PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
INVERSÃO DO CONTENCIOSO
Sumário


I - Tendo por base o regime legal disciplinador do procedimento cautelar comum, a procedência do mesmo depende da verificação dos seguintes pressupostos: probabilidade séria da existência do direito invocado; fundado receio de que outrem, antes da ação ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; adequação da providência à situação de lesão iminente; não ser o prejuízo resultante da providência superior ao dano que com ela se pretende evitar; não existência de providência específica que acautele aquele direito.
II - Nos termos do regime geral previsto no artigo 177.º do CC para as associações, as deliberações da assembleia geral contrárias à lei ou aos estatutos, seja pelo seu objeto, seja por virtude de irregularidades havidas na convocação dos associados ou no funcionamento da assembleia, são anuláveis, sendo este regime aplicável às reuniões das assembleias de compartes, em face da falta de norma específica da Lei n.º 75/2017, de 17-08, que aprovou o regime jurídico dos baldios e demais meios de produção comunitários.
III - A ação de anulação é constitutiva, pelo que a deliberação de 08-01-2023 - que elegeu os órgãos sociais da comunidade local dos baldios de ... - produz os seus efeitos até que, sendo postas em causa, sejam anuladas pelo tribunal, o que o requerido não logrou demonstrar, assim consubstanciando a séria probabilidade da existência do direito invocado pela requerente.
IV - O direito de acesso dos órgãos eleitos da Comunidade Local dos Baldios de ... às atas das Assembleias Gerais da requerente e de reuniões de outros órgãos da requerente, bem como à informação contida noutros documentos, como planos de atividade da requerente, não pode deixar de ser entendido como um direito fundamental à prossecução dos interesses dos compartes da respetiva comunidade local, atendendo à natureza específica de tal documentação e ao objeto social da ora requerente, pelo que, a recusa, ou a não entrega pelo requerido à requerente da documentação relativa à Comunidade Local que se encontra na sua posse, é suscetível de pôr em risco o funcionamento eficiente de tais órgãos e a efetividade do direito à propriedade plena dos baldios enquanto bens comunitários, permitindo consubstanciar, em termos objetivos, o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável ao direito invocado pela requerente.
V - As lesões que resultam indiciadas no âmbito dos factos antes enunciados não se revelam inócuas para a requerente, na medida em que contendem necessariamente com os interesses dos compartes da Comunidade Local dos Baldios de ..., servindo, além do mais, para conferir maior seriedade e, assim, justificar a concessão de uma providência destinada a evitar a repetição ou a persistência de novas situações lesivas, o que justifica o deferimento da providência cautelar se e enquanto subsistir uma situação de perigo de ocorrência de novos danos ou de agravamento dos danos entretanto ocorridos.
VI - A sanção pecuniária compulsória é admissível nos procedimentos cautelares nos mesmos termos em que o prevê a lei civil, estando, por isso, sujeita ao regime legal constante do artigo 829.º-A do CC, o que faz depender aquele meio coercitivo do cumprimento de obrigações dos requisitos enunciados neste último preceito.
VII - Verificando-se a adequação do procedimento cautelar à realização da composição definitiva do litígio, atento o efeito antecipatório das providências solicitadas, e não se vislumbrando necessidade de produção de prova complementar pelas partes em ação definitiva, posto que os meios probatórios são maioritariamente documentais, já estão juntos ao processo e foram sujeitos ao devido contraditório, sendo certo que nenhuma das partes impugnou neste recurso a decisão de facto constante da decisão recorrida, assim consubstanciando um nível de segurança próximo daquele que seria necessário para a apreciação e reconhecimento do mesmo direito na ação principal, caso esta tivesse sido instaurada, ao mesmo tempo que permite formar uma convicção segura acerca da existência do direito acautelado, mostram-se verificados todos os pressupostos legais para a requerida inversão do contencioso, dispensando-se a requerente do ónus da propositura da ação principal, tal como por esta requerido.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

Comunidade Local dos Baldios de ..., instaurou procedimento cautelar comum contra AA, pedindo que, sem audiência prévia do requerido e com antecipação do juízo sobre a causa principal, se ordene ao requerido, que: a) entregue toda documentação relativa à requerente, pertença desta, que mantém indevidamente em sua posse, nomeadamente atas das Assembleias Gerais, Editais, convocatórias, correspondência, documentos contabilísticos e tudo o mais que diga respeito à vida e gestão da ora autora; b) entregue todos os bens móveis que tem na sua posse e que são propriedade da requerente, nomeadamente computador portátil, impressora/fotocopiadora a laser, mesa de som, 2 microfones, 2 altifalantes, carimbo, gerador e chaves da sede e da caixa de correio; c) se abstenha de praticar atos em nome da requerente, por não estar legitimado para tal; d) se abstenha de usar o título de presidente do conselho diretivo da Comunidade Local dos Baldios de ..., uma vez que cessou as suas funções em 8-01-2023.
Mais requereu a condenação do requerido no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória que se mostre adequada a assegurar a efetividade da providência, sugerindo a quantia de 100€ por cada dia de atraso na entrega dos documentos e bens móveis pertença da ora requerente, contados desde o trânsito em julgado da sentença.
Alegou, para o efeito, em síntese: o requerido desempenhava funções de Presidente do Conselho Diretivo da requerente; na sequência de sucessivas demissões que se verificaram nos órgãos sociais, houve necessidade de marcar eleições, que ocorreram no dia 8-01-2023 e para as quais o requerido não apresentou lista, tendo sido eleito um novo conselho diretivo e um novo presidente; no entanto, o requerido continua a usar o título de presidente da requerente, não entregando a documentação e os bens móveis que tem da requerente; acresce que, em outubro de 2023, o requerido afixou um edital a convocar novas eleições, utilizando o carimbo da requerente, intitulando-se seu Presidente e fez circular um veículo com altifalantes pela freguesia, dizendo que as anteriores eleições não eram verdadeiras.
Termina alegando ser urgente travar esta atuação do requerido por estar a pôr em causa o nome e a credibilidade da requerente e por continuar a utilizar os bens da requerente.
Indeferiu-se a dispensa de audiência prévia do Requerido e foi ordenada a sua citação.
O requerido apresentou oposição, opondo-se à inversão do contencioso e sustentando não vir alegado qualquer facto que sustente a urgência que permite o recurso ao procedimento cautelar. Mais impugnou a matéria alegada, sustentando que em 19 de dezembro de 2019, após eleições regularmente convocadas, tomaram posse os compartes eleitos para os órgãos da requerente para o quadriénio seguinte, assumindo então, o requerido, as funções de Presidente do Conselho Diretivo, órgão executivo da citada requerente, cujo mandato terminou no dia 21 de dezembro de 2023, mantendo-se em funções até à posse dos futuros eleitos; mais alega que, a Assembleia de Compartes da Comunidade Local dos Baldios de ..., nunca foi convocada para esse efeito, nunca deliberou destituir qualquer um dos seus órgãos, muito menos o seu Conselho Diretivo, presidido pelo requerido, nunca discutiu tal assunto, nunca houve tal proposta, nunca notificou o requerido AA, para exercer o seu direito de audição prévia; razão por que o requerido se mantém no exercício pleno das suas funções de Presidente do Conselho Diretivo da Comunidade dos Baldios de ... para que foi regularmente eleito, praticando os atos inerentes a estas.
Procedeu-se à produção das provas requeridas, após o que foi proferida decisão, julgando improcedente o procedimento cautelar e não decretando a providência requerida.
Inconformada com o assim decidido veio a requerente interpor recurso, terminando as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):
«1) Por via da douta sentença ora em crise, veio a Mm Juiz “a quo” decidir pelo não decretamento da providência cautelar por entender que não estão verificados o “fumus boni iuris” e o “periculum in mora”
2) um acto eleitoral de uma associação é válido e eficaz até que alguém, com legitimidade para tal, o impugne e um tribunal judicial o declare inválido (termo utilizado em sentido amplo).
3) no dia 8 de janeiro de 2023 tomaram posse os elementos eleitos por via do acto eleitoral levado a cabo pela ora recorrente.
4) Este acto eleitoral não foi, até à presente data, impugnado. Assim, não tendo sido judicialmente impugnado, é válido e eficaz até que uma sentença judicial o declare inválido e sem nenhum efeito.
5) Isto porque a Lei Civil seguiu o caminho da anulabilidade para as deliberações das Assembleias Gerais das Associações (artº 177º do CC) e, como tal, enquanto não sejam objecto de processo judicial, mantêm-se válidas e eficazes.
6) Não pode, pois, a Mm juiz a quo decidir pelo não direito da ora recorrente em reaver os seus documentos e bens móveis, na posse do requerido conforme facto 14 e 15 devidamente provados, porque entende, no âmbito de uma providência cautelar comum, que as eleições levadas a cabo no dia 8/1/2023 contêm irregularidades.  
7) No entender da ora recorrente, e apesar do muito respeito por opinião contrária, andou mal a Mm Juiz a quo ao decidir que a ora recorrente não está investida no seu direito porque…as eleições, nunca objecto de um qualquer processo judicial, contêm irregularidades.    
8) Mas mesmo que assim não se entendesse, existem outras razões para a ora recorrente discordar, em absoluto, da sentença ora em crise e que passamos a expôr:
9) Nos termos da douta sentença, “Deste modo, não se verificando estar indiciariamente demonstrado que os membros titulares dos órgãos da comunidade eleitos em 2019 foram destituídos ou que foram apreciadas as consequências das duas demissões apresentadas, conclui-se existirem irregularidades na convocação das eleições que elegeram os novos membros”.
10) Partindo do pressuposto que não estamos perante casos de destituições, como efectivamente nunca estivemos e, por isso, nem é questão a pôr-se, na fundamentação da Mm Juiz a quo existem dois momentos distintos nos quais baseia a irregularidade nas eleições e, como consequência, a não verificação do “fumus boni iuris”.
11) O primeiro argumento prende-se com o pedido de demissão estar sujeito a aceitação.
12) A renúncia é um acto unilateral de manifestação de vontade do próprio gerente que, por si só, põe termos à relação de gerência criada por qualquer dos meios de designação permitidos por Lei.
13) Assim, na base da renúncia, poderá estar somente a pretensão pessoal do renunciante em fazer cessar o seu cargo, sem ter de invocar as razões pela sua atitude: age no exercício de um DIREITO POTESTATIVO.
14) Mesmo não estando consagrado na nossa legislação o direito à renúncia ou demissão do cargo, ele já resulta reconhecido constitucionalmente como corolário do direito mais amplo da liberdade de associação, consagrado no artº 46º, nºs 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa, onde também se afirma que “Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação nem coagido por qualquer meio a permanecer nela”. Garante-se, aqui, o que Gomes Canotilho e Vital Moreira apelidam de “liberdade negativa de associação” - CRP Anotada, 2ª edição, 1º Volume, págs 266-267.
