factos que o Tribunal “a quo” considerou provados ou não provados, existindo tão só uma mera descrição dos factos alegados pelos Apelantes.
VIGÉSIMA PRIMEIRA: Todos os factos – provados ou não provados – têm, obrigatoriamente, e sob pena de nulidade, de constar do texto da sentença, pois que todos eles resultaram da “discussão” da causa e têm, evidentemente, relevância para a decisão.
VIGÉSIMA SEGUNDA: A exigência legal de motivação da decisão sobre a matéria de facto não se satisfaz com a simples referência aos meios de prova que o julgador considerou decisivos para a formação da sua convicção.
VIGÉSIMA TERCEIRA: Deve o julgador indicar as razões que, na sua análise crítica, relevaram para a formação da sua convicção, expondo o processo lógico e racional que seguiu, por ser esta a única forma de tornar possível o controlo da razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento de facto, e de convencer os destinatários sobre a sua correção.
VIGÉSIMA QUARTA: Razão pela qual, o douto despacho saneador/sentença enferma da nulidade prevista no art.º 615.º n.º 1 alínea b), do C.P.C. - por manifesta violação da formalidade prevista no art.º 607.º, n.º 4, do mesmo diploma -, omitindo, em sede de fundamentação, os factos que, tendo sido trazidos ao conhecimento do tribunal, não foram dados como provados, nem como não provados.
VIGÉSIMA QUINTA: O artigo 595.º CPC (Despacho saneador) preceitua na alínea b) do n.º 1 que o despacho saneador se destina a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória
VIGÉSIMA SEXTA: Porém, que para a aplicação do regime aí estabelecido não basta que os elementos existentes (provados) permitam esse conhecimento segundo uma das soluções plausíveis e sim, noutros termos, que aqueles permitam esse conhecimento de acordo com as várias soluções plausíveis para a aplicação do direito.
VIGÉSIMA SÉTIMA: Não se deve passar desde logo ao conhecimento do mérito, com base no citado normativo, se esse conhecimento apenas tiver na base alguns dos elementos alegados, com omissão, porém, da discussão da causa de factos, também alegados, nessa fase ainda controvertidos, indispensáveis para a apreciação do mérito, ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito.
VIGÉSIMA OITAVA: No caso concreto o Tribunal “a quo” baseou a sua decisão somente nos contratos juntos pelos Apelantes, decidindo que estes não suportam minimamente a factualidade que alegaram.
VIGÉSIMA NONA: A decisão recorrida dá como não provada determinada factualidade alegada pelos Apelantes baseada somente nos contratos promessa, esquecendo-se que os mesmos poderiam ser provados através de outros meios probatórios, mormente a prova testemunhal.
TRIGÉSIMA: E o mesmo se diga relativamente à factualidade alegada que poderia configurar um reconhecimento dos direitos dos Apelantes resultantes dos contratos promessas, para efeitos do n.º 1 do artigo 325.º (Reconhecimento) do Código Civil, relevante para efeitos do conhecimento da exceção da prescrição que foi afirmada em 1.ª instância.
TRIGÉSIMA PRIMEIRA: Tanto mais que os elementos já existentes nos autos nesta fase (instrução) não permitiam tal conhecimento, pois não existiam nos mesmos elementos controvertidos relevantes para essa decisão ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito.
TRIGÉSIMA SEGUNDA: Chamando à aplicação o regime que afirmámos inicialmente a respeito da possibilidade, prevista no artigo 595.º CPC (Despacho saneador),alínea b) do n.º 1, de conhecimento do mérito na fase do saneador, assim de que tal possibilidade, porém, não se basta com a circunstância de os elementos existentes (provados) permitirem esse conhecimento segundo uma das soluções plausíveis e sim, noutros termos, que aqueles permitam esse conhecimento de acordo com as várias soluções plausíveis para a aplicação do direito.
TRIGÉSIMA TERCEIRA: Os autos não contém, nesta fase, os elementos necessários e indispensáveis, por existirem outros que se encontram controvertidos, para a apreciação do mérito da exceção que se analisa, ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito.
TRIGÉSIMA QUARTA: Em face do exposto, ocorre fundamento, nos termos estabelecidos na alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC, para a anulação da decisão proferida, por se considerar indispensável a ampliação da matéria de facto, devendo os autos prosseguir para a realização da instrução e julgamento, para conhecimento dos factos alegados e nesta fase ainda controvertidos.
TRIGÉSIMA QUINTA: In casu, não se encontra verificada a exceção perentória de prescrição que foi invocada pelos ora Apelados.
TRIGÉSIMA SEXTA: É certo que desde a celebração dos contratos promessa em apreço decorreram mais de 20 anos, porém é falso que os Apelantes e o seu falecido pai, em vida deste, durante este período nada fizeram perante os Apelados para que estes cumprissem com as obrigações que para si resultaram dos contratos promessas.
TRIGÉSIMA SÉTIMA: Preceitua o n.º 1 do artigo 325.º (Reconhecimento) do Código Civil: “1. A prescrição é ainda interrompida pelo reconhecimento do direito, efetuado perante o respetivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido.”
TRIGÉSIMA OITAVA: O prazo de prescrição do artigo 309.º do Código Civil, no caso em apreço, a prescrição foi interrompida através dos seguintes factos alegados na petição inicial e no requerimento de resposta à exceções invocadas pelos Réus: a. em 13.07.2000, através da emissão de recibo pelos Primeiros Réus DD e mulher EE; b. em 03.01.1992, através da emissão de recibo pelos Segundos Réus DD e mulher FF; c. em 3 de Janeiro de 1992, por procuração exarada no ... Cartório Notarial ..., sito na Avenida ..., ..., os Réus, constituíram como seu procurador o Dr. GG, advogado, com escritório na Rua ..., em ..., ao qual conferiram poderes para legalizar quaisquer prédios de que sejam proprietários ou comproprietários; d. Os Réus e o seu procurador ante referido foram, ao longo destes anos todos, interpelados pelos Autores para procederam à legalização dos imóveis objeto dos contratos promessas em apreço perante a Câmara Municipal ..., a Conservatória do Registo Predial e a Fazenda Pública, bem como para, consequentemente, agendaram a realização do contrato de compra e venda definitivo; e. o falecido pai dos Autores, e posteriormente estes, todos os anos, desde o ano de 2000, interpelaram, por escrito ou verbalmente, ora os Réus, ora o seu procurador e filhos deste, eles também advogados no mesmo escritório, no sentido de procederam à legalização dos imóveis objeto dos contratos, bem como para consequentemente, agendaram a realização do contrato de compra e venda definitivo; e f. os Segundos Réus, através da escritura pública de justificação e compra e venda, exarada em 04 de junho de 2007, no Cartório Notarial da notário HH, sito na Rua ..., sala ...,... ..., declararam que o prédio urbano objeto da aludida escritura correspondia aos prédios identificados nos artigos 3.a a 8.º da petição inicial.
TRIGÉSIMA NONA: Tal factualidade consubstancia inequivocamente um reconhecimento dos direitos dos Apelantes resultantes dos contratos promessas, para efeitos do n.º 1 do artigo 325.º (Reconhecimento) do Código Civil.
QUADRAGÉSIMA: Não está prescrito, nos termos do artigo 309º do Código Civil (CC) o direito dos Apelantes exigirem aos Apelados o cumprimento das obrigações resultantes dos contratos promessas.
QUADRAGÉSIMA PRIMEIRA: Por outro lado, a invocação pelos Apelados da exceção de prescrição constitui uma atuação em flagrante abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium".
QUADRAGÉSIMA SEGUNDA: Estabelece o artigo 334º do CC que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
QUADRAGÉSIMA TERCEIRA: Para que ocorra o abuso de direito, é necessário, pois, que o titular do direito o exerça de forma clamorosamente ofensiva da justiça e dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito.
QUADRAGÉSIMA QUARTA: São pressupostos desta modalidade de abuso do direito – venire contra factum proprium – os seguintes: a existência dum comportamento anterior do agente suscetível de basear uma situação objetiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e atual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma atividade com base no factum proprium; e o nexo causal entre a situação objetiva de confiança e o “investimento” que nela assentou.
QUADRAGÉSIMA QUINTA: Atua com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, os promitentes vendedores (Apelados) de um contrato promessa de compra e venda de imóvel que receberam a totalidade do preço do negócio, acrescido de juros; outorgam procuração com poderes irrevogáveis a advogado para em seu nome praticar todos o atos necessários à concretização do contrato definitivo; transmitiram a posse, com exclusão de outrem, dos imóveis e do estabelecimento comercial aos promitentes compradores, bem como todos os proveitos e encargos da sua utilização; sendo o promitente comprador seu irmão e vizinho, venham agora alegar a prescrição com o objetivo de não cumprirem com as obrigações que do contrato promessa resultam para eles.
QUADRAGÉSIMA SEXTA: Verifica-se no caso em apreço que os Apelantes podiam fundadamente confiar que, mesmo atendendo ao tempo decorrido da celebração dos contratos ,os Apelados jamais iriam invocar tais exceções para se furtar às suas obrigações: é inadmissível e contrária à boa fé a conduta assumida pelos Apelados na presente ação, na exata medida em que trai a confiança gerada nos Apelantes pelos seus comportamentos anteriores, confiança essa objetivamente reforçada pelo grau de parentesco existente entre as partes.
QUADRAGÉSIMA SÉTIMA: A alegação pelos Apelados da prescrição com o objetivo de não cumprirem com as obrigações que dos contratos promessas resultam para eles, constituiu inequivocamente abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
QUADRAGÉSIMA OITAVA: Também por aqui, considerando o comportamento dos Apelados em claro abuso do direito ao invocarem a prescrição, deverá considerar-se não prescritas, nos termos do artigo 309º do Código Civil (CC), as obrigações resultantes dos contratos promessas para os Apelados.
QUADRAGÉSIMA NONA: A decisão recorrida violou, entre outras, os artigos 309º, 325.º, 334º todos do Código Civil e artigos 3º, n.º 3, 195º, 595.º, 607.º, 615º e 662.º do Código do Processo Civil
TERMOS EM QUE, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Excias, deve dar-se provimento ao presente recurso alterando-se a decisão recorrida nos termos das conclusões supra e revogar-se a douta sentença.
Fazendo assim serena e objetiva JUSTIÇA