15) Bastará, pois que o renunciante ou demissionário comunique a sua vontade para que se torne eficaz a renúncia ou pedido de demissão.
16) Tudo, conforme Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 9/06/2010, proferido no processo nº 4/09.8TVPRT.P1 pelo Sr. Juiz relator Teixeira Ribeiro.
17) Assim, as demissões dos dois elementos do conselho directivo da ora Recorrente tornaram-se eficazes no preciso momento em que foram comunicadas/ recebidas, não havendo lugar à sua aceitação pela Assembleia de Compartes.
18) Violou, pois, a sentença em crise o preceito Constitucional da Liberdade de Associação, expresso no artº 46º da CRP ao entender que houve irregularidade no processo eleitoral por omissão da aceitação, em Assembleia de Compartes, das demissões verificadas.
19) Passemos, agora, à análise do segundo argumento formulado pela Mm Juiz a quo para sustentar a decisão de irregularidade do processo eleitoral.
20) Segundo a sentença em crise, “a assembleia de compartes podia, somente, deliberar a eleição de pessoas para ocuparem, somente, os cargos que foram deixados vagos e não para todos os órgãos.”
21) Está dado como provado que dois elementos do conselho directivo apresentaram a sua demissão (itens 2 e 4 dos factos dados como provados).
22) Por outro lado, nos termos do documento junto pelo requerido como Doc nº 2, verifica-se que, na eleição de 2019, para o conselho directivo, tal como qualquer dos outros dois órgãos sociais, não foram eleitos suplentes.
23) Assim, ao demitirem-se dois membros, o conselho directivo ficou reduzido a um elemento: o seu presidente.
24) Nos termos do artº 171º, nº 1, do Código Civil, “O órgão da administração e o conselho fiscal são convocados pelos respectivos presidentes e só podem deliberar com a maioria dos seus titulares”. (Sublinhado nosso)
25) Assim, verifica-se que, com a demissão de dois membros e não havendo suplentes eleitos pelos compartes (cfr Doc nº 2 da Oposição à Providência Cautelar), o órgão de administração da recorrente (Conselho Directivo) ficou legalmente inoperativo por impossibilidade de deliberação.
26) Razão pela qual 5% dos compartes solicitou a marcação de eleições ao Presidente da Mesa da Assembleia em funções, nos termos do artº 26º, nº 1, c) da Lei 75/17, de 17/8.
27) Entendeu a Mm Juiz a quo que a Assembleia de Compartes podia, somente, deliberar a eleição de pessoas para ocuparem os cargos que foram deixados vagos e não para todos os órgãos. MAS
28) Nos termos do artº 32º, nº 1 da Lei dos Baldios, a eleição é feita pelo sistema de lista fechada, o que inviabiliza qualquer eleição de pessoas para os cargos,
29) Sendo que, pelos usos e costumes, os compartes sempre se organizaram em listas conjuntas, unitárias, apresentando os seus candidatos ao conselho directivo, à mesa da Assembleia e à comissão de fiscalização, em nome do suposto bom relacionamento entre os órgãos sociais.
30) Para tanto, basta confrontar as actas dos processos eleitorais levados a cabo tanto em 2019 como em 2023 (juntas aos autos) para se perceber que, pelos usos e costumes, cada lista é sempre conjunta e unitária, ou seja, concorre aos três órgão sociais.
31) Verifica-se, pois, que a douta sentença em crise violou, igualmente, o disposto no artº 32º, nº 1, da Lei 75/17, de 17/8 ao entender que a Assembleia de Compartes poderia deliberar a eleição de pessoas para ocuparem os cargos que foram deixados vagos.
32) não existe qualquer normativo legal que obrigue uma associação a fazer uma eleição apenas para um único órgão.
33) Por outro lado, não há um normativo que proíba a eleição de todos os órgãos se os membros já eleitos, demissionários, estavam organizados segundo o sistema de lista conjunta, unitária e fechada.
34) “as Associações são corporações de Direito Privado, voluntariamente instituídas, geridas de forma autónoma e independente pelos seus membros. No plano da actuação colectiva ressalta, sobretudo, a chamada liberdade de organização e regulamentação interna, contemplada no artº 46º, nº 2 da CRP. Estamos no território do Direito Civil, campo de domínio, por excelência, da autonomia privada e lugar de tutela jurídica efectiva das mais diversas e heterogéneas constelações concretas de interesses, a imposição, por via legislativa ou por via judicial, de um uniforme igualitarismo funcional é, por isso, uma interferência inadequada e excessiva- Cfr Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25/02/2021 (Relator: Sr. Juiz Vaz Gomes).
35) Ora, partindo do pressuposto que, segundo os usos e costumes, as listas concorrentes às eleições da ora Recorrente sempre foram, e serão, listas conjuntas e fechadas,
36) Partindo do pressuposto que nada, no ordenamento jurídico português, proíbe que as eleições se façam para todos os órgãos quando, por costume, os membros são eleitos através de listas conjuntas r unitárias;
37) E partindo do normativo constitucional que pugna pelas liberdades de autoregulação, autogoverno e auto gestão das Associações, consagradas no nº 2 do artº 46º da CRP,
38) Poderemos afirmar que a fundamentação da Mm Juiz a quo, ao afirmar que “a Assembleia de Compartes podia, somente, deliberar a eleição de pessoas para ocuparem os cargos que foram deixados vagos e não para todos os órgãos” viola a Lei dos Baldios, como acima já se referiu, e viola, também, o espírito da Lei Constitucional que dá liberdade às Associações para se autogovernarem e se auto organizarem, não se proibindo o uso de listas conjuntas e unitárias aos variados órgãos sociais.
39) Poderemos, pois, dizer que poder, podiam eleger pessoas para os cargos deixados vagos… Mas não deviam e a tal não estavam obrigados: não deviam, em nome da Lei dos Baldios; e a tal não estavam obrigados em nome da Constituição da República Portuguesa e em nome dos usos e costumes que têm servido de base à organização da ora Recorrente.
40) Além de que não existe qualquer norma que obrigue uma pessoa colectiva a eleger órgão a órgão.
41) Assim, pelos motivos acima referidos, entendemos que andou mal a Mm Juiz a quo ao ter decidido pela irregularidade das eleições levadas a cabo pela ora Recorrente,
42) E, em consequência, ter decidido pela não existência do “ Fumus boni iuris”.
43) Entende a ora Recorrente que a decisão judicial em crise relativamente à falta do pressuposto acima referido (fumus boni iuris), influenciou a Mm Juiz a quo a decidir-se pela não verificação do “ periculum in mora”.
44) De facto, se não é atendível o direito que a ora recorrente alega, por se entender (mal) que existem irregularidades no processo eleitoral, consequentemente não deverá ser atendível o periculum in mora na defesa do seu direito ao bom nome e reputação bem como reaver os documentos e bens móveis que o requerido tem na sua posse.
45) No entanto, a ora recorrente não pode aceitar este entendimento.
46) Antes de mais, convém relembrar que a presente providência cautelar comum foi proposta em Outubro de 2023, assim que a ora recorrente teve conhecimento do documento afixado e assinado pelo requerido, onde usou o carimbo da ora recorrente, no qual marcava eleições.
47) Este seria um dos fundamentos do “periculum in mora” alegado, atentatório do bom nome da ora recorrente e gerando confusão os compartes (Cfr. despacho de admissão da presente providência cautelar).
48) Como se pode ver pelo documento junto aos presentes autos aquando do requerimento inicial, o requerido marcou aquilo que chamou de eleições para o dia 28 de ../../2024.
49) No entanto, apesar de saber dessa circunstância por estar alegado (e provado) no requerimento inicial, no dia 16 de Janeiro o Tribunal notificou as partes para a audiência de inquirição de testemunhas, que se realizaria no dia 2 de Fevereiro. Ou seja, PERMITIU AO REQUERIDO FAZER AS SUAS “ ELEIÇÕES” e frustrou, liminarmente, um dos efeitos práticos da presente providência.
50) Logo aí, ainda antes da inquirição das testemunhas, andou mal o Tribunal.
51) Como já acima se referiu, o processo eleitoral não foi impugnado.
52) Assim, a ora recorrente vê-se duplamente “castigada”:
- pela inação do requerido ao não propor uma acção declarativa apropriada a atacar o processo eleitoral, no âmbito da qual a ora recorrente podia defender-se;
- pela actuação do requerido que, na prática, não recorre ao Tribunal mas tenta fazer “justiça pelas próprias mãos”, atacando a ora recorrente e os seus órgãos sociais no seu bom nome e reputação.
53) No entanto, e apesar disto, o Tribunal a quo decide na providência cautelar que há irregularidades no processo eleitoral, nega a aparência do direito (que nunca foi impugnado!) da ora recorrente e não dá relevância jurídica ao facto de o requerido, até à data da sentença (e inclusive até esta data), não ter proposto qualquer acção para reagir contra o processo eleitoral, e
54) Ao mesmo tempo, entende que os atos do requerido não são suficientemente graves  para pôr em causa o bom nome da ora recorrente e, por isso, nega-lhe tutela judicial.
55) Assim, na senda da “justiça pelas próprias mãos”, sugere a Mm Juiz a quo que (a confusão gerada pelas atitudes do requerido)”sempre poderá ser resolvida pelo esclarecimento dos compartes, eventualmente em assembleia de compartes convocada para o efeito, da situação em causa, explicando que os documentos com carimbo não são os oficiais da Requerente.”
56) Então, temos a seguinte (su)realidade:
(a)o requerido não impugnou as eleições, (b)tem na sua posse os documentos da ora recorrente, (c)tem na sua posse bens móveis pertencentes à ora recorrente, (d)veicula mensagens em altifalantes na freguesia inteira pondo em causa a legitimidade dos órgãos sociais, (e)usa indevidamente o carimbo da associação, (f)actos esses que provocam confusão nos compartes,- tudo factos devidamente dados como provados-, e o Tribunal entende que estes actos não são suficientemente graves para merecerem uma tutela judicial URGENTE, DEIXANDO A ORA RECORRENTE À SUA SORTE, dando como solução que os compartes sejam esclarecidos em Assembleia de compartes convocada para o efeito.
57) Convocação essa assinada por um presidente de mesa da assembleia em relação ao qual os compartes se sentem confundidos por causa das actuações do ora requerido, actuações estas das quais a ora recorrente quis proteger-se judicialmente mas foi-lhe negada tutela…
58) Permite, assim, o Tribunal a quo, numa interpretação à contrário, que o ora requerido mantenha as suas actuações, nomeadamente que use um carimbo oficial da Associação sem estar autorizado a tal.
59) Assim, entende o Tribunal que a confusão gerada nos compartes pelas actuações do requerido não é suficientemente grave para fundamentar o “perigo da demora” de uma acção declarativa comum.
60) Não devia a Mm Juiz a quo esquecer que os compartes são o “ motor” da ora recorrente. É através das suas deliberações que a ora recorrente vive. Sentindo-se confusos sobre quem tem legitimidade para exercer os cargos dirigentes, terão tendência a afastar-se. E a Comunidade Local pára.
61) Está em causa a defesa do bom nome e reputação da ora recorrente bem como o seu direito a reaver os documentos e os bens móveis, nomeadamente o carimbo, na posse do requerido.
62) O artº 70º do CC protege os indivíduos contra quaisquer ofensas ilícitas ou ameaça à sua personalidade física ou moral, conferindo-lhe o direito de requerer providências adequadas com o fim de evitar a consumação da ameaça ou a atenuar os efeitos da ofensa já cometida, o que não poderá deixar de abranger as próprias pessoas colectivas.
63) A Comunidade Local dos Baldios de ... é uma pessoa colectiva passível de se introduzir nos campos de exploração de caça, produção eléctrica, produção florestal e em muitos outros campos económicos. Ou seja, apesar do seu escopo não ser o lucro, tem uma intervenção económica que não se pode descurar.
64) Precisa, pois, dos seus compartes “deliberantes” para poder seguir o seu percurso. E, tendo o direito de progredir, não tem de ser prejudicada por actos ilegítimos que põem em causa a sua credibilidade, a sua honestidade e o respeito que merece.
65) Por outro lado, além das relações normais com os compartes, a ora recorrente mantém relações institucionais que requerem uma imagem de honestidade, credibilidade e prestígio. Em suma, requerem que a associação tenha um bom nome nas suas relações com fornecedores de serviços (empresas que limpam as matas e cortam a erva nos campos de futebol pertença da ora recorrente, como mero exemplo), com outras comunidades locais de baldios, com a Junta de Freguesia, com a Câmara Municipal, com o Estado, com os diversos institutos públicos e, inclusive, com a União Europeia no caso de querer desenvolver projectos ambientais financiados por esta.
66) Ao actuar desta forma, o requerido põe em causa a credibilidade, a imagem e a reputação da ora recorrente, tudo substantivos que fazem parte de um conceito mais amplo ao qual se dá o nome de “bom nome”, pondo em causa não só a confiança dos compartes mas também as boas relações institucionais.
67) No entanto, e apesar disto, entendeu o Tribunal “a quo” que não há urgência em defender o bom nome da ora recorrente, permitindo assim ao requerido continuar com as suas actuações ilícitas, que não têm por base qualquer direito que lhe assista.
68) Premiando quer a inércia do requerido numa eventual proposição de uma acção judicial onde pugne pela irregularidade das eleições, não retirando o tribunal a quo consequências jurídicas dessa circunstância, quer na manutenção dos actos que tem vindo a praticar, nomeadamente, além de todos os outros, usando o carimbo da recorrente, assinando e carimbando editais e afixando-os nos locais de costume da ora recorrente.
69) Uma vez que entendeu a Mm Juiz a quo que não se verificam os pressupostos “fumus boni iuris” e periculum in mora”, deu como prejudicada a questão da inversão do contencioso requerida pela ora recorrente.
70) No entanto, terá esta questão de ser submetida à apreciação deste Tribunal Superior.
71) Quando a matéria de facto adquirida no procedimento cautelar permite formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio, não haverá razões para que não se resolva a causa de modo definitivo (evitando-se a duplicação da prova), ficando o requerente dispensado do ónus de propor a acção principal.
72) O requerido poderá obstar à consolidação daquela tutela como tutela definitiva através de uma acção de impugnação – artºs 369, nº 1 e 371º, nº 1 do CPC
73) O pedido de inversão do contencioso foi feito no sentido de terminar com a inércia judicial do ora requerido, que tem optado por fazer “justiça pelas próprias mãos”.
74) De facto, o requerido não ataca judicialmente o processo eleitoral levado a cabo no dia 8/1/2023 mas:
- Mantém os documentos pertença da ora requerente em seu poder, recusando-se a entrega-los;
- Mantém os bens móveis pertença da ora recorrente na sua posse, recusando-se a entrega-los;
- Mantém o carimbo da requerente na sua posse, utilizando-o conforme quer e recusando-se a entrega-lo;
- difunde publicamente que as anteriores eleições não são verdadeiras, atentando contra o bom nome da ora recorrente.
75) NO ENTANTO, NÃO PROCURA TUTELA JUDICIAL PARA AS SUAS PRETENSÕES E ACTUAÇÕES.
76) Assim, para precipitar uma actuação judicial do ora requerido, caso assim o entenda, faz todo o sentido que se inverta o contencioso.
77)Não só porque estão verificados os pressupostos processuais para o seu decretamento,
78)Mas também por questões de economia processual, uma vez que, caso não reaja ao decretamento desta providência, esta tornar-se-á definitiva e a ora recorrente terá a tutela judicial que até aqui lhe tem sido negada.
79) E , ao invés, se reagir, a ora recorrente terá a oportunidade de se defender.
80) Assim, e em conclusão, por tudo aquilo que atrás se referiu, a sentença em crise padece de errada fundamentação e aplicação do direito devendo, em consequência, ser revogada.

NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO que Vªs Exªs, Venerandos Juízes Desembargadores do Respeitável Tribunal da Relação de Guimarães, doutamente suprirão, deve ser revogada a decisão do Tribunal “a quo” e substituída por outra que decrete a Providência Cautelar Comum proposta nos precisos termos em que foi requerida.

FAZENDO-SE, ASSIM, A TÃO ACOSTUMADA JUSTIÇA».

O recorrido apresentou contra-alegações, sustentando a improcedência da apelação e a consequente manutenção do decidido.
O recurso foi admitido para subir de imediato, nos próprios autos, e com efeito suspensivo.
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, confirmando-se a admissão do recurso nos mesmos termos.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) - o objeto da presente apelação circunscreve-se à reapreciação da decisão que indeferiu o procedimento cautelar comum interposto pela recorrente, aferindo se as circunstâncias fácticas já sumariamente demonstradas permitem consubstanciar os requisitos necessários ao deferimento do procedimento cautelar comum; em caso afirmativo, se há lugar à fixação de sanção pecuniária compulsória, e respetivo valor; se estão verificados os requisitos da requerida inversão do contencioso.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos
1.1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra relevando ainda os seguintes factos indiciariamente provados pela 1.ª instância na decisão recorrida:
1. O Requerido desempenhava as funções de Presidente do Conselho Diretivo da Comunidade Local dos Baldios de ... desde ../../2019.
2. Por missiva datada de 2 de novembro de 2022, dirigida ao Senhor Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Requerente, BB, identificando-se como Vice-Presidente do Conselho Diretivo da Comunidade Local dos Baldios de ... informou que apresenta a sua demissão.
3. O presidente da mesa da Assembleia Geral CC adoeceu, tendo sido substituído por DD, em data não concretamente apurada.
4. Por missiva datada de 9/11/2022, dirigida ao Senhor Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Requerente, EE, identificando-se como vice-presidente do Conselho Diretivo da Requerente informou que apresenta a sua demissão.
5. Por missiva datada de 8/11/2022, dirigida ao vice presidente da mesa da assembleia de compartes da Requerente, subscrita por 5% do universo dos compartes, requereu-se a convocatória de um assembleia geral, em dia e hora a designar e devidamente fixada por edital com vista a deliberar o ponto único da ordem de trabalhos: marcação de ato eleitoral para eleição dos titulares dos órgãos da comunidade local dos baldios de ....
6. Por documento denominado “Edital - Convocatória Assembleia de Compartes”, datado de 22 de novembro de 2022, DD, identificando-se como Vice-Presidente da Mesa da Assembleia de Compartes dos Baldios de ..., declarou convocar os compartes para reunirem em Assembleia Feral Extraordinária no dia 8 de janeiro de 2023 com a ordem de trabalhos: “1- Eleição dos órgãos sociais da comunidade local dos baldios de .... 2- Tomada de posse”.
7. Por ata de 8/1/2023, consignou-se que reuniu a Assembleia de Compartes do Baldio de ..., presidida por DD, e que este verificou a elegibilidade de FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, BB e LL.
8. E lhes conferiu a posse para os cargos para os quais foram eleitos.
9. Tendo JJ assumido o cargo de presidente do conselho diretivo.
10. O Requerido, na qualidade de presidente da Requerente nomeado em Dezembro de 2019, não apresentou lista e não concorreu às eleições.
11. Por missiva datada de 9 de janeiro de 2023, dirigida ao Requerido, a Requerente solicitou a entrega da documentação relativa à Comunidade Local que se encontra na posse do Requerido e, bem assim, os bens móveis a esta pertencentes.
12. Tal missiva foi enviada de forma registada com aviso de receção.
13. O aviso de receção foi assinado em 11/01/2023, apondo-se no local da assinatura, o nome “AA”.
14. O Requerido tem, na sua posse, atas de Assembleias Gerais da Requerente e de reuniões de outros órgãos da Requerente e outros documentos como planos de atividade da Requerente.
15. O Requerido mantém, na sua posse, um computador, uma mesa de som, 2 microfones, uma impressora a laser, um gerador, dois altifalantes e o carimbo da Associação, pertencentes à Requerente.
16. No dia 1 de Outubro de 2023, o Requerido afixou um edital, nos locais normalmente utilizados pela Requerente para as convocatórias.
17. O Referido edital encontrava-se assinado pelo Requerente, “em substituição do vice-presidente da Assembleia de Compartes DD”, e com o carimbo da Requerente, e informava que “a partir desta data está aberto o processo eleitoral para os diferentes órgãos de gestão dos baldios de ...”.
18. Em data não concretamente apurada, mas num sábado entre ../../2023 e ../../2024, o Requerido circulou com uma viatura pela freguesia ..., com altifalantes, onde reproduziu expressões não concretamente apuradas, mas onde informava que seriam convocadas novas eleições e que as eleições anteriores não eram verdadeiras.
19. Esta mensagem é passível de causar confusão às pessoas da freguesia.
20. Esta situação provoca embaraço e vergonha aos elementos dos órgãos da Requerente.
21. O Requerido utilizou o carimbo da Requerente nos editais mencionados.
1.2. O Tribunal recorrido enunciou os seguintes factos indiciariamente não provados:
A. O Requerido tem na sua posse convocatórias, editais e documentos contabilísticos relativos da Requerente.
B. No período referido em 18, o Requerido andou pelas portas das casas na freguesia ..., diariamente, a veicular a mesma informação referida em 18 aos compartes.
C. O requerido utilizou o computador da Requerente para elaborar o texto do edital referido em 16 e 17, utilizou a impressora da Requerente para o imprimir e utilizou altifalantes da Requerente para divulgar as mensagens referidas em 18.