Não foram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver prendem-se com a nulidade da sentença por violação do contraditório e ausência de convocação de audiência prévia, bem como por não especificar os fundamentos de facto da mesma, cabendo, ainda, averiguar se os autos continham já todos os elementos de facto que possibilitassem a decisão de mérito no despacho-saneador, designadamente, quanto à questão da prescrição e do abuso de direito.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Os factos com interesse para a decisão são os que constam do relatório supra.

A primeira questão colocada pelos apelantes prende-se com a violação do princípio do contraditório, por ter sido conhecido no despacho saneador o mérito da causa, sem que tal tenha sido dado a conhecer previamente às partes, designadamente, pela convocação de audiência prévia com esse intuito.

Vejamos.

Dispõe o artigo 591.º, n.º 1 do Código de Processo Civil que:
“Concluídas as diligências resultantes do preceituado no n.º 2 do artigo anterior, se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes:
a) Realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594.º;
b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias, ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa;
c) Discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate;
d) Proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º;
e) Determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º;
f) Proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes;
g) Programar, após audição dos mandatários, os atos a realizar na audiência final, estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e designar as respetivas datas”
A audiência prévia não se realiza, nos termos do disposto no artigo 592.º do CPC, nas ações não contestadas que tenham prosseguido em obediência ao disposto nas alíneas b) a d) do artigo 568.º e, quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados.
Para além destes casos, nas ações que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC – artigo 593.º, n.º 1 do CPC.