2.2. Da reapreciação do mérito da decisão recorrida
Considerando os factos indiciariamente provados, a 1.ª instância concluiu que a requerente não logrou fazer a prova sumária do invocado direito e da necessidade e urgência de ser tomada a providência requerida, consignando designadamente que «não é possível afirmar com segurança a presença do fummus boni iuris da Requerente, que não demonstrou a provável aparência do direito» e que «a factualidade demonstrada não permite concluir pela lesão grave e dificilmente reparável do direito», não se encontrando preenchido o pressuposto do periculum in mora.
 Em consequência, decidiu não decretar a providência requerida, por falta de preenchimento dos requisitos legalmente exigidos para o procedimento cautelar comum.
A recorrente não impugna a decisão relativa à matéria de facto constante da sentença recorrida, mas sustenta que a decisão em crise padece de errada fundamentação e aplicação do direito devendo, em consequência, ser revogada e substituída por outra que decrete a providência cautelar solicitada.
O procedimento cautelar comum encontra-se regulado nos artigos 362.º a 375.º do CPC.
O artigo 362.º do CPC, sob a epígrafe «Âmbito das providências cautelares não especificadas», dispõe o seguinte:
1 - Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado.
2 - O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor.
3 - Não são aplicáveis as providências referidas no n.º 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas no capítulo seguinte.
4 - Não é admissível, na dependência da mesma causa, a repetição de providência que haja sido julgada injustificada ou tenha caducado.
Por seu turno, sob a epígrafe «Deferimento e substituição da providência», dispõe o artigo 368.º do CPC, além do mais, o seguinte:
«1 - A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão.
2 - A providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar.
(…)».
Tendo por base o regime legal disciplinador do procedimento cautelar comum, tal como emerge dos supra citados preceitos, o mesmo depende da verificação dos seguintes pressupostos: probabilidade séria da existência do direito invocado; fundado receio de que outrem, antes da ação ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; adequação da providência à situação de lesão iminente; não ser o prejuízo resultante da providência superior ao dano que com ela se pretende evitar; não existência de providência específica que acautele aquele direito.
É neste quadro que o requerente de um procedimento deve enunciar a sua pretensão, invocando os elementos de facto que permitam, se sumariamente demonstrados, considerar reunidos todos os requisitos gerais de que a lei faz depender a concessão da tutela cautelar.
No que toca em especial à regra estabelecida pelo n.º 3 do citado artigo 362.º do CPC, dele resulta clara e expressamente a regra da subsidiariedade do procedimento cautelar comum e da providência através dele requerida.
Esta manifestação do princípio da legalidade das formas processuais traduz-se, além do mais, na necessidade de invocação de uma situação de perigo de lesão que não se insira no âmbito de uma providência específica.
Assim, o decretamento de uma providência cautelar não especificada, enquanto medida destinada à tutela provisória de um direito e à sua efetivação prática - mas que implica, igualmente, uma grave ingerência na esfera jurídica do requerido - só é admissível quando se verifique o preenchimento cumulativo dos seguintes requisitos processuais: fumus boni iuris, periculum in mora, interesse processual e proporcionalidade da providência[1].
Enquanto elemento constitutivo específico do objeto da providência cautelar, em contraste com o da ação principal de que é dependência, há que apreciar da verificação dos fundamentos da necessidade da composição provisória, a qual decorre do «prejuízo que a demora na decisão da causa e na composição definitiva provocaria na parte cuja situação jurídica merece ser acautelada ou tutelada»[2].
Pela sua própria natureza e estrutura, o procedimento cautelar comum tem potencialidades para abarcar direitos de natureza patrimonial, familiar, real ou obrigacional. Basta que também relativamente a estes se verifiquem todos os requisitos de que a lei faz depender a adoção de uma medida provisória com virtualidades para prevenir a ocorrência de lesão grave ou dificilmente reparável ao direito do requerente[3].
Como decorre do citado artigo 362.º, n.º 1 do CPC, só as lesões graves e dificilmente reparáveis são suscetíveis de tutela em sede cautelar, sendo estes requisitos cumulativos e cabendo a respetiva prova ao respetivo requerente.
A propósito deste requisito, refere Abrantes Geraldes[4]: «o juiz deve convencer-se da seriedade da situação invocada pelo requerente e da carência de uma forma de tutela que permita pô-lo a salvo das lesões graves e dificilmente reparáveis.
A gravidade da lesão previsível deve ser aferida tendo em conta a repercussão que determinará na esfera jurídica do interessado.
Pela protecção cautelar não se abarcam apenas os prejuízos imateriais ou morais, por natureza irreparáveis ou de difícil reparação, mas ainda os efeitos que possam repercutir-se na esfera patrimonial do titular.
Porém, especialmente quanto aos prejuízos materiais, o critério deve ser bem mais rigoroso do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física ou moral, uma vez que, em regra, aqueles são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva».
Assim, as medidas cautelares pressupõem, em regra, a existência, sumariamente analisada, de um direito subjetivo inscrito na esfera jurídica do requerente no momento em que deduz a pretensão.
É o que corre com as acções de reivindicação ou possessórias eventualmente antecedidas ou acompanhadas de procedimentos cautelares, ou com as acções de indemnização com base em responsabilidade civil extracontratual ou destinadas a exigir o cumprimento contratual, em que a actividade do tribunal, se favorável ao autor, se limita a confirmar a existência do direito invocado como antecedente lógico da providência decretada.
Nestas e noutras situações congéneres, desde que a procedência das acções esteja suficientemente indiciada, a tutela cautelar justifica-se plenamente, embora com o nexo de instrumentalidade em relação à acção definitiva[5].
Deste modo, «[o] recurso à tutela cautelar é compatível com a invocação de qualquer direito, independentemente da sua natureza, incluindo direitos de natureza potestativa, embora não se confunda com a tutela definitiva que se pretende obter através da ação ou da execução. Pode abarcar também interesses juridicamente relevantes, designadamente quando estejam em causa interesses difusos. Tanto importa para o efeito da admissibilidade das providências que estejam em causa consequências de ordem patrimonial como não patrimonial»[6].
No caso em análise, a requerente, pessoa coletiva, alegou de forma percetível os factos que, no seu entender, traduzem a violação ilícita do seu direito pelo requerido e do receio de prevenir a ocorrência de lesão grave ou dificilmente reparável ao direito subjetivo que sustenta estar inscrito na sua esfera jurídica no momento em que deduz a pretensão, alegando estar em causa a defesa do seu bom nome e reputação, a confiança dos compartes mas também as boas relações institucionais, bem como o seu direito a reaver os documentos e os bens móveis, nomeadamente o carimbo, na posse do requerido.
Na decisão recorrida o Tribunal a quo começou por analisar a questão atinente à prova sumária do direito invocado, circunscrevendo o direito cuja probabilidade séria de existir cabe à requerente demonstrar nos termos seguintes: «Uma vez que a sua pretensão assenta na entrega dos bens que pertencem à Requerente é necessário que se demonstre o direito à restituição dos mesmos que advém da verificação de que o Requerido já não é o presidente da Requerente, o que implica a regularidade das eleições convocadas aquando a eleição de janeiro de 2023 e, bem assim, a irregularidade das eleições convocadas pelo Requerido, em outubro de 2023».
Em conformidade, a decisão recorrida começou por analisar o modo definido pela lei para a convocação de eleições e o modo de eleger os titulares dos órgãos de comunidades locais, previsto na Lei n.º 75/2017, de 17-08[7], aduzindo, na parte relevante para a apreciação dos fundamentos da apelação, o seguinte:
«Estabelece o artigo 17.º n.º2 do diploma legal que “Os membros da mesa da assembleia de compartes, bem como do conselho diretivo e da comissão de fiscalização, são eleitos pelo período fixado pela assembleia de compartes em regulamento, por o mínimo de um ano e o máximo de quatro anos, renováveis, e mantêm-se em exercício de funções até à sua substituição, entendendo-se que são eleitos por período de quatro anos se outro prazo não for fixado”.
O artigo 24.º n.º1, alínea a) e b) estabelece que compete à assembleia de compartes “a) Eleger a respetiva mesa; b) Eleger o conselho diretivo e a comissão de fiscalização, podendo destituí-los, com fundamento em especificados atos ilegais, não respeitadores dos princípios democráticos, ou de gestão manifestamente sem diligência devida, sendo em qualquer caso assegurado o direito de audição prévia, sem prejuízo dos demais instrumentos legais de defesa”.
Por sua vez, o artigo 26.º da Lei 75/2017 prevê que “1-A assembleia de compartes é convocada por editais afixados nos locais de estilo e por outro meio de publicitação usado localmente, podendo complementarmente ser convocada por carta não registada, comunicação eletrónica e por entrega pessoal da convocatória. (…) 3 - As reuniões da assembleia de compartes são convocadas pelo presidente da respetiva mesa, por decisão da mesa da assembleia de compartes, ou a solicitação escrita, dirigida ao presidente da mesa: a) Do conselho diretivo; b) Da comissão de fiscalização; c) Do mínimo de 5 /prct. dos respetivos compartes. 4 - Se a assembleia de compartes não for convocada no prazo de 15 dias a contar da receção do pedido previsto nas alíneas do número anterior, com a ordem de trabalhos proposta, podem os solicitantes convocá-la.”
Analisada a factualidade fortemente indiciada, tem-se que 5% dos compartes solicitaram ao presidente da mesa da assembleia geral a convocação de uma reunião da assembleia de compartes, com o objetivo de serem realizadas novas eleições, o que este fez, tendo as mesmas sido realizadas (facto provado 5 a 8)».
À luz do referido enquadramento legal, o Tribunal recorrido entendeu - e bem - que a convocatória dos compartes para reunirem em Assembleia Geral Extraordinária no dia 8 de janeiro de 2023 com a ordem de trabalhos: “1- Eleição dos órgãos sociais da comunidade local dos baldios de .... 2- Tomada de posse” - a que alude o ponto 6., dos factos indiciariamente provados - foi regular.
Ao invés, concluiu pela existência de irregularidades nas eleições que foram convocadas pelo requerido por terem sido convocadas por si e não pelo presidente da assembleia de compartes, como determina o artigo 26.º da Lei 75/2017.
Tais segmentos da fundamentação da sentença recorrida não vêm concretamente questionados na presente apelação, nem vemos razões para alterar o respetivo enquadramento, à luz da fundamentação aduzida na decisão em referência.
Sucede que, após ter concluído pela regularidade da convocatória dos compartes para reunirem em Assembleia Geral Extraordinária no dia 8 de janeiro de 2023 com a ordem de trabalhos: “1- Eleição dos órgãos sociais da comunidade local dos baldios de .... 2- Tomada de posse” - a que alude o ponto 6., dos factos indiciariamente provados - e pela existência de irregularidades nas eleições que foram convocadas pelo requerido por terem sido convocadas por si e não pelo presidente da assembleia de compartes, como determina o artigo 26.º da Lei 75/2017, o Tribunal a quo veio a entender que existiam também irregularidades na convocação das eleições que levaram à eleição dos novos membros, cuja elegibilidade foi verificada na ata de 08-01-2023 (na sequência do que foram empossados pelo Presidente da Assembleia de Compartes do Baldio de ...) - cf. os pontos 7 e 8 dos factos indiciariamente provados -, em face do que concluiu não ser possível afirmar a provável aparência do direito da requerente (fumus boni iuris), consignando para o efeito, entre o mais, o seguinte:
«(…)
No entanto, tem o Tribunal de questionar-se se estas novas eleições podiam ter sido convocadas sem que, anteriormente, fossem destituídos os titulares dos órgãos que se encontravam em funções. Não há dúvida de que a nova eleição implica a destituição dos anteriores titulares dos órgãos mas não pode convocar-se tais eleições sem que haja uma destituição anterior, ou pelo menos, no mesmo ato.
O diploma legal em análise não reserva um preceito legal único para a destituição dos membros dos órgãos sociais. No entanto, faz referência à destituição, impondo-a como ato reservado à assembleia de compartes, “com fundamento em especificados atos ilegais, não respeitadores dos princípios democráticos, ou de gestão manifestamente sem diligência devida, sendo em qualquer caso assegurado o direito de audição prévia, sem prejuízo dos demais instrumentos legais de defesa”.
Da interpretação deste preceito legal retira-se que compete à assembleia de compartes destituir os membros dos órgãos dos baldios, prevendo-se, como fundamento para a destituição, a prática de atos ilegais ou gestão manifestamente inadequada.
Ora, no caso dos autos, não se verificou qualquer destituição dos órgãos, nem sequer foi invocada a verificação do fundamento necessário à destituição, assente na prática de atos ilegais ou na má gestão da comunidade. Além disso, não tinham, ainda, decorridos 4 anos do mandato que foi conferido em 2019 pelo que também não tinha cessado aquele mandato quando foram convocadas novas eleições.
Não obstante, a Requerente alega que a eleição de novos membros era necessária por se terem verificado demissões que não permitiram a manutenção do número mínimo de titulares em cada órgão.
Efetivamente, constata-se que dois dos membros da direção tinham dirigido missivas a apresentar a sua demissão.
Todavia, impõe-se verificar se essas missivas seriam suficientes para, por si só, fundarem a convocação de eleições, sem a precedência de outros atos, mormente de deliberação quanto ao modo de regularizar o funcionamento da pessoa coletiva após essas demissões. Em primeiro lugar, impunha-se verificar se as demissões dependiam da aceitação da pessoa coletiva e, em caso afirmativo, se estas foram aceites. Em segundo lugar, impunha-se verificar se deveria a assembleia geral reunir para a apreciação dos pedidos de demissão e das consequências das demissões.
Quanto à eficácia das demissões, discute-se a questão de saber se, uma vez que se trata de uma declaração de vontade manifestada pelo próprio, está em causa uma declaração recetícia (que se torna efetiva quando chega ao conhecimento do destinatário) ou se necessita de ser aceite.
(…)
Acolhendo este entendimento, tem-se que, com a apresentação da demissão pelos membros, estes não perderam logo a sua qualidade. No entanto, tendo sido, eventualmente, recebidos pelo destinatário (o que se desconhece), impunha-se que a assembleia de compartes diligenciasse pela sua apreciação e deliberasse a regularização do funcionamento da pessoa coletiva. “Regularização essa que passava pela apreciação dos pedidos de demissão (quer diligenciando pela retirada dos mesmos, quer aceitando-os) e dos aspetos consequenciais dos mesmos (impossibilidade de funcionamento dos órgãos sociais e eventual eleição de novos órgãos sociais)” (…)
Com isto não se quer dizer que se impunha a convocação de duas assembleias de compartes, uma para apreciar as demissões e decidir sobre as consequências das mesmas no funcionamento da pessoa coletiva e outra para convocar eleições. Nada obsta a que no mesmo ato se analisassem ambas as questões, mas impunha-se que, pelo menos, a apreciação das demissões e a deliberação quanto ao futuro funcionamento da pessoa coletiva.
Do que se deixa dito constata-se que, perante a factualidade indiciariamente demonstrada, inexistem elementos que permitam afirmar que houve a apreciação das demissões apresentadas e a deliberação quanto ao modo de regularizar o funcionamento da Comunidade, mormente a deliberação segundo a qual as demissões em causa implicariam a convocação de novas eleições para eleger novos membros para todos os órgãos da pessoa coletiva. E não se diga que esta era uma consequência inerente às demissões apresentadas (relativamente às quais se desconhece se foram aceites) pois a assembleia de compartes podia, somente, deliberar a eleição de pessoas para ocuparem, somente, os cargos que foram deixados vagos e não para todos os órgãos.
Deste modo, não se verificando estar indiciariamente demonstrado que os membros titulares dos órgãos da comunidade eleitos em 2019 foram destituídos ou que foram apreciadas as consequências das duas demissões apresentadas, conclui-se existirem irregularidades na convocação das eleições que elegeram os novos membros.
(…)».
Contra este entendimento insurge-se a ora recorrente, sustentando, em primeiro lugar, que a lei civil seguiu o caminho da anulabilidade para as deliberações das assembleias gerais das associações - artigo 177.º do Código Civil (CC) - e, como tal, enquanto não forem objeto de processo judicial, mantêm-se válidas e eficazes, como sucede com no caso em análise em que se mostra devidamente assente que, no dia 8 de janeiro de 2023 tomaram posse os elementos eleitos por via do ato eleitoral levado a cabo pela ora recorrente, o qual não foi até à data impugnado -, no que lhe assiste inteira razão.
Efetivamente, apreciando o regime jurídico aplicável, verifica-se que os órgãos das comunidades locais previstos no artigo 17.º, n.º 1 da Lei n.º 75/2017, de 17-08,[8] devem ser eleitos em assembleia de compartes convocada para o efeito, ou por outro método previamente aprovado sob forma de regulamento em assembleia de compartes (artigo 32.º, n.º 2 da Lei n.º 75/2017, de 17-08).
Ademais, nos termos previstos no artigo 26.º, n.º 3 da aludida lei, as reuniões das assembleias de compartes, nomeadamente para os referidos fins eleitorais, podem ser convocadas pelo presidente da mesa, por decisão da mesa da assembleia de compartes, ou a solicitação escrita, dirigida ao presidente da mesa: a) Do conselho diretivo; b) Da comissão de fiscalização; c) Do mínimo de 5% dos respetivos compartes».
No caso, o Tribunal recorrido entendeu - e bem - que a convocatória dos compartes, para reunirem em Assembleia Geral Extraordinária no dia 8 de janeiro de 2023 com a ordem de trabalhos: “1- Eleição dos órgãos sociais da comunidade local dos baldios de .... 2- Tomada de posse” - a que alude o ponto 6., dos factos indiciariamente provados - foi regular, visto resultar dos factos indiciariamente provados que 5% do universo dos compartes requereu ao presidente da mesa da assembleia geral a convocação de uma reunião da assembleia geral de compartes, com o objetivo de serem realizadas novas eleições, o que este fez, tendo as mesmas sido realizadas e levado à eleição dos novos membros, cuja elegibilidade foi verificada na ata de 08-01-2023 (na sequência do que foram empossados pelo Presidente da Assembleia de Compartes do Baldio de ...) - cf. pontos 5 a 8 dos factos indiciariamente provados, tudo em conformidade com o disposto nos artigos 18.º, 19.º, 21.º, 25.º, 26.º, n.ºs 1, 3, al. c), e 5, 27.º, e 32.º, n.º 2 da  Lei n.º 75/2017, de 17-08.
Acresce que, como bem salientou aquele Tribunal, não há dúvida de que a nova eleição implica a destituição dos anteriores titulares dos órgãos das comunidades locais.
Nos termos do regime geral previsto no artigo 177.º do CC para as associações, as deliberações da assembleia geral contrárias à lei ou aos estatutos, seja pelo seu objeto, seja por virtude de irregularidades havidas na convocação dos associados ou no funcionamento da assembleia, são anuláveis.
Neste âmbito, o artigo 178.º do CC, prevê um regime específico para arguição da invalidade (anulabilidade) de uma deliberação da assembleia geral, estabelecendo que, a anulabilidade prevista nos artigos anteriores pode ser arguida, dentro do prazo de seis meses, pelo órgão da administração ou por qualquer associado que não tenha votado a deliberação (n.º ...); tratando-se de associado que não foi convocado regularmente para a reunião da assembleia, o prazo só começa a correr a partir da data em que ele teve conhecimento da deliberação (n.º ...).
Ora, a jurisprudência que julgamos representativa vem decidindo que este regime civil geral é aplicável às reuniões das assembleias de compartes, em face da falta de norma específica da Lei n.º 75/2017, de 17-08, que aprovou o regime jurídico dos baldios e demais meios de produção comunitários[9].
Sobre esta questão, refere-se no aludido acórdão da Relação de Guimarães de 22-02-2018, em moldes que merecem a nossa inteira adesão: «a irregularidade da convocatória para a assembleia de compartes e da própria assembleia, por motivos procedimentais, tem como consequência a simples anulabilidade da assembleia, à semelhança do estabelecido no art.º 177.º do C.C. para as associações».
Tal como esclarece Paulo Olavo Cunha, em anotação a este último preceito legal[10]: «[o] artigo 177.º dispõe sobre o regime regra da invalidade das deliberações da assembleia geral que padeçam de um vício de conteúdo ou de forma, determinando a respetiva anulabilidade. Assim, as deliberações que sofram uma vicissitude são, em princípio, anuláveis, o que significa que produzem os efeitos para que tendem até que, sendo postas em causa, sejam anuladas pelo tribunal.
A lei optou por uma solução - análoga à consagrada para as sociedades comerciais [cfr. Artigo 58.º, n.º 1, al. a), do CSC] - diferente do regime da invalidade dos negócios jurídicos (praticados contra norma imperativa) regra no Direito português (afr. Artigo 194.º do CC), consagrando a anulabilidade das deliberações sociais viciadas. O fundamento desta escolha, que não foi casual, refira-se, assenta na teoria das deliberações em cadeia, segundo a qual as deliberações não podem, em princípio, estar sujeitas a uma invalidade radical, sob pena de, declaradas nulas sem dependência de prazo, poderem comprometer a subsistência de todas as que nelas se alicerçarem.
Com efeito, a anulabilidade é sanável com o decurso do tempo, no caso escasso, em que pode ser deduzida (seis meses, segundo o artigo 178.º), afastando o espetro de uma invalidação extemporânea com prejuízo de deliberações que tenham entretanto sido formadas com base na deliberação viciada (anulável).