Da conjugação dos normativos acabados de referir, logo resulta que a audiência prévia não pode ser dispensada quando o juiz tencione conhecer imediatamente do mérito da causa.
Conforme referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in CPC Anotado, vol. I, Almedina, 2018, pág. 685: “Do confronto dos artigos 591.º, n.º 1, 592.º, n.º 1, 593.º, n.º 1, 593.º, n.º 3 e 597.º resulta claro que a tramitação de uma ação declarativa comum de valor superior a metade da alçada da Relação (€ 15.000,00) incluirá, em curso normal, a realização de uma audiência prévia, regra que apenas comporta duas exceções tipificadas: quando a lei assim o estabeleça, o que sucede nos casos indicados no artigo 592.º, n.º 1, e quando o juiz dispense a realização da audiência, ao abrigo do artigo 593.º, n.º 1. Com tais ressalvas, a audiência prévia é obrigatória, decorrendo da sua dispensa uma nulidade”.
Trata-se, aqui, de uma nulidade da própria decisão (e não apenas uma nulidade processual, a arguir perante o próprio juiz que a cometeu). “Se a nulidade está coberta por decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou o respetivo ato ou omissão, em tal caso, o meio próprio para a arguir, não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a deduzir e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo” – Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 183 e, neste sentido, Acórdãos da Relação de Guimarães de 23/06/2016, da Relação de Lisboa de 15/05/2014 e da Relação de Évora de 26/10/2017, e Teixeira de Sousa em https://blogippc.blogspot.pt, em comentário ao acórdão da Relação de Lisboa de 15/05/2014 e, ainda, Abrantes Geraldes em Recursos no NCPC, 5.ª edição, pág. 25-30 e Acórdãos do STJ de 17/03/2016, 23/06/2016 e de 22/02/2017, todos em www.dgsi.pt.
Neste caso, a omissão da audiência prévia que se destinaria a proporcionar às partes a discussão de facto e de direito em virtude de o juiz tencionar conhecer imediatamente do mérito da causa, determina a nulidade da sentença que apreciou do mérito, sentença essa que constitui uma verdadeira decisão-surpresa, pois sobre a mesma não foram ouvidas as partes, não lhes foi dada oportunidade de se pronunciarem.
É certo que o Sr. Juiz, por despacho anterior, havia decidido ouvir os autores sobre as exceções invocadas na contestação, tendo-lhes concedido prazo para o efeito e admitido a sua pronúncia por escrito, o que estes fizeram, juntando articulado de resposta àquelas exceções.
Contudo, não é disso que se trata, aqui. O que está em causa, é que o Sr. Juiz, ao não convocar a audiência prévia, não deu a conhecer às partes que poderia vir a conhecer do mérito imediatamente, facultando-lhes a discussão de facto e de direito que entendessem oportuna, a esse respeito, tal como determina o artigo 591.º, n.º 1, alínea b) do CPC.
Conforme referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e outro, na obra citada, pág. 687 “É de toda a conveniência que o juiz não decida aspetos materiais do litígio sem um debate prévio no qual os advogados das partes tenham a oportunidade de produzir alegações orais acerca do mérito da causa”. Está em jogo o respeito pelo princípio do contraditório, garantindo às partes pronúncia sobre as questões que o juiz irá decidir numa fase intermédia do processo, de modo a evitar decisões-surpresa – artigo 3.º, n.º 3 do CPC.
Ou seja, sempre que o juiz entenda que está já na posse de todos os elementos que lhe permitam conhecer do mérito da causa no despacho saneador, deve convocar audiência prévia para os efeitos do artigo 591.º, n.º 1, alínea b) do CPC. “Daqui resulta com total clareza o propósito legislativo, no sentido de que as ações declarativas não incluídas na previsão do artigo 597.º não podem terminar com decisão de mérito no despacho saneador sem que o mesmo seja proferido no contexto da realização de uma audiência prévia” – Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e outro, obra citada, pág. 691.