A lei reconduz à anulabilidade todas as vicissitudes que possam afetar uma deliberação da assembleia geral, incluindo as mais graves, não sendo admissível que um vício grave não possa ter reparação, por não ser prevista a eventual nulidade como sanção aplicável».
Esta conclusão torna inútil a apreciação, no âmbito do presente procedimento, de eventuais irregularidades decorrentes da falta de apreciação das demissões apresentadas por dois dos membros do Conselho Diretivo da Comunidade Local dos Baldios de ..., por missivas datadas de 2-11-2022 e 09-11-2022 (cf. os pontos 2., a 4., dos factos indiciariamente assentes) e/ou da questão de saber se a assembleia de compartes apenas podia deliberar a eleição de pessoas para ocuparem os cargos que foram deixados vagos e não para todos os órgãos[11], porquanto, tendo a assembleia que elegeu os órgãos sociais da comunidade local dos baldios de ... ocorrido em 08-01-2023 (cf. os pontos 6., a 9., dos factos indiciariamente assentes), quando o presente procedimento entrou em Juízo, em 27-10-2023, há muito que estava esgotado o prazo de arguição da anulabilidade da correspondente deliberação.
Como se viu, a ação de anulação é constitutiva, pelo que a deliberação de 08-01-2023 - que elegeu os órgãos sociais da comunidade local dos baldios de ... - produz os seus efeitos até que, sendo postas em causa, sejam anuladas pelo tribunal, o que o requerido não logrou demonstrar em sede de oposição ao presente procedimento.
Por outro lado, a eleição dos novos órgãos sociais da comunidade local dos baldios de ... implica a necessária destituição dos anteriores titulares dos órgãos das comunidades locais, nos quais o ora requerido/apelado desempenhava as funções de Presidente do Conselho Diretivo da Comunidade Local dos Baldios de ... desde ../../2019.
Tanto basta, em nosso entender, para considerar que o quadro fáctico alegado e apurado no presente procedimento cautelar permite sustentar uma séria probabilidade da existência do direito invocado pela requerente, contrariamente ao que decidiu o Tribunal a quo na decisão recorrida.
Importa então aferir se as circunstâncias sumariamente demonstradas nos autos são suscetíveis de consubstanciar os demais requisitos necessários ao deferimento do procedimento cautelar comum, em concreto, o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável, tendo por base as específicas providências solicitadas.
Quanto a este requisito, o Tribunal recorrido fundamentou a decisão de improcedência do procedimento cautelar, enunciando para o efeito, e no essencial, a seguinte fundamentação:
«(…)
Consequentemente, não é possível afirmar com segurança a presença do fummus boni iuris da Requerente, que não demonstrou a provável aparência do direito.
Ainda que assim não se entendesse, e se considerasse que existiram elementos para afirmar que a Requerente seria, aparentemente, titular do direito de que se arroga, a verdade é que também não seria a providência decretada pois não se encontra, igualmente, preenchido o segundo pressuposto do decretamento da providência cautelar: o periculum in mora.
Como se disse, para o decretamento da providência impõe-se a verificação de factos que sustentem o receio de uma lesão e que demonstrem a necessidade urgente de adotar medidas tendentes a evitar o prejuízo.
As lesões que a Requerente invoca cingem-se à contínua utilização pelo Requerido dos seus bens e à colocação em causa do bom nome da Requerente em virtude dessa utilização. Ora, além de não se conseguir estabelecer uma relação entre a manutenção daqueles bens na posse do Requerido e a colocação em causa do bom nome da Requerente, as lesões invocadas não são dificilmente reparáveis.
Em primeiro lugar, a manutenção pelo Requerido dos bens móveis e das atas e outros documentos da Requerente não colocam, por si só, em perigo o bom nome da Requerente, nem lesam outros interesses. Por um lado, os bens móveis podem ser substituídos (não se tendo demonstrado, nem sequer alegado a indispensabilidade daqueles bens e daquela documentação para a atividade da Requerente). Por outro lado, não foi demonstrada que a utilização do Requerido destes bens contribuísse para a colocação em causa do bom nome da Requerente. Na verdade, nem sequer foi demonstrada a utilização pelo Requerido do computador e da impressora para a afixação do edital que utilizou para convocar eleições nem, ainda, foi demonstrado que esse ato atingiu o bom nome da Requerente. Tão só é suscetível de provocar confusão nos compartes e vergonha aos titulares dos órgãos o que não configura, por si só, uma lesão dificilmente reparável e que imponha urgência.
A única situação que podia fazer indagar o preenchimento deste pressuposto seria a utilização do carimbo pelo Requerido pois, efetivamente, a sua utilização por alguém que não seria o presidente do conselho diretivo é suscetível de gerar confusão nos compartes, não lhes permitindo distinguir os documentos oficiais da Requerente dos que não são.
No entanto, esta eventual confusão que pode ser criada não configura, na visão do Tribunal, uma lesão suficientemente grave que justifique o decretamento da providência pois sempre poderá ser resolvida pelo esclarecimento dos compartes, eventualmente em assembleia de compartes convocada para o efeito, da situação em causa, explicando que os documentos com carimbo não são os oficiais da Requerente.
Assim, atendendo a que a factualidade demonstrada não permite concluir pela lesão grave e dificilmente reparável do direito, falha um dos pressupostos para o decretamento da providência cautelar requerida, não se encontrando, igualmente, preenchido o pressuposto do periclum in mora.
Em face de todo o exposto, por não se encontrarem preenchidos os pressupostos de que depende o decretamento da providência cautelar, improcede a providência requerida.
(…)».
Enquanto elemento constitutivo específico do objeto da providência cautelar, em contraste com o da ação principal de que é dependência, há que apreciar nesta sede da verificação dos fundamentos da necessidade da composição provisória, a qual decorre do «prejuízo que a demora na decisão da causa e na composição definitiva provocaria na parte cuja situação jurídica merece ser acautelada ou tutelada»[12].
Como se viu, na apreciação dos factos integradores do periculum in mora, o critério deve ser bem mais rigoroso relativamente aos prejuízos materiais do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física ou moral, uma vez que, em regra, aqueles são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva.
Revertendo ao caso em análise, julgamos que o Tribunal a quo não podia, sem mais, desvalorizar, a circunstância de o requerido ter na sua posse atas de Assembleias Gerais da requerente e de reuniões de outros órgãos da requerente e outros documentos como planos de atividade da requerente, bem como o carimbo da Associação, pertencentes à requerente, não obstante ter sido intimado pela ora requerente à sua entrega, por missiva datada de 9 de janeiro de 2023, o que resulta dos pontos 11., 12., 13., 14., e 15., dos factos indiciariamente provados.
Com efeito, os direitos atribuídos aos órgãos das comunidades locais pelo regime aplicável aos baldios e aos demais meios de produção comunitários[13] desempenham um papel fundamental na garantia do funcionamento eficiente de tais órgãos com vista à prossecução do direito à propriedade plena dos baldios enquanto bens comunitários, pertencentes em propriedade comum às comunidades locais, que os possuem e administram, tal como consagrado constitucionalmente, e, nessa medida, na proteção dos interesses dos compartes de cada comunidade local.
Neste enquadramento, o direito de acesso dos órgãos eleitos da Comunidade Local dos Baldios de ... às atas das Assembleias Gerais da requerente e de reuniões de outros órgãos da requerente, bem como à informação contida noutros documentos, como planos de atividade da requerente, não pode deixar de ser entendido como um direito fundamental à prossecução dos interesses dos compartes da respetiva comunidade local, atendendo à natureza específica de tal documentação e ao objeto social da ora requerente, pelo que, a recusa, ou a não entrega pelo requerido à requerente da documentação relativa à Comunidade Local que se encontra na sua posse, é suscetível de pôr em risco o funcionamento eficiente de tais órgãos e a efetividade do direito à propriedade plena dos baldios enquanto bens comunitários, permitindo consubstanciar, em termos objetivos, o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável ao direito invocado pela requerente, tendo como pressuposto que a deliberação de 08-01-2023 - que elegeu os novos órgãos sociais da Comunidade Local dos Baldios de ... - produz os seus efeitos até que, sendo posta em causa, seja anulada pelo tribunal.
Entendemos, assim, que os factos já indiciariamente dados como provados permitem configurar a violação ilícita do direito da requerente, já iniciada, sendo a mesma objetivamente idónea a consubstanciar o receio de lesão grave e dificilmente reparável de tal direito, enquanto requisitos cumulativos do decretamento da providência enunciada sob a al. a) do petitório inicial, na medida da documentação relativa à requerente que o requerido mantém indevidamente na sua posse, face ao que resulta do ponto 14 dos factos indiciariamente provados (atas de Assembleias Gerais da requerente e de reuniões de outros órgãos da requerente e outros documentos como planos de atividade da requerente).
No que concerne ao exercitado direito da requerente a reaver do requerido todos os bens móveis que este tem na sua posse e que são propriedade da requerente, nomeadamente computador portátil, impressora/fotocopiadora a laser, mesa de som, 2 microfones, 2 altifalantes, carimbo, gerador e chaves da sede e da caixa de correio, o Tribunal recorrido entendeu que a única situação que podia fazer indagar o preenchimento do requisito atinente ao justo receio de lesão grave e dificilmente reparável de tal direito seria a utilização do carimbo da requerente pelo requerido pois, segundo consta da fundamentação da decisão recorrida, a sua utilização por alguém que não seria o presidente do conselho diretivo é suscetível de gerar confusão nos compartes, não lhes permitindo distinguir os documentos oficiais da Requerente dos que não são.
Ainda assim, o Tribunal recorrido entendeu desvalorizar a circunstância de o requerido ter utilizado o carimbo da requerente no edital por aquele afixado em 1 de outubro de 2023, nos locais normalmente utilizados pela requerente para as convocatórias e no qual aquele informava que «a partir desta data está aberto o processo eleitoral para os diferentes órgãos de gestão dos baldios de ...» - cf. Os pontos 15., a 21., dos factos indiciariamente provados -, por entender que «esta eventual confusão que pode ser criada não configura, na visão do Tribunal, uma lesão suficientemente grave que justifique o decretamento da providência pois sempre poderá ser resolvida pelo esclarecimento dos compartes, eventualmente em assembleia de compartes convocada para o efeito, da situação em causa, explicando que os documentos com carimbo não são os oficiais da Requerente.
Na verdade, não pode considerar-se que a criação de alguma confusão nos compartes e vergonha dos membros da Requerente configure uma lesão grave e dificilmente reparável».
No entanto, como antes já vimos, os direitos atribuídos aos órgãos das comunidades locais pelo regime aplicável aos baldios e aos demais meios de produção comunitários desempenham um papel fundamental na garantia do funcionamento eficiente de tais órgãos com vista à prossecução do direito à propriedade plena dos baldios enquanto bens comunitários, pertencentes em propriedade comum às comunidades locais, que os possuem e administram, e, nessa medida, na proteção dos interesses dos compartes de cada comunidade local, o que nos leva a sufragar a conclusão enunciada na alegação apresentada pela recorrente, no sentido de que, os compartes são o “motor” da ora recorrente. É através das suas deliberações que a ora recorrente vive. Sentindo-se confusos sobre quem tem legitimidade para exercer os cargos dirigentes, terão tendência a afastar-se. E a Comunidade Local para.
Assim sendo, não se nos afigura razoável exigir à requerente, enquanto pessoa coletiva, que deva aguardar ou providenciar para que seja convocada a assembleia de compartes com vista a minimizar as consequências de atos suscetíveis de configurar a violação ilícita de direitos que devem ser exercidos em exclusivo pelos correspondentes órgãos sociais, quando o requerido não demonstra ter impugnado eficazmente e no momento oportuno a deliberação de 08-01-2023 - que elegeu os novos órgãos da comunidade local dos baldios de ..., a qual produz os seus efeitos até que, sendo posta em causa, seja anulada pelo tribunal.
Ademais, impõe-se constatar que o quadro fáctico relevante para a questão em análise não se circunscreve apenas à utilização do carimbo da Associação ora requerente por alguém que já não seria à data o presidente do respetivo Conselho Diretivo, nem somente à afixação pelo requerido de um edital, nos locais normalmente utilizados pela requerente para as convocatórias, em 1 de outubro de 2023, com o teor enunciado em 17 dos factos indiciariamente provados (isto apesar de se ter constatado a existência de irregularidades nas eleições que foram convocadas pelo requerido, por terem sido convocadas por si e não pelo presidente da assembleia de compartes, como determina o artigo 26.º da Lei 75/2017, ao mesmo tempo que se impõe a conclusão de que a deliberação de 08-01-2023 - que elegeu os novos órgãos sociais da comunidade local dos baldios de ... - é eficaz). Com efeito, resulta da matéria de facto assente que, em data não concretamente apurada, mas num sábado entre ../../2023 e ../../2024, o requerido circulou com uma viatura pela freguesia ..., com altifalantes, onde reproduziu expressões não concretamente apuradas, mas onde informava que seriam convocadas novas eleições e que as eleições anteriores não eram verdadeiras (ponto 18) mais se tendo apurado que esta mensagem é passível de causar confusão às pessoas da freguesia (ponto 19) e que esta situação provoca embaraço e vergonha aos elementos dos órgãos da requerente (ponto 20 dos factos indiciariamente provados).
Ora, como se viu, as lesões que resultam indiciadas no âmbito dos factos antes enunciados não se revelam inócuas para a requerente, na medida em que contendem necessariamente com os interesses dos compartes da Comunidade Local dos Baldios de ..., servindo, além do mais, para conferir maior seriedade e, assim, justificar a concessão de uma providência destinada a evitar a repetição ou a persistência de novas situações lesivas, o que justifica o deferimento da providência cautelar se e enquanto subsistir uma situação de perigo de ocorrência de novos danos ou de agravamento dos danos entretanto ocorridos[14].
Deste modo, entendemos que os factos concretos indiciados permitem concluir quer pela verificação do requisito do fumus boni iuris, quer do periculum in mora, também em relação às concretas providências requeridas sob as als. b) - esta, no que concerne à entrega do carimbo da Associação, pertencente à requerente - c) e d) do petitório inicial.
Em sede de requerimento inicial, a ora apelante requereu que fosse ordenado ao requerido que procedesse à entrega de todos os bens móveis que tem na sua posse e que são propriedade da requerente, nomeadamente computador portátil, impressora/fotocopiadora a laser, mesa de som, 2 microfones, 2 altifalantes, carimbo, gerador e chaves da sede e da caixa de correio, pretensão que renovou em sede de apelação.
Considerando os factos indiciariamente provados, a 1.ª instância concluiu, entre o mais, que a manutenção pelo requerido dos bens móveis da requerente não colocam, por si só, em perigo o bom nome desta, nem lesam outros interesses, sendo que os bens móveis podem ser substituídos, não se tendo demonstrado, nem sequer alegado a indispensabilidade daqueles bens para a atividade da requerente, nem foi demonstrada que a utilização do requerido destes bens contribuísse para a colocação em causa do bom nome da requerente, nem sequer foi demonstrada a utilização pelo requerido do computador e da impressora para a afixação do edital que utilizou para convocar eleições.
Ora, com exceção do carimbo da Associação ora requerente e da documentação relativa à requerente, que o requerido mantém indevidamente na sua posse (atas de Assembleias Gerais da requerente e de reuniões de outros órgãos da requerente e outros documentos como planos de atividade da requerente), todos estes pelos motivos já antes  devidamente enunciados, entendemos que o quadro fáctico apurado no presente procedimento cautelar não permite a este Tribunal divergir do juízo decisório efetuado pelo Tribunal a quo na decisão recorrida quanto aos restantes bens que se apurou estarem na posse do requerido (um computador, uma mesa de som, dois microfones, uma impressora a laser, um gerador, dois altifalantes), sendo de concluir que os factos indiciariamente apurados não permitem firmar, quanto a estes bens, o indispensável juízo de verosimilhança quanto aos factos integradores do receio de que a atuação do requerido em relação aos mesmos cause lesão grave e dificilmente reparável ao direito da requerente, atenta a natureza dos referidos bens e o que resulta dos factos indiciariamente provados.
Por todo o exposto, entendemos que as circunstâncias fácticas indiciariamente provadas no processo permitem consubstanciar os requisitos necessários ao deferimento das concretas providências requeridas sob as als. a) - esta, apenas na medida da documentação relativa à requerente que o requerido mantém indevidamente na sua posse, face ao que resulta do ponto 14 dos factos indiciariamente provados (atas de Assembleias Gerais da requerente e de reuniões de outros órgãos da requerente e outros documentos como planos de atividade da requerente) - b) - esta, apenas no que concerne à entrega do carimbo da Associação, pertencente à requerente - c) e d) do petitório inicial, o que importa a parcial procedência da presente apelação.
No pedido formulado em e) do requerimento inicial, a requerente requereu a fixação de sanção pecuniária compulsória adequada a assegurar a efetividade da presente providência, sugerindo a quantia de 100,00 € por cada dia de atraso na entrega dos documentos e bens móveis pertença da ora requerente, contados desde o trânsito em julgado da sentença, pretensão que renovou em sede de apelação.
Ora, sendo a sanção pecuniária compulsória uma condenação acessória e condicional de uma condenação no cumprimento de uma obrigação principal, resulta manifesto que o conhecimento da apelação nesta parte sempre dependia da prévia procedência, ainda que parcial, do recurso relativamente às pretensões formuladas nas als. a) e b) do petitório inicial, o que se verifica.
Nos termos do disposto no artigo 365.º, n.º 2 do CPC, é sempre admissível a fixação, nos termos da lei civil, da sanção pecuniária compulsória que se mostre adequada a assegurar a efetividade da providência decretada.
Por seu turno, o artigo 829.º-A do CC, com a epígrafe Sanção pecuniária compulsória prevê o seguinte:
1 - Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.
2 - A sanção pecuniária compulsória prevista no número anterior será fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar.
3 - O montante da sanção pecuniária compulsória destina-se, em partes iguais, ao credor e ao Estado.
4 - Quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem também devidos, ou à indemnização a que houver lugar.
Conjugando os preceitos legais antes enunciados, a generalidade da doutrina e da jurisprudência vem sustentando que a sanção pecuniária compulsória é admissível nos procedimentos cautelares nos mesmos termos em que o prevê a lei civil, estando, por isso, sujeita ao regime legal constante do artigo 829.º-A do CC, o que faz depender aquele meio coercitivo do cumprimento de obrigações dos requisitos enunciados neste último preceito[15].
Conforme se afirma no preâmbulo do Dec. Lei 262/83, de 16-06, diploma que aditou o citado artigo 829.º-A do CC, «a sanção pecuniária compulsória visa, em suma, uma dupla finalidade de moralidade e de eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto por outro lado se favorece a execução específica das obrigações de prestação de facto ou de abstenção infungíveis».
Tal como refere Calvão da Silva[16], «o legislador concebeu a sanção pecuniária compulsória como processo coercitivo de aplicação subsidiária, destinado a colmatar a lacuna, existente no nosso sistema jurídico, devida à inidoneidade da execução para realizar in natura as prestações de facto infungíveis», por contraponto às obrigações que têm por objeto uma prestação de coisa - coisa que é o objeto mediato, sendo a prestação (conduta ou comportamento) o objeto imediato -, nas quais «a actuação da condenação no cumprimento é possível através da execução específica»[17] .
 Conforme salienta o citado acórdão da Relação do Porto de 27-03-2023, «[é] conhecida a distinção das obrigações, quanto à finalidade: a prestação pode ser de facto (de facere) ou de coisa (de dare). Por um lado, as prestações de coisa são aquelas em que alguém se obriga a entregar algo a outrem e, por outro, as obrigações de facto são aquelas em que alguém se obriga a prestar uma conduta de outra ordem. Só as primeiras podem ser positivas ou negativas. As segundas são sempre positivas.
Prestações fungíveis são aquelas em que a prestação pode ser realizada por outrem que não o devedor, podendo assim este fazer-se substituir no cumprimento. Por seu turno, as prestações infungíveis são aquelas em que só o devedor pode realizar a prestação, não sendo permitida a sua realização por terceiro».
Na síntese de Almeida Costa[18], é possível tirar do regime previsto no artigo 829.º-A, nºs 1, 2 e 3, do CC as seguintes ilações:
- Só pode funcionar em obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, e desde que o cumprimento destas não exija especiais qualidades científicas ou artísticas do devedor;
- Impede-se o tribunal de agir oficiosamente, enquanto a imposição da providência depende de um pedido do credor;
- A sanção pecuniária pode referir-se a cada dia de atraso no cumprimento ou a cada infracção, consoante as circunstâncias da hipótese concreta aconselhem;
- A indemnização pelo incumprimento não se confunde com a sanção pecuniária compulsória;
- Esta última providência, embora fixada pelo tribunal de acordo com critérios de razoabilidade, uma vez cominada, torna-se definitiva, quer dizer, é insusceptível de revisão oficiosa ou a requerimento das partes;
- A quantia liquidada reverte, em montantes iguais, para o credor e o Estado.
Daí que, estando em causa uma obrigação de entrega de coisa determinada e não de prestação de facto (positivo) não é de admitir a condenação do réu em sanção pecuniária compulsória[19].
No caso dos autos, estamos perante um pedido de aplicação de sanção pecuniária compulsória formulado pela requerente como meio de determinar o requerido ao cumprimento da entrega dos documentos e bens móveis pertença da ora requerente, estando por isso em causa uma obrigação de entrega e nunca uma prestação de facto infungível, razão pela qual carece de fundamento jurídico esta parte do pedido formulado pela requerente.