Este vem sendo, aliás, o entendimento da generalidade da jurisprudência dos nossos tribunais - além de outros, vd. os Acs. do TRP de 27-09-2017 no processo 136/16.6T8MAI-A.P1, do TRL de 19/10/2017 no processo 155421-14.5YIPRT.L1-8, do TRP de 24/09/2015 no processo 128/14.0T8PVZ.P1, do TRL de 08/02/2018 no processo 3054/17.7T8LSB-A.L1-6, do TRL de 05/05/2015 no processo 1386/13.2TBALQ.L1-7, do TRE de 30/06/2016 no processo 309/15.9T8PTG-A.E1, todos disponíveis in www.dgsi.pt -, citados no Acórdão deste Tribunal da Relação, de 17/01/2019, processo n.º 4833/15.5T8GMR-A.G3 (José Cravo), e, ainda os Acórdãos desta Relação de Guimarães de 01/03/2018 (Eugénia Cunha), de 10/07/2018 (António Sobrinho) e de 06/12/2018 (Eva Almeida).

Em qualquer caso, tendo sido proferida decisão-surpresa, sem ter sido dada às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre uma questão que iria ser decidida pelo juiz numa fase intermédia dos autos, foi preterida a observância do princípio do contraditório, que é um princípio estruturante e basilar do processo civil. O princípio do contraditório deve ser entendido como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.
Reconhece-se, assim, o direito da parte à sua audição antes de ser tomada qualquer decisão e o direito a conhecer todas as condutas assumidas pela contraparte e a tomar posição sobre elas, o que decorre, aliás, do princípio do processo justo e equitativo (artigo 20.º da CRP) - Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pp. 46/47.
O desrespeito pelo princípio do contraditório conduz à nulidade da sentença por excesso de pronúncia pois que o juiz conhece de questão que, em tais circunstâncias, lhe estava defeso apreciar.
“Tal nulidade (excesso de pronúncia) estende-se às situações em que o juiz, ao proferir a decisão, se abstém de apreciar situação irregular ou omite formalidade imposta por lei, designadamente o cumprimento do contraditório, assim conhecendo de questão que, sem a observância deste, lhe é defeso conhecer. Impondo-se ao juiz a observância do contraditório em vista de proferir decisão com repercussão nos interesses das partes, o desrespeito de tal dever acarreta nulidade processual, pois que a omissão de ato ou formalidade prescrito na lei acarreta nulidade quando a irregularidade possa influir no exame ou decisão da causa (art. 195º, nº 1 do CPC) – com consequente anulação do ato e dos atos subsequentes que dele dependam (art. 195º, nº 2, 1ª parte do CPC)”. – Acórdão desta Relação de Guimarães de 06/02/2020, processo n.º 1002/19.9T8VNF-A.G1 (Ramos Lopes), in www.dgsi.pt.
Ao ter sido proferido saneador-sentença, sem ter sido convocada audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito relativa a matéria que acabaria por conduzir ao conhecimento do mérito da causa, cometeu-se nulidade, que é uma nulidade que está coberta por decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou o respetivo ato ou omissão, que gera a nulidade do saneador-sentença e implica a anulação do processado, a ser arguida no recurso competente ou, relativamente à omissão do contraditório, nulidade processual por excesso de pronúncia, que pode influir no exame ou decisão da causa, com a consequente anulação do ato viciado e dos atos subsequentes.

Assim, a preterição da audiência prévia, formalidade processual que se reputa de essencial, gera para além de nulidade processual a nulidade do saneador-sentença e implica a anulação do processado a fim da tramitação processual regressar ao momento anterior ao despacho que dispensou a realização da audiência prévia, de forma a possibilitar a efetiva audição das partes em sede de audiência prévia, devendo no despacho que a designar esclarecer, em concreto, os fins a que se destina.

A apelação procede nesta parte, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas, não sem que aqui se deixe o alerta para a necessidade de apreciar os pedidos e as exceções deduzidas tendo em conta toda a matéria de facto alegada face às várias soluções plausíveis de direito (designadamente, quanto ao possível reconhecimento do direito como factor interruptivo da prescrição, e da atuação das partes ao longo dos anos, considerando o invocado abuso de direito) e o seu reflexo no conhecimento do mérito da causa.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, anulando-se o saneador-sentença recorrido e determinando-se a convocação de audiência prévia com identificação, no despacho respetivo, dos fins a que se destina e prosseguindo os autos os seus regulares termos.
Custas pela parte vencida a final.

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Guimarães, 24 de abril de 2024

Ana Cristina Duarte
Alcides Rodrigues
António Figueiredo de Almeida