Daí que improceda, nesta parte, a apelação.
A recorrente renova em sede de alegações o pedido de inversão do contencioso oportunamente formulado em sede de requerimento inicial, sustentando que quando a matéria de facto adquirida no procedimento cautelar permite formar uma convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio, não haverá razões para que não se resolva a causa de modo definitivo (evitando-se a duplicação da prova), ficando o requerente dispensado do ónus de propor a ação principal.
Em sede de oposição, o requerido/apelado limitou-se a declarar que se opunha à inversão do contencioso.
O artigo 369.º, n.º 1 do CPC prevê que, mediante requerimento, o juiz, na decisão que decrete a providência, pode dispensar o requerente do ónus de propositura da ação principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio.
A este propósito, o n.º 2 do mesmo preceito prescreve que a dispensa prevista no número anterior pode ser requerida até ao encerramento da audiência final; tratando-se de procedimento sem contraditório prévio, pode o requerido opor-se à inversão do contencioso conjuntamente com a impugnação da providência decretada. já citado artigo 369.º, n.º 1 do CPC.
António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa[20], em anotação ao referido preceito, salientam que «[o] decretamento da inversão do contencioso supõe a iniciativa do requerente, a aquisição de convicção segura acerca da existência do direito e a adequação da providência cautelar à resolução definitiva do litígio.
(…)
[a] necessidade de adequação da providência à composição definitiva do litígio significa a limitação da inversão do contencioso a situações em que uma e outra prosseguem os mesmos objetivos, sem necessidade de qualquer outro desenvolvimento, o que se verifica relativamente à generalidade das medidas cautelares de natureza antecipatória (…).
[é] necessário, pois, que a providência, pela sua própria natureza, seja adequada a realizar a composição definitiva do litígio, o que, por exemplo, ocorre com providências que têm um cunho semelhante ao da restituição provisória da posse, mas já não com aquelas que, como o arresto ou o arrolamento de bens, visam apenas a conservação da situação. A ponderação sobre a viabilidade de a providência decretada assegurar a composição definitiva do litígio deve fazer-se por referência àquilo que o requerente pretende ou declara pretender, ainda que tal pretensão pudesse ter outra amplitude».
Deste modo, «[a] natureza da providência decretada é adequada a realizar a composição definitiva do litígio quando o interesse do demandante se encontra realizado com a mera produção do seu efeito prático. Assim ocorre porque este efeito é comungado pela providência cautelar e pela medida definitiva, obtida na ação principal, que aquela antecipa[21]».
Como se refere no acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 04-10-2023[22]: «A possibilidade de inversão do contencioso leva a que o procedimento cautelar deixe de ser necessariamente instrumental e provisório, porquanto permite que se forme convicção sobre a existência do direito apta a resolver de modo definitivo o litígio, verificados os pressupostos legalmente previstos.
Entende-se, pois, que nos casos em que no procedimento cautelar é produzida prova suficiente para que se forme convicção segura sobre a existência do direito acautelado - (prova stricto sensu do direito que se pretende tutelar) - e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio, não haverá razões para que não se resolva a causa de modo definitivo (evitando-se a “duplicação da prova”), ficando o requerente dispensado do ónus de propor a acção principal; aquela prova stricto sensu do fundamento dessa providência determina, necessariamente, uma inversão do contencioso. O requerido poderá obstar à consolidação daquela tutela como tutela definitiva através de uma acção de impugnação (cfr. os arts. 369º/1 e 371º/1)».
Revertendo ao caso dos autos, logo se verifica a adequação do presente procedimento à realização da composição definitiva do litígio, atento o efeito antecipatório das providências solicitadas, sendo manifesto que o interesse da requerente se mostra salvaguardado com a mera produção dos efeitos práticos das mesmas.
Por outro lado, não se vislumbra necessidade de produção de prova complementar pelas partes em ação definitiva, posto que os meios probatórios são maioritariamente documentais, já estão juntos ao processo e foram sujeitos ao devido contraditório, sendo certo que nenhuma das partes impugnou neste recurso a decisão de facto constante da decisão recorrida, assim consubstanciando um nível de segurança próximo daquele que seria necessário para a apreciação e reconhecimento do mesmo direito na ação principal, caso esta tivesse sido instaurada, ao mesmo tempo que permite formar uma convicção segura acerca da existência do direito acautelado.
Em conformidade, mostram-se verificados todos os pressupostos legais para a requerida inversão do contencioso, pelo que cumpre julgar procedente, nesta parte, o recurso aqui interposto, dispensando-se a requerente do ónus da propositura da ação principal, tal como por esta requerido, assim se declarando invertido o contencioso, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 369.º e 371.º do CPC.
Pelo exposto, procedendo parcialmente a apelação, deve revogar-se a decisão recorrida, a qual se substitui pelo presente acórdão, julgando parcialmente procedente o procedimento instaurado e decretando as concretas providências requeridas sob as als. a) - esta, apenas na medida da documentação relativa à requerente que o requerido mantém indevidamente na sua posse, face ao que resulta do ponto 14 dos factos indiciariamente provados (atas de Assembleias Gerais da requerente e de reuniões de outros órgãos da requerente e outros documentos como planos de atividade da requerente) - b) - esta, apenas no que concerne à entrega do carimbo da Associação, pertencente à requerente - c) e d) do petitório, e dispensando-se a requerente do ónus da propositura da ação principal quanto à providência decretada, tal como por esta requerido, confirmando-se, no mais, a decisão recorrida.
Tal como resulta da regra enunciada no artigo 527.º, n.º 1 do CPC, a responsabilidade por custas assenta num critério de causalidade, segundo o qual, as custas devem ser suportadas, em regra, pela parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento, pela parte que tirou proveito do processo. Neste domínio, esclarece o n.º 2 do citado preceito, entende-se que dá causa às custas a parte vencida, na proporção em que o for.
No caso em apreciação, como a apelação foi julgada parcialmente procedente, ambas as partes ficaram parcialmente vencidas no recurso, pelo que devem as mesmas ser responsabilizadas pelo pagamento das custas do recurso, na proporção dos respetivos decaimentos que se fixam em ¼ para a apelante e ¾ para o apelado.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e revogar a decisão recorrida, a qual se substitui pelo presente acórdão julgando parcialmente procedente o procedimento instaurado e determinando:

a) que o requerido entregue à requerente a seguinte documentação, relativa a esta, que mantém indevidamente em sua posse: atas de Assembleias Gerais da requerente e de reuniões de outros órgãos da requerente e outros documentos como planos de atividade da requerente;
b) que o requerido entregue à requerente o carimbo da Associação, pertencente à requerente, que mantém na sua posse;
c) que o requerido se abstenha de praticar atos em nome da requerente, por não estar legitimado para tal;
d) que o requerido se abstenha de usar o título de presidente do conselho diretivo da Comunidade Local dos Baldios de ..., uma vez que cessou as suas funções em 8-01-2023.
Mais se dispensa a requerente do ónus da propositura da ação principal, tal como por esta requerido, assim se declarando invertido o contencioso, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 369.º e 371.º do CPC, mantendo-se, no mais, a sentença recorrida.
Custas da apelação a cargo da apelante e do apelado, na proporção dos respetivos decaimentos, que se fixam em ¼ para a recorrente e ¾ para o apelado, em ambas as instâncias, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.

Guimarães, 24 de abril de 2024
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis (Juiz Desembargador - relator)
Maria dos Anjos Melo Nogueira (Juíza Desembargadora - 1.º adjunto)
Maria Luísa Duarte Ramos (Juíza Desembargadora - 2.º adjunto)



[1] Cf. Marco Filipe Carvalho Fernandes, Providências Cautelares, 2017 - 3.ª edição, Coimbra, Almedina, p. 167.
[2] Cf. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, LEX, 1997, 2ª Edição, p. 232.
[3] Cf. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III vol., procedimento cautelar comum, Coimbra, Almedina, 1998, p. 74.
[4] Obra citada, pgs. 84-85.
[5] Cf. Abrantes Geraldes - obra citada - pgs. 74-75.
[6] Cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 419.
[7] Diploma que estabelece o regime aplicável aos baldios e aos demais meios de produção comunitários possuídos e geridos por comunidades locais integrados no setor cooperativo e social dos meios de produção, referido na alínea b) do n.º 4 do artigo 82.º da Constituição.
[8] Concretamente, a «assembleia de compartes», o «conselho diretivo» e a «comissão de fiscalização».
[9] Cf., os Acs. TRG de 12-10-2023 (relatora: Alexandra Viana Lopes) p. 533/22.8T8VPA.G1, TRP de 24-01-2019 (relator: Aristides Rodrigues de Almeida) p. 188/17.1T8ALB.P1, TRG de 22-02-2018 (relator: Fernando Fernandes Freitas), p. 663/13.7TBAMR.G1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[10] Cf. Paulo Olavo Cunha, Comentário ao Código Civil - Parte Geral - Coord. De Luís Carvalho Fernandes, José Brandão Proença - Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014 - p. 385.
[11]Não obstante se constatar que a Lei  75/2017, de 17-08, não prevê qualquer disposição que imponha a necessidade de prévia aceitação por parte da assembleia de compartes de eventuais pedidos de renúncia ou de demissão dos membros dos respetivos órgãos locais, mais resultando do regime previsto no artigo 32.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, que a mesa da assembleia de compartes e os restantes órgãos das comunidades locais são eleitos pelo sistema de lista fechada pelos compartes constantes no caderno de recenseamento.
[12] Cf., Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, LEX, 1997, 2.ª Edição, p. 232.
[13] Lei n.º 75/2017, de 17-08.
[14] A este propósito, cf. Abrantes Geraldes - Obra citada - pgs. 89-90.
[15] Neste sentido, cf. Abrantes Geraldes - obra citada - págs. 147, 150; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa - obra citada - págs. 424-425; Lebre de Freitas-Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, p. 26; na jurisprudência cf. por todos, os acs. TRG de 23-11-2023 (relator: Pedro Maurício), p. 470/22.6T8AVV-C. G1; TRP de 27-03-2023 (relatora: Fernanda Almeida), p. 14766/22.3T8PRT-A. P1; acessíveis em www.dgsi.pt.
[16] Cf. Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 2.ª edição (reimpressão), Coimbra, 1995, p. 450.
[17] Obra citada, p. 357.
[18] Cf. Direito das Obrigações, 12.ª edição revista e atualizada, Almedina, 2013, págs. 1066 e 1067.
[19] Cf., Ac. do STJ de 02-12-2013 (relator: Salazar Casanova), p. 6687/09.1TVLSB.L1. S1, disponível em www.dgsi.pt.
[20] Obra citada, p. 432.
[21] Cf. Paulo Ramos de Faria/Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2013, p. 302.
[22] Relator José Cravo, p. 2246/23.4T8GMR.G1, disponível em www.dgsi.pt